domingo, 17 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25280: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (9): "Maruja"

Adão Pinho Cruz
Ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547
Autor do livro "Contos do Ser e Não Ser"


Maruja

Furioso, João entrou na livraria e só lá dentro se deu conta de que era uma livraria gay, de literatura erótica. Não tinha disposição para nada, muito menos para aquilo. Deu duas voltas à sala, cumprimentou e saiu. Madrid estava fria como o seu coração e sentia uma lagrimeta no canto dos olhos. Atirou-se para a cadeira de uma esplanada em frente e pediu uma fabada asturiana.

Maruja tinha dezoito anos e era linda como um cravo. João encontrara-a na Candeia, um conhecido cabaret do Porto. Ali cantava e dançava, sempre acompanhada pela mãe.

João prendeu-se de tal modo nos seus olhos negros e na luz do seu sorriso que, durante uma semana, ali passou as noites até de madrugada. Terminada a semana do contrato, mãe e filha passaram para o Casino de Espinho, onde iriam trabalhar mais uns dias. João contou e recontou os trocos, pediu algum emprestado, marimbou-se para a faculdade e não falhou uma noite em Espinho até que a Maruja lhe disse que ia embora para Madrid.

Não seria fácil João encontrá-la por lá, na grande cidade, mas que tentasse, se um dia se resolvesse a lá ir. Não tinha morada certa, mas vivia a maior parte do tempo no Monasterio de Las Descalzas e, por vezes, cantava e dançava no Pasapoga.

Desde Portugal, João viajou na mesma cabine do comboio com uma prostituta. Em Ciudad Rodrigo, já alta madrugada, um padre fez-lhes companhia. Quem eram, quem não eram, João era estudante de medicina no Porto e ia a Madrid à procura do amor, o padre ia a Salamanca colaborar nas exéquias de um velho professor, e a prostituta, de Coimbra, ia cumprir mais uma temporada numa casa de alterne junto à Plaza Mayor.

Depois de Salamanca, João adormeceu e acordou em Madrid ao romper de uma manhã seca e fria. Ficou um tanto atemorizado com o silêncio das ruas e com a presença de muitos soldados nos telhados das casas, armados de metralhadora. O cheiro a Guerra Civil ainda não se desvanecera por completo. As camionetas a gasogénio subiam ronceiramente a Gran Via e um ou outro transeunte perguntava se tinha café para vender.

João martelou com força por duas ou três vezes o grande batente de ferro do enorme portão do Monasterio e, quando a esperança já parecia esfumar-se, um pequeno postigo lateral encastoado no portão emoldurou uma cara do outro mundo: uma freira muito feia, com ar de demónio, boca torcida e olhos fulminantes.

- ¿Qué quiere, usted?
- Quiero hablar con Maruja, quedé con ella.
- Maruja no está ni podría estar. Maruja, ¿Que Maruja, señor?
- La bailarina.


A portinhola bateu com estrondo, quase lhe esmurrando o nariz. João ainda carregou por mais duas vezes no batente, com toda a fúria e revolta, mas um silêncio pesado cobriu como uma avalancha negra toda a fachada do enorme edifício.

A fabada não parecia estar má, mas, apesar de nada ter comido desde a véspera, a tristeza dificilmente permitia que ela passasse da boca para baixo.

Esperou pelo cair da noite, gelado por dentro e por fora, passou junto ao Pasapoga e perguntou ao porteiro a que horas atuava a Maruja.

- Maruja, ¿Qué Maruja, señor?

Ainda hoje, ao fim de tantos anos, quando João passa pelo Monasterio, levanta os olhos para a grande fachada e vê Maruja vestida de branco a voar de janela em janela.

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Nota do editor

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