Lisboa > Rio Tejo > Primavera de 2007 > Há 40 anos atrás havia navios que zarpavam, de manhã cedo, para a Guiné, carregados de homens com as suas armas... Podia ser num dia de chuva e vento como este... "Parou, acendeu mais um cigarro e voltou para casa. Fazer a mala era preciso. A mãe ajudava-o. Sentia a tristeza no seu olhar e isso deprimia-o mais" (TM)....
Foto: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.
1. Escreveu há dias o Virgínio Briote a seguinte nota, dirigida ao Torcato Mendonça:
Caro Torcato,
Não posso deixar de te felicitar pela tua escrita madura e consistente, e que muito enriqueceu o nosso blogue. É certo, tenho de confessar, que qualquer escrito sobre a guerra colonial, venha ele de um lustroso guerreiro do Império ou de um simples amanuense, me sensibiliza. Mas a maneira como tu vês aqueles tempos, toca-me de uma forma diferente. E é por este motivo que, ao ler o post 1900 (1), me lembrei de te escrever para te cumprimentar e te dizer que aprecio muito a humanidade da tua escrita. E desejo que continues, Torcato.
Um abraço,
vb
PS - Já leste 'Pami Na Dondo' do Mário Vicente? Se ainda não leste a pequena obra desse nosso camarada que andou pelo Cantanhez, escreve ao Mário, que certamente tem muito gosto em ta oferecer.
2. Comentário de L.G:
É com uma pontinha de orgulho que eu tenho vindo a a assitir, no nosso blogue, de há dois anos a esta parte, à emergência, senão de grandes talentos literários (a expressão é forte e pesada), pelo menos de vocações literárias, de gente com grande potencial para a escrita, que escreve bem, que nos surpreende, e nessa medida é já motivo de orgulho para todos nós, amigos e camaradas da Guiné.
Já temos, na nossa tertúlia (ou Tabanca Grande), gente com livros publicados, e gente com projectos editorais, mas o mais importante ainda é saber que temos gente que, contra todos os handicaps, sem diplomas, sem pergaminhos, sem pedigree, mas também sem complexos, com autenticidade, com garra, escreve e continua a escrever diariamente para o nosso blogue. O nosso Torcato é um deles.
O Virgínio (e todos vocês) vão ficar sensiblizados com mais esta estória de Mansambo. Vamos seguramente reconhecer as Matildes que passaram, de relance, pelas nossas vidas, e que não chegaram a ser as nossas bajudas, como as Mariemas (1), nem sequer os nossos efémeros amores de verão nem muito menos os grandes amores das nossas vidas (2)... Hoje temos tempo e sobretudo a imensa sabedoria de perguntar: Why ? Porquê ? Por que razão passámos tão longe e tão perto ? Por que é que pusémos as nossas vidas entre um parênteses recto, durante no mínimo três anos ? Que fique claro: não há nenhuma dívida a cobrar a ninguém... A haver ajustes de contas, é só connosco, com cada de um de nós, na sua intimidade... Também já é altura de pôr um ponto final no muro das lamentações: que nascemos no país errado, na época errada, de pais errados... Só nos resta assumir o que temos e somos... O resto é mesmo batota. (LG)
3. Estórias de Mansambo (6) > Matilde,
por Torcato Mendonça
Habituara-se a vê-la passar. Livros debaixo do braço, ar calmo, passo apressado. Sabia que ela regressava das explicações. Talvez para completar o 5º ano. Estávamos em meados dos anos sessenta. Ela resolvera retomar os estudos, ele fizera breve paragem nos dele. A dois ou três meses dos exames retomá-los-ia. Pensava …que ia fazer isso.
À noite, quando os seus afazeres de borga o permitiam, volteava pela praça. Às dez ou dez e meia, ela costumava passar. Não se cumprimentavam, não diziam nada. Um olhar, directo de quando em vez, mas breve, a parecer …por acaso. Olhar assim, a nada dizer, ou a dizer a ambos que talvez, mais tarde ou mais cedo se iriam encontrar.
O tempo passou rápido. O hábito desses encontros, de passagem e olhares breves, foi-se. Via-a raramente, se o encontro casual acontecia, olhava-a demorada e discretamente. Habituado a avançar sentia, desta vez, ser diferente e, por isso, comprometeria certamente as suas prioridades de então.
A época de exames chegou e ele adiou-os para o fim do verão ou para o ano seguinte. Os dela parecem ter corrido bem e continuou os estudos.
Vltou o acaso a aproximá-los novamente. Nas férias desse verão, os toldos na praia, tinham ficado próximo. Só a via ao fim de semana ou, de quando em vez, num fim de tarde. Era a praia das famílias, por época inteira. Em Setembro, a dele ia até ao Algarve. Não era a praia dele. Só os amigos o levavam lá. Mais ainda nesse verão, que estava ocupado por biscate de ocasião.
No fim do verão trilharam diferentes rumos. Ambos voltaram a estudar. Via-a raramente e sentia sempre a vontade de lhe falar. O destino – se há destino – não o quis. Ele acobardou-se, ou ela não deu abertura, ou ele sentiu que devia ir por outro caminho. Certo é que o desencontro aconteceu. Ficou só a saudade.
Ela estudou, empregou-se e iniciou outra vida. Ele estudou, pararam-lhe os estudos e despacharam-no para a vida militar.
Passaram dois, três anos? O destino ou o acaso juntou-os novamente. Ambos de férias, ela vinda de Lisboa, ele vindo de África. A um dia do regresso dele, o encontro à saída do café. Um inesperado frente a frente, o sobressalto em ambos, fundem o olhar e talvez ambos reconheçam a inevitabilidade de dizer algo. Sente o bater acelerado do seu coração. O dela!? Não sabe. Sai sem nada dizer. Foi andando, pensando… a horas do retorno a África… doze… quinze, o que dizer-lhe e porquê logo agora. A sua vida era difícil, tinha mulher não oficial, vivia em risco permanente como mercenário em guerras de outros. Em breve seria envolvido pelo cheiro e humidade daquela terra vermelha e ardente. Em breve, sentiria o perigo e o gozo que lhe dava o risco, o sentir a vida a esfumar-se e a voltar inteira. Liberto, ou só totalmente liberto, arriscava, gozava e assim viveria, em plenitude, aqueles breves mas frequentes momentos. Será que aquilo era viver? Certamente que não. Só assim, contudo, suportaria aquela vida imposta.
Parou, acendeu mais um cigarro e voltou para casa. Fazer a mala era preciso. A mãe ajudava-o. Sentia a tristeza no seu olhar e isso deprimia-o mais.
O pai chegou mais cedo, combinaram a saída, verificaram a hora de partida do avião, o tempo da passagem pelos Adidos, na Ajuda. Falaram tentando manter a naturalidade, o que tornava tudo ainda mais diferente e artificial. O jantar foi o possível… ouviu dizer à mãe: O menino comeu pouco. Ainda era menino…
Pediu licença ao pai e levantou-se. Já? Onde vais? Volto já, não demoro. Foi procurá-la. Sabia onde. Certamente estaria na festa da Padroeira lá da terra. Não se enganou. Viu-a com uns amigos. Olharam-se. Ela afastou-se, talvez à espera que ele lhe fosse finalmente falar. Ele ainda teve dúvidas. À velocidade da luz pensava, sim ou não. Avançou um pouco olhando-a, sentia o breve sorriso dela, ou era imaginação sua? Baixou o olhar, e afastou-se. No regresso a casa, talvez enganando-se a ele mesmo, pensou: É melhor assim. Ia descansar mais cedo e retornava mais liberto a África.
Salazar (em 1933)
Fonte: Wikipédia
Recorda bem, ainda hoje, o regresso a Bissau. Nesse dia, em Lisboa o Ditador tombava da cadeira. Não soube. À chegada, sentindo o violento calor a subir do solo, um amigo perguntou-lhe:
- Então, o Velho?
- Qual velho?
- Não sabes? O tipo caiu e está mal.
- Não sei. - Olharam um para o outro e sorriram. Saíram da Gare e dirigiram-se a Bissau. Havia muito tempo de comissão a cumprir. E cumpriu.
A ela ainda a voltou a encontrar. Vidas totalmente diferentes, a seguirem caminhos diversos. Nesse dia, os olhares voltaram a cruzar-se e as cabeças baixaram. A vida afastara-os definitivamente.
Ele deixara-se de guerras, tinha mulher de hoje aqui e outra ali. Tentava dar rumo à vida. Esperava… Ela tinha vida normal partilhada com alguém.
Um dia deram-lhe a notícia. Devido a erro médico ou similar, ela partiu. Ficou chocado. Novamente a morte a atormentá-lo, logo ela.
Sentiu nunca a ter esquecido ou nem ele sabe. O peito aperta… Talvez os Deuses, num Olimpo qualquer, tenham a resposta.
Páro um pouco. Deixa-me beber um uísque… o café é fraco. Eu depois continuo, só um uísque… mas duplo por favor…
__________
Notas de L.G.:
(1) Vd. post de 19 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1295: Fotos falantes (Torcato Mendonça, CART 2339) (7): Mariema, a minha bajuda...
(2) Vd. posts de:
14 de Março de 2007> Guiné 63/74 - P1594: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (1): A dança dos capitães
16 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1666: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (2/3): O Zé e o postal da tropa
25 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1785: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 239) (4): Burontoni, mito ou realidade ?
27 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1892: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (5): O Casadinho e o Bessa, os mortos do meu Gr Comb, os meus mortos
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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