domingo, 31 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25323: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (11): "Zulmiro"

Adão Pinho Cruz
Ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547
Autor do livro "Contos do Ser e Não Ser"


Zulmiro

Diziam que ele tinha o Diabo no corpo, mas não tinha. Pelo menos assim o afirmava a sua prima, sabida que era em coisas de mau-olhado e almas penadas. O Diabo no corpo era outra coisa. O que ele tinha era uma comichão dos diabos que o atormentava dia e noite, obrigando-o a coçar-se até se arranhar e fazer sangue. O Ti Salvador dizia que, sem borbulha, sem mancha ou licenço à flor da pele, o mal estaria por baixo, sabe-se lá onde. Dada a falta de qualquer médico nas redondezas, o Ti Salvador reclamava toda a sabedoria nestas coisas de maleitas, sabedoria já herdada de seu pai e de seu avô.

Para entrar debaixo da pele, só uma mezinha muito antiga, raramente usada por cheirar muito mal. Uma pasta de azeitonas esmagadas, com uma mão-cheia de sementes de linhaça e outra mão-cheia de coirato bem cozido e bem pisado, uma colher de óleo de rícino e uma pequena porção de merda de galinha.

Zulmiro, sem fé nenhuma, besuntou-se da cabeça aos pés e, naquele dia, a comichão desapareceu. Mas era tal o fedor que a sua presença exalava, que as pessoas não se aproximavam dele a menos de cinco metros. Zulmiro não aguentou a cura e preferiu a coçadura.

Zulmiro sabia bem qual a causa do seu mal e do seu sofrimento. Não só sabia, como tinha a certeza.
Simplesmente nunca a contara a ninguém, por vergonha. Tudo começara com aquele beijo atamancado, arrepiado, babado, a saber a remédio das bichas. Tudo começara naquele dia em que a Maria tola o empurrou para trás da porta, apertou-lhe a ferramenta até o fazer ganir e assapou-lhe a boca desdentada na sua, como uma ventosa, deixando-o agoniado semanas a fio.

Por isso, ele sabia qual o remédio para o seu mal. Não só sabia como tinha a certeza. Só outro beijo o poderia salvar, um beijo limpo, casto e puro, a ferver de amor e ternura. Mas como iria ele arranjar uma namorada, assim a coçar-se como um bicho ou a cheirar a estrume? A Fatinha, há muito, que lhe punha os olhos em bico.
Era uma dor de alma, para quem quer que o sentisse, ver o Zulmiro a chorar pelos cantos, perdido na angústia de nunca se poder aproximar dela.

A Fatinha cantava na capela o Hosana nas alturas e outras coisas. Um dia, aguentando a comichão até humanos limites, o Zulmiro ajudou-a a levantar uns livros que lhe haviam caído do regaço. A Fatinha agradeceu com um sorriso tão doce e tão terno que o Zulmiro não teve mais comichão até ao fim da missa.

Mais tarde, Zulmiro soube pela tia Alice, sua madrinha, que a Fatinha lhe confessara gostar muito do afilhado, que achava um rapaz bonito e bondoso, e não acreditava que tivesse o Diabo no corpo.
Zulmiro andou até a Páscoa com essas palavras nos ouvidos e na cabeça, fazendo delas a mais bela canção do acordar e do adormecer. Além disso, caíra sobre ele a bênção do Céu. Quanto mais nelas pensava, menos a comichão o apoquentava.

Um dia, Zulmiro encheu-se de coragem. Empastelouse de mezinha pestilenta durante três dias, a seguir tomou um banho de alto a baixo, borrifou-se com água-de-colónia e foi à capela. Fatinha estava sozinha nas suas tarefas de zeladora do Coração de Jesus. Zulmiro ajoelhou-se no primeiro degrau do altar, lavado em lágrimas, e contou-lhe toda a sua desgraçada história, desde o maldito dia da investida da Maria tola, quando ele tinha treze anos.

Fatinha afagou-lhe o rosto e, perante o olhar atónito da Virgem, depôs-lhe nos lábios o beijo mais doce que algum dia um ser humano sentiu.

E assim, o Diabo meteu o rabo entre as pernas, deixando o Zulmiro em paz e cheio de felicidade.

E também a Fatinha que, ao fim de nove meses, mesmo sem autorização de Deus, lhe deu o primeiro Zulmirinho.

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Notas do editor

Posts anteriores de:


3 DE DEZEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24911: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (1): "Assinada e tudo"

14 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25069: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (2): "A Rainha"

20 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25091: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (3): "Mulher 5 estrelas"

4 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25135: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (4): "Isabelino e Geraldina"

18 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25184: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (5): "A Maria nunca mais apareceu"

25 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25212: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (6): "A Laidinha"

3 DE MARÇO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25232: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (7): "Sarita, a bailarina"

10 DE MARÇO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25258: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (8): "Ele há coisas...!"

17 DE MARÇO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25280: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (9): "Maruja"
e
24 DE MARÇO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25303: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (10): "Tempo fora do tempo"

5 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Meu caro Adão, mas que história fabulosa!...Há quem não acredite na medicina psicossomática, mas que a mente cura, cura(ou ajuda a curar)... Este "caso clínico" devia ser objeto de análise pelos nossos internos de medicina...

Sabemos, da investigação em etnomedicina, da importância que têm ainda, em certas conunidades e grupos, algumas práticas e produtos medicamentosos dos "curandeiros" e "outros praticantes da arte médica"... E da sua eficácia simbólica e terapêutica!

Tive um clique ao reler o parágrafo: (...) "Para entrar debaixo da pele, só uma mezinha muito antiga, raramente usada por cheirar muito mal. Uma pasta de azeitonas esmagadas, com uma mão-cheia de sementes de linhaça e outra mão-cheia de coirato bem cozido e bem pisado, uma colher de óleo de rícino e uma pequena porção de merda de galinha." (...)

Tendo nascido e vivivo numa pequena vila do Oeste estremenho (onde havi apaenas dois ou três médicos), lembro-me de em pequeno a minha vizinha, a ti'Adlina (mulher anafada e barbaba, que irá depois para a América...) me ter aplicado uma "poção mágica" dessas, uma mistura horrível e fedorenta que devia ter esses ingredientes todos, acima citados, mas do que ainda hoje me vem ao "olfato da memória" é o óleo de ricino, a merda e a gordura de galinha!...

Não sei qual era o meu "mal" (talvez papeira!,mas sofria também de "mal dos pulmões", em pequeno), sei que tinha que suportar no peito o peso (e o cheiro) de compressas feitas com esses "unguentos"...

Adão, prometo ler ou reler mais contos do livro, aqui publicados... Parabéns e obrigado. Luís Graça

Hélder Valério disse...

Muito interessante este conto/relato.

Faz-nos recuar no tempo e na realidade do mundo rural, e não só.
Serve também para se perceber melhor o quanto, hoje em dia, já se caminhou (passos gigantescos) no sentido das melhorias da assistência e prevenção na doença e cuidados de saúde e de como é importante, crucial mesmo, evitar retrocessos.

Também me lembro da "enxúndia de galinha" aplicada no peito ou garganta, em "emplastros".

Quanto à "cura" do Zulmiro, ainda bem que teve o cuidado da "purificação do ar" antes de obter o "tratamento milagroso" que a permitiu, pois caso não o tivesse feito acredito que não teria tido sucesso.

Hélder Sousa

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Era isso, Hélder, "enxúndia" de galinha, que as nossas avós e mães usavam para nos "desentupir" as vias respiratórios... "Remédios caseiros" que faziam parte da "sabedoria popular", no tempo ainda em que praticamente não havia medicamentos nas farmácias, aliás, boticas, onde o papel do farmacêutico (ou botocário) eram saber o de saber fabricar "preparados", artesanalmente... A indústria farmacêutica não tem 100 anos...

Daí o provérnio, sarcástico, "com água e malvas faz-se um boticário num dia"... Valoriza-se o valor terapûtico da água e das malvas, e faz-se chalaça do negócio do boticário...

"A quem Deus quer dar a vida, água da fonte é mezinha"...
"Remédio caro faz sempre bem, se não ao doente, ao boticário"...
"Com um horto e um malvar há medicina para o lugar"...
"O tempo cura o enfermo e não o unguento"...

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2023/03/guine-6174-p24164-manuscritos-luis.html

Valdemar Silva disse...

Assim como a canja de galinha, essa da esfrega com merda de galinha como "medicamento" é muito antiga.
Até se dizia aos adolescentes: põe merda de galinha na cara que faz crescer a barba.

Valdemar Queiroz

Eduardo Estrela disse...

A merda da galinha é um fertilizante magnífico para as hortas.
Eu uso nas minhas brincadeiras agrícolas.
Ajuda a crescer as plantas, a barba e presumo que outras coisas. Ainda me recordo de me aplicarem na testa rodelas de batata para reduzir a febre.
Abraço
Eduardo Estrela