sábado, 7 de julho de 2007

Guiné 63/74 - P1933: Questões politicamente (in)correctas (30): os cordeiros e os lobos de Mueda ou a adrenalina da guerra (Luís Graça)


1. Mensagem do Luís Graça que raramente tem tempo e vagar para escrever as suas coisas pessoais neste blogue colectivo de que é editor. Hoje invoca outro estatuto, fazendo publicar um comentário, pessoalíssimo, sobre o conteúdo de um post do Tino Neves (1).

Quem terá sido o grafiteiro (avant la lettre...) que escreveu em 1968/70: "Em Mueda, os cordeiros que chegam, são lobos que saem" ? (1)

É um pensamento que é válido para todas as situações de guerra. Os jovens, quase imberbes, os meninos de sua mãe (como escreveu o grande Pessoa) (2), que chegam à frente de batalha, ainda são cordeiros, inocentes, virgens, imaculados... O horror, a violência da guerra, o matadouro, irão transformá-los em lobos, em duros, em violentos, em conspurcados... Não necessariamente predadores, assassinos, criminosos... (que é o estereótipo que o ser humano ainda guarda do pobre do lobo mau... do Capuchinho Vermelho!).

Mas há, seguramente, uma perda de inocência: nenhum de nós foi para a Guiné e veio de lá impunemente, igual... Os nossos amigos e familiares deram conta disso: já não éramos os mesmos, nunca mais fomos os mesmos...

Acho que é isto que o inspirado autor do mural quis dizer. É claro que há também aqui a dose habitual de bravata e de fanfarronice: é uma frase para intimidar os checas, os piras, os maçaricos, os novatos...

Também os militares, profissão de risco, têm a sua ideologia defensiva, as suas crenças, os seus talismãs, os seus mesinhos (usavam-nos os guerrilheiros na Guiné, em Angola, em Moçambique, não obstante a sua formação racionalista, marxista-leninista, dita revolucionária)... A bravata e a fanfarronice, além das praxes e do álcool, ajudavam-nos, a todos nós, a lidar com o medo, as situações-limite, a morte, o sofrimento, físico e moral, a impotência, o desespero…

Não há, nunca houve, super-homens, super-heróis: há apenas deuses, que inventámos, à nossa imagem e semelhança, e para quem transferimos qualidades e defeitos humanos... Que, aliás, inventamos todos os dias (no cinema, na internet, na televisão, nos jogos de vídeo) … Precisamos dos mitos, das lendas, da efabulação, do pensamento mágico, mesmo sob a roupagem (enganadora, falsamente securizante) da ciência e da tecnologia.

Daniel Roxo (1) deve funcionar, para os nostálgicos do paraíso perdido do apartheid (Moçambique, Rodésia, África do Sul...), como o Che Guevara que (ainda) funciona como um ícone, tanto para os jovens sem ideologia de hoje, como para os cotas, os seus pais e tios, os velhos revolucionários românticos que queriam, nos anos 60 e 70, incendiar o mundo, criando um, dois, três, muitos Vietnames!...

Há homens que são incapazes de deixar de combater...Mesmo, no limiar da decadência física, a adrenalina da guerra é mais forte que a razão... É um pulsão fortíssima. O que terá levado este e outros compatriotas nossos a alistar-se nas forças especiais do regime racista da África do Sul e a morrer em Angola por uma pátria que não era a sua ? Poderei perguntar o mesmo em relação aos cubanos que morreram, longe de casa, em Angola (mas também na Guiné).

Dir-me-ão que lutavam por um mundo em que acreditavam, por uma bandeira, por uma causa que era a sua razão de vida... Outros dirão ainda que eram simples mercenários... Sou céptico: o ser humano é motivacionalmente muito complexo e manipulável... Creio que a guerra também pode ser viciante, havendo homens que nela entram e dela nunca mais saem... A guerra pode até ser uma forma (heróica) de suicídio. E há estóorias de homens que, escapando vivos da guerra, não sobrevivem à paz...

__________

Nota de L.G.:

(1) Vds. post de 6 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1928: Estórias de vida (3): Sérgio Neves, meu irmão: em Moçambique, o Mercenário, amigo do lendário Daniel Roxo (Tino Neves)

(2) É, de facto, um dos mais belos poemas da poesia universal de todos os tempos:

O Menino da sua Mãe
por Fernando Pessoa (126)

No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas trespassado
- Duas, de lado a lado-,
Jaz morto, e arrefece.

Raia-lhe a farda o sangue,
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.

Tão jovem! Que jovem era!
(agora que idade tem?)
Filho unico, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
O menino de sua mãe.

Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve
Dera-lhe a mãe. Está inteira,
É boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.

De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço... deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.

Lá longe, em casa, há a prece:
Que volte cedo, e bem!
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto, e apodrece,
O menino de sua mãe.

Guiné 63/74 - P1932: Relembrando o 1º cabo Pires, morto em Missirá (1967), e o Alf Mil Luís Zagalo, herói e ferrabrás do Enxalé (Beja Santos)

Mensagem de Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), comentando, por sua vez, o Henrique Matos, que foi o 1º Cmdt do 52


Meu querido 1º Comandante, obrigado pela tua epístola (1). O comboio de afectos está em andamento. Convém que não te esqueças de nada, todos ganharemos com a tua memória avivada e a riqueza de pormenores. Por exemplo, falares da composição do Pel Caç Nat 52 e da Companhia de Polícia Móvel.

A seu tempo entrarás em contacto com o Queta e o Cherno (são hoje portugueses, temos gente falecida, desaparecida, perderam-se endereços, com o tempo o blogue operará milagres). Duas informações por ora:

A primeira, relaciona-se com o 1º Cabo Pires, que morreu numa emboscada, creio em 1967, à saída de Missirá, perto de Mato Madeira. No monumento que dedicámos aos nossos mortos, o seu nome constava, prestamos-lhe essa homenagem;

A segunda, refere-se ao temível Luis Zagalo Matos. Mantive com ele correspondência enquanto estive em Missirá (2), onde o seu nome era adorado como herói e ferrabrás.

É hoje actor de teatro (3), quando veio da Guiné trabalhou com a família num armazém ali para a zona de Santos, creio que não chegou a acabar o seu curso de Letras. Ele estava ligado, como sabes, à Companhia do Enxalé que precedeu a chegada do 52 a Missirá. Temos obrigação de trazer o Zagalo para dentro do blogue.
Sem mais por ora, recebe um abraço do Mário.

_____________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 30 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1901: O Pel Caç Nat 52 que eu comandei em 1966 (Bolama, Enxalé, Porto Gole) (Henrique Matos)

(2) Vd. posts de:

30 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1637: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (40): Cartas de além-mar em África para aquém-mar em Portugal (2)
Carta para Luís Zagalo Matos

(...) "Estimado Luís Zagalo:

"Obrigado pela sua carta. Li-a aos homens de Missirá, riam e batiam as palmas de contentamento por saber que não esqueceu este povo. Vou tirar fotografias e mandar-lhe. Tenho aqui um soldado que insistiu em contar-me as suas façanhas, ele estava de sentinela e durante horas ouvi falar de si, arrumando ideias sobre o princípio da guerra e o seu desenvolvimento até hoje.

"Os meus soldados estavam em Enxalé ao tempo em que aqui havia uma companhia, a que V. pertencia. O pelotão 54 estava em Porto Gole, o 52 acabava de chegar a Enxalé. V. estava destacado em Missirá e fazia frequentemente o percurso com dois Unimogs e um jipe, reabastecia-se no Enxalé. Até ao dia em que uma mina anticarro mudou tudo, na curva de Canturé em ligação com a estrada ao pé de Gambana.
"Este meu soldado, de nome Queta, contou-me que um furriel ficou tão despedaçado que foram buscar as pernas a uma árvore. Para este povo V. é um herói porque conhecia toda esta região, era destemido e amigo de ajudar. O Queta não é para intrigas, baixou a voz e disse-me "Nosso alfero, Zagalo ia a toda a parte mas tinha medo de ir ao Gambiel, pois naquela altura as tropas portuguesas abandonaram os quartéis em Mansomine e Joladu, só ficou Geba". Como não lhe quero tirar os méritos, estou inteiramente à sua disposição para o levar ao Gambiel, se este episódio for importante para que o seu nome se torne numa lenda.

"Por aqui, chegou a minha vez de ter o quartel incendiado e de estar a viver as maiores dificuldades. Mas não vou incomodá-lo mais com esta guerra, fico feliz por saber que V. foi colega da Cristina. Como não irei a Portugal tão cedo, e se for possível ajudar-me peço-lhe que lhe telefone e lhe fale desta guerra, desdramatizando o que é possível desdramatizar.

"Prometo mandar-lhe as fotografias em breve, não espero ir ao Enxalé mas vou mandar fotografias do Geba e dos palmeirais à hora do pôr do Sol. Se lhe for possível, na resposta mande-em uma fotografia sua para eu entregar ao régulo. Só fiquei triste em saber que V. nunca mais teve um sono completo e que tem pesadelos quando se lembra dos momentos trágicos que passou. Desejo que recupere e peço-lhe por tudo que me dê companhia, pois os amigos de Missirá meus amigos são. Até breve" (...).


(3) Não sei se é o mesmo que, numa feita na Net, através do Google, aparece associado a produções teatrais do Tozé Martinho (n. 1947). Segundo a Wikipédia, Luís Zagalo é um actor português com uma carreira no teatro, na televisão e no cinema. Em 1993 participou na telenovela "A Banqueira do Povo", em 2001 em "Olhos de Água", em 2003 em "Morangos com Açúcar" e em 2006 em "Floribella". Também fez parte do elenco das peças de teatro cómicas: "Pijama para 6" e "Uma cama para 7".

Guiné 63/74 - P1931: Tabanca Grande (24): Júlio César, ex-1º Cabo, CCAÇ 2659 do BCAÇ 2905 (Cacheu, 1970/71)




1. Mensagem do camarada Júlio César, de 28 de Junho, ao editor do Blogue Luís Graça


As minhas desculpas pela incipiência...em termos destas coisas da Net.
Com um abraço amigo

Júlio César da Cunha Ferreira
Rua João Pereira Magalhães, 1077
4815-400 Vizela

Ex-1º Cabo da CCAÇ 2659, do BCAÇ 2905

Cacheu e Teixeira Pinto, desde Janeiro de 1970 a Dezembro de 1971
Blog do BCAÇ 2905 > http://www.cacheu.blogspot.com/

2. Resposta do editor, em 5 de Julho:

Júlio:
Excelente exemplo. Vamos falar do teu blogue, ou melhor,do blogue do teu batalhão, que tu criaste e manténs, com dinamismo e competência. De vez em quando vou-te lá roubar algumas coisas, se não te importares (e citando sempre a fonte)... Espero que queiras entrar para a nossa Tabanca Grande....
Um abraço.
Luís Graça.





3. Nova mensagem, de 5 de Julho, do camarada Júlio César Ferreira:

Tenho todo o prazer em participar na Tertúlia ou Tabanca Grande...se para tanto me sobrar o engenho e a arte... Basta que me digas o que devo fazer.

Para já envio o artigo que me refiro abaixo (que julgo não ter enviado), em formato Word (1), e duas fotos minhas: uma delas ao tempo da Guerra Colonial, em Dezembro de 1970 e uma outra mais ou menos actualizada.

Pertenci ao Batalhão de Caçadores 2905 que estava sediado em Teixeira Pinto e à CCAÇ 2659, que por sua vez esteve no Cacheu.

Dessa Companhia, dois pelotões foram para Teixeira Pinto em Março/Abril até Junho de 1971, fazer a segurança à equipa de capinadores da nova estrada Teixeira Pinto-Cacheu (estrada que em 1996, pude percorrer aquando da minha visita à Guiné).

Desde 1991 que os elementos deste Batalhão se encontram no sábado mais próximo ao dia 8 de Dezembro (data em que chegámos a Lisboa em 1971), em alegres confraternizações. Infelizmente, muitos dos antigos camaradas não têm dado sinal de vida, o que se lamenta.

Um abraço amigo

Júlio César Ferreira
ex-1º cabo

____________

Nota de C.V.:

(1) Artigo, sob o título Experiências de guerra, da autoria do Júlio César, publicado originalmente no Notícias Magazine. Será republicado no nosso blogue, muito proximamente.

Guiné 63/74 - P1930: Diários de um Comando: Gampará (Ago-Dez 1972) (A. Mendes) (1): Um sítio desolador



1. Texto enviado pelo Amilcar Mendes (1) ,com data de 24 de Junho último. O A. Mendes foi ex-1º Cabo Comando, tendo pertencido à 38ª CCmds (1972/74). Esteve do Regimento de Comandos, da Amadora, até 1980. Hoje tem uma táxi na Praça de Lisboa. Há tempos confidenciou-nos: "Enquanto estive na Guiné fui escrevendo uma espécie de diário que, com muito gosto, irei aqui partilhar com toda a tertúlia, porque sei que muito do que escrevi apenas fará sentido para aqueles que trilharam os mesmos caminhos nesses longínquos, difíceis e já saudosos anos".

Amigo Luis Graça,

Depois de algum tempo ausente, lá arranjei tempo para voltar aos escritos (2). Os relatos que se seguem são dedicados a todos os ex-camaradas da 38ª de Comandos (3).

14 de Agosto de 1972 - No aquartelamento dos Comandos em Brá,pelas 09h30, e com a presença do comando-chefe interino das Forças Armadas da Guiné, Comodoro Moura da Fonseca,foram impostos os Crachás, a todos os novos COMANDOS da 38ª Companhia.

Do meu diário: 14 de Agosto de 1972 > Um dia que nunca mais vou esquecer, pois o Crachá que recebi será o simbolo COMANDO até à minha morte (4). Foi uma cerimónia bonita com muitos copos, muitas fotos e de tarde fui para Bissau, direitinho ao Pilão, porque o corpo não é de ferro e a Antónia é um mimo.

Período de 15 de Agosto de 1972 de Outubro de 1972

15 de Agosto de 1972 - Pelas 09H30 do dia 15 de Agosto 1972, a 38ª CCmds segue via fluvial na LDG Alfange com destino a Gampará nos termos da mensagem Confidencial Imediata 3054/c, de 9 de Agosto de 1972, do COMCHEFE (REPOPER). Chega pelas 14h30 deste dia fazendo a sua apresentação e, passando a reforçar o COP-7 [Zona Leste, Bafatá], rendendo a 2ª Companhia de Comandos Africanos.

15 de Agosto de 1972 - Despeço-me de Mansoa com alguma emoção. Fiz aqui muitos amigos, aqui nesta zona tive os meus primeiros contactos de guerra,aqui perdi alguns camaradas,todo os meus primeiros contactos com esta terra maravilhosa foram feitos aqui. Passei boas noites nos copos com bons amigos, recordo o meu amigo Germano Santos (está no blogue), que era cabo cripto do Batalhão,e que me deu muito apoio à minha chegada(podes comentar, Germano) (5).

Fomos direitos ao cais do Pigiguití onde a LDG Alfange nos aguardava. Subimos o maravilhoso Rio Geba, passando em frente a Jabadá, Porto Gole e finalmente Gampará. Fica situada na margem esquerda do Rio Geba. Acostámos ao cais(?) e esperavam-nos os Unimogs, para nos levar do cais para o destacamento, a 3km. Demorámos quase 2h pois a estrada de terra batida teve que ser toda picada,parece que todos os dias aparecem minas aqui.

Gampará à vista! Desolador! O quartel é só tabancas que a tropa divide com a POP, arame farpado a toda a volta e uma dúzia de torreões com sentinelas. É aqui que iremos viver até quando calhe (6).

(continua)

Texto: © Amilcar Mendes (2007).


____________

Notas de L.G.:

(1) "Assentei praça no longínquo ano de 1971 no antigo RAL 1, em Outubro. Ofereci-me para os Comandos onde cheguei em Dezembro de 1971 (CIOE/ Lamego). Completei o curso em Junho de 1972, mês a que cheguei à Guiné, a 26. Iniciei a 2ª parte do curso em Mansoa, na mata do Morés, onde tive o primeiro contacto com o IN. Recebi o crachá de Comando em Agosto, com o posto de 1º cabo. Em Fevereiro de 1974 terminei a comissão mas só regressei a Portugal em Julho de 1974. (...). A minha companhia foi a 38ª Companhia de Comandos, os Leopardos" (...).

2 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXV: Apresenta-se o 1º Cabo Comando Mendes (38ª CCmds, 1972/74)

(2) Vd. alguns dos posts anteriores do Amílcar Mendes:

27 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1123: Um espectáculo macabro na bolanha de Cufeu, em 1973 (A. Mendes, 38ª Companhia de Comandos)

22 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1199: A vida de um comando (A. Mendes, 38ª CCmds) (1): Sete anos de serviço

22 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1200: A vida de um comando (A. Mendes, 38ª CCmds) (2): Um dia de Natal na mata de Caboiana-Churo )

22 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1201: A vida de um comando (A. Mendes, 38ª CCmds) (3): De Farim a Guidaje: a picada do inferno (I parte)

23 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1203: A vida de um comando (A. Mendes, 38ª CCmds) (4): De Farim a Guidaje: a picada do inferno (II Parte)

23 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1205: A vida de um comando (A. Mendes, 38ª CCmds) (5): uma noite, nas valas de Guidaje

24 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1207: Guidaje, Maio/Junho de 1973: a 38ª CCmds, na História da Unidade (A. Mendes)

24 de Outubro de 006 > Guiné 63/74 - P1210: A vida de um comando (A. Mendes, 38ª CCmds) (6): Guidaje ? Nunca mais!...

30 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1223: Soldado Comando Raimundo, natural da Chamusca, morto em Guidaje: Presente! (A. Mendes, 38ª CCmds)

15 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1280: A vida de um comando (A. Mendes, 38ª CCmds) (7): Um tiro de misericórdia em Caboiana

9 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1827: Convívios (14): 38ª Companhia de Comandos, Pínzio, Vilar Formoso, 9 de Junho de 2007 (A. Mendes)


(3) Na nossa tertúlia, além do A. Mendes, há um novo elemento da 38ª CCmds, o ex-Fur Mil Comando Miaguel Vareta: vd. post 14 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1847: Tabanca Grande (12): Apresenta-se o ex-Furriel Mil Miguel Vareta, 38ª Companhia de Comandos, 1972/74

(4) Sobre o significado do crachá, vd. página Comandos - Tropa de elite > Símbolos

(5) Vd. post de 11 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1835: Tabanca Grande (10): Germano Santos, ex-1º Cabo Op Cripto, CCAÇ 3305 / BCAÇ 3832, Mansoa, 1971/73

(6) Gampará fica(va) situada na margem esquerda do Rio Corubal, mais ou menos frente à Ponta do Inglês (vd. carta de Fulacunda). Aqui a CCP 121, do nosso querido amigo Victor Tavares, conheceu o horror e o inferno dos fornilhos.

vd. post de 21 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1540: Os pará-quedistas também choram: Operação Pato Azul ou a tragédia de Gampará (Victor Tavares, CCP 121)

Guiné 63/74 - P1929: Estórias de Mansambo I (Torcato Mendonça) (6): Matilde

Lisboa > Rio Tejo > Primavera de 2007 > Há 40 anos atrás havia navios que zarpavam, de manhã cedo, para a Guiné, carregados de homens com as suas armas... Podia ser num dia de chuva e vento como este... "Parou, acendeu mais um cigarro e voltou para casa. Fazer a mala era preciso. A mãe ajudava-o. Sentia a tristeza no seu olhar e isso deprimia-o mais" (TM)....

Foto: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.

1. Escreveu há dias o Virgínio Briote a seguinte nota, dirigida ao Torcato Mendonça:

Caro Torcato,
Não posso deixar de te felicitar pela tua escrita madura e consistente, e que muito enriqueceu o nosso blogue. É certo, tenho de confessar, que qualquer escrito sobre a guerra colonial, venha ele de um lustroso guerreiro do Império ou de um simples amanuense, me sensibiliza. Mas a maneira como tu vês aqueles tempos, toca-me de uma forma diferente. E é por este motivo que, ao ler o post 1900 (1), me lembrei de te escrever para te cumprimentar e te dizer que aprecio muito a humanidade da tua escrita. E desejo que continues, Torcato.
Um abraço,
vb


PS - Já leste 'Pami Na Dondo' do Mário Vicente? Se ainda não leste a pequena obra desse nosso camarada que andou pelo Cantanhez, escreve ao Mário, que certamente tem muito gosto em ta oferecer.
2. Comentário de L.G:

É com uma pontinha de orgulho que eu tenho vindo a a assitir, no nosso blogue, de há dois anos a esta parte, à emergência, senão de grandes talentos literários (a expressão é forte e pesada), pelo menos de vocações literárias, de gente com grande potencial para a escrita, que escreve bem, que nos surpreende, e nessa medida é já motivo de orgulho para todos nós, amigos e camaradas da Guiné.

Já temos, na nossa tertúlia (ou Tabanca Grande), gente com livros publicados, e gente com projectos editorais, mas o mais importante ainda é saber que temos gente que, contra todos os handicaps, sem diplomas, sem pergaminhos, sem pedigree, mas também sem complexos, com autenticidade, com garra, escreve e continua a escrever diariamente para o nosso blogue. O nosso Torcato é um deles.

O Virgínio (e todos vocês) vão ficar sensiblizados com mais esta estória de Mansambo. Vamos seguramente reconhecer as Matildes que passaram, de relance, pelas nossas vidas, e que não chegaram a ser as nossas bajudas, como as Mariemas (1), nem sequer os nossos efémeros amores de verão nem muito menos os grandes amores das nossas vidas (2)... Hoje temos tempo e sobretudo a imensa sabedoria de perguntar: Why ? Porquê ? Por que razão passámos tão longe e tão perto ? Por que é que pusémos as nossas vidas entre um parênteses recto, durante no mínimo três anos ? Que fique claro: não há nenhuma dívida a cobrar a ninguém... A haver ajustes de contas, é só connosco, com cada de um de nós, na sua intimidade... Também já é altura de pôr um ponto final no muro das lamentações: que nascemos no país errado, na época errada, de pais errados... Só nos resta assumir o que temos e somos... O resto é mesmo batota. (LG)

3. Estórias de Mansambo (6) > Matilde,

por Torcato Mendonça

Habituara-se a vê-la passar. Livros debaixo do braço, ar calmo, passo apressado. Sabia que ela regressava das explicações. Talvez para completar o 5º ano. Estávamos em meados dos anos sessenta. Ela resolvera retomar os estudos, ele fizera breve paragem nos dele. A dois ou três meses dos exames retomá-los-ia. Pensava …que ia fazer isso.

À noite, quando os seus afazeres de borga o permitiam, volteava pela praça. Às dez ou dez e meia, ela costumava passar. Não se cumprimentavam, não diziam nada. Um olhar, directo de quando em vez, mas breve, a parecer …por acaso. Olhar assim, a nada dizer, ou a dizer a ambos que talvez, mais tarde ou mais cedo se iriam encontrar.

O tempo passou rápido. O hábito desses encontros, de passagem e olhares breves, foi-se. Via-a raramente, se o encontro casual acontecia, olhava-a demorada e discretamente. Habituado a avançar sentia, desta vez, ser diferente e, por isso, comprometeria certamente as suas prioridades de então.

A época de exames chegou e ele adiou-os para o fim do verão ou para o ano seguinte. Os dela parecem ter corrido bem e continuou os estudos.

Vltou o acaso a aproximá-los novamente. Nas férias desse verão, os toldos na praia, tinham ficado próximo. Só a via ao fim de semana ou, de quando em vez, num fim de tarde. Era a praia das famílias, por época inteira. Em Setembro, a dele ia até ao Algarve. Não era a praia dele. Só os amigos o levavam lá. Mais ainda nesse verão, que estava ocupado por biscate de ocasião.

No fim do verão trilharam diferentes rumos. Ambos voltaram a estudar. Via-a raramente e sentia sempre a vontade de lhe falar. O destino – se há destino – não o quis. Ele acobardou-se, ou ela não deu abertura, ou ele sentiu que devia ir por outro caminho. Certo é que o desencontro aconteceu. Ficou só a saudade.

Ela estudou, empregou-se e iniciou outra vida. Ele estudou, pararam-lhe os estudos e despacharam-no para a vida militar.

Passaram dois, três anos? O destino ou o acaso juntou-os novamente. Ambos de férias, ela vinda de Lisboa, ele vindo de África. A um dia do regresso dele, o encontro à saída do café. Um inesperado frente a frente, o sobressalto em ambos, fundem o olhar e talvez ambos reconheçam a inevitabilidade de dizer algo. Sente o bater acelerado do seu coração. O dela!? Não sabe. Sai sem nada dizer. Foi andando, pensando… a horas do retorno a África… doze… quinze, o que dizer-lhe e porquê logo agora. A sua vida era difícil, tinha mulher não oficial, vivia em risco permanente como mercenário em guerras de outros. Em breve seria envolvido pelo cheiro e humidade daquela terra vermelha e ardente. Em breve, sentiria o perigo e o gozo que lhe dava o risco, o sentir a vida a esfumar-se e a voltar inteira. Liberto, ou só totalmente liberto, arriscava, gozava e assim viveria, em plenitude, aqueles breves mas frequentes momentos. Será que aquilo era viver? Certamente que não. Só assim, contudo, suportaria aquela vida imposta.

Parou, acendeu mais um cigarro e voltou para casa. Fazer a mala era preciso. A mãe ajudava-o. Sentia a tristeza no seu olhar e isso deprimia-o mais.

O pai chegou mais cedo, combinaram a saída, verificaram a hora de partida do avião, o tempo da passagem pelos Adidos, na Ajuda. Falaram tentando manter a naturalidade, o que tornava tudo ainda mais diferente e artificial. O jantar foi o possível… ouviu dizer à mãe: O menino comeu pouco. Ainda era menino…

Pediu licença ao pai e levantou-se. Já? Onde vais? Volto já, não demoro. Foi procurá-la. Sabia onde. Certamente estaria na festa da Padroeira lá da terra. Não se enganou. Viu-a com uns amigos. Olharam-se. Ela afastou-se, talvez à espera que ele lhe fosse finalmente falar. Ele ainda teve dúvidas. À velocidade da luz pensava, sim ou não. Avançou um pouco olhando-a, sentia o breve sorriso dela, ou era imaginação sua? Baixou o olhar, e afastou-se. No regresso a casa, talvez enganando-se a ele mesmo, pensou: É melhor assim. Ia descansar mais cedo e retornava mais liberto a África.

Salazar (em 1933) Fonte: Wikipédia

Recorda bem, ainda hoje, o regresso a Bissau. Nesse dia, em Lisboa o Ditador tombava da cadeira. Não soube. À chegada, sentindo o violento calor a subir do solo, um amigo perguntou-lhe:
- Então, o Velho?
- Qual velho?
- Não sabes? O tipo caiu e está mal.
- Não sei. - Olharam um para o outro e sorriram. Saíram da Gare e dirigiram-se a Bissau. Havia muito tempo de comissão a cumprir. E cumpriu.

A ela ainda a voltou a encontrar. Vidas totalmente diferentes, a seguirem caminhos diversos. Nesse dia, os olhares voltaram a cruzar-se e as cabeças baixaram. A vida afastara-os definitivamente.

Ele deixara-se de guerras, tinha mulher de hoje aqui e outra ali. Tentava dar rumo à vida. Esperava… Ela tinha vida normal partilhada com alguém.

Um dia deram-lhe a notícia. Devido a erro médico ou similar, ela partiu. Ficou chocado. Novamente a morte a atormentá-lo, logo ela.

Sentiu nunca a ter esquecido ou nem ele sabe. O peito aperta… Talvez os Deuses, num Olimpo qualquer, tenham a resposta.

Páro um pouco. Deixa-me beber um uísque… o café é fraco. Eu depois continuo, só um uísque… mas duplo por favor…
__________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 19 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1295: Fotos falantes (Torcato Mendonça, CART 2339) (7): Mariema, a minha bajuda...

(2) Vd. posts de:

14 de Março de 2007> Guiné 63/74 - P1594: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (1): A dança dos capitães

16 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1666: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (2/3): O Zé e o postal da tropa

25 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1785: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 239) (4): Burontoni, mito ou realidade ?

27 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1892: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (5): O Casadinho e o Bessa, os mortos do meu Gr Comb, os meus mortos

sexta-feira, 6 de julho de 2007

Guiné 63/74 - P1928: História de vida (3): Sérgio Neves, meu irmão: em Moçambique, o Mercenário, amigo do lendário Daniel Roxo (Tino Neves)

Moçambique > Mueda > Cart 2369 (1968/69) > 4º Grupo de Combate > A suite dos barões...


Moçambique > Mueda > CART 2369 (1968/70) > O 2º sargento miliciano Sérgio Neves junto a um mural onde se lê: "Em Mueda, os cordeiros que entram, são lobos que saiem. Adeus checas". Recorde-se que o checa, em Moçambique, era o nosso pira ou periquito.

 Moçambique > Mueda > CART 2369 > Sérgio Neves, posando junto aos símbolos da sua unidade

A caminho da Guiné, em 1964, num navio mercante (que não sabemos qual é). Pessoal da CCAÇ 674, Fajonquito, 1964/66) (presume-se). Sentado à mesa, o Sérgio está ao centro, é o 4º. a contar da esquerda.

Guiné > Zona Leste > Fajonquito > 1964 > CCAÇ 674 > O Fur Mil Neves

Fotos: © Tino Neves (2007). Direitos reservados.

1. Mensagem enviada, em 13 de Fevereiro último, pelo Tino Neves, ex-1º Cabo Escriturário, CCS/BCAÇ 2893, Nova Lamego (Gabu), 1969/71:


Camarada Luís Graça:

Por ter voltado a focar as fotos de meu irmão, junto dos Monumentos da Guiné, Bagabaga e Poilão, e na altura do seu envio não as ter comentado, como sendo do meu irmão como militar (Furriel Mecânico Auto) em Fajunquito, em 1964 (1), passo agora a fazer um pequeno comentário sobre quem foi ele:

Há falta de dados sobre ele porque tanto a correspondência como a sua Caderneta Militar que estavam em poder da minha mãe, se extraviaram. Ficaram simplesmente algumas fotos, das quais nada consta escrito no seu verso (data ou local onde foram tiradas). Ele não tinha esse costume.

Portanto, não tenho qualquer indicação sobre o Batalhão ou a Companhia pertencia, mas pesquisei através dum ficheiro em excel cedido pelo Pedro Santos, quando do nosso Encontro da Ameira. Pesquisei pelo ano do fim de comissão, unidade de mobilização (Évora) e nome do Capitão (José Rosado Castela Rio)... Fiquei com a noção de que seria a Companhia de Caçadores 674, que esteve em Fajonquito, região de Bafatá. A ser verdade, o período da comissão será 1964/1966.

Para que algum camarada de sua companhia o venha a conhecer junto algumas fotos desse tempo .


O seu Nome:

SÉRGIO FAUSTINO DAS NEVES
Furriel Miliciano Mecânico Auto
Natural de Luzde Tavira
Residia em Cova da Piedade – Almada


Ele fez mais uma comissão de serviço em Moçambique, como 2º Sargento Miliciano,
de 1968/1970, tendo passado por Lourenço Marques, Mueda, Vila Cabral , Nampula e Meponda - Lago de Niassa . Não sei exactamente por que ordem.

Camarada Luís Graça:

Vou-lhe pedir desculpa, e ao mesmo tempo um favor, apesar do blogue ser de ex-Combatentes da Guiné, gostaria que fizesse referência a este facto de Moçambique, pois é possível algum dos camaradas dele, de Moçambique, lerem o nosso blogue, e me contactarem, o que me deixaria muito feliz.

Vou contar um pouco o historial do meu irmão em Moçambique, porque da Guiné pouco sei. Só me contei alguma coisa quando eu estava na Guiné e ele em Moçambique. Um dia disse-me para ir a Bafatá a um Café, que ele frequentava muito quando lá ia, porque o dono também se chamava Neves. Fui lá mas o proprietário desse café já não era o mesmo, e não me souberam dizer para onde o senhor Neves tinha ido.

O meu irmão era da Construção Naval (Arsenal do Alfeite) e, depois da Comissão da Guiné, emigrou para França (Grenoble), tendo ido trabalhar para um Estaleiro Naval como soldador. Enquanto lá esteve, para além do frio e neve que apanhou, estava muito só e sem dinheiro. Mas escrevia-se com camaradas da recruta que lhe diziam muito bem de Moçambique, tendo lá ficado como colonos, no fim da Comissão. O Estado dei-lhes terras para se fixarem lá e eles estavam muito bem.

Ora ele começou a pensar nessa hipótese de também para lá ir. Assim o pensou e assim o fez. Escreveu para o Ministério da Guerra, a pedir para voltar para o Exército. Foi chamado e colocado nos Serviços Mecanográficos do Exército, e logo pediu para ir para Moçambique. Foi passados 8 meses para Lourenço Marques.

Em Lourenço Marques, passou por vários Serviços incluindo dar Instrução Militar aos Recrutas. E por último, em Lourenço Marques, foi para o Serviço de Intendência, Secção de Cargas, ou seja tratar das Comissões Liquidatárias das Companhias de Fim de Comissão.

Era bom, julgava eu, porque ele dizia-me que só se lembrava que era militar quando fazia de Sargento de Dia, porque na Secção dele era o único militar, e ele era o Chefe, e falava da esposa do Major Tal, da filha do Capitão tal, etc. etc.

Mas ele, como operário do ferro, para ele era um suplício a papelada e os problemas, problemas esses que, como vou contar, o fizeram sair dali.

A história começa com um Major de uma Companhia Independente que já tinha mandado regressar todos para a Metrópole, ficando ele sozinho a tratar de tudo o que dizia respeito à Comissão Liquidatária. Mas estava tudo muito atrasado, e o dito Major foi lá mandar vir junto do meu irmão, reclamando que já tinha a viagem marcada para o regresso, e que o meu irmão estava a demorar muito a dar o despacho, e por essa razão pediu para que o Comandante dos Serviços o atendesse, tendo este acedido ao seu pedido.

Sendo o meu irmão chamado ao gabinete do Comandante, mostrou-lhe todo o processo dessa tal Companhia. Conclusão: o dito Sr. Major tinha quase toda a carga da Companhia encaixotada, com a direcção de sua casa, sendo alguns dos objectos uma arca frigorífica, um barco pneumático e mais algumas coisas, todas sem valor nenhum, como devem calcular.

O meu irmão, em face disto, disse ao seu Comandante que queria ir para o mato, que aquilo não era para ele (ser cúmplice de todas aquelas roubalheiras).

O Comandante (não sei o seu nome, só sei que era muito amigo do meu irmão, segundo me dizia este), ante este pedido e tentando demovê-lo dessa intenção disse-lhe:
- Só para Mueda! - e ele respondeu-lhe:
- É para aí mesmo que eu quero ir! - ... E fizeram-lhe vontade.

Mueda era, para Moçambique, como Guileje era para a Guiné: para todos aqueles que fossem castigados, um dos castigos era serem transferidos para Mueda . E o meu irmão ofereceu-se para ir para lá, daí ficar com a alcunha de o Mercenário.




Francisco Daniel Roxo nasceu em Mogadouro, Trás-os Montes, em 1 de Fevereiro de 1933. Foi para Moçambique em 1951. Aprende a conhecer o território como ninguém, em especial o Niassa, no norte. Foi caçador profissional até 1962. Com a guerra, irá tornar-se, a partir de 1964, um lendário e temível comandante de um grupo de forças especiais de contra-guerrilha (30 homens da sua confiança), lutando contra a Frelimo, à margem das regras da guerra convencional. É conhecido como o diabo branco. Pelos seus feitos na contra-guerrilha, e embora não sendo militar, recebe das autoridades portuguesas duas cruzes de guerra e uma medalha de serviços distintos.

Depois da independência de Moçambique, e já com 41 anos, alista-se no exército da África do Sul. Faz parte de um grupo de operações especiais. Notabiliza-se na Operação Savana, no sul de Angola, na luta contra o exército angolano e os seus aliados cubanos, em Dezembro de 1975. É o primeiro estrangeiro a receber a Cruz de Honra da África do Sul (julgo que a mais alta das condecorações militares). Acabaria por morrer em 23 de Agosto de 1976, numa emboscada, no sul de Angola. Deixou uma viúva e seis filhos. Na foto acima, ele aparece com a farda do exército da África do Sul e o post de 1º sargento. Julgo que não chegou a ser militar do exército português, embora trabalhasse para (e em coordenação com) o exército português. Falta uma biografia, isenta, desta figura de português do tempo colonial que ainda hoje inflama a cabeça e o coração de muita gente que viveu em Moçambique (LG).

Fonte: Adaptado de In memory of three special forces and 32 Batallion soldiers (2005I.



Não sei se pela alcunha que tinha e ficar muito conhecido, quando foi para Meponda, zona do Lago Niassa, o meu irmão acabou por conhecer (e ficar muito amigo de) um senhor, muito mais conhecido em todo território de Moçambique. Era ele, nem mais nem menos , o famoso Comandante Roxo, o Daniel Roxo, mais tarde Sargento Daniel Roxo [do exército da África do Sul].

Eram tão amigos que, quando o Comandante Roxo ia para o mato, convidava o meu irmão para ir também, assim sem mais nem menos, como se fosse para beber um copo. E o meu irmão não se recusava, ia também, até que um dia, numa coluna militar, rebentou uma mina anticarro num Unimog, e ele foi projectado a 30 metros da viatura. Foi em Mocimboa da Praia, sendo depois transportado por helicóptero para Nampula, onde o Cmdt Roxo ia todos os dias visitá-lo. Porque, para além de ser muito amigo dele, também queria que ele (meu irmão) ficasse com o pelotão dele, pois já estava a ficar velho (dizia ele).

Pronto, fico por aqui, muitas outras estórias teria para contar.

O meu irmão faleceu em 25 de Junho de 1997, com um temor na cabeça.

Camarada e amigo Luís Graça, se achar que esta pequena estória do meu irmão em Moçambique está fora do contexto do nosso blogue (que é dedicado à Guiné), não a publique, pois só pensei no facto de algum militar de carreira que tenha estado em ambas (Guiné e Moçambique) possa ter conhecido o meu irmão. Se sim, gostava que muito me contactassem, pois também já pensei entrar em algum blogue de Moçambique.

Junto fotos da Guiné e Moçambique. Ccomo se vê nas fotos, o meu irmão Sérgio pertenceu em Mueda ao CART 2369. Junto também uma foto do Cmdt Daniel Roxo.

Um abraço
Tino Neves
Almada

2. Comentário: Tino, como é que eu te poderia recusar um pedido destes ? A guerra bateu à porta da tua família por três vezes... Tens todo o direito a contar a estória do teu mano, e procurar camaradas que o conheceram. Boa sorte nessa pesquisa. Ah, e desculpa o atraso na publicação do teu post...

De qualquer modo, seria interessante saberes mais sobre as relações do teu irmão com o Daniel Roxo que para uns era um herói e um patriota, para outros um mercenário e um criminoso de guerra... Há inúmeros sítios na Net sobre o Daniel Roxo, e quase todos de homenagem e de admiração... No mínimo, é uma figura controversa, mas que merece ser conhecida, analisada e estudada... A história (mesmo a petite histoire) da guerra colonial também passa por homens como ele...

Vê, portanto, se descobre mais coisas sobre o relacionamento entre o teu irmão e o Daniel Roxo... O teu irmão, como militar, participou em operações de contraguerrilha com o Daniel Roxo ? Ou as suas relações eram só de pura amizade ? Por que é que o teu irmão era alcunhado de Mercenário ? Desculpa lá estas perguntas um pouco incómodas para ti, que és irmão do Sérgio, mas já que te expões, contando um pouco da atribukada vida dele, tens de tentar responder, se souberes... De qulaquer modo, cuidado, camarada, que este é um dossiê que pode estar armadilhado... Pode ser uma verdadeira caixa de Pandora ... L.G.

__________

Nota de L.G.:

(1) Vd post de 14 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1367: Concurso O Melhor Bagabaga (3): Fajonquito (1964) (Tino Neves)

Guiné 63/74 - P1927: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (53): Ponta Varela e Mato Cão: Terror no Geba

Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné > No passado dia 20 de Junho fez uma ano que o Mério Beja Santos (a par do comandante Pedro Lauret) entrou para a nossa tertúlia (hoje, Tabanca Grande) (1). Fui desinquietá-lo ao Instituto do Consumidor (hoje, Direcção Geral de Consumidor)... O Mário começou furiosa, compulsivamente, a escrever, a reconstruir as suas memórias do Cuor, de que ele foi dono e senhor entre 1968 e 1970... O Tigre de Missirá voltou aos seus bons velhos tempos... Semanalmente publicamos um episódio da série Operação Macaréu à Vista. Hoje será o nº 53. O Mário quer publicar estes seus textos em livro. Está a negociar com uma editora. E , a levar o livro (eventualmente em dois volumes) para a frente, quer que os direitos de autor revertam para projectos de interesse comum, no âmbito da nossa tertúlia. No peisódio de hoje, ele relembra os temíveis ataques às embarcações que demandavam o Xime e Bambadinca. Estam,os em finais de Julho de 1969, quando a CCAÇ 12 ( aminha unidade) é colocada ao serviço dos barões de Bambadinca. O BCAÇ 2852 acaba de ser decapitada. Spnínola renova o comando. Pimentel Bastos, humilhado, acabou ali a sua carreira. O novo senhor da guerra chama-se agora Pamplona Corte Real.

O Mário escreve à Cristina, sua noiva: "Sinto-me hoje muito emotivo, estas belezas naturais comovem-me sem eu perceber porquê, é como se o fervor que eu já não tenho na oração o transferisse para a consagração deste reino vegetal". É um elogio ao Cuor vegetal...Não tenho nenhuma foto da época para ilustrar este estado de espírito... Fui ao meu álbum (secreto)... As flores e abelha (não assassina como as do Cuor) são portugesas e recentes (Lourinhã, Junho de 2007). É também uma pequena homenagem a um dos nossos mais activos, entusiásticos e profícuos tertulianos, a quem desejamos continuação de boa navegação na blogosfera.

Foto: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1970 > Espectacular vista aérea do aquartelamento, tomada do lado da bolanha. Em Julho de 1969, há um novo senhor da guerra, à frente dos destinos do Sector L1 e do BCAÇ 2852, o tenente-coronel Pamplona Corte Real.

Foto: © Humberto Reis (2007). Direitos reservados.


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Uma autogrua, da engenharia militar, de marca Galion, a (des)embarcar vacas no cais de Bambadinca, onde havia um pelotão de intendência, e onde ficavam armazenados muitos dos víveres e mantimentos que alimentavam as tropas da Zona Leste (Bafatá e NovaLamego).

O Rio Geba era navegável até Bafatá, mas do Xime para cima o curso do rio, sinuoso e mais estreito, só permitia a navegação de pequenas embarcações, de menor calado, militares (LDM, LDP) ou civis (por exemplo, da Casa Gouveia: a propósito, havia o mito de que as embarcações da Casa Gouveia, ligada ao Grupo CUF, e onde Luís Cabral trabalhara, como empregado antes de passar à clandestinidade, tinham livre trânsito do PAIGC, nunca sendo atacadas...) .

Esta autogrua da engenharia militar viu-se grega para chegar até aqui - estória que já contámos noutra ocasião mas que poderá ser retomada em breve. A Galion veio para reforçar os parcos equipamentos portuários existentes até então no cais de Bambadinca. E, se a memória não me atraiçoa, esse reforço coincide com o desenvolvimento do ambicioso e polémico projecto de reordenamento de Nhabijões, a que esteve ligado o Luís Moreira e outros camaradas de Bambadinca (incluindo malta da CCAÇ 12, como o Alf Mil Carlão, o Fur Mil Fernandes e o Sold Cond Soares, que aqui encontrará a morte em 13 de Janeiro de 1971).

Foto de 1970, gentilmente cedida pelo Luís Moreira, ex-Alf Mil Sapador da CCS do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), gravemente ferido numa mina anticarro em 13 de Janeiro de 1971. Tive o grato prazer de o rever e abraçar no nosso encontro em Pombal, em 28 de Abril de 2007. (L.G.).


Foto: © Luís Moreira (2005). Direitos reservados

O Geba Estreito, junto a Bambadinca. Pirogas, na margem esquerda, que faziam a cambança do rio (ligação ao Cuor: Finete, Mato Cão, Missirá...).

Foto: © Luís Moreira(2005). Direitos reservados.


Mensagem de Beja Santos, com data de 20 de Junho passado (um ano depois de entrar, a meu convite, para a nossa tertúlia):

Caro Luís, aqui vai o apontamento enviado ontem, agora devidamente corrigido. Pelas minhas contas, o primeiro volume [do livro Operação Macaréu à Vista] terminará com mais três episódios, ou seja, em meados de Agosto de 69. Vou ser recebido pela Guilhermina Gomes, editora do Círculo de Leitores, para apreciarmos o projecto.

Penso que com os créditos fotográficos não haverá quaisquer problemas, o Humberto, com quem trabalharei amanhã, não põe objecções nas suas fotos. É essa a razão também porque te reenvio uma fotografia [, uma vista aérea do quartel de Bambadinca,] que me parecia útil para este episódio. Vai separadamente. Peço-te a gentileza, quando tiveres uma aberta, de mandares os primeiros [os links dos] 50 episódios anteriores. Igualmente, quando tiveres tempo e oportunidade, seria útil promoveres o debate acerca da transformação dos meus direitos de autor no nosso bem comum. Recebe toda a amizade do Mário.

53ª Parte da série Operação Macaréu à Vista, da autoria de Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (2). Os destaques a bold e a cores são da responsabilidade do editor.


As danações de Ponta Varela
por Beja Santos


Chegou o terror sanguinolento ao Geba, para lá do Xime.


É um amanhecer luminoso e do planalto de Chicri avista-se um [Rio] Geba de prata, estuante, quase genesíaco. É um tempo invulgar para esta época das chuvas, mas desde ontem que a Mãe Natureza parece querer advertir-nos que vem aí outro tempo, de calor persistente.

Olho o relógio, o comboio de batelões já devia ter passado há cerca de meia hora, de novo assesto os binóculos para o fim do horizonte, nada, nenhum ponto se avista, certamente que houve algum atraso na saída de Bissau. Tenho um mau presságio, parece que para lá do Xime se ouvem obuses, talvez o som dilacerante dos rockets. Interpelo Mamadu Camará acerca deste fogo e ele responde que sim, é para lá do Xime, talvez uma emboscada, talvez uma flagelação, pode ser mesmo um reconhecimento de obus, são sons cavos que a distância não permite identificar. Segue-se o silêncio, sufocante. Depois olho para a estrada que bordeja toda a vareda do rio e se perde ao fundo, onde eu sei estar o que resta de Saliquinhé.

Sinto uma enorme atracção por voltar ao Enxalé, para quem não sabe, caso não houvesse esta guerra, o burrinho em cerca de hora e meia chegaria a Bissau, depois de passar pelo Enxalé, Porto Gole, Nhacra. É a mesma estrada que para cima leva ao Gambiel, e depois a Geba e a Bafatá. A minha ansiedade cresce enquanto o Geba refulge os tons de prata, para lá de Madina ouvem-se uns tiros esparsos como se nos avisassem que há território hostil à nossa espera.

É então que assoma uma embarcação ziguezagueante, estranhamente morosa. Dirijo-me, intrigado, para o ancoradouro e depois de meia hora de espera díficil, o contramestre fala comigo com o horror estampado nos olhos. Uma coluna de 5 batelões, aproveitando a correnteza do Corubal aproximara-se do Geba estreito perto de Ponta Varela. Súbito, várias roquetadas atingiram a casa das máquinas deste barco e ele mostra-me os estilhaços, os vidros partidos, vestígios de algum sangue, um dos feridos vinha ao leme. O terceiro barco foi atingido nas máquinas, vem agora rebocado ao segundo barco, vem lentamente, quase encostado a esta berma do rio. Suplica-me que não me vá embora, que espere por eles, os feridos mais graves vão já para Bambadinca.

E, de facto, quase uma hora depois o pequeno comboio de barcos atacados chega a Mato de Cão. Há sinais de pavor, dou comigo a pensar se a estratégia da guerrilha não mudou radicalmente, Ponta Varela agora é o local temível da destruição, não sei medir as consequências, mas sinto que é necessário rever a protecção desta margem do rio, mesmo em frente a Ponta Varela. Seguimos no último barco, quero ir relatar este episódio ao 2º Comandante.



Uma conversa com o novo comandante, Pamplona Corte Real


Chegado a Bambadinca, sou informado no aquartelamento que chegou o novo comandante. Dou sinal no gabinete ao lado do comando que cheguei, anunciam-me e para minha surpresa sou imediatamente recebido.

Jovelino Sá Moniz Pamplona Corte Real é um cinquentão robusto, ainda com farripas de cabelo louro, tem um sorriso ameninado, um olhar azul inocente, tem boas maneiras e pede-me informações sumárias sobre o Cuor. Começo por lhe falar em Mato de Cão, dou-lhe conta do ataque sofrido há horas pelas embarcações civis, repiso no conceito de que é indispensável reinstalar Enxalé no nosso sector, não se me afigura possível deslocar diariamente pelotões para Ponta Varela a partir do Xime e ao mesmo tempo montar segurança nesta margem do rio, com Enxalé seria mais fácil acompanhar os movimentos na estrada de Mato de Cão, em Missirá e Finete passaríamos a ter condições para voltar aos patrulhamentos ofensivos, pela força das circunstâncias estamos cada vez mais limitados a Mato de Cão, às emboscadas nocturnas e às colunas de reabastecimento.



Um operação com um nome mexicano para ajudar a fazer rodagem à CCAÇ 12

O novo Comandante ouve atentamente, escreve num bloco de notas, despede-se com cordialidade, remete-me para o 2º Comandante. Ainda não houve oportunidade para apresentar o Major Herberto Sampaio, voz tonitruante, procurando acamaradar mas recordando sempre a hierarquia piramidal. Fala-me sumariamente na operação Gaúcho que terá lugar ainda esta semana. Este nome mexicano, para uma ida a dois pelotões até Sancorlã, patrulhando até Salá, descendo junto da antiga tabanca de Cossarandim, emboscando no rio de Biassa, descendo por Mato Madeira até Gambaná, é um perfeito enigma. Mas quando já se participou nas operações Hipopótamo, Bate no duro, Goldfinger, Fado Hilário, por exemplo, tem pouco interesse saber porque é que uma operação se chama Gaúcho.

O que importa é que me deslocarei com um grupo de combate da CCAÇ 12 que está a chegar a Bambadinca e precisa de rodagem. Digo a tudo que sim, despeço-me, vou cumprir a burocracia com o Tenente Pinheiro, levanto material da construção civil, alguns géneros, vou comprar ao Rendeiro lâmpadas, uma toalha para a mesa das nossas refeições, camisas para os petromaxes, comemos uma bifana no Zé Maria e rumamos para a bolanha de Finete.


Um elogio ao Cuor vegetal

Ao longe, os palmeirais parecem acenar neste dia de céu luminoso que vai secando os charcos de lama que dão conta da longuíssima época das chuvas. Interrogo-me como ainda é possível receber como primeiras sensações o deslumbramento deste bissilões que agitam os seus braços frondosos, ou contemplar com pasmo as imponentes árvores de pau sangue. Antes de entrar em Finete olhos os mangais, os arrozais túrgidos, os campos de legumes, falo com mulheres e crianças que trazem quiabos, papaias, beringelas.

Procuro Fatu Cassamá, dentro de dois dias vou levá-la de novo ao David Payne [, o Alf Mil Médico do BCAÇ 2852,] depois do incêndio de 19 de Março perdeu-se todo o processo, voltámos ao ritual das deprecadas, inquéritos, questionários, exames médicos. Marco com Bacari Soncó um novo horário para a ida da população civil à enfermaria, anuncio que o burrinho irá até à berma do rio para irmos buscar mais sacos de arroz a Madina Bonco, o sol está no zénite quando galgamos a íngreme subida de Finete e me despeço, na estrada de Canturé, de duas secções do pelotão de milícias que vão patrulhar de Cansonco até Gã Joaquim

Trago cartas, com expediente da guerra e nosso correio de além-mar, vou passando em revista as actividades que nos esperam esta semana em Missirá, flanqueamos a estrada cheio de capim alto, um convite para uma boa emboscada, atravessamos os morros de baga-baga em Canturé, sinto sempre nostalgia quando vejo as estacas calcinadas das velhas moranças, dos ferros das destilarias exploradas por um cabo-verdiano e um açoreano. Depois Caranquecunda feita uma seara de capim, atravessamos o pontão por onde corre a ribeira abundante, chegamos a Missirá ao entardecer.

Quantas vezes já fui a Mato de Cão: duzentas? trezentas? Mais, menos? Mal chegados, cumpridas as formalidades das arrumações de tudo quanto foi adquirido em Bambadinca, antes mesmo de abrir o correio e saber que Bissau comunica a chegada de substitutos de outros soldados, antes mesmo de saber que três dos meus bravos vão ser condecorados, antes mesmo de abrir a carta do Batalhão de Engenharia que refere o gerador com o seu manual de instruções, sento-me à minha secretária e escrevo.

Primeiro para o Luis Zagalo [de Matos], agradecendo-lhe as suas últimas notícias, enviando-lhe fotos de alguns soldados, tal como ele pediu. Inevitavelmente, falo-lhe do que aconteceu na noite de 15 de Julho, demoro-me nas marcas da flagelação, os destroços da casa de Quebá Soncó, que também foi seu picador, falo-lhe do sinistro de Fatumana, das birras da anciã que não quer cubata quadrangular, falo-lhe das vissicitudes do processo de Abudu Cassamá e anuncio que a época seca já está a dar sinais. Despeço-me pedindo-lhe que telefone à Cristina e lanço a suposição que casaremos em breve, talvez em Lisboa.

Depois escrevo ao Ruy Cinatti, agradecendo-lhe os livros de Saint-John Perse, o Prémio Nobel da Literatura de 1960 e a beleza dos poemas Eloges e Anabase. Folheio a bonita edição da Gallimard e como se escrevesse para mim transcrevo: "Homens, gentes de poeira e de todas as maneiras, gentes de negócio e de lazer, gentes dos confins e gentes de alhures, ó gente de pouco peso na memória destes lugares; gentes dos vales e dos planaltos e das mais altas vertentes deste mundo no termo das nossas margens: farejadores de sinais, de sementes e confessores de sopros no Oeste; seguidores de pistas, de estações, levantadores de acampamentos à brisa de madrugada; ó pesquisadores de olhos de água sobre a casca do mundo; ó pesquisadores, ou achadores de razões para se ir alhures, vós não traficais com sal mais forte, quando pela manhã, num presságio de reinos e de águas mortas, altamente suspensas, por cima das fumaças do mundo, os tambores do exílio despertam nas fronteiras a eternidade que boceja nas areias".

Sim, andei a plagiar inconscientemente este mestre de fosforecências, elogios sagrados, sinais do transcendente. Mas que importância tem eu curvar-me perante a ressonância destas imagens quando elas me tocam nos cinco sentidos dos assombros da mata à volta?

Continuo a escrever para Lisboa, as páginas desalinhadas do meu diário para a Cristina. Sim, vamos recuperar a casa de Quebá Soncó, um novo chuveiro está a funcionar, tenho desgosto pela partida do Pimentel Bastos, Bambadinca está diferente, um dia de consistente ensolaramento foi a nossa companhia, prometo regressar a Bafatá dentro de dias para tratar dos nossos papéis, escrevo uma frase dilacerante: "Sinto-me hoje muito emotivo, estas belezas naturais comovem-me sem eu perceber porquê, é como se o fervor que eu já não tenho na oração o transferisse para a consagração deste reino vegetal".

Depois falo-lhe de Bambadinca e do novo comando onde se sente que as preocupações defensivas passaram a ter mais peso. Faço perguntas sobre os seus estudos e despeço-me esmagado pelas saudades. Fecho os aerogramas e então sinto o chamamento do cansaço, vou para o balneário não sem antes contemplar embevecido a abóboda celeste estrelejante, uma quase resposta ao belo dia que entrou no negrume profundo.

Ao jantar, com auxílio do Pires, falamos dos reforços dessa noite, do grupo que vai emboscar, notício sem detalhes que vamos ter a Gaúcho, fiquei a saber igualmente que em Setembro voltaremos ao Xime e ao Burontoni, ele vai partir para a emboscada, hoje não há loto nem bisca lambida, tenho que ver as contas da cantina com o Alcino e o Queiroz. Aproveito para dizer ao Teixeira que já traz uma mensagem descodificada nas mãos a anunciar que devo voltar a Mato de Cão ao meio dia, que chegará em breve um colaborador, um tal Alcino Bairrada, que ficará ferido a 16 de Outubro, em Canturé.

As horas passam, já fui ver os postos de sentinela, conversei com Mussá Mané que me fez vários pedidos em nome da população civil, fui visitar soldados com malária ou carregados de viroses, confirmo que as contas estão em ordem, o Alcino apresenta-me a lista das munições e do equipamento em falta, são assuntos para resolver para a semana.

Foi um dia intenso e preocupante. Ainda não disse a ninguém, embora o Setúbal e o Xabregas estejam desconfiados com as inúmeras perguntas que fiz à mesa sobre o estado do 404 e do burrinho. Para surpresa dos dois, saíremos amanhã, igualmente com sol radioso, para Mato de Cão e depois Enxalé. Será uma linda e comovente viagem que vai selar, mal sabia eu, a reaproximação de Enxalé ao sector de Bambadinca.

Chegou o momento de gozar a solidão, vou ler até adormecer.


A semana de Jean Cocteau

Ao longo da semana, reli ou conheci obras de Jean Cocteau, tudo graças ao Carlos Sampaio. Reli Les Enfants Terribles, uma obra prima muito próxima do surrealismo, onde não estão ausentes as sequelas do dadaísmo. É o sonho e o inconsciente, um estilo musculado, frases sóbrias cheias de contra-senso e provocação. Dois irmãos, adolescentes, vivem num quarto numa desordem inacreditável. O pai já desapareceu , a mãe vai falecer, um outro jovem amigo pede a um tio rico que ajude estes dois irmãos. A relação destas crianças paira pelo obsessivo e o freudiano, quase que somos induzidos a um estado incestuoso. No final, os dois irmãos suicidam-se quase que ao nível de uma ópera. Quando digo dadaísmo é porque esta prosa balança-se entre o ilógico e o absurdo, a denúncia da demência da guerra é um propósito descarado, feita num barroco que se veste de escândalo e falta de sentido.


Capa do livro - peça de teatro em 4 actos - de Jean Cocteau (1889-1963), La machine infernale. Paris: Bernard Grasset. 19674 (Livre de Poche, 854).

Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007).


Capa da novela de Jean Cocteu. Tomaz, o impostor. Lisboa: Livros do Brasil, s/d. (Colecção Miniatura, 51). Capa de Bernardo Marques.

Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007).
Até agora o que mais me entusiasmava no génio de Cocteau eram os seus filmes e algum do seu teatro. La machine infernale, Édipo e Jocasta, Tirésias e Antígona, sempre me pareceram soberbas reaproximações da tragédia grega. Esta peça foi representada pela primeira vez com a voz de Cocteau, e enquanto a releio imagino-o a declamar: "Regarde, spectateur, remontée à bloc, de telle sorte que le ressort se déroule avec lenteur tout le long d'une vie humaine, une des plus parfaites machines construites par les dieux infernaux pour l'aneántissement mathématique d'un mortel".

É com gosto que leio Tomaz, o Impostor, uma grande novela que ele escreveu com pouco mais de 20 anos. É igualmente um Cocteau dadaísta e surrealista, denunciando a guerra das trincheiras, a ingenuidade de um adolescente aldrabão e lunático que se move num círculo decadente e procura o heroísmo até sucumbir, vítima do mundo delirante que ele próprio urdiu. Esta guerra das trincheiras não me vai sair da cabeça tão cedo. E a lição de que não devemos engrandecer-nos com as paródias do inferno.


Um ano de Guiné

Para a semana, faz um ano que desembarquei no cais de Bissau. Não acredito que o tempo seja tão breve, tão intenso. Não acredito que tenha mudado tanto. Não acredito que tenha chegado num barco de mancarra, de saco a tiracolo, com latas de leite e pão apresuntado. Fiz a mesma viagem onde hoje faço vigilância, mais do que diária.
Um menino falou comigo durante toda a viagem. Ia visitar uns tios a Bafatá, falou-me das ilhas, anoiteceu, passámos as luzes do Xime, e em Mato de Cão o Almeida e o Pel Caç Nat 63 não sabiam que eu vinha ali. Nada tem importância, Missirá é um ponto no mapa, Finete é um encargo, a única coisa que conta em termos militares é que os barcos cheguem a Bambadinca, e todos com vida.

Não passaremos à história, mas os barcos, todos eles, vão chegar a Bambadinca, com a nossa vigilância, nesta margem do Geba. Louvado seja Deus pela coragem e pelo entusiasmo que tomam conta de mim.

___________

Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 20 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P887: Dois novos tertulianos: Pedro Lauret e Beja Santos (Luís Graça)

(...)" O caso do nosso camarada Beja Santos foi ainda mais célere... Comecei com cerimónias [, ao telefone,] e acabámos no tu-cá-tu-lá, voltando aos velhos tempos de Missirá, Finete, Mato Cão, Bambadinca...

(...) Amigos e camaradas: a nossa caserna fica hoje mais rica, com a entrada do Pedro Lauret e do Beja Santos... A entrada de cada novo amigo ou camarada é sempre um momento bonito... Há trinta e tal anos atrás, seria celebrado mais ruidosamente, com umas valentes rajadas de G3... Agora estamos mais calmos, mais sábios, menos folgosos, mais amigos do ambiente, mais respeitadores do erário público, quiçá mais pacifistas, seguramente mais velhos... Espero que eles se sintam em casa, nas suas sete quintas, no seu meio (aquático, terrestre, aéreo, cibernáutico...) e que continuem sobretudo com essa imensa vontade de partilhar connosco a sua excepcional experiência como homens e como operacionais...

"Mário e Pedro: É também um privilégio contar convosco!... Vocês são mais dois pesos pesados da guerra que nos calhou em sorte... Conto convosco para nos ajudarmos, uns aos outros, a reconstituir o puzzle da nossa memória colectiva... Temos essa obrigação, perante nós próprios, o povo português, o povo guineense e a nossa história parcialmente comum" (...)

(2) Vd. post de 29 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1898: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (52): O ataque a Missirá de 15 de Julho de 1969, visto pelo bravo mas modesto Queta Baldé

quinta-feira, 5 de julho de 2007

Guiné 63/74 - P1926: Bibliografia de uma guerra (21): Pami Na Dondo ajuda-nos à reconciliação com a guerrilha (Virgínio Briote / Carlos Vinhal)


1. Mensagem do Virgínio Briote:

Caro Carlos,

Foi com muito gosto que li a história da Pami Na Dondo. Tive conhecimento do livro através do nosso blogue (1). Contactei o Mário Fitas, que gentilmente mo ofereceu. Uma obra escrita com muita sensibilidade, com abundante recurso ao crioulo, perfeito e gostoso. Como se os estivesse a ouvir falar. Os acontecimentos relatados atravessam a mata e o aquartelamento. E ajudam à nossa reconciliação com os nossos camaradas do PAIGC.

Até hoje, uma boa parte das obras escritas por camaradas nossos relatam acontecimentos tendo por base intervenções operacionais. O que não estamos muito habituados a ler é obras com vistas de um lado e outro, que, embora ficcionadas, vendo bem até não o são muito.

Parabéns ao Mário Fitas pela obra feita.

Um abraço aos camaradas tertulianos,
vb

2. Mensagem de Carlos Vinhal:


Caro Mário Fitas (Mário Vicente, autor do livro Pami Na Dondo)

Acabei de ler o teu livro e, como te prometi, vou tentar dar a minha modestíssima opinião.

No que toca à ficção, achei-o uma ternura. Soubeste tirar partido duma personagem que, sendo prisioneira de guerra, ao tentar perceber, como observadora, os nossos sentimentos e a nossa visão sobre uma guerra que não queríamos, acabou por ter um papel sublime ao gerar, por violação, um filho de um inimigo.

Pami Na Dondo acabou por recuperar a sua liberdade, graças a esta gravidez e à homenagem que um combatente português quis prestar à memória de um seu camarada e amigo, pai acidental, morto em situação de combate. Vida gerou vida, mesmo antes do destino cruel que era a morte no campo de batalha. Sentimentos de ódio, amor, interesses materiais e instintos de sobrevivência, misturam-se numa realidade por nós vivida nos nossos viçosos vinte anos. De um lado e do outro se sofreu. Uns como ocupantes, outros como ocupados lutando pela sua liberdade.

No que toca à divulgação das características geográficas e das populações do nosso ex-território que foi a Guiné, está muito bem descrito sem ser exaustivo, não era essa a intenção. Fiquei com conhecimentos que não tinha.

Finalmente, no que à vivência dos nossos militares, em teatro de guerra, diz respeito, está narrado de uma forma sucinta que não impede contudo que seja retratada a realidade, por nós demais conhecida. Quem lá esteve, sabe que era assim. Quem não esteve, fica a saber como era.

Peço desculpa por não conseguir ser mais explícito, mas mais não consigo dizer. Parabéns pelo resultado, pelas horas de prazer que me foram proporcionadas e por tornares possível reviver tempos quase imemoriais.

Recebe um abraço do camarada e admirador, Carlos Vinhal.

_________

Nota de C.V.:

(1) Vd. post de 2 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1911: Bibliografia de uma guerra (19): Pami Na Dondo, guerrilheira do PAIGC, o último livro de Mário Vicente (A. Marques Lopes)

Guiné 63/74 - P1925: O meu reencontro com o Arsénio Puim, ex-capelão do BART 2917 (David Guimarães)


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Xitole > 1970 > O Padre Puim, capelão militar, açoriano, da CCS do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72) com o furriel Guimarães da CART 2716.

Devido às suas homílias, este capelão teve problemas com o comando do seu batalhão que o terá denunciado à PIDE/DGS. Acabou por ser preso e expulso do Exército, no início de 1971, tal como outros (o caso talvez mais famoso foi o do Padre Mário da Lixa, membro da nossa tertúlia).

Infelizmente, é a única foto que possuímos do ex-Padre Puím, hoje enfermeiro no Hospital de Ponta Delgada, casado e pai de filhos, segundo a informação que me chega através do David Guimarães e do Abílio Machado (1).

Foto (e legenda): © David Guimarães (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: BLogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Excerto da mensagem de David Guimarães, de 21 de Maio último (1), e a que ele deu um título bonito: Cartas a tocar os tempos de guerra, Cartas de amigos que se vão encontrando e crescendo:


Um camarada muito especial, o capelão Puim


por David Guimarães


Explorando os contactos de tantos ex-camaradas que fizeram parte do meu batalhão (BART 2917) e da minha companhia (CART 2716) (2), encontrei um que era especialíssimo, até pela arma a que pertencia, o serviço religioso... Estou-me a referir, naturalmente, ao nosso querido Capelão...

Havia uma fotografia em que estava eu e ele no Xitole [vd. foto acima]: pedi a Durães para lhe enviar. Então o Durães disse-me:
- Olha, envia-lhe tu que é mais correcto e ele ficará contente.

Efecticamente o Durães tinha razão. Em 3 de Abril último, depois de praticamente só ter enviado a fotografia pelo Durães, dei um aceno de existência ao ex- Capelão, tendo recebido o seguinte Mail:

Guimarães:

Obrigado pelo email e a fotografia, que já recebi anteriormente [Tinha-he enviado o Durães a meu pedido].

Gostei de saber que a Companhia do Xitole [, a CART 2716,] vai reunir em Fátima. Pensando ir a Lisboa, não irei a tempo de apanhar o vosso encontro. Gostaria, porém, de saber o endereço completo da casa onde este vai decorrer, assim como a
confirmação do dia e hora, para vos mandar uma mensagem.

Que fim levou a malta de Mansambo [, CART 2714,] e Xime [, CART 2715]?

Um grande abraço,
Arsénio Puim


Escrevi assim para os Açores em 4 de Abril:

Olá, meu caríssimo bom amigo (CAPELÃO). Não deixará de o ser para nós, pois a estima nunca nos faltou, e falo em nome de quase todo o Batalhão, disso aposto...

Bom, vamos responder: Restaurante Santa Luzia, Rua de Santa Ana nº 3, junto mesmo à Basílica, parte de trás, ala esquerda... O almoço está marcado com inicio às 13,30...

Uma Mensagem de Puim será por certo o melhor acontecimento, sendo certo que não chegando poderá enviar para mim por aqui, que mesmo eu a proclamarei lá com todo o gosto e em bom som...

Todos os anos vem sempre á baila o Padre Puim... O Cap Mil Espinha de Almeida [, cmdt da CART 2716,] fala sempre em si... Emfim, ainda bem que estamos aqui assim, de mãos dadas, como sempre afinal e passados 30 anos falamos das mesmas coisas... Somos muitos e amigos...

Sabendo que não pode estar (é natural), havemos de construir uma ponte até aos Açores. Creio que em 9 de Junho lá estará em Setúbal, eu também lá irei... Tenho que ir matar as saudades com os camaradas da CCS. Creio que também se irão juntar alguns elementos da CCAÇ 12, aquela Nativa que estava afecta ao Batalhão...

Quanto a Mansambo e Xime... O Xime tem-se reunido de dois em dois anos, creio...Tenho que os encontrar e agora estamos a fazer tudo para isso... Em relação a Mansambo teremos que tomar as mesmas acções. O meu sonho é juntar o Batalhão um dia, pelo menos os ex-quadros... O Durães está empenhado tanto quanto eu, pois eu meti-o ao barulho...

Em 2001 fui à Guiné e, sabe, valeu a pena... reconciliar com o passado maldito e abraçar aqueles que tinham combatido contra mim. Vale a pena, valeu a pena mesmo. Foi uma óptima terapia....

Entretanto no dia 28 [de Abril de 2007] vamos reunir as pessoas que escrevem no blogue de que já tem conhecimento [, Luís Graça & Camaradas da Guiné]. É 2º Encontro, é apaixonante mesmo...

Quero um dia morrer e saber que o lucro que tive na sangrenta guerra foram todos estes amigos que ora partilham comigo os mesmos sentimentos - amizade e solidariedade. Aí estará o nosso valor divino, a partir daí não servimos para mais nada ou para pouca coisa...

Um abraço e até sempre

Aproveito para lhe desejar uma óptima Páscoa na companhia daqueles que mais ama - mulher e filhos.

David Guimarães


2. Comentário do editor LG:

Meu querido amigo e camarada David:

Convivi pouco com o capelão Puim. Já não ia missa nessa idade, e muito menos na Guiné, em Bambadinca. Além disso, a malta da CCAÇ 12 tinha uma intensa actividade operacional, ao serviço do comando do do batalhão, sobrando pouco tempo para conviver com a malta da CCS. 

Levei-o, a ele, Puim, uma vez, numa das nossas colunas logísticas ao Xitole, a ele e à mulher do Carlão... (Ainda me recordo de a ver, de camuflado, e de sapatos de salto alto, vermelhos, à guarda do angélico Puim... Não sei se te recordas: o Carlão era um dos alferes da CCÇ 12, estando na altura destacado no reordenamento de Nhabijões... Alguém se recusou, por razões de segurança, a levar a mulher do Carlão. Deve ter sido o comandante da coluna, um dos nossos alferes ou o talvez Beja Santos, do Pel Cal Nat 52, já não me recordo ao certo... Julgo que a coluna ia mesmo até ao Saltinho. Já não tenho a certeza se ela acabou por ir ou por ficar. O Puim foi dessa vez, e terá sido essa uma das quatro vezes que ele te visitou, no Xitole)...

Bom, hoje estou arrependido de nunca ter ouvido uma homilía do Puim, mesmo por simples curiosidade intelectual, por solidariedade humana ou por camaradagem... 

Na altura, eu achava que todos os capelães militares eram escolhidos a dedo e estavam bem integrados no sistema. Não me dei conta que os efeitos devastadores da guerra também afectavam os homens encarregues de zelar pelo conforto espiritual dos nossos combatentes. 

Além disso, o Concílio Vaticano II mexeu profundamente com a Igreja (ultraconservadora) que nós conhecíamos, desde o nosso tempo de meninos e moços... Claro, eu tinha ouvido falar do Padre Mário de Oliveira, o Padre Mário da Lixa, também expulso do exército dois anos antes. (Esteve em Mansoa, ali perto de nós, mas só vim a conhecê-lo, pessoalmente em 1976, no dia do meu casamento, civil, em Candoz, Paredes de Viadores, Marco de Caneves.)

Por outro lado, as autoridades militares de Bambadinca e a polícia política fizeram a coisa discretamente, pela calada... Poucos de nós, deram conta do que se passou, no início do ano de 1971 em que ele foi preso e levado de helicóptero para Bissau ... 

Em retrospectiva, tenho que considerar o Puim como um homem bom, vertical, coerente e corajoso, talvez o melhor de todos nós, não obstante o seu ar frágil, de menino de coro... Já não me recordo, mas tivémos seguramente conversas, no subversivo bar de sargentos, a respeito do que se passou, na altura, já que o Machado era seu e nosso amigo...

O texto do Abílio Machado, já aqui publicado (1), fez-me aumentar a minha admiração por ele: "A coragem de um padre que não abdicou de o ser lá onde era o seu sítio: o altar"... 

Poucos de nós tiveram tomates para tomar as posições que ele tomou: refiro-me àqueles de nós, como eu, que eram contra a guerra mas que a fizeram...

David: Faço questão que ele integre, de pleno direito, a nossa tertúlia... Se não te importares, faz-lhe chegar o meu/nosso convite... Infelizmente não tenho aqui o mail dele.

____________

Notas de L.G.:

(1) Vd. posts de:

17 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1763: Quando a PIDE/DGS levou o Padre Puim, por causa da homília da paz (Bambadinca, 1 de Janeiro de 1971) (Abílio Machado)

(...) O exemplo do padre Puim - já não é padre: quem o é nos tempos de hoje? Uma instituição caduca! – é o paradigma do que poderiam ter feito naquela situação. E não o terão pensado?

"O Puim. Outro exemplo impressivo. Memória perene. Porque há actos que, por dolorosos, queremos rejeitar, mas pelo exemplo não podemos esquecer. E ficam-nos como um padrão, ou uma tatuagem, ou um ferrete. Recortados no horizonte ou cravados na carne a frio são uma referência ou uma lembrança.

"A coragem de um padre que não abdicou de o ser lá onde era o seu sítio: o altar. Já corriam, porventura trazidos pela brisa que, vinda de certa Casa ribeirinha (4), se espalhava às vezes serena, às vezes inquieta pela parada do quartel, uns ditos de que o padre Puim se desmandava nas homílias.

"Os textos, ditos ou escritos, não eram visados pelo lápis azul. O Puim saberia disto? Não vou revelar o que penso, não quero ser inconfidente… E choveram relatórios para Bissau, por certo. Alguém que era regular nas missas.

"E chegou o dia 1 de Janeiro – Dia Mundial da Paz. Ainda é ? Era-o em 1971. Ao que me disseram (eu não ia à missa : as minhas missas com o Puim eram grandes conversas, edificantes, pela noite fora), o Puim falou sobre a Paz.

"Nessa semana, à socapa – houve um silêncio quase opressivo ou é efabulação minha? - aterrou uma DO. Alguém, discreto, fez-me chegar a nova de que algo se passava com o Puim. Fui ver. Encontro o Puim, sentado na cama, nervoso mas determinado, olhando uns sujeitos que impiedosamente lhe desmantelavam o quarto descarnado, de asceta, à cata de … Abriam, fechavam gavetas, apressados … Acabei retirado do quarto.

"E levaram-no com eles . Vi-o passar. Parecia mais sereno . Chegou-nos que teria sido mal tratado em Bissau, até pela própria Igreja. E que teria sido exilado para a sua terra: haverá coisa pior? Um exílio no próprio chão que o viu nascer?

"Ninguém é profeta na sua terra nem fazem milagres os santos que conhecemos. Mais tarde soubemos que estava de facto nos Açores. E que despira o hábito … Mas abraçara outro sacerdócio … A igreja será agora o Hospital de Ponta Delgada" (...) (3).


(2) Vd. post de 5 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1924: Convívios (20): CART 2716 (Xitole, 1970/72), em Fátima, no dia 26 de Maio último (David Guimarães)

(3) Também já aqui falámos de um outro capelão militar que deixou o sacerdócio: vd. post de 29 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1471: O tenente miliciano capelão Mário Oliveira, Catió. BCAÇ 2930 (Amaral Bernardo)

(...) "Luís: Só um esclarecimento: O Mário de Oliveira que está com o Mário Bravo não tem nada a ver com o Padre Mário de Oliveira da Lixa. É o capelão da CCS do BCAÇ 2930, sediada em Catió, sede do batalhão, a que ambos pertencemos" (...).

(4) Se bem entendo a linguagem sibilina do Machado, não terão sido os militares mas um civil, comeciante local, branco, com casa na tabanca ribeirinha de Bambadinca, a denunciá-lo à PIDE/DGS... 

A ser verdade, tratava-se de casa frequentada, com alguma regularidade, por alguns de nós, milicianos, apreciadores do famoso Chabéu de Galinha, que a esposa, africana, fazia divinamente... Constou-me até que a pessoa em causa foi acusada de ser bufo da PIDE/DGS, depois do 25 de Abril... Terá inclusive sido presa, não sei se ainda na Guiné se já cá, na Metrópole... Espero que nada disso tenha sido verdade...