1. Mensagem de Jaime Bonifácio Marques da Silva (ex-Alf Mil Paraquedista, BCP 21, Angola, 1970/72) com data de 22 de Março de 2024:
Luís
Vai, aqui, uma pequena referência à peça de teatro sobre a Guerra Colonial que vimos no Porto, na passada 2.ª feira dia 11.3.24 na Sala Estúdio Perpétuo. “Noite de Solidão no Capim”.
Para mim, foi um momento interessante de revisitação e memória. Não esqueço as noites infindas a dormir no mato, tendo por companhia os ruídos da natureza, a incerteza da morteirada que poderia rebentar a qualquer momento ou a surpresa que nos poderia reservar o amanhecer do dia seguinte, quando o meu pelotão teria de iniciar a progressão rumo ao objetivo IN. Só nos breves momentos – de absoluta solidão no meio daquele - nada – à noite, quando, no Leste de Angola, tentando dormir e, deitado de costas sobre o capim enrolado no cobertor e no impermeável, contemplava o universo estrelado, duma beleza indescritível, é que conseguia esquecer a guerra em que estávamos atolados e evadir-me dali.
Enfim, as memórias são como as cerejas!... Quando puxas uma…
A peça, “Noite de Solidão no Capim”, levada á cena pela companhia de teatro Seiva Trupe, foi escrita e dirigido por Castro Guedes e conta com a interpretação dos atores Óscar Branco e Fernando André, acompanhados pelo cenário sonoro concebido pelo músico Fuse.
- O personagem Kizua, Óscar Branco, interpreta um soldado Flexa (tropa especial da dependência da PIDE (DGS, em Angola) que, de Kalashnikov na mão, dá de caras com um militar do exército (Fernando André) que empunhava uma G3.
Do iminente confronto inicial – quem dispara primeiro? – prevaleceu, depois, o diálogo e, após algumas cervejas pelo meio, a amizade e despedem-se os dois, ao alvorecer, a cantar a Internacional.
Nota: os textos que se seguem, foram editados pela – Seiva Trupe.
Se considerares que tem interesse divulga
Abraço para ti e a Alice e boa estadia aí em Candoz
Jaime
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“A trama desenrola-se em África, numa ex-colónia portuguesa, na fatídica noite de 24 para 25 de Abril de 1974. No meio do capim, ocorre um encontro inesperado entre Kizua e Pedro, dois homens em farda militar, cada um com suas próprias incertezas, medos e memórias. Entre cervejas, cigarros e uma teia de diálogos carregados de tensão, os personagens compartilham reflexões sobre saudade, medo da morte, preconceitos morais e a absurda realidade da guerra.
À medida que a noite avança, a incerteza do que o amanhecer trará gera uma atmosfera de suspense e desconfiança mútua. No entanto, um momento de descoberta inesperada, catalisado pela notícia do que se passa em Lisboa, leva os protagonistas a uma reflexão profunda sobre a humanidade e a irmandade em tempos de conflito.”
“A companhia de teatro Seiva Trupe está de regresso com “Uma Noite de Solidão no Capim”. “É uma abordagem sem complexos à guerra colonial”, como afirma Castro Guedes, autor do texto e encenador da peça que estreia na próxima quinta-feira (7), na Sala Estúdio Perpétuo. Vai estar em cena até ao Dia Mundial do Teatro, 27 de março, para depois seguir em digressão pelo país.
O espaço é África, algures no meio do capim. O tempo é a célebre noite de 24 para 25 de Abril de 1974. E a ação é desencadeada por um acontecimento inesperado: o encontro de um africano, interpretado por Óscar Branco, e um caucasiano, por Fernando André, ambos em fato militar. Dois homens de ideias e lutas opostas confrontam-se sozinhos no meio do Capim.
O medo da morte e do próprio capim escuro onde se encontram leva-os à cooperação e ajuda mútua. E de uma suposta relação de conflito nasce uma amizade e empatia pelo outro. Os preconceitos morais e as barreiras sociais desaparecem nesta peça, que explora o acesso à humanidade do outro ainda que em lados opostos da guerra.
Nesta situação paradoxal assistimos a este encontro entre um africano que é soldado e integra o exército colonial português, e um caucasiano que é oficial de baixa patente (ou miliciano). Sozinhos no capim, depois de um sentimento inicial de medo e desconfiança, “compartilham cigarros. Compartilham até liamba, que se fumava muito na guerra. Compartilham as histórias das famílias, das terras de onde vieram, dos seus familiares. Compartilham cervejas e compartilham o espaço, as estrelas, os pássaros à noite, que em África são exuberantes”, explicou o encenador Castro Guedes ao JPN. É através “destas coisas simples da vida” que a amizade nasce, acrescentou.
No meio disto tudo, o medo diminui e a noção do absurdo da guerra só aumenta. Depois, surge um rádio. O rádio que relata o que se está a passar em Lisboa na noite de 24 para 25. Anuncia-se a liberdade. Se antes a guerra era por motivos não justificáveis, agora era claramente por uma causa perdida e passada. E, então, acontece o êxtase. Abraços. Talvez beijos de entusiasmo? O certo é que a intensidade de emoções tomará conta do palco.
Dois homens de lados opostos, se colocados no mesmo espaço, sozinhos e confrontados com a presença só um do outro, serão capazes de aceder à humanidade um do outro? Para Castro Guedes, sim. “O essencial é que um homem mais um homem não faz a guerra, faz a a amizade“, disse. Existem “belíssimas amizades” que se “sobrepõem a ideias”, exceto em casos extremos, como exemplifica com o fascismo, nazismo e estalinismo.
Depois da estreia no Porto, a peça segue, em abril, para Santa Maria da Feira e, depois, para Freamunde. Em maio, chega às Caldas da Rainha e, em setembro, a Vila Praia de Âncora. “
Editado por Inês Pinto Pereira
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Nota do editor
Último post da série de12 DE MARÇO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25266: Agenda cultural (850): Síntese da apresentação do livro "MARGENS - VIVÊNCIAS DE GUERRA", da autoria de Paulo Cordeiro Salgado, ex-Alf Mil Op Especiais da CCAV 2721 (Olossato e Nhacra, 1970/72), que esteve a cargo do Coronel António Rosado da Luz (Paulo Salgado)
11 comentários:
Obrigado, Jaime. Adoro teatro.
Vamos ter pena,entretanto, de não te ter aqui hoje em Candoz. Boa Páscoa.
Luís.
Flexa, termo aplicado especificamente a etnia bosquímane, predominante no sudeste de Angola, e que como extremamente nómadas, e que sobreviviam principalmente de caça, e como eram pouco sociáveis com outras etnias, foram aliciados a colaborar com a tropa, com a PIDE e com os Governadores de distrito e administradores.
Foram muito úteis no Sudeste e Leste a partir que a Unita e a facção Chipenda do MPLA se instalaram naquela área, os cús de judas, onde eu passei os meus últimos 4 anos em estradas, a que o 25 de Abril pôs termo.
Mas o termo flexa, para quem não andou na guerra, ou só passou ao de leve, flexa mistura desde Comandos africanos, GEs e Milicias.
Esses flexas (bosquimanos) apareceram mais ou menos a partir de 1969 e só naquela região que menciono.
Rosinha, gostava de saber algo mais sobre os "Flexas"...
Há alguma semelhança com o grupo do Marcelino da Mata, os "Vingadores" ?
Mantenas. Luís
..."Mantenhas", queria eu dizer.
Não é, portanto, como já vi escrito (não sei onde) um branco de tropa portuguesa e um negro que lutava no lado oposto, visto que era um "Flecha".
Ao nível do "cenário-mato-capim", não da ideia/argumentário, gostava saber como é que o autor ou o encenador resolveram o meio/maneira de aparecerem umas "cervejolas" naquele lugar (que vão bebendo noite dentro até amanhecer).
Se bem me lembro (e diga quem sabe, como o António Rosinha) os "Flechas" não bebiam álcool.
Mantenhas
Marcelino da Mata/Mucancalas? Um já sabia o que era o Corão e a biblia, o outro vivia no tempo da pedra lascada.
Não há semelhanças em nada.
Aquilo era mais pisteiros do que combatentes. A constituição física era de crianças de 12/15 anos de um fula a arroz e chabéu.
A lingua deles não era entendida por negros nem por brancos, algum deles que soubesse algumas palavras poderia servir de intermediário.
Viviam estranhos a qualquer etnia mais desintegrados do que nos anos 50 viviam os ciganos na Europa.
Numa brigada da JAE cheguei a ter proteção de um grupo de talvez 7ou 8 com suas mulheres e filhos.
Passava o dia inteiro que não chegávamos a ver nenhum deles.
Portanto como pisteiros constava que levavam a tropa, paras ou comandos ou mesmo helicópteros sul africanos ao sítio certo.
Não se podia fornecer muitas balas porque gastavam-nas na caça, já não usavam o arco e a flexa.
Hoje deve haver pouca gente dessa,eles já eram poucos em Angola, havia mais nos desertos da Namíbia.
E foi na região deles que se deram as grandes batalhas do Savimbe e do Neto, imaginamos o que terá sido a vida dessa gente nessas guerras, 28 anos!
O Alberto Branquinho tem razão.
E, digo eu, podemos fantasiar o 25 de Abril de 1001 maneiras, esta pode ser uma delas.
António Rosinha, OBRIGADO!
MAS É ISTO que se vende e, (PIOR!) é ISTO que fica para a História. Cacas! Como a do médico que nos aparece em ambiente de guerra não como médico, mas como combatente. E toda a gente parece "comer". E gostar...
(Tive um amigo que também andou em Direito em Lisboa, que dormia na cama ao lado da minha em Mafra e que - não por decisão sua - comandou um grupo de Flechas.)
Mantenhas
Boa pergunta, Branquinho... Donde vieram as "bejecas" ? Falta aos guionistas, dramaturnos, ficcionistas,etc., a vivência de África e da guerra. A liberdade criativa não pode desculpar tudo...
Os Flechas foram uma força paramilitar criada pela PIDE/DGS na cidade angolana de Serpa Pinto (atual Menongue), no distrito do Cuando-Cubango, e constituída por homens de etnia bosquímana.
Os bosquímanos não são negros bantus, como o são a grande maioria dos angolanos, mas sim um povo de pele mais ou menos da cor de cobre, de muito pequena estatura, cabelo extremamente encarapinhado e maçãs do rosto salientes. Vivem no sul de Angola, Namíbia e Botswana e são designados San pelos antropólogos. Além destes, existem os Khoi, que vivem na África do Sul e no sul da Namíbia, a quem os europeus puseram o nome de hotentotes, que são mais altos, mas apresentam muitas afinidades genéticas com os bosquímanos. O ex-presidente sul-africano Nelson Mandela, por exemplo, tinha nítidas feições hotentotes. No seu conjunto, os bosquímanos e os hotentotes são chamados Khoisan pelos antropólogos, que juntaram as palavras Khoi e San.
Os bosquímanos são tradicionalmente caçadores-colectores. Quer isto dizer que são nómadas, vivem da caça e da apanha de frutos e de tubérculos no mato e são, por isso, profundos conhecedores do ambiente em que vivem. Além disso, são extremamente resistentes ao cansaço e à fome, apesar da sua aparente fragilidade física. Foram estas características que levaram a PIDE a utilizá-los na guerra de contraguerrilha, criando com eles uma força que só dependia da "instituição", a que deu o nome de Flechas. Embora só dependessem da PIDE, os Flechas eram solicitados a realizar operações militares em coordenação com as Forças Armadas Portuguesas, por causa das suas qualidades e conhecimentos.
Em face do êxito conseguido no Leste de Angola, a PIDE resolveu criar uma força equivalente no Norte. Mas no Norte de Angola não há bosquímanos nómadas; só há bantus sedentários, que praticam a agricultura. A força de Flechas que a PIDE criou no Norte de Angola foi então constituída por antigos guerrilheiros do MPLA e da FNLA, tal como acontecia com os GE (Grupos Especiais). A única semelhança que os Flechas do Norte tinham com os do Leste era a sua obediência exclusiva à PIDE.
Em outubro de 1973, saiu na revista semanal "Notícia", de Luanda, um artigo da autoria do repórter de guerra da revista, Fernando Farinha (não tinha qualquer parentesco com o fadista homónimo), sobre uma sua tentativa falhada de acompanhar um grupo de Flechas de Serpa Pinto, ou seja, de bosquímanos, numa operação militar. De acordo com o que ele contou na reportagem, os Flechas partiram para a operação sem levarem qualquer ração de combate. Cada um deles só levava uma panela vazia! Esta panela iria ser usada para cozinharem a caça e os vegetais comestíveis que eles fossem encontrando pelo caminho. A comprovar esta afirmação, uma fotografia mostrava alguns dos participantes na operação com panelas às costas. A água também não era motivo de preocupação para eles, pois sabiam como poderiam encontrá-la no meio do mato. A progressão dos Flechas na operação foi de tal modo acelerada, que ao terceiro dia o jornalista teve que ser evacuado por helicóptero, porque os seus pés já estavam em sangue. Uma outra fotografia publicada na revista mostrava-o numa cadeira de rodas, com os pés todos enfaixados em ligaduras, juntamente com a afirmação de que ele só pôde andar normalmente ao fim de uma semana.
A respeito das noites passadas no meio do mato, referidas por Jaime Bonifácio Marques da Silva, eu fui essencialmente um guerreiro de floresta e durante as operações costumava pernoitar no interior da selva. No entanto, de vez em quando pernoitava em terreno aberto, debaixo do céu estrelado, e ainda hoje tenho a sensação de que no hemisfério sul se veem mais estrelas do que no hemisfério norte. É claro que isto é só uma sensação, porque em ambos os hemisférios deve avistar-se mais ou menos o mesmo número de estrelas. Como no norte de Angola as cidades mais abundantemente iluminadas (Luanda e Kinshasa) ficavam a centenas de quilómetros de distância, o céu noturno mostrava-se mais escuro (quando não havia luar) e as estrelas brilhavam mais intensamente do que na Europa. Dormir debaixo de um tecto assim, feito de milhões e milhões de estrelas a cintilarem, foi uma experiência deslumbrante. Foi uma das poucas boas recordações que me ficaram da minha comissão militar em Angola.
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