Queridos amigos,
É facto que tem que se ler a Crónica dos Feitos da Guiné com sérias reservas, é opinião consensual de todos os investigadores da chamada expansão portuguesa. Fica-se ciente que este cronista-mor do reino não dispunha de elementos fundamentais dos relatos das navegações efetuadas no período henriquino, aí o historiador Duarte Leite fez críticas acerbas a erros e omissões, aqueles e estas incontestáveis. Joaquim Barradas de Carvalho lança o seu olhar numa outra dimensão, compara o que escreveu Zurara com o chamado "Manuscrito de Valentim Fernandes", este altamente depurado de considerações que seguramente o seu autor achava desnecessárias ou de duvidosa importância. Isto para dizer que o olhar de uma geração para uma outra anterior, um padrão cultural distinto (Zurara de cultura livresca, Valentim eminentemente pragmático) saldam-se em textos igualmente distintos, e o que Barradas de Carvalho procurava intencionalmente provar é hoje um dado incontestável, escreve-se de acordo com uma mentalidade, está-se marcado pelo tempo. A mim sobra-me a dúvida, vou apresentar Zurara como peça de abertura do meu trabalho ainda com mais reservas das que tinha antes de ler Joaquim Barradas de Carvalho...
Um abraço do
Mário
Cuidados a ter quando se lê a "Crónica dos Feitos da Guiné", de Gomes Eanes de Zurara
Mário Beja Santos
Ando entregue a uma empreitada de alguma dimensão, a antologia de obras imprescindíveis para conhecer a presença portuguesa numa colónia que se chamava Guiné, desde meados do século XV até ao fim da primeira metade do século XX, quando este território, mais do que fronteiras, ganhou organização e passou a ter um projeto consequente para o seu desenvolvimento (no sentido mais amplo), era seu Governador o Comandante Manuel Sarmento Rodrigues, o nome Guiné passara a ser mais do que um ponto das cartas e mapas.
Obviamente que é necessário procurar saber o rigor com que Zurara escreveu a sua crónica panegírico sobre os trabalhos do Infante. Comecei por ler alguns estudos de Vitorino Magalhães Godinho e dou com o ensaio de Joaquim Barradas de Carvalho na Revista de História n.º 15, julho-setembro, 1953, Ano IV, São Paulo, Brasil, publicação científica em que colaboraram alguns jovens historiadores portugueses marcadamente oposicionistas. O trabalho de Barradas de Carvalho é uma comparação entre o que escreveu Zurara e Valentim Fernandes, este um natural da Morávia, que se distinguiu como impressor em Lisboa, onde faleceu. A análise do historiador prende-se com a mentalidade, o tempo e os grupos sociais, é por isso que ele vai fazer o confronto entre os escritos de Zurara e Valentim Fernandes no que toca à "Crónica da Guiné" (o leitor mais interessado tem à sua disposição o texto integral no site: https://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/35728/38444).
Em 1837, na Biblioteca Nacional de Paris, Ferdinand Denis encontrou um manuscrito da "Crónica dos Feitos da Guiné", única obra contemporânea do Infante D. Henrique em que se relatam os seus descobrimentos africanos. A sua impressão ficará a ser devida ao Visconde de Santarém. Em 1847, é descoberto em Munique um códice que viria a ser editado pela Academia Portuguesa de História com o título "O Manuscrito Valentim Fernandes", onde há um texto intitulado “Crónica da Guiné”. Anos depois, em 1879, Ernesto do Canto revela a existência de cópias do manuscrito em Madrid e Munique, que se revelaram ser simplesmente cópias.
A "Crónica da Guiné" é posterior a 1460 (ano do falecimento do Infante), põem-se hipóteses altamente discutíveis quanto à organização do texto de Zurara, admite-se mesmo haver a junção do texto de Zurara com uma hipotética crónica de Afonso Cerveira, já que o texto não é homogéneo, mas o seu autor não faz menção de outros intervenientes. Zurara foi o cronista oficial e Guarda-mor da Torre do Tombo que sucedeu a Fernão Lopes, não se pode dizer que foi pessoa habilitada como investigador. A partir do século XX, os historiadores detetaram erros e deficiências no trabalho de Zurara. Uma das figuras gradas dos estudos da expansão portuguesa, Duarte Leite, identificou que esta crónica é pobre de dados sobre os produtos vindos da Guiné até ao reino, nada comenta do poder dos mouros ao longo do noroeste africano; não ficamos com a mínima ideia da configuração dos litorais, também a nomenclatura dos lugares sucessivamente achados é escassa, mas Duarte Leite não se ficou por aqui. Outro problema posto pelos historiados é conjeturar se a Crónica sofreu ou não censura quanto à política de sigilo, a opinião mais corrente é de que não houve censura, tais e tantas são as referências a estrangeiros que tiveram papel de relevo nestas viagens, como Cadamosto e Usodimare, acresce que se levaram para Veneza cartas de marear, eram relatados para Génova episódios das viagens, escreveram-se descrições como as Navegações de Cadamosto ou o "De prima inuentione Guinee", de Martim Behaim, a partir do relato oral de Diogo Gomes.
Jaime Cortesão, por seu lado, encontra duas espécies de deturpações na Crónica: umas feitas deliberadamente, outras provenientes da política de sigilo. Mas a generalidade dos historiadores considera imaginárias as conjeturas de Cortesão. Feita esta exposição de contextualização, Barradas de Carvalho alude aos quatro géneros de literatura de viagens (crónicas, descrições de viagens e de terras, diários de bordo e roteiros), e vai fixar-se exclusivamente no género crónica para comparar Zurara com o que posteriormente escreveu Valentim Fernandes.
O Manuscrito Valentim Fernandes, disse-se acima, foi descoberto em Munique em 1847. Dentro do acervo de escritos deste manuscrito há uma chamada “Crónica da Guiné”, dizendo o próprio Valentim Fernandes que foi dele autor Zurara. Os investigadores estão divididos quanto à autenticidade de tal manuscrito, há quem admita que é um resumo do códice de Paris ou cópia de Valentim Fernandes de um outro manuscrito. Dias Dinis é de opinião tratar-se de resumo e mutilação feita por Valentim Fernandes da obra de Zurara, Barradas de Carvalho também defende essa postura.
Mas o Estado de diferença dos dois textos de Zurara e Valentim permite observar duas mentalidades distintas: Valentim omite as razões pelas quais o Infante se sentiu movido a buscar as terras da Guiné, Zurara, para além de dar razões que hoje são estudadas como indiscutíveis, fala da astrologia judiciária como a mais importante das razões pelas quais o Infante se sentiu impulsionado às navegações da costa ocidental africana; Valentim não lhe faz uma só referência. Barradas de Carvalho toma posição. O resumo e arranjo da crónica feita por Valentim Fernandes assume um profundo significado. A mentalidade depende dos grupos sociais e depende do tempo. Valentim arranja a seu modo um texto de Zurara, homem que viveu noutro ambiente social e com uma outra experiência social. Há diferenças geracionais inequívocas. Sabemos que Valentim faz ressaltar, releva, no arranjo do texto de Zurara, ou mínima no mesmo texto, aspetos que definem duas intensões, duas valorizações das coisas e dos acontecimentos, dois graus de refinamento da utensilagem mental, haverá mesmo duas utensilagens. E, por isso, pergunta, quem foi Zurara e quem foi Valentim? Zurara foi um cronista palaciano em toda a aceção da palavra, cronista oficial e Guarda-mor da Torre do Tombo, cavaleiro da casa d’El Rei. Valentim, morávio, foi notário dos comerciantes alemães de Lisboa, a partir de 1503. Sabe-se ter sido editor e autor e um dos mais importantes, se não mesmo o mais importante dos impressores portugueses da época. São homens com experiência de vida, situações sociais e profissionais diversas. Valentim omitiu ou depurou textos da Crónica de Zurara, certamente pela simples razão de lhes conferir falta de substância; omitiu igualmente os textos transcritos por Zurara da Vertuosa Benfeytoria do Infante D. Pedro; Valentim substitui a quase totalidade dos algarismos peninsulares ou luso-romanos por algarismo árabes.
Em suma: Zurara era um cronista palaciano de mentalidade livresca e cavalheiresca; Valentim era um homem ligado à vida comercial do tempo, notado de mentalidade prática e com outra visão do mundo e das coisas.
Postas estas considerações sobre o que separava a mentalidade de Zurara de Valentim Fernandes, a mim fica-me uma questão fundamental por resolver e que tem a ver com a essência do escrito de Zurara, mais do que os seus erros este primeiro escrito sobre as navegações impulsionadas pelo Infante deixam-nos omissões de tomo, a despeito de se ficar com a ideia de que o Infante é visto inequivocamente como um senhor do seu tempo, entusiastas de cruzadas, ávido por saber os contornos do mundo desconhecido e ainda dotado de uma mentalidade medieval naquilo que hoje se configuram os direitos humanos.
Gomes Eanes de Zurara no Padrão dos Descobrimentos, em Lisboa
Marca do impressor Valentim Fernandes
Joaquim Barradas de Carvalho (1920-1980)
____________Nota do editor
Último post da série de 13 DE MARÇO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25269: Historiografia da presença portuguesa em África (414): A Guiné na Exposição do Mundo Português, 1940, Lisboa (Mário Beja Santos)
2 comentários:
As curiosidades que Beja Santos vai descobrir!
Claro que sendo todos nós seus leitores, já da velha guarda, a nova guarda pouco liga a estas coisas.
Mas mesmo assim, corremos o risco de sermos alcunhados com "pensamentos" próprios de "Brancos, Masculinos e Europeus e Colonialistas".
Não fora o Império Otomano, c. 1450, em tomar conta do tráfego do oriente, nunca o Infante se lembraria de ir além das Canária, Madeira e Açores. Depois arranjou "comerciantes" para a grande empreitada da descoberta do caminho marítimo contornando a África, para chegar às especiarias.
Valdemar Queiroz
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