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sábado, 13 de dezembro de 2025

Guiné 61/74 - P27526: Os nossos seres, saberes e lazeres (713): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (234): A ópera Carmen, de Bizet, a maior igreja gótica do mundo, a Casa Lonja, tudo isto se passa em Sevilha, depois Granada e por fim Córdova - 1 (Mário Beja Santos)

Mário Beja Santos, ex-Alf Mil Inf
CMDT Pel Caç Nat 52

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Outubro de 2025:

Queridos amigos,
Este afã, inventado pela sociedade de consumo, de andarmos a visitar lugares só para olhar e pouco ver, finda a aventura excursionista, fica um travo de amargura.

 Começar por Sevilha e não visitar os Alcázares Reales, o esplêndido Museu de Belas Artes, o espaço da Cartuxa onde se realizou a Expo 92, não poder andar pausadamente pela Praça de Espanha, pela Triana e pela Macarena, deixa-me desgostoso, ainda por cima estava um tempo sublime, surpreendeu-me multidões por toda a parte, até ter descoberto que outubro é uma época altíssima do turismo, até ao Natal. 

Cheio de inocência e candura, também me esqueci de comprar bilhetes antecipadamente, paguei um preço severo, vi importantes monumentos do lado de fora. Aos 80 anos ainda tenho muito que aprender.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (234):
A ópera Carmen, de Bizet, a maior igreja gótica do mundo, a Casa Lonja, tudo isto se passa em Sevilha, depois Granada e por fim Córdova - 1


Mário Beja Santos

Não é propriamente ver Braga por um canudo, acordou-se em cerca de nove dias para sair de Lisboa e ir diretamente até Sevilha, daqui rumar para Granada, mudar de autocarro até Córdova, regressar a escassas horas até Sevilha, novo autocarro até Tavira, para uma curta estadia, mas com grande afeto.

O passeio começou em frente à Universidade, a antiga Fábrica dos Tabacos. Diz-se que a Praça em frente ao portão da tabaqueira é o palco de primeiro ato da ópera Carmen, de Bizet. Trata-se do local onde antigamente milhares de mulheres enrolavam folhas de tabaco para fazer charutos. Estamos a ver o portal principal coroado por uma estátua da Fama, é um edifício gigantesco, tem quatro alas, vários salões, no passado houve pátios interiores, estábulos e poços. Nos terraços de armazenamento, eram colocadas as folhas de tabaco em fornos especiais. 

Diz o guia que é possível visitar o gigantesco complexo da Universidade, mas tudo estava fechado. O edifício assemelha-se a uma fortificação militar com as alterações dos hábitos dos fumadores e a chegada do cigarro, a fábrica de tabacos entrou em declínio. Passou-se ao lado do icónico hotel Afonso XIII, passou-se por uma série de estabelecimentos de comidas onde toda a gente tinha à frente chocolate com churros, demandou-se a catedral, mas impunha-se ver com admiração o Arquivo Geral das Índias, não me importaria de andar por aqui a bisbilhotar este acervo de preciosidades dos descobrimentos do Novo Mundo.

Há um dado curioso sobre a vida anterior deste Arquivo. Aqui funcionou a Bolsa de Comércio, e quando esta deixou de ter importância, Carlos III instalou ali o Arquivo, daí o nome Casa Lonja. Segue-se agora a viagem até à Catedral de Santa Maria

Fachada principal da Universidade de Sevilha, antiga Fábrica Real de Tabacos
A Casa Lonja, hoje o Arquivo Geral da Índias, guarda os documentos da história dos descobrimentos do Novo Mundo. Aqui podem encontrar-se menções a Cortés e Pizarro, os descobridores do México e do Peru, a Fernão de Magalhães, e o Tratado de Tordesilhas, pelo qual as casas reais de Espanha e Portugal dividiram o Novo Mundo.
Uma das entradas da Catedral de Santa Maria, a primeira Catedral Andaluza, é a maior catedral gótica do mundo e as suas dimensões são superadas apenas pelas da Basílica de S. Pedro e da Catedral de S. Paulo, em Roma e em Londres, respetivamente.
A Giralda, começou por ser minarete da mesquita, como é patente teve acréscimos posteriores, felizmente não foi desfigurada a impressionante beleza deste património da arte islâmica. Atenda-se a um dos contrafortes da impressionante catedral.
Neste dia não havia visitas à catedral, assisti à missa com o sermão do Bispo de Sevilha, com canto coral, ali estive uma hora sentado em frente do maior retábulo que existe em Espanha.
É rigorosamente proibido tirar fotografias na catedral, a que mostro é obra de outro. Tem uma largura de mais de 18 metros e uma altura que se aproxima dos 28 metros, este é o retábulo principal da Capela Maior. É uma escultura de madeira de nogueira, larício e castanheiro, tem a forma de tríptico coroado por um baldaquino. O retábulo engloba 45 grupos de figuras, são momentos capitais da vida cristã. Para compensar distorções de perspetiva, as figuras de cima são maiores para que não pareçam mais pequenas vistas de baixo.
Lamento não poder mostrar o interior da catedral, a Capela Real, a Sacristia Maior, o túmulo de Cristóvão Colombo, a beleza das abóbodas, o Coro, enquanto participei na missa bem tentei admirar aquela mistura de elementos góticos mudéjares e platerescos, diz-se ser o cadeiral mais belo do sul de Espanha. A catedral foi concebida à semelhança dos salões de basílica, tem uma planta retangular, está dotada de cinco naves laterais e de capelas, que se encaixam entre os contrafortes. A catedral conheceu ampliações. Por exemplo, Carlos V mandou construir a Capela Real por cima de uma capela mais antiga na abside leste.
Impedido de fotografar dentro da catedral, aproveitei o ensejo de captar algumas imagens desde a entrada até à Capela principal propriamente dita, são as imagens que aqui retive, bem como esta última imagem do seu exterior que permite ver um pormenor da sua monumentalidade. 

E daqui parti, cheio de convicção de que era muito fácil ir visitar os Alcázares Reales, há umas boas décadas que cá não entrava. Qual quê! Uma fila quilométrica e a informação de que não era possível entrar antes do meio da tarde. Fica para a próxima.
Esses Álcazares Reales pertencem ao complexo histórico mais interessante de Sevilha, é impressionante a variedade arquitetónica que não retira brilho à harmonia geral. Remonta ao tempo do domínio árabe em Sevilha, o tempo do califado de Córdova e mais tarde aqui moraram os soberanos abádidas. 

Com a reconquista cristã, em 1248, no reinado de Fernando III, o Alcázar tornou-se residência cristã, houve sucessivos acréscimos, fiquei muito triste de não voltar a ver os jardins, o pavilhão de Carlos Pinto, o pátio de Yeso e o Palácio de D. Pedro. Há mais marés que marinheiros. O passeio prossegue.

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 6 de dezembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27500: Os nossos seres, saberes e lazeres (712): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (233): Por casualidade, o fotógrafo interessou-se por tal momento, por ele considerado esplendente - 5 (Mário Beja Santos)

sábado, 18 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27331: Os nossos seres, saberes e lazeres (705): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (226): Em S. Estevão de Ribas de Sil, no passeio termal de Ourense – 5 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Setembro de 2025:

Queridos amigos,
Ah! Sim, já sinto saudades de Ribeira Sacra, de Nogueira de Ramuin, lamento não ter regressado a Monforte de Lemos, que me levou no anterior passeio até Vigo. Não vou esquecer tão cedo o nome de certas localidades como Ribas de Sil, O Pereiro de Aguiar, A Teixeira, Castro Caldelas, Taboada, estas localidades onde não faltam igrejinhas românicas, belos mosteiros, matas que nos lembram sem dificuldade Sintra, campos frondosos, a ver se posso negociar para o ano as Ribas baixas , Lugo, Santiago de Compostela. Despeço-me da região contrafeito, embora sabendo que tenho outras belezas à minha espera, é o caso de Chaves e depois da romagem de saudade a Pedrógão Grande.

Abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (226):
Em S. Estevão de Ribas de Sil, no passeio termal de Ourense – 5


Mário Beja Santos

Durante a viagem no Canhão de Sil era recordado aos visitantes que todo este território tinha sido ocupado por eremitas a partir do século VI e havia um conjunto de mosteiros de grande significado à volta de Ourense. Não havendo disponibilidade para visitar os três, escolheu-se o Mosteiro e a Igreja de S. Estevão de Ribas de Sil. Começou-se pela Igreja abacial do Mosteiro, começada a construir em 1183, está aqui mesmo à nossa frente na descida, envolta por colinas escarpadas.

A caminho do Mosteiro e da Igreja de S. Estevão de Ribas de Sil
Fachada do Mosteiro e da Igreja de S. Estevão de Ribas de Sil. A Igreja do Mosteiro é de três naves cobertas com abóboda de cruzeiro, dispõe de um Coro Alto construído em finais do século XVII princípios do século XVIII. Houve para aqui uns desmoronamentos na nave central do Coro, recentemente recuperada. Este Mosteiro tinha fama da observância religiosa, nove bispos escolheram-no para última morada, daí o Mosteiro conservar a sua memória no escudo através das nove mitras. Mais adiante falaremos deste claustro. Resta dizer que no século XIII os nove bispos eram venerados como santos e que no século XV os seus restos foram trasladados para o Altar Mor.
Este retábulo em pedra é uma obra única do românico, data do século XIII. Quando se deu a expulsão das ordens religiosas, ocultou-se o retábulo numa parede de uma galeria do claustro grande; este retábulo só foi descoberto em finais dos anos de 1950.
Nesta preciosidade escultórica vemos Jesus no centro, rodeado de S. Pedro e S. Paulo, e está lá também representado o Apóstolo Santiago.
O belíssimo Altar Mor, e não menos assombroso tramo da abóboda que tem um óculo luminoso no centro.
Duas imagens mostram a magnificência da abóboda de cruzeiro.
A Igreja tem um bom acervo de retábulos barrocos, com exceção do retábulo do Altar Mor que é do estilo renascentista. Os outros retábulos são barrocos de diferentes épocas, dedicados a S. Bento e à virgem de Montserrat, há também retábulos dedicados a S. José e a S. Roque, veja-se aqui S. Roque expondo a ferida da perna.
Retábulo da Virgem Imaculada
Fachada do Mosteiro de S. Estevão de Ribas de Sil, estilo barroco, vemos o escudo com as nove mitras pertencente aos bispos santos.
Estamos no Mosteiro, possui uma atmosfera impressionante, foi outrora o mais importante Mosteiro da Ribeira Sacra, entre bosques de carvalhos e castanheiros. S. Estevão de Ribas de Sil é anterior ao século. O claustro grande também chamado dos Cavaleiros, é de estilo renascentista. Há também um claustro pequeno e o claustro dos Bispos, este romano-gótico.
Pormenor do Claustro dos Bispos, é o mais antigo de S. Estevão. Começou a construir-se em cerca de 1220 como espaço para exaltar a memória dos nove bispos santos. Comunica com a Igreja através de uma escadaria na face sul e de um outro acesso no claustro superior. Até há algumas décadas era cenário de procissões que agora se realizam na Igreja. O corpo inferior é românico, o superior gótico. Convém recordar que o Mosteiro entrou numa profunda decadência em finais do século XV e princípios do século XVI. O edifício albergou durante vários séculos uma escola de arte, e ficou ao abandono no século XIX. Foi declarado monumento nacional em 1923 e em 2004 abriu ao público como Parador Nacional de Turismo.
Nunca, nestas itinerâncias, se mostra o autor e quejandos, a única exceção é esta radiosa princesa, a minha neta, hoje com catorze anos, revelou-se muito interessada desde a Lousã onde lhe mostrei onde a mãe e a tia passaram férias, gostou muito de S. Pedro do Sul, rendi-me a este sorriso de quem não desdenha passar férias com o avô.
O passeio termal é a escassos quilómetros da cidade de Ourense, a característica é a sua água quente, espalha-se pelo Rio Minho entre a Ponte do Milénio e a Passarela de Outariz, foi exatamente aqui na Burga de Canedo que entregámos o corpo a água a temperatura tão aprazível. Os nomes destas termas são bem interessantes: Chavasqueira, Tinteiro, Moinho da Veiga, Fonte de Reza. Ficámos convencidos, queremos voltar.
Vamos sair da Galiza, o próximo destino é Chaves, não resisti a fotografar este belo espigueiro, dir-me-ão que há bastante parecidos em Portugal, pode ser, mas assim metido na paisagem e com aqueles tons azuis do céu e acinzentados das nuvens pareceu-me objeto sagrado, que afinal o é, acolhe os cereais da nossa boa alimentação. Até à próxima, adorada Galiza.

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 11 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27308: Os nossos seres, saberes e lazeres (704): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (225): O espetacular passeio na Ribeira Sacra – 4 (Mário Beja Santos)

sábado, 11 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27308: Os nossos seres, saberes e lazeres (704): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (225): O espetacular passeio na Ribeira Sacra – 4 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Setembro de 2025:

Queridos amigos,
Saímos de S. Pedro do Sul, o destino seguinte não era propriamente Ourense, mas a Catedral era de visita obrigatória, é um dos templos românicos mais deslumbrantes da Galiza. Escolheu-se uma povoação de Nogueira de Ramuin, começava-se o dia com um cruzeiro no Canhão do Rio Sil, viagem assombrosa pelos contrastes das duas margens, pela imponência do granito entre a vegetação agreste, e aquela singularidade dos mosteiros dos eremitas que depois os dominicanos e os cistercienses remodelaram. Irá visitar-se o Mosteiro de S. Estevão, fica para o próximo texto.

Abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (225):
O espetacular passeio na Ribeira Sacra – 4


Mário Beja Santos

Não há em toda a Espanha uma região como esta, quanto à arte românica, dispõe de centenas de templos religiosos, na sua maioria muito humildes, mas profundamente tocantes, são convocatórias vivas à fé do Homem. Na organização do nosso programa no sul da Galiza houve calorosa discussão, havia quem queria sair pelo Minho e visitar a Catedral de Tuy, houve propostas para ir a Lugo, uma neta de catorze anos decidiu por todos, já que há piscinas de água quente em Ourense, é para aí que vamos. E assim foi. Atravessa-se a fronteira e durante os primeiros quilómetros as diferenças são mínimas. Depois desaparecem os eucaliptos, elevam-se as serras, está alterada a paisagem, o casario.

E lá se viajou até Ourense, com o estômago a bater horas, a urbanização da cidade não deixou ninguém em frenesim, falei na Catedral, uma gema preciosíssima; depois de Santiago de Compostela, rezam as crónicas, não há nada arquitetónica e artisticamente tão sumptuoso. Olhá-la de fora, gera muita perplexidade, as alterações do século XI em diante são mais do que muitas: por exemplo, onde agora vemos aquele zimbório houve até ao século XV um teto abobadado. Como as recriminações para comer eram mais que muitas, a visita foi de médico, melhor dito, quando se chegou ao Pórtico do Paraíso todos ficaram de boca aberta. Sucede que este Pórtico foi feito um século depois do Pórtico da Glória de Santiago de Compostela, são linhas góticas opulentíssimas, ainda há restos de policromia, ali se debatem figuras do Antigo e do Novo Testamento. Entrada mais feliz na região do sul da Galiza não podia haver. Finda as delícias da mesa, rumou-se para os arredores, para um local onde há matas que nos recordam Sintra, de nome Luintra. A razão é muito simples quanto a esta escolha, queremos todos percorrer no dia de amanhã os tesouros naturais e edificados da Ribeira Sacra.

Ao romper da aurora, lá vamos a caminho do canhão do Rio Sil, à procura do ancoradouro de Santo Estevão. A Ribeira Sacra é região interior da Galiza composta de uma parte do sul da província de Lugo e de uma parte do norte da província de Ourense, território estruturado pelos rios Minho e Sil. O Sil é fronteira natural entre as duas províncias, Ourense na margem direita Lugo na margem esquerda. Do lado de Ourense, o rio é mais arborizado, tem mais sombra, é mais húmido, do lado de Lugo recebe mais horas de sol, tem as encostas ideias para a cultura da vinha. Vamos então começar o cruzeiro.

Fachada principal da Catedral de Ourense, 1160
Pórtico do Paraíso, Catedral de Ourense
Não, não se trata de uma paisagem lunar, é o amanhecer que deixa as formas indistintas, todo este granito escalvado e a vegetação agreste envolvente ainda não têm o recorte pronunciado. Aqui temos um microclima mediterrânico, ao contrário da maior parte da Galiza que tem um clima oceânico, pluvioso. Daí vermos nas escarpas carvalhos e castanheiros e toda a arborização típica do clima mediterrânico, nem faltam as oliveiras.
O que se vai revelando empolgante na viagem é o contraste das duas margens, as vinhas em terraços e nas encostas da margem esquerda e a vegetação agreste na margem direita. Há para aqui a barragem de Santo Estevão, muito perto do ancoradouro, erigida em 1957. Pergunto a um dos mestres da embarcação o porquê deste fenómeno da vinha. Ele aponta o dedo para os maciços graníticos e explica-se que as vinhas estão plantadas ao lado da pedra, é o granito que regula a temperatura, absorve o calor do sol durante o dia e transmite às vinhas durante a noite. E com o mesmo dedo aponta para os terraços ou socalcos, é ali que se planta melhor, e não deixa de comentar que há aqui garrafas de vinho que se vendem entre os 80 e 100€.
Temos aqui uma imagem dos meandros do rio, de um altifalante anuncia-se que olhemos para os pontos mais altos, há lindíssimos miradouros, e fala nos balcões de Madrid, tem a ver com as épocas da emigração a que foram sujeitos os galegos, até para Portugal, tanto podiam ser aguadeiros como amola tesouras, reparadores de chapéus de chuva, anunciavam-se por uma gaita e uma melodia inimitável.
Tivesse eu uma boa máquina fotográfica e o leitor ficaria verdadeiramente impressionado com a altura e a imponência destas escarpas.
Quem diria que nesta Ribeira Sacra há uma atração religiosa ímpar. Situa-se aqui a mais importante concentração da arte românica rural da Europa, tendo em conta a dimensão do território. A Ribeira Sacra possui uma centena de igrejas românicas e vinte mosteiros. Seguramente que todos são credores de visita, iremos, finda esta viagem no canhão do Sil, até ao Mosteiro de Santo Estevão. O Mosteiro de Santa Cristina de Ribas de Sil é um mosteiro românico do século X que pertenceu à ordem dominicana. Pode-se visitar o claustro e a igreja, que conserva retábulos e frescos e a rosácea da fachada principal é muito bela. Intrigado, fui procurar saber o porquê desta quantidade de mosteiros.

No início da Idade Média, as pessoas chegavam aqui atraídas pela espiritualidade dos lugares, tudo natureza e sem grandes centros populacionais. Essas pessoas eram os eremitas, uma corrente do cristianismo composta de pessoas que abandonavam tudo para viver na solidão. Quando acabara este passeio, quinze minutos depois estaremos no Mosteiro de Santo Estevão. Outro mosteiro importante é o de São Pedro de Rocas, que é o mosteiro mais antigo da Galiza, data do século VI, a sua visita é recomendada pela sua singularidade, a igreja possui três capelas aprofundadas na rocha, há uma necrópole medieval com túmulos antropomórficos e possui uma atalaia com uma altura de vinte metros. O castanheiro dava um alimento essencial na Idade Média, só no século XVI é que chegaram à Europa as batatas o milho e outros legumes. Vivemos uma manhã de sonho. À saída da viagem deram-me um folheto com os miradouros e descobri que o Concelho em que estamos a viver se chama Nogueira de Ramuín.

Vista do ancoradouro de Santo Estevão de um ponto alto
E pronto, chegámos a este mosteiro situado na encosta norte do Rio Sil, entre bosques de carvalhos e castanheiros, é dado como o mais importante mosteiro da Ribeira Sacra. Santo Estevão de Ribas de Sil, é anterior ao século X, é do tempo do Rei Ordonho II o restauro de uma comunidade de eremitas que habitavam a zona do Canhão de Sil, no século X restaurou-se o que fora o primitivo edifício datado do século VI. Não há na atualidade vestígios arquitetónicos das primeiras construções e o que de mais antigo se conserva é a igreja românica datada da segunda metade do século XII. É esta a visita que vamos fazer.
Estátua de homenagem em Luintra aos amola-tesouras que partiam desta região de Ourense para outros pontos de Espanha e Portugal

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 4 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27285: Os nossos seres, saberes e lazeres (703): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (224): O espetacular balneário romano de São Pedro do Sul - 3 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27303: A nossa guerra em números (39): E os "retornados" de outros impérios coloniais (França, Holanda, Grã-Bretanha, etc.) quantos foram ?


Bandeira da França, "vandalizada" com o emblema representativos dos "pieds-noirs" da Argélia.   Imagem do domínio público

Fobte: Cortesia de Wikimedia Commons



1. O "boneco" do nosso António Rosinha (*), "tuga", "colon", "retornado", leva-nos a fazer a seguinte pergunta: quantos "retornados" houve, no séc. XX, nos outros países europeus, para além de Portugal, com colónias ou protetorados que acederam à independência política ?  Casos nomeadamente da França, da Holanda, Grão-Bretanha...

Como termo de comparação, partimos da estimativa mais consensual do total geral de “retornados” (1974/76), oriundos de Angola e Moçambique: c. 500 mil / 520 mil pessoas.

Aproximadamente menos de 2/3 vieram de Angola, e pouco mais de 1/3 de Moçambique; das restantes colónias (Cabo Verde, Guiné, São Tomé) os números são residuais (**).


O caso mais notório seria, de entre os colonizadores europeus, o da França, que manteve na Argélia uma guerra prolongada e violentíssima, entre 1954 e 1962. 


 Tal como de resto não o é o termo "retornado" entre nós: de facto, havia  portugueses,  cabo-verdianos, guineenses, angolanos, moçambicanos,  goeses, e até chineses, etc., nascidos em África e para quem Portugal era o "Puto",  um país europeu, estrangeiro, distante, física, cultural e afetivamente. 

De facto, havia quem tivesse nascido em Angola ou Moçambique, de pais, avós e até bisavós oriundos de Portugal, continental e ilhas atlânticas (Madeira, Açores, Cabo-Verde) mas também de outras proveniências, e que se consideravam, a si próprios, depreciativamente, como "portugueses de 2ª"

 Em todo o caso, vinham cá de férias ou de licença graciosa ( os funcionários públicos),  vinham cá consultar o médico, ou estudar cá, etc. A universidade só tardiamente chegou a Luanda,  Nova Lisboa, Lourenço Marques... A formação das elites tinha que ter o "carimbo" de Lisboa...

Esses angolanos e moçambicanos não aceitavam ser tratados como "retornados".  Mas o "Puto" acabou por ser felizmente uma pátria de acolhimento para eles. Seriam hoje apátridas. É verdade que nem todos viajar para a antiga metrópole. Não sabemos quantos foram para  o Brasil, a África do Sul, a Venezuela...
 

A. Quantos foram os "pieds-noirs" que  sairam da Argélia, com a independência em 1962 ? (***)


É arriscado avançar com números, por causa das fontes, das metodologias, dos enviesamentos, etc.  Mas os números são necessários para termos uma noção mais aproximada das realidades complexas. É verdade que também servem para mentir, ocultar, branquear, etc.

A assistente de IA que rapa o tacho aqui e acolá, vasculha o lixo da Net, não tem espírito crítico nem muito menos empatia e compaixão, assim de rajada diz-nos logo que os "pieds-noirs" terão sido entre 650 mil e  1 milhão.  

Pés-negros ? Parece ter um sentido pejorativo, tal como "tuga" (no tempo da guerra colonial).. O nosso "retornado", apesar de tudo, parece ser mais "neutro", mas não é menos impreciso e redutor... A língua tem sempre estas limitações, e a realidade é sempre mais dinâmica, espessa e complexa.

Entenda-se: "pieds-noirs" = colonos europeus, principalmente franceses, que  saíram da Argélia após a independência em 1962, buscando refúgio sobretudo na França. 

Mesmo o termo "colono"  é impreciso: o missionário, o professor, o topógrafo, o médico,  etc., são colonos ?

O número exato varia conforme a fonte:

(i) vários relatos históricos estabelecem que cerca de 800 mil foram evacuados para França e aproximadamente 200 mil  permaneceram temporariamente na Argélia, sendo que o número dos que permaneceram foi se reduzindo rapidamente; 

(ii) algumas fontes falam em “quase 1 milhão” de refugiados (outro termo que também não é "neutro");

(iii) registros administrativos (de 1962)  apontam para  cerca de 650 mil a  680 mil os recém-chegados à França só nesse ano;

(iv) considerando também os judeus argelinos (alguns, seguramente sefarditas, de origem ibérica, c. 130 mil), bem como outros europeus, estima-se que até 1.050.000 pessoas de origem europeia viviam na Argélia no início da década de 1960; 

(v) sabe-se que a esmagadora maioria partiu com a independência, depois de uma guerra que foi uma tragédia.

O êxodo ocorreu de forma acelerada, em poucos meses, tal como em Angola e Moçambique, fruto do temor de represálias e das mudanças políticas, económicas e sociais radicais após o fim do domínio francês.

Claro que a saída dos "pieds-noirs" teve profundas consequências sociais e políticas tanto na Argélia como na França, marcando o pós-colonialismo no Mediterrâneo ocidental.


B. Quanto a holandeses (ou neerlandeses, como se diz hoje), saídos das ex-colónias dos Países Baixos...

O número de "retornados holandeses"  variaram bastante conforme o contexto histórico de cada território. 

Não houve um êxodo tão em massa e tão concentrado como no caso dos "pieds-noirs" da Argélia, nem do "ultramar português" (Angola, Moçambique...).

 Vejamos caso a caso:

(i) Índias Orientais Holandesas (Indonésia)

após a independência (1949), cerca de 300 /350  mil "colonos" emigraram para a Holanda entre as décadas de 1940 e 1960; mas nesse número não estão  apenas holandeses "puros" (de sangue),  mas também mestiços euro-asiáticos (os chamados "indos"), judeus, chineses e outros grupos ligados à administração colonial; os tais "indos " que migraram para a Holanda, serão estimados em 200 mil;

(ii) Suriname: 

com a independência em 1975,  quase metade da população original (estimada entre 100/150 mil pessoas) mudou-se para a Holanda, numa corrida migratória antes do encerramento das fronteiras (foram sobretudo descendentes de holandeses e outros grupos ligados à administração colonial);

(iii) Antilhas Holandesas: 

houve um  fluxo menor, mas constante, das ex-colónias caribenhas (Curaçao, Aruba, Sint Maarten) para a Holanda, especialmente em contextos de crise, totalizando hoje cerca de 200 mil descendentes de caribenhos holandeses  a viver  nos Países Baixos;

(iv) África do Sul: 

após o fim da dominação holandesa no Cabo (1815), muitos dos bóeres (palavra de origem neerlandesa, quer dizer isso mesmo, colono, descendente de holandeses) permaneceram na região e formaram comunidades que deram origem aos atuais africâneres; neste caso,  não houve uma saída massiva para a Holanda.

Mais especificamente os africâneres 
são um grupo étnico  sul-africano descendente de colonos, protestantes calvinistas,  europeus, principalmente holandeses, alemães e franceses (huguenotes), que chegaram ao Cabo da Boa Esperança a partir do século XVII. 

Eles falam africâner, uma língua germânica, que evoluiu do dialeto holandês dessa época;  desempenharam um papel central na história da África do Sul, incluindo o regime do apartheid (que vigorou de 1948 a 1994); historicamente, eles dominavam  setores como a política, o comércio  e a agricultura, mas a minoria branca, incluindo os africâneres,  é hoje uma pequena percentagem da população. 

Em resumo: a saída dos holandeses das ex-colónias foi significativa na Indonésia (após 1949) e em Suriname (após 1975), mas comparativamente menos dramática que a dos "pieds-noirs" na Argélia. ou das colónias / províncias ultramarinas portuguesas (há quem não goste do termo "colónias),

A diáspora holandesa mundial contemporânea reflete essas migrações, com estimativa de até 15 milhões de pessoas de origem holandesa/neerlandesa e seus descendentes vivendo fora da Holanda, incluindo grandes comunidades vindas das antigas colónias.  

C. Quanto aos britânicos, não há um número consolidado ou uma estimativa global de “retornados”, na sequência  das várias independências dos territórios do império onde o sol nunca se punha no tempo da Raínha Vitória...

Os retornos existiram, mas dispersos, com destaque para expulsões pontuais (ex: Uganda, 1972,  cerca de 27.000).

O fenómeno é amplamente documentado no caso português, mas não tem equivalente em escala ou identificação no caso britânico.


D. Os espanhóis, por sua vez,  não tiveram um fenómeno de "retornados" semelhante ao caso português.

A descolonização espanhola  (grande potência imperial) ocorreu maioritariamente nas Américas no século XIX, com processos de independência que resultaram na formação de vários países novos entre 1810 e 1824, e não no século XX como nos impérios britânico, francês ou português; esses processos de independência foram guerras e movimentos políticos e sociais que levaram à saída da Espanha das colónias americanas, mas não provocaram um retorno em massa de colonos espanhóis para a Espanha equivalente ao nosso caso no pós-25 de Abril.

Ainda há os casos residuais dos italianos, alemães, belgas... E até dos suecos, que, ao que parece,  também tiveram colónias.

(Pesquisa: LG + Assistente de IA / Perplexity, ChatGPT, Gemini...)

(Condensação, revisão / fixação de texto: LG)

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Notas do editor LG:

(*) Vd. poste de 6 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27288: Humor de caserna (214): O dono daquilo tudo, do Cuanza ao Cunene, o "colón", o retornado", o "coronel" e o "grão-tabanqueiro" António Rosinha

(**) Vd. poste de 12 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27113: A nossa guerra em números (31): Angola e Moçambique: População europeia total: ~535 mil / 600 mil | Total geral de "retornados" (incluindo os restantes territórios): c. 500 mil / 520 mil pessoas

(***) Último poste da série > 7 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27191: A nossa guerra em números (38): Em 27 de maio de 1974, existiriam no CTIG 1960 "bombas de napalm" (1170 de 350 litros e 790 de 100 litros)... ou apenas os invólucros

segunda-feira, 7 de abril de 2025

Guiné 61/74 - P26661: Notas de leitura (1787): Libelo acusatório sobre o colonialismo, como não se escreveu outro, no livro "Discurso Sobre o Colonialismo", por Aimé Césaire, editado em 1955 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Dezembro de 2023:

Queridos amigos,

Passando em revista os nomes sonantes do pensamento anticolonial, verifiquei que faltava nesta listagem uma referência a uma figura de primeiro plano, Aimé Césaire, hoje e ainda figura de proa surrealista, dos anos 1950 e 1960, alguém que, no primeiro Congresso dos Escritores Artistas Negros, em 1956, aludiu entusiasticamente às relações entre a situação colonial e a cultura, defendendo a necessidade militante de os intelectuais se comprometerem na luta popular de libertação nacional, a fórmula iria ser tomada à letra por líderes anticoloniais, como Amílcar Cabral, que reclamaram o direito dos povos, em situação colonial, a terem a sua própria história. 

Este discurso sobre o colonialismo tem a datação daqueles meados dos anos 1950, Césaire dirige um libelo acusatório à intelectualidade francesa e não subsistem dúvidas de que o seu documento faz parte da documentação fundamental do impulso anticolonial, um chamamento à ação dos intelectuais negros para as lutas de libertação.

Um abraço do
Mário



Libelo acusatório sobre o colonialismo como não se escreveu outro

Mário Beja Santos

A Martinica forneceu ao pensamento anticolonial duas figuras de referência: Aimé Césaire [foto à direita] e Franz Fanon, obviamente com características diferentes.

 Aqui se têm referenciado algumas obras indispensáveis para entender como se foi alicerçando o pensamento anticolonial, no continente americano, na própria atmosfera europeia onde ideólogos do antigo colonialismo foram bastante ativos, em África e na Ásia. De todos os nomes destes intelectuais que vão emergindo no Pós-Guerra ganhou preponderância o testemunho de alguém que ao tempo era dado como um poeta consagrado, um surrealista de peso, alguém que vinha da Martinica e que se formara em Paris, com altíssima classificação.

A obra que sujeitamos a análise, Discurso Sobre o Colonialismo, foi editada em 1955, (por coincidência, o ano da Conferência de Bandung, ponto de viragem para as lutas anticoloniais) o poeta lança-se num requisitório, como escreve Mário de Andrade, jamais um outro escritor negro proferiu, com tamanho talento, ao rosto dos opressores.

 Césaire escolheu claramente a quem se dirigia: aos intelectuais burgueses do seu país, a França, que ostentavam representar a consciência liberal, e ao fazê-lo alimentou a revolta nacionalista, como um seu colega de estudo, Leopold Senghor, mais tarde relembrou. O poeta começou por coligir testemunhos de colonialistas assumidos, irá fazer desfilar os horrores da dominação francesa em África, dará ênfase em Madagáscar, na Indochina e nas Antilhas.

Procurou reverter toda aquela argumentação da civilização dita cristã e ocidental. Começa por observar o que não é colonização: nem evangelização, nem empresa filantrópica, nem vontade de recuar as fronteiras da ignorância, da doença, da tirania, nem propagação de Deus, nem extensão do Direito. Colonizar é assunto de aventureiros e piratas, de comerciantes e de armadores, de pesquisadores de ouro e de mercadores. Tudo isto é uma hipocrisia recente.

 Nem Cortez, ao descobrir o México, nem Pizarro, diante de Cuzco, se proclamaram os mandatários de uma ordem superior, mataram, saquearam, enriqueceram a Espanha. A responsabilidade recai sobre o pedantismo cristão, ao considerar que o cristianismo é civilização e o paganismo selvajaria. Esta colonização esmerou-se em descivilizar o colonizador, embruteceu-o na verdadeira aceção da palavra, despertou-lhe os instintos para a cobiça, para a violência, para o ódio racial.

O colonialismo não aspira à igualdade, mas sim à dominação. E Césaire lança a questão das raças ditas superiores e das inferiores. Civilizar, para certos apologistas do colonialismo,  é não tolerar a “preguiça” dos povos selvagens. E o seu libelo acusatório sobe de tom:

“Onde quero eu chegar? A esta ideia: que ninguém coloniza inocentemente, nem ninguém coloniza impunemente; que uma nação que coloniza, que uma civilização que justifica a colonização é uma civilização doente e a colonização é testa de ponte numa civilização de barbárie.”

Daí, ele enuncia as expedições coloniais e os seus cadáveres: o coronel de Montagnac, um dos conquistadores da Argélia, o conde d’Hérrisson, que veio com um barril cheio de orelhas, o marechal Bugeaud que dizia que se devia fazer uma grande invasão em África que se assemelhasse ao que faziam os Francos, ao que faziam os Godos.

Importa não esquecer os massacres e as execuções, as conquistas coloniais fundadas sobre o desprezo pelo homem indígena, e assevera:

“Bem vejo as civilizações em que a colonização introduziu um princípio de ruína: Oceânia, Nigéria, Niassalândia. Vejo menos bem o que ela lhes trouxe. Segurança? Cultura? Juridismo? Entretanto, olho e vejo por toda a parte por onde existem, frente a frente, colonizadores e colonizados, a força, a brutalidade, a crueldade, o sadismo, o choque, e, parodiando a formação cultura, a fabricação apressada nuns tantos milhares de funcionários subalternos, ‘boys’, artesãos, empregados de comércio e intérpretes necessários à boa marcha dos negócios.”

Dirige-se em réplica de contraponto:

“Lançam-me à cara factos, estatísticas, quilometragens de estradas, de canais, de caminhos de ferro. Mas eu falo de milhares de homens sacrificados no Congo-Oceano. Falo dos que, no momento em que escrevo, cavam à mão o porto de Abidjan. Falo de milhões de homens arrancados aos seus deuses, à sua terra, aos seus hábitos, à sua vida, à dança, à sabedoria. Falo de milhões de homens a quem colocaram sabiamente medo, o complexo de inferioridade, o tremor, a genuflexão, o desespero, o servilismo.”

Dentro do seu libelo acusatório, vai desmascarando posições racistas, posturas de superioridade cultural e questiona os tais intelectuais burgueses franceses: 

“Os vietnamitas, antes da chegada dos franceses ao seu país, eram gente de cultura antiga, delicada e requintada. Estes malgaxes, que hoje são torturados, eram, há menos de um século, poetas, artistas, administradores. Impérios sudaneses? Bronzes de Benim? Escultura Songho? Livrar-nos-ia de tantos mamarrachos sensacionais que adornam tantas capitais europeias. O pequeno burguês não quer ouvir mais nada.”

Césaire também vai zurzir em missionários, etnólogos, amadores do exotismo, sociólogos agrários, a todos aqueles que, diz ele, desempenham o seu papel na sórdida divisão do trabalho, escarnece dos estudos sobre o primitivismo, os romancistas da civilização que negam os méritos às raças não-brancas, sempre para chegar à conclusão que todos os progressos da Humanidade acabaram por ser desencadeados pela raça branca, dirige-se mesmo a uma figura de proa do tempo, Roger Caillois:

“A inaudita traição da etnografia ocidental que, há algum tempo, com uma deterioração deplorável do sentido das suas responsabilidades, se engenha a pôr em dúvida a superioridade omnilateral da civilização ocidental sobre as civilizações exóticas”.

Acusa-o por favor parte do lote dos intelectuais europeus que se encarniçam a renegar os diversos ideais da sua cultura, isto quando no fundo, todos pensam pela mesma cartilha: o Ocidente inventou a ciência, só o Ocidente sabe pensar, no entanto, esses mesmos ocidentais esquecem certas verdades: a invenção da aritmética e da geometria pelos egípcios; a descoberta da astronomia pelos assírios; o nascimento da química pelos árabes; o aparecimento do racionalismo no Islão numa época que o pensamento ocidental tinha uma feição pré-lógica. 

“Nunca o Ocidente, no próprio momento em que mais se deleita com esta palavra, esteve tão longe de poder assumir as exigências do humanismo verdadeiro, de poder viver o humanismo verdadeiro – o humanismo à medida do Mundo.”

E despede-se na sua catilinária prevendo o que na prática veio a acontecer:

“Se a Europa Ocidental não toma de modo próprio em África, na Oceânia, em Madagáscar, isto é, às portas de África do Sul, nas Antilhas, isto é, às portas da América, a iniciativa de uma política das nacionalidades, a iniciativa de uma política nova fundada no respeito dos povos e das culturas, se a Europa não galvaniza as culturas moribundas ou não suscita as culturas novas, se não se torna despertadora de pátrias e civilizações, a Europa terá perdido a sua derradeira oportunidade.”

Eis, em síntese, um dos documentos de referência que levou ao conclave da liberdade dos povos colonizados, um conteúdo que chamou à atenção de futuros líderes anticoloniais, Amílcar Cabral seguramente que tomou em conta o princípio que Césaire enuncia, o direito dos povos, em situação colonial, a terem a sua própria história, como Cabral escreveu:

“(…) a libertação nacional de um povo é a reconquista da personalidade histórica desse povo, é o seu regresso à História, pela destruição do domínio imperialista a que esteve sujeito.”

Césaire foi um notável poeta que nos deixou um poderoso lirismo de combate, como se exemplifica: “Vejo a África múltipla e una/vertical na sua tumultuosa peripécia/com os seus refegos, os seus nódulos/um pouco à parte, mas ao alcance/do século, como um coração de reserva.”
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Nota do editor

Último post da série de 4 de abril de 2025 > Guiné 61/74 - P26651: Notas de leitura (1786): Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné: Na Terra do Novo Deus: O general Henrique Dias de Carvalho na Guiné (1898-1899) (5) – 2 (Mário Beja Santos)

sábado, 5 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26011: Manuscrito(s) (Luís Graça) (257): Porto Santo, e a África aqui tão perto - Parte II

 


Foto nº 14 > Porto Santo > Cidade de Vila Baleira > 4 de outubro de 2024 > Mural Porto Santo, Ilha Dourada, letra de Teodoro Silva; música de Max e Libertino Lopes; criação de Max.  Um famoso fado bolero lançado em 1954... Quem não se lembra, da gente da nossa geração ?

(Fonte: You Tube, com a devida vénia...)

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2019). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. A chegar ao fim as minhas "miniférias" em Porto Santo, eu que não queria cá vir, já levo saudades desta terra,,, Regresso amanhã ao "cont'nente'... E levo este fado-bolero no ouvido (já não o ouvia desde o século passado). Quando chegar a casa,  vou ver também o filme de Jorge Brum do Canto, "A Canção da Terra" (1938), aqui passado.

Sinopse:  " Porto Santo, junto da Madeira. A luta pela vida assume aspectos dolorosos com a seca, pois não chove na ilha. Gonçalves procura obviar ao infortúnio, com o alento que lhe traz o amor de Bastiana, e apesar da rivalidade com João Venâncio, que aliás possui água mas recusa partilhá-la. A resignação e o sacrifício, a ansiedade, a paixão e o ódio, ateiam conflitos humanos sob os caprichos da natureza..."

Aproveiteu ontem a tarde para visitar a Casa Colombo - Museu de Porto Santo e o Núcleo Museológico Brum do Canto. Esta terra não é sõ praia e miradouros. Tem história e memória... (*)


Foto nº 15 > Porto Santo > Vila Baleira > Mural no Centro Cultural de Congressos





Foto nhº 16 : Porto Santo > Casa Colombo - Museu de Porto Santos  


2. Não há talvez figura mais controversa, ligada à época da "1ª era da globabilização", com uma história tão "manipulada",  do que o Cristóvão Colombo (1451-1506). Por razões nacionalistas e ideológicas, todos o reivindicam (italianos, espanhóis, portugueses e até judeus) como um dos seus ...  Por outro lado, os seus feitos e a sua memória desemcadeiam paixões (**)...

Não devia ser boa rês, o homem.  Pessoalmente, sempre o considerei um aventureiro, um oportunista e até um "idiota" (ou "chico-esperto") que, ao chegar ao Novo Mundo, com a "fossanguice" de querer ser o primeiro a chegar  à Índia,  chamou "índios" aos seus habitantes... Mas, ao que parece, não era trouxa, e terá sabido muito bem tirar partido do "poder uterino"...  Os espanhóis chamam-lhe almirante e, claro, herói...

Sem querer tomar opinar sobre um dossiê complexo e controverso que desconhecço (a não ser muito pela rama), limito-me a reproduzir aqui um dos painéis que constam da Casa Colombo - Museu de Porto Santo, que visitei no passado dia 4 de outubro.  Dizem que o homem viveu aqui...Porto Santo teve um papel importante na nossa "expansão marítima"... (Sobre o polémico Cristóvão Colombo uma artigo, em inglês, na Wikipedia que me parece bastante completo e imparcial, mas só o li por alto.) (***)

Curiosamente, os italianos adoram esta ilha como turistas,,, Os dinamarqueses é pelo golfe...Os italianos devia ser... pelo Colombo!... No hotel onde onde estou, vejo muita gente que vem de Itália. Mas, como a maior parte dos portugueses, não devem ter interesse nem paciência nem pachorra para visitar a Casa Colombo - Museu de Porto Santo (a exposição permanente é em portuguèrs e inglês).  E é pena...Porto Santo não são só 9 km de praia... E  também uma  ilha onde se usam alguns poetas portugueses (Fernando Pessoa, Camões, Florbela Espanca...) para  "ajudar a contar outra história" do nosso mar...


Foto nº 17 > 


Foto nº 18


Foto nº 19

Porto Santo > Ponta da Calheta  > Município de Porto Santo >  Cartazes  celebrando, em 2022,  os 35 anos da Bandeira Azul (#35AnosBA)... No passado dia 21 de setembro, Dia Internacional da Limpeza Costeira, celebrado com apoio do Município, 12 voluntários recolheram na totalidade 101 kg de lixo marinho, na sua maioria plástico  no Calhau da Fonte Areia... Também aqui a massificação do turismo  tem o seu verso e reverso...

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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 3 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26007: Manuscrito(s) (Luís Graça) (256): Porto Santo, e a África aqui tão perto - Parte I

(**) Excerto do artigo da Wilipedia, em inglêrs (adapt e traduzido por Google Translate e LG):

(...) Colombo tem sido criticado tanto pela sua brutalidade como por dar início ao despovoamento dos povos indígenas das Caraíbas, seja por doenças importadas ou por violência intencional. 

De acordo com os estudiosos da história dos nativos americanos, George Tinker e Mark Freedman, Colombo foi responsável por criar um ciclo de "assassinato, violência e escravidão" para maximizar a exploração dos recursos das ilhas caribenhas, e ainda pelas mortes de nativos na escala em que ocorreram,   não podendo ser apenas imputadas  âs novas doenças. 

Além disso, eles descrevem a proposição de que a doença e não o genocídio é que causou essas mortes como a "negação do holocausto americano".[...] 

O historiador Kris Lane discute se é apropriado usar o termo "genocídio" quando as atrocidades não foram uma calara intenção de Colombo, mas resultaram de seus decretos, de objetivos de negócios familiares e de negligência.[...] 

Outros académicosw  defendem as ações de Colombo ou alegam que as piores acusações contra ele não são baseadas em fatos, enquanto outros afirmam que "ele foi culpado por eventos que estiveram muito além de seu alcance ou conhecimento".[...] 

Em  resultado dos protestos e motins que se seguiram ao assassinato de George Floyd,  em 2020, muitos monumentos públicos de Cristóvão Colombo foram removidos.[...]