Contos com mural ao fundo: O tio Ortiz (1906-1944), um herói trágico
Partiram de Lisboa para Berlim no mesmo avião. Tu e a
Manuela, em 1997. E, com a boa vontade de um passageiro (que aceitou trocar
contigo de lugar, um lugar à janela
sempre é mais apetecível do que o do meio), conseguiram fazer a viagem juntos,
pondo a conversa em dia.
Já não se viam há bastante tempo. E iam estar juntos em
Berlim numa conferência internacional sobre saúde e segurança no trabalho. A
Manuela, por sua vez, viera do Porto, tinha lá estado uns dias na festa de
aniversário do seu pai e aproveitara para rever o irmão mais novo (que dirigia
a empresa da família) e demais parentes e amigos.
Inevitavelmente a história da família veio à baila. A
Manuela já te falara em tempos da sua “costela francesa e basca”. E na época, a
ETA, a Euskadi Ta Askatasuna (em português, “Pátria Basca e Liberdade”) ainda
estava ativa, sendo notícia, de quando em vez, em títulos de caixa alta, nos
jornais, na sequência dos seus atentados ou da prisão de alguns dos seus
operacionais e/ou dirigentes.
Em 1981 tu tinhas andado no coração do país basco, do lado cá dos Pirinéus. Foste de férias, tendo feito campismo e passado por sítios icónicos mas ainda “sitiados”, e de algum modo "desaconselhados" pelas polícias e agências de turismo, na transição do franquismo para a democracia espanhola.
Alguns desses sítios “tocaram-te” muito, de forma ambivalente, por uma razão ou
outra, como foi o caso de Guernica e
Amorebieta-Echano. As placas toponímicas
estavam todas grafitadas, a vermelho, com os nomes das localidades, então ainda
em castelhano, a serem
sobrepostos pelos nomes em basco: Gernika, Amorebieta-Etxano...
Era uma época em que ainda poucos turistas, espanhóis,
franceses ou portuguesas, se atreviam a andar de carro, por aquelas bandas. Os
de Madrid eram tratados por "perros", os "perros
castellanos" (sic). Os franceses
também eram hostilizados, a menos que fossem bascos do outro lado dos Pirinéus.
Os portugueses, apesar de tudo, eram melhor acolhidos. O teu amigo V... (que
infelizmente já morreu há uns anos) andava de boina basca e ainda tinha uma visão
romântica sobre os "etarras" e todos os demais antifranquistas
radicais, a FRAP, o GRAPO... E fez questão de fotografar todos os restos de murais que ia encontrando pelo “país basco” com referência aos fuzilamentos de 27 de setembro de 1975 (de 3 membros da FRAP e dois da ETA político-militar).
Parece que é preciso a gente ir lá fora, ou lá para fora, para o
"estrangeiro", para ganhar a suficiente distância, perder-se no "labirinto da saudade" de que fala
o Eduardo Lourenço... Como tu e o teu amigo V..., mais as respetivas
caras-metade, que numa noite de verão e de tempestade, já em finais de agosto
ou talvez princípios de setembro desse ano de 1981, chegaram a um parque de
campismo perto de Guernica / Gernika… Justamente quando estavam a montar a
tenda, começaram a ouvir, no altifalante, a voz da Amália em "Estranha Forma de Vida"... E,
depois a seguir, o "Grândola, vila morena", na voz de Zeca Afonso...
− Há emoções sentidas fora da nossa terra, que são indescritíveis, e que nos marcam para sempre... – escreverás tu, mais tarde.
Tu, pessoalmente, que
toleravas a Amália, passarás a ouvi-la com outro respeito e emoção, desde que ela morreu, em 1999... Para o V..., em contrapartida , a Amália em
vida não passava de uma "reaça". E o fado uma "desgraça",
um dos três FFF que “o regime” (referia-se ao Estado Novo) “explorava até à
exaustão para a adormecer o povo”...
Morrera na Flandres, na I Grande Guerra, o avô materno da
Manuela. Teria 33 anos, a idade de Jesus Cristo quando foi crucificado.
− Ah!, a Flandres, o grande matadouro da Europa – comentaste
tu.
O avô Ortiz era origem basca e francesa, pelo lado da mãe. Dois dos seus três filhos acabaram por
vir parar a Portugal como refugiados de guerra… Fugidos da guerra civil
espanhola…
− Em 1936 ?!...
− Não, já em meados de 1937, depois do bombardeamento de
Gernika (com K).
E esclareceu a tua interlocutora:
− Claro, eu ainda não era nascida, nem os meus irmãos. A
minha mãe teria então 20 e poucos anos…
Era uma história comprida, dramaticamente cumprida,
a da família Ortiz.
− E trágica, pode acrescentar. Pelo caminho ficaram alguns
dos meus familiares, do lado materno, os Ortiz. Todos vítimas da guerra.
E depois de um curto silêncio, enquanto bebia o seu sumo, a
Manuel repetiu enfaticamente:
− Vítimas da guerra, da violência, da intolerância, da
estupidez humana…
Uma tia, mais velha que a mãe da Manuela, morrera no antigo
Congo Belga, por altura da independência, em 1960 ou 1961. Barbaramente assassinada, à catanada. Era enfermeira
numa missão católica.
Adiantou depois, a Manuela, que a última vez que vira essa
tia fora quando ela veio de férias a Portugal. Teria então os seus cinquenta anos. Lembrava-se do ano,
1958, porque fora na altura da “campanha do Humberto Delgado para a presidência
da República”.
Mas a tragédia da família , que começara na Flandres, em
1918, não acabava aqui. O tio Ortiz y Ortiz (conhecido só por Ortiz), o mais velho dos filhos do avô, já antes, em 1944, tinha sido morto num campo
de concentração nazi. Aos 38 anos anos.
E depois confidenciou-te:
− Vou conhecer Berlim, é a minha primeira vez, e vou tirar
uns dias de licença para poder viajar até à fronteira da Alemanha com a
Polónia. Pode ser que eu descubra o sítio onde o meu tio Ortiz foi assassinado.
Pelo menos quero conhecer Auschwitz. Vou ver se arranjo coragem para ir, pelo
menos, até Auschwitz.
Uma colega alemã, de origem polaca, já tinha dado à Manuela
umas dicas sobre a região e a localização de alguns dos antigos campos de
concentração nazis, na Alemanha e na Polónia.
− O alemão não é o meu forte. Só sei uns rudimentos.
Formei-me em línguas românicas. E, na realidade, nem sei para onde foi enviado o meu tio. Como
vocês dizem em Lisboa, não fiz o meu TPC, não tive tempo, com a ida ao Porto.
A Manuela Ortiz Fernandes era, pois, neta do “soldado desconhecido”.
Uma barragem de artilharia alemã – é fácil de imaginar − tê-lo-á apanhado a
conduzir a sua ambulância quando evacuava feridos graves, perto da linha da frente.
A família nunca soube pormenores. Difícil de imaginar é o
horror desta cena da morte do avô. Os seus restos mortais nunca foram encontrados, o que de algum modo
adensa o mistério das circunstâncias da sua morte.
− Não repousam por isso – esclareceste tu – em nenhum dos
cemitérios militares da Flandres, com direito a lápide de pedra, placa com
identificação (nome, posto e data da morte)… Nem à cruz dos cristãos.
O avô da Manuela, infelizmente, teria ficado numa pilha de restos humanos, numa
vala comum, no próprio campo de batalha… Pulverizado. Mas, a pior de todas
ainda era a vala comum do esquecimento,
como é costume dizer-se a propósito dos
milhões de combatentes de todas as guerras da História.
A Manuela pegou nesta tua observação, trivial, para ir
buscar um exemplo ao seu passado em Portugal:
− Ah!, sim, infelizmente, no colégio de freiras, no Porto,
onde eu andei, só se falava dos heróis, dos reis e dos generais, sobretudo como
vencedores das guerras da história de Portugal. Fazia-me sempre confusão. Muito
menos se falava da guerra do ultramar. Eu tinha 15 anos, ia fazer 16, quando
rebentou a guerra de Angola. O ‘terrorismo’, como dizia o meu pai. Ainda andava
no 5º ano, e ainda estávamos chocados, lá em casa, com a morte da tia no Congo.
Em boa verdade, não se falava das guerras, não fossem as
pobres criancinhas, suscetíveis, indefesas, ficaram para sempre traumatizadas…
Os rapazes, esses, sim, teriam a oportunidade, única, de conhecer uma guerra a
cores e ao vivo, dentro de alguns anos, pensaste tu... Em Angola, Guiné ou
Moçambique..
− Não se esqueça – recordou-te ela – que eu ainda apanhei a
‘escolinha’ do Estado Novo e a mocidade portuguesa feminina.
E que lembranças tinha a Manuela desse avô Ortiz?
− Vi, uma vez, uma
foto dele, no dia em que terá sido promovido a sargento, presumo eu. Era um
garboso militar do serviço de saúde. Bonitão, de bigode farfalhudo, como se
usava na época. Era basco, do sul de França. Depois da tropa, seguira a carreira militar.
E acrescentou:
− Havia uma outra foto, com os três filhos e a mulher. A
minha mãe, que devia ter dois anos, estava sentada ao seu colo. Ao lado, dos
pais, cada um dos outros filhos, a irmã e o irmão da minha mãe, que eram mais
velhos. Deve ter sido tirada em 1913 ou
1914, pouco antes do início daquela maldita guerra.
− Esses filhos, a sua mãe e os seus irmãos, o que lhes terá acontecido depois?
Delicadamente, mas algo a
contragosto, a Manuela procurou satisfazer a tua curiosidade intrusiva, sobre os acontecimentos subsequentes que
levaram à dispersão da família. Ela, Manuela, só sabia, por alto, o que se tinha
passado, no pós-guerra. Aos três irmãos, tendo ficado órfãos, pôs-se a hipótese de serem “institucionalizados”:
como filhos de militar falecido (ou desaparecido) em combate, poderiam ser internados num
orfanato. O mais velho teria então 12 ou 13 anos. A viúva, essa, já estava
internada num hospício.
Mas em vez de irem parar a um orfanato, foram acolhidos por
uma outra família basca, do outro lado da fronteira, que tinha sido poupada aos
horrores da guerra. As duas famílias ainda eram aparentadas, com um bisavô em comum. Daí tratarem-se por primos…
E aproveitou para te dizer que dava muita importância aos
“laços de sangue” e que esse seria um traço forte da cultura basca… O que não te
convenceu, mesmo sabendo pouco ou nada da cultura basca:
− Mais do que aos laços de sangue, eu dou importância à
língua, à partilha de afetos, às memórias, às vivências comuns… A sua mãe
falava basco?
− Infelizmente, não. A minha mãe e os seus irmãos, o meu tio
e a minha tia, só falavam o francês e depois
o espanhol. A minha avó materna não era basca, são as mães, no país basco (e em
toda a parte, julgo eu) que transmitem a língua (materna) aos filhos.
− E depois o português, claro?!
− Ah!, sim, mas só mais tarde. Todos aprenderam o português,
exceto o meu tio Ortiz que, esse, havia regressado a França, em 1936, já homem feito, na altura do ‘Front
Populaire’, a Frente Popular . Em
Bilbau, já era um bom cozinheiro. Tirou
depois um curso de ‘chef de cuisine’.
Sobrevoavam já a França, quando ela te começou a falar,
surpreendentemente com grande ternura, desse tio que ela nunca conhecera, a não
ser de fotografia e das conversas, esparsas, com a mãe.
Cozinheiro de profissão, “partisan”, membro da Resistência Francesa, o
tio Ortiz terá sido preso, em 1941 ou
1942, a seguir ao armistício, numa
cidade da Côte Azur, pela milícia do
Governo de Vichy, e mais tarde “miseravelmente” entregue à Gestapo. O facto de
ter sido capturado com uma arma em casa, contribuiu para agravar a sua
situação.
Terá passado primeiro pelo campo de Gurs, nos Pirinéus
Atlânticos, originalmente criado pelos franceses para acolher os refugiados
republicanos, espanhóis e internacionalistas, fugidos do terror franquista, e
que, depois, com o governo de Vichy, fora transformado em campo de detenção
para os membros da resistência francesa, os judeus e outros…
Uns meses a seguir, o tio Ortiz terá sido transferido, com
outros detidos considerados perigosos (com destaque para os comunistas) para o
campo de Royallieu, na comuna de Compiègne, a nordeste de Paris. E aqui perdeu-se
o seu rastro. Sabe-se que mais de cinquenta mil presos desse campo (incluindo judeus) foram depois
deportados para campos de concentração e de extermínio fora da França:
Auschwitz, Ravensbrück, Buchenwald, Dachau, Sachsenhausen, Mauthausen, Neuengamme…
Qual deles terá sido a
"última morada" do tio Ortiz ?
A Manuela infelizmente ainda não sabia. Quando quis voltar a
falar com a mãe sobre o passado da família e o destino trágico dos seus dos
dois seus irmãos, já ela estava mal, com
idas frequentes ao IPO, no Porto.
−E em 1975, também não tínhamos cabeça para nada, muito
menos para recordar o passado da família.
Eu ia fazer 30 anos, já estava a dar aulas como professora de francês, e o verão quente de 75 também mexeu
muito comigo. Houve saneamentos de pessoas, a política estava ao rubro, havia
conflitualidade por todo o lado, nos quartéis, nas ruas, nas empresas, nos
campos, nas escolas...
A mãe, ainda lúcida, foi assaltada pelos fantasmas da guerra
civil espanhol. Mas a família procurou poupá-la, ocultando-lhe a situação
social, politica e militar que se estava a viver, incluindo os problemas da
empresa do pai… Morreu em paz, na véspera de Natal. E ficou “sepultada na terra
onde, apesar de tudo, fora muito feliz”,
o Porto.
Sobre a avó materna, a Manuela sabia ainda menos. Pouco ou
nada lhe contaram sobre ela em criança.
Era um assunto tabu na família. A Manuela viria, mais tarde, a descobrir, pelo
álbum da família e da pouca correspondência que se salvara, das andanças de
terra em terra, que a avó francesa enlouquecera
na sequência do trágico desaparecimento do marido na Flandres.
– Vestira-se de luto, como as mulheres dos pescadores da
nossa costa, mas não acreditava na morte
do marido. Tinha a secreta esperança que ele tivesse sido feito prisioneiro
pelos alemães. Morreria cedo, a avó, num
manicómio. Mas, como disse, não era de origem
basca… A minha mãe também morreria cedo, como já lhe contei. Em 1975, aos 63
anos, no Porto. De cancro da mama, doença que na altura era quase incurável. O
meu pai ainda a quis mandar para Londres, mas os médicos desencorajaram-no. E
ele, já com 78 anos, também estava com
pouca força anímica.
Explicou-te por que é que nunca falou basco. Nem ela nem a mãe.
Só o avô materno é que era basco. Em Bilbau, onde vivia e trabalhava em 1997, a
Manuela ainda começara a aprender o
“euskara”…
– Já sou capaz de ler e compreender alguma coisa. Mas é uma
língua tramada para os nossos ouvidos, indo-europeus. E, depois, verdadeiramente
não me sinto basca. Sou muito mais portuguesa, e tripeira, se quiser... embora
também goste de Lisboa, onde fiz o meu curso. A minha mãe, essa, sim, tinha as
melhores recordações do país basco, da sua adolescência e juventude passadas na
província de Biscaia, perto de Bilbau… O basco falava-se sobretudo nas zonas
rurais e havia (e ainda há) vários dialetos.
– Mas tem material genético basco no seu ADN...
– Apenas uma pequena parte, nem sequer metade... E mesmo que
fosse metade basca e metade portuguesa, o que é que isso queria significar?
– Nada!... Mas há a lotaria genética... Qual a metade boa,
qual a metade má?
– Só me preocupo com os 'defeitos de fabrico'..
Olhe, por exemplo, o cancro da mama... Quanto ao resto, é puro racismo... Será
que os bascos são mais 'violentos' ou 'truculentos' que os
portugueses?
– Oh!, Manuela, não quis dizer isso nem sequer insinuar...
– A ‘violência revolucionária’ da ETA não é um fenómeno exclusivamente basco, nem eu me
identifico com a ETA ou qualquer outra organização nacionalista radical...
– Outros dirão 'terrorismo'...
– Como o meu pai… Mas eu não entro por essas diferenças
semânticas e conceptuais. Poupem-me! Violência é violência. Mas quem quis
destruir a identidade, a cultura, a língua bascas ? Mais recentemente o
Franco... que proibiu os bascos de falarem o basco, o ‘euskara’ e transmiti-lo aos seus filhos... Mas no
passado, os bascos também foram
discriminados em Espanha, tal como outras minorias, os judeus, os catalães, os
galegos...
– Desculpe, Manuela, se
involuntariamente a ofendi ou
melindrei. Também temos, na nossa história comum, como portugueses, períodos de
grande violência, física e simbólica.
– Pelo que sei de História (e sei pouco, confesso), Portugal
está longe de ser o tal país de brandos costumes que a propaganda de Salazar
contrapunha ao resto da Europa do seu tempo...
Embora a minha mãezinha estivesse grata ao Portugal de Salazar, diga-se
de passagem…
A família que acolhera (e depois adotara, legalmente) a mãe
da Manuela e os irmãos, no início dos anos 20,
teve meios de se refugiar mais tarde, em Portugal, em 1937. Eram nacionalistas e republicanos,
mas católicos, como muitos bascos. Beneficiaram das boas relações comerciais e
até de amizade que mantinham no Porto.
Era gente com tradição no negócio do vinho, com filial no Porto (que prosperou).
Gente de “classe média alta”, segundo a Manuela.
− Foram os nossos ‘avós’,
adotivos. Infelizmente já morreram. Regressaram, no final dos anos
50, aos arredores de Bilbau onde sempre tiveram a casa e a quinta,
a 'baserri', que entretanto fora transmitida ao filho varão, o mais velho, o
equivalente à figura do nosso morgado. E
que cuidou do património. Nunca saíra de Bilbau, apesar das grandes dificuldades
do pós-guerra. Também nunca mais o vi, a esse meu ‘primo’, que fomos visitar
uma vez, teria eu os meus 10 anos.
Portugal tornou-se assim a terceira pátria da família, depois da
França e da Espanha.
− Neste caso, da minha tia (que foi para freira), e da minha
mãe… que conheceu aqui o meu pai, também ele negociante de vinhos, amigo dos
meus ‘avós’, adotivos… Na Praia da
Granja, que era frequentada por uma certa elite, no início dos anos 40… Era
quinze anos mais velho que a minha mãe. E daí a razão de eu ter nascido, em
1945, no Porto, já depois do fim da guerra. Sou filha do pós-guerra, faço
sempre questão de o dizer. Mas, em contrapartida, o meu nascimento foi saudado
com a bomba atómica de Hiroshima e
Nagasaqui, nasci poucos dias depois, em
agosto de 45.
O senhor Fernandes era um conceituado "comerciante de vinhos
e espirituosas", grossista, importador e exportador, da praça do Porto, com
armazéns em Vila Nova de Gaia, na margem esquerda do rio Douro, e negócios
prósperos em África (nomeadamente em Angola).
Sabia-se (alguns amigos mais íntimos e a família) que tinha “uma
ascendência cristã-nova”, com raízes provavelmente na medieva comunidade
judaica sefardita da cidade do Porto. A família deve ter tido, em finais do
séc. XVII, problemas com a Inquisição,
razão por que se mudou, na totalidade ou em parte, para o Brasil onde
prosperou. Alguns terão regressado com a corte de Dom João VI, em 1821. E estiveram
no cerco do Porto, ao lado de Dom Pedro IV.
O patriarca da família não tinha pretensões a títulos
nobiliárquicos como o futuro apoiante da causa de D. Pedro IV e da sua filha
Dona Maria II, o José Ferreira, que num dia será sido feito cavaleiro, no outro
barão, e depois visconde, e por fim, conde... O conde Ferreira, o grande
benemérito do nosso liberalismo.
Apesar de ter conhecido e até convivido, ao que parece, com o capitão Barros Basto, o senhor
Fernandes nunca se aproximou da comunidade judaica do Porto. Punha os seus
negócios acima de outros interesses. Mas sempre foi um homem do seu tempo,
“laico, republicano, liberal… e tolerante” (sic), mas com boas relações com o
poder, ou pelo menos com o poder económico,
a burguesia financeira, industrial e comercial do Norte. Foi o retrato que te fez a sua filha, já
depois de terem chegado a Berlim.
Mas quem era afinal a Manuela Ortiz Fernandes?
Tu já a conhecias de Lisboa, das “lides profissionais”. Desde
o ano da adesão de Portugal e da Espanha à CEE, a Comunidade Económica Europeia,
em 1986. Ainda não havia a União
Europeia nem o euro.
O meio profissional ligado à saúde e segurança no trabalho
(ainda se dizia por cá “higiene e segurança no trabalho”, por um lado, e
“medicina do trabalho”, por outro…) era então pequeno e toda a gente se
conhecia, daqui ou de acolá (o ministério do trabalho, que tutelava a área, a
inspeção do trabalho, as grandes empresas, os médicos do trabalho, os técnicos
de higiene e segurança, a Escola Nacional de Saúde Pública, etc.).
Deves ter conhecido a Manuela nalgum encontro ou fórum
internacional. Sabias que ela na altura trabalhava em Barcelona, e estava cá
com uma representação catalã. E ficaram em contacto. Reencontravam-se agora, em
1997, no aeroporto a caminho de Berlim, uns anos depois da queda do muro e da
reunificação da Alemanha. Continuavam a tratar-se por você. Sentias que ela
gostava de guardar alguma distância e, como toda a gente, tinha as suas
defesas. Mas era uma pessoa agradável, uma boa companhia sobretudo quando se
está no estrangeiro, por uns dias, em trabalho.
Estavam os dois a
participar numa conferência internacional sobre saúde e segurança no trabalho (“health
and safety at work”). Tu, como académico, ela como tradutora-intérprete da
Agência Europeia de Segurança e Saúde no Trabalho, com sede em Bilbao, criada
em 1994, responsável pelo evento em parceria com a autoridade alemã para as
condições de trabalho.
Por sorte, estavam alojados no mesmo hotel, de três
estrelas, confortável, barato, e com bons acessos, perto da estação de metro
que os levava ao centro de conferências onde se realizava o encontro.
O edifício, embora totalmente remodelado, ainda tinha traços
da arquitetura “estalinista” do pós-guerra. A zona oriental de Berlim ainda era
um mundo à parte, embora já sem o muro (ou com apenas alguns restos dele, todos
grafitados). Era muito procurada pelos turistas, até porque os preços da
hotelaria e restauração eram mais baixos do que do “outro lado”, ocidental… E,
depois, ainda era um “museu vivo” da antiga RDA – República Democrática Alemã…
Para a Manuela e para ti,
era uma sensação estranha: o muro estivera de pé entre 1961 e 1989,
dividindo não só os berlinenses e os alemães, como os próprios europeus. Era o
“muro da vergonha” de todos os europeus, e não só dos alemães...
Se é verdade que a reunificação da Alemanha, há sete anos
atrás, em 1990, marcara o fim da chamada guerra fria (opondo a União Soviética
aos seus antigos aliados ocidentais da II Guerra Mundial), ambos se davam conta, em 1997, que infelizmente outros
muros, invisíveis (ou menos visíveis a olho nu), se estavam a erguer na “nossa
velha e adorada Europa”. E que a Rússia afinal era um urso ferido e humilhado,
o que não era bom para ninguém, a começar pelos europeus, tanto do leste como
do oeste.
A decadência urbanística ainda era evidente. Mas Berlim já
era então um estaleiro de obras públicas, estava em marcha a segunda
reconstrução da cidade, depois da terrível destruição da II Guerra Mundial.
(Quem não se lembra do filme "Alemanha, Ano Zero", de Roberto
Rosselini, de 1948?)
Ainda era verão, mas as noites de Berlim não convidavam a
grandes passeatas. Depois do jantar, ficavam à conversa sempre que não
havia “programa social”. Já tinham feito
um “city tour” pela Berlim leste, e "canibalizado" um bocadinho do
muro como "recuerdo", como toda a gente fazia.
Havia mais alguns portugueses, participantes no encontro,
representando a administração do trabalho e os parceiros sociais, mais um ou
outro médico do trabalho. Mas estavam alojados noutro hotel, dos selecionados
pela organização, e que ficava no mesmo quarteirão, não longe dali.
Na época a Manuela ainda fumava muito, e queixava-se que o
tabaco prejudicava o seu desempenho profissional como tradutora-intérprete: às
vezes ficava rouca, ou com tosse, e até sem voz.
− Queria muito poder deixar de fumar – confidenciou-te ela,
a ti, ex-fumador, mas tolerante.
Na época havia uma “cruzada fundamentalista” contra o tabaco
e os tabagistas. A Manuela ficava “piursa” (sic) quando tinha que ouvir o
discurso dos nórdicos (a que os latinos ainda faziam orelhas moucas)… O
"fascismo sanitário", dizia ela, começara nos EUA e nos países
nórdicos...
Mas foi a propósito da história da família que tu retomaste a
já longa conversa sobre o tio Ortiz y Ortiz (ou só Ortiz),
interrompida, quando o avião aterrara.
Ela própria reconhecia que era “muito conversadeira”, saindo
nisso à mãe. Por outro lado, aos seus olhos, tu terias a qualidade de ser uma
boa companhia, senão mesmo um discreto confidente. Além disso, “sabias ouvir”,
sem estar sempre a interromper, com perguntas ou apartes. Muito menos fazias
críticas ou juízos de valor. E sobretudo inspiravas-lhe confiança. E nada como
o “hall” de um hotel estrangeiro, convidativo ao “dolce far niente”, à conversa
mole e também à má língua… sobre colegas, organizações e países.
−Auschwitz?... Poucos alemães lá devem ter ido. Havia o muro
da vergonha, mas também antes os campos da vergonha – atalhaste tu.
− É como o Vale de los Caídos, em Espanha, onde tiveram a
lata de sepultar o Franco. Recuso-me terminantemente a lá ir.
Da sua vida privada, nunca te falou ou só muito por alto. Tinha
mais dois irmãos, sendo ela a mais velha. Do do meio, disse-te que não lhe
apetecia sequer falar. Saíra do país antes de fazer os 18 anos, para escapar à
tropa. Radicara-se em Andorra onde tinha um “hotel de charme”. Empresário,
diretor turístico, pouco ou nada queria saber da família e de Portugal. Antes
do 25 de Abril não podia sequer lá pôr os pés, sendo considerado faltoso ou
refratário. O mais novo, esse, ficara à frente dos negócios do clã, para
descanso e tranquilidade do velho pai que não queria ver morrer a empresa da
família, que sofrera um abalo com o 25 de Abril e depois com a descolonização.
Ela, por sua vez, saíra de Portugal em 1976, no final do ano
letivo.
− Não gostei do rumo político que tomou a revolução dos
cravos… Também achei que fora um sonho lindo que acabara como todas as utopias…
E cada um queria ver realizada a sua!... E muito menos gostei da minha curta e
frustrante experiência de professora de francês. Na minha escola havia quase
tantos grupúsculos políticos quantos os professores...
Foi para Barcelona onde fez um curso de pós-gradução de
tradutora-intérprete. E arranjou a seguir trabalho como tradutora. Poliglota, além do inglês, falava fluentemente ou lia quase todas as principais línguas latinas ou
românicas (o castelhano, o catalão, o francês, o português, exceto o romeno).
Não desgostava do que fazia, embora não morresse de amores pela área da saúde e
segurança no trabalho. E viajava, que era uma coisa que lhe agradava. E
sobretudo não ganhava mal (“ganhava muito mais do que em Portugal”).
Nunca soubeste se tinha filhos, relacionamentos, etc. Nem
ela alguma vez te perguntou pela tua família. Era uma mulher atraente, mas de
forte personalidade, “muita senhora do seu nariz”.
Só uns dois ou três anos mais tarde, já no virar do século,
é que a Manuela te contou o desfecho da história (trágica) do tio Ortiz. Desta
vez, fora em Bilbau, quando se voltaram a encontrar. Já existia o Museu
Guggenheim e a cidade já nada tinha a ver com a decadência urbana e
industrial que tu conheceras em 1981,
quando a visitaras pela primeira vez.
Afinal, não fora na Polónia nem na fronteira da Alemanha com a Polónia,
como ela imaginara, que o tio Ortiz morrera:
− O meu tio Ortiz morreu em Dachau.
− Em Dachau?!
− Sim, em Dachau, na Baviera, no sul da Alemanha, a escassos
quilómetros de Munique...
Acabou por saber, mais tarde, de fonte francesa, que o tio Ortiz fora levado de Royallieu para Dachau. Por incrível que possa parecer, os SS (Schutzstaffel) que administravam o campo, construído pelos nazis para internar presos políticos e inaugurado pelo próprio Heinrich Himmler, em 1933, aproveitaram as competências profissionais do tio Ortiz.
Por sorte ou por azar dele, puseram-no a cozinhar
para os carrascos. Por sorte, porque foi poupado aos duros e infames trabalhos
que eram reservados aos prisioneiros; por azar, porque não podia cometer erros.
(Nunca lhe poderia, por exemplo, passar pela cabeça envenenar a comida: ele era
o primeiro a ter que a provar.)
Ganhara as boas graças dos carrascos, que até o tratavam, à
francesa, por "chef", em tom de chalaça, com um toque do humor,
alarve, bávaro. Mas a “cuisine française” (tal como os vinhos, o "cognac" e o "champagne") não deixava de ter prestígio aos olhos dos nazis…
− No inferno, a cozinha é inglesa, a gestão italiana e o
humor alemão... Nunca ouviu dizer? – perguntaste tu à Manuela. − É uma variante
da anedota que os idiotas dos europeus
contam uns sobre os outros...
Havia várias células, clandestinas, da resistência francesa
em Dachau.
− O tio Ortiz fazia parte de uma. E, depois de ganha a confiança dos SS, começou a guardar as sobras das refeições e reparti-las pelos seus camaradas que por sua vez também as faziam chegar aos mais fracos e doentes...
É o testemunho posterior de um dos sobreviventes, disse-te a Manuela.
− A imaginação, a capacidade de resistência e a abnegação do
ser humano, mesmo em situações-limite como a guerra, a prisão, o campo de
concentração, o terminal da morte, levam-me a pensar que às vezes nós, homens, também
somos capazes de transcender a nossa
condição animal e atingir, mesmo que por breves instantes, o estatuto do herói,
do semi-deus, do herói grego como o Ulisses...
E concluíste o teu pensamento:
− Manuela, o seu tio
Ortiz foi um herói. Um herói trágico.
O esquema funcionou até meados de 1944. Quando foi
descoberto (ou denunciado?), o tio Ortiz foi sentenciada com a pena capital,
sem apelo nem agravo, pelo comandante do campo, que adorava os seus cozinhados.
Foi executado no dia seguinte para exemplo dos outros presos. Deram-lhe apenas
a escolher (!)... entre a forca e o fuzilamento. Escolheu o pelotão de
fuzilamento, honrando a sua condição de “maquisard”, de antigo combatente no
“maquis”…
− Resistiu até ao fim, no limite das suas forças, da sua
lucidez, da sua coragem. E, apesar da tortura, não terá denunciado ninguém...
Morreu com grande dignidade, como poucos, gritando perante os seus carrascos: ‘Vive la liberté, l'égalité et la
fraternité!... Vive... la France!’ [Viva a liberdade, a igualdade e a
fraternidade!... Viva a... França!]
E, um pouco emocionada, a Manuela concluiu:
− Tenho orgulho no meu tio Ortiz!
[Por razões óbvias, Manuela, que ainda deve estar viva, é um nome fictício. LG]
___________(*) Último poste da série > 22 de março de 2024 > Guiné 61/74 - P25295: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (23): O fado de Rosemarie - II (e última) Parte
2 comentários:
Sofrimento, luta, sobrevivência, coragem e dignidade.
Mais um belo " conto com mural ao fundo. "
Obrigado Luís por nos proporcionares a leitura destas histórias/contos.
Abraço fraterno
Eduardo Estrela
Caro Luís
Poderá haver quem se interrogue com o chavão de "mas o que é que isto tem a ver com a guerra na Guiné?" e fazendo disso uma arma de arremesso para pensar que isso pode zurzir no Blogue.
Mas não é assim.
Há um conjunto de diálogos sobre vários temas, é certo, mas o que sobressai é de facto a história do "tio Ortiz" a qual encaixa muito bem nas diversas circunstâncias que antecederam a "guerra na Guiné", pois foi a partir do final da guerra mundial de 39/45 que mais se intensificaram as "guerras de independência" as quais também nos atingiram.
E as peripécias da família da "Manuela" são, também, uma forma de acompanhar as épocas históricas.
Hélder Sousa
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