Queridos amigos,
Agora que a viagem acabou, confesso que encontro um certo desequilíbrio quanto à narrativa usada sobre estas duas ilhas. S. Vicente era uma memória remota de uma tarde de agosto de 1970, quatro alferes em fim de comissão vagabundearam pelo Mindelo e tomaram um táxi, viram praias e altivas paisagens lunares, olhando sempre ao longe uma outra ilha que o condutor do táxi assim comentava, é mais frondosa, tem coisas para a gente comer e às vezes ali chove, os turistas preferem-na. Isto para dizer que vinha matar saudades de S. Vicente, aqui recebi a bonita lição de que o cabo-verdiano respeita as imagens do seu passado, este ajuda a não desvirtuar a singularidade do seu presente euroafricano; e depois fui pulsionando pela floresta mágica de Santo Antão, a plenos pulmões, contraste de duas ilhas do mesmo país, separadas por alguns quilómetros, não deve haver neste mundo, fui subjugado por este sortilégio de culturas cultivadas em vales, em terraços, em quase jardins, e recordo perfeitamente o almoço havido em Ribeira do Paúl em que tínhamos pela frente uma Nova Iorque de penhascos cercados de mangos, bananas, cana de açúcar, enfim, subsistência, tudo num quadro harmónico, sempre com a curiosidade de ver subir e descer caminhantes de muitos pontos do mundo que sabem que nunca saíram defraudados desta floresta mágica em que se consorciam vales ubres com montanhas que parecem torres de atalaia. Sim, tudo farei para voltar.
Um abraço do
Mário
Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (109):
Com sangue d’África, com ossos d’Europa: do Paúl a Pombas, de Pombas a Porto Novo, de Porto Novo a Mindelo, o regresso (8)
Mário Beja Santos
Já vos contei que vivo numa graciosa casinha no Paúl, frente às montanhas, é nesta atmosfera edénica que dou pelos odores do que me pareceu um incendio à distância, fui a correr à mercearia da D. Joana, que cheiro é este, então o senhor não sabe que temos aqui um trapiche ao pé, o senhor não vê chegarem a parirem viaturas cheias de cana? Fui para casa e folheei "Cabo Verde, Retalhos do Quotidiano", de João Lopes Filho, Editorial Caminho, 1995. A cana sacarina foi uma das primeiras espécies a ser introduzidas em Cabo Verde, há depoimentos de valor historiográfico ao longo dos séculos XVI e XVII que falam da boa qualidade do açúcar. Dá bastante trabalho: preparar a terra, mondar-lhe a erva, precisa de terra fresca e húmida, ao longo dos séculos o seu fabrico era bastante rudimentar, hoje há diversas variedades da planta. A quase totalidade da colheita é entregue aos mestres do trapiche, para fabricarem mel e/ou aguardente, esta tem o nome de grogue. Só uma pequena parte destas canas é consumida em natureza, nalgumas ilhas fabrica-se um produto axaropado que tem o nome de “tchope”.
Sinto um apelo irresistível de ir visitar o meu vizinho, à cautela, continuo a documentar-me. O conjunto das instalações é chamado terreiro do trapiche, o trapiche ocupa o centro do terreiro, debaixo de árvores frondosas (quase sempre mangueiras) e tem ali ao lado a casa da tenda, onde a calda é posta a fermentar, e também as instalações do alambique para destilação de aguardente, o forno com o tacho onde fabricam o mel e alpendres para empilhar canas, os currais dos bois, e por aí adiante. O antropólogo Lopes Filho escreve que nomeadamente em S. Nicolau e Santo Antão há as cantigas do curral do trapiche. E leio mais sobre a cozedura do mel, a natureza do alambique e como se prepara o ponche.
Indumentado de forasteiro, vou visitar o trapiche, recebido com regozijo, os odores são embriagantes, ó vizinho vamos beber um copinho, entra-me um fogo pelo estômago, agradeço do coração, e saio dali depois de se ter comprado um vasilhame de mel. Comecei bem o dia.
A produção de grogue, um trapiche semi-moderno
Um trapiche em Santo Antão
Guardo melancolicamente algumas anotações do último dia aqui no Paúl. Volto a subir esta imensa ladeira e assomo-me até à região do vale, não sei se voltarei a ter este benefício de caminhar entre montanhas que parecem ter torres de atalaia, sucessivas cortinas de rochas ponteadas por verdura. Lá no alto volto a avistar os aficionados dos passeios pedestres, atiram-se a um bom estirão até o vale do Paúl, virão ao fim do dia esfalfados. Arrumo os tarecos, dentre em breve passará por aqui um coletivo e vamos descer este precioso percurso onde não há berma que não tenha vegetação exuberante, iremos assim até Eito. Em Pombas voltarei a apanhar um coletivo e regresso à praia de Sinagoga, após contemplação, regresso a Pombas e ao seu cenário magnificente. Contemplação do mar e depois almoço. É então que leio uma nota escrita no final do dia de ontem, foi-se até a um restaurante de nome Dragoeiro, um jantar de gala com peixinho do melhor, no regresso houve que pôr luz no smartphone, era noite de breu, parecia pesca do candeio, quem subia ou descia andava com o seu telefone digital. Foi então que encontrámos um reformado da marinha mercante a viver em Roterdão, mas sempre com saudade da terra, faz questão de conversar em inglês. Em Pombas, fecho os olhos para recordar todo aquele verde das montanhas, aquelas cumeadas que lançam as suas gretas pontiagudas para vales anchos, tudo cultivado, há para ali mangos, milhos, feijões e muito mais, qualquer dia chove e durante dias o leito daquelas ribeiras pulsará com águas turbilhonantes que correm para o oceano. Que natureza tão misteriosa, que ilha tão fecunda e ao mesmo tempo árida, um vergel mágico que atrai gente de todo o mundo, compreensivelmente.
Tudo isto se passa na varanda da minha casa, o leito da ribeira como se vê está seco e a vegetação parece ardida, um pouco acima erguem-se culturas, há casas lá no topo das montanhas, venho a esta varanda ao amanhecer, há o chilreio da passarada, gente a subir e a descer, olho para os céus para ver o movimento das nuvens, ao anoitecer ergue-se uma neblina lúgubre mas as vozes assomam pelos caminhos, estou perante um cenário cheio de vida, que me dá um indizível aprazimento.
Cinco instantâneos de uma natureza que tão profundamente me tocou, confesso que perdi o sentido de orientação, tão estontecido pela beleza, não sei estou a olhar para os fundos de Xôxô ou para os cumes montanhosos de Corda e Esponjeira, talvez para o caso seja irrelevante, é sempre este verde que parece dominar a pedra crestada e toda esta orografia vulcânica que parece não ter fim até se precipitar no mar. Abençoada ilha onde tive a dita de ver a consagração da vida.
Cerca de 70 anos separam estas duas fotografias, creio que estava no topo da chamada réplica da Torre de Belém e apanhei no primeiro plano a Praça Estrela, com cenário montanhoso ao fundo. A imagem de 1954 obviamente que quis consagrar a baía do Mindelo e a sua envolvente, lembrar que a relíquia do passado ainda era uma força do presente.
Imagem de Mindelo, retirada de Panorama, revista portuguesa de arte e turismo, Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo, nº 10/11/1954
Sim, quero voltar, há para aqui um enigmático apelo da parte desta natureza insular, momentos houve em que olhando estas costas recortadas, estes céus violetas de fim de crepúsculo me lembrei da minha amada ilha de S. Miguel, comparei poetas daqui com os de lá e não é difícil de entender as saudades da terra, este crioulo cimentado há séculos, este mar profundo que mais separa do que aproxima de África, esta mestiçagem antiga que desenvolveu um caráter, uma singularidade cultural de remotas comparações. Longe de mim pensar que é possível dizer adeus a Cabo Verde quando se desenvolveu o poder magnético de voltar, há que fazer para que a oportunidade não demore. Então, até à próxima!
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Nota do editor
Último poste da série de 24 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24428: Os nossos seres, saberes e lazeres (578): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (108): Com sangue d’África, com ossos d’Europa: visita a Xôxô e à Ponta do Sol, e subida até ao Paúl (7) (Mário Beja Santos)