− Há gajos que nascem com o cu virado para a lua. E que
fazem gala disso… Como o teu cunhado, por exemplo…
− Quem, o Ulisses?
− Sim, Jorge, só tens um, que eu saiba.
−
Já agora retifica: ex-cunhado... Mas
nunca fomos à bola um com o outro.
E eu aproveitei então
para esclarecer, o meu interlocutor, que já não via o Ulisses desde 1974, a
seguir ao 25 de Abril… Mal saiu a amnistia aos faltosos, refratários e
desertores, voltou à sua terra para abraçar o paizinho e as manas e, claro, para limpar a caderneta militar.
Veio com pressa, mal nos vimos. Mas ainda
me lembrava dele na escola, ao ex-cunhado de Jorge, hoje o senhor embaixador com
nome de rua na terra, o doutor por extenso Ulisses C...
Foi um puto mimado, pelo menos na
escola. O pai, o senhor Anselmo, já era uma pessoa importante e rica. (Ou rica e importante, como queira o leitor.) O Ulisses gostava de se armar em vítima quando as coisas não lhe corriam de feição, nomeadamente no recreio, nas jogatanas de futebol ou nas partidas do
pião.
− Sou mais velho que vocês, já não vos apanhei na escola –
acrescentou o Jorge.
− Foi um sortudo, o Ulisses!...
− Se ele estivesse aqui responder-te-ia logo: “Sortudo, eu?!... A minha mãezinha ia morrendo de
parto. A dona Natércia é que nos salvou. A mim e a ela, à força de braço!"
− A dona Natércia?!... – exclamei eu. − A
parteira que nos aparou a todos. Era tão ou
mais popular que o nosso João Semana… Mas eu não sabia dessa história do parto
que podia ter corrido mal.
− Há, sim. E a nossa terra não teria agora − atalhou o Jorge − uma figura tão grada como o senhor embaixador
Ulisses C...
A mãe do Ulisses adorava contar essa história, aos netos e às visitas lá de casa, de como a velha parteira a salvara a ela e ao seu menino…
− O "menino de sua mãe", estou a ver!
− A minha ex e as suas irmãs não escondiam a ciumeira que tinham dele − , confidenciou-me o Jorge, uns bons anos mais velho do que eu. − Nascera prematuro, mas safou-se. Naquele tempo foi, de facto, um sortudo... (Morriam 125 crianças com menos de um ano de idade por cada mil nascimentos.)
Naquele tempo, não havia cuidados neonatais, com exceção da Maternidade Afredo da Costa, inaugurada em 1932, na capital. Estamos a falar dos finais da guerra, doze anos depois, em 1944, quando o Ulisses veio ao mundo, em casa.
− Nem as senhoras iam ter os filhos aos hospitais, que horror!− lembrei eu.
Em amena cavaqueira
com o Jorge, o nosso historiador local, o homem que mais sabia sobre as
misérias e as grandezas das famílias tradicionais da terra, vim a descobrir que o Ulisses nunca mais voltara à "parvónia" depois da amnistia de 1974…
− Nem no funeral do pai… Ou do paizinho, como ele o tratava. O que sempre achei uma ingratidão − comentava
o Jorge.−
No funeral da mãe, da querida mãezinha, entendia-se, ele estava fora do país, ilegal, exilado. A mãe morreu cedo
com cancro da mama, incurável na época.
Claro, o pai Anselmo visitava-o no estrangeiro, com alguma regularidade, até ao dia em que as relações entre eles se azedaram quando o Ulisses e as manas descobriram que o pai tinha arranjado uma amante 20 e tal anos mais nova.
− Mas… exilado, dizes tu?!
− É uma figura de estilo. Como sabes, ele fugiu à tropa.
− À tropa ou da
tropa?... Não é a mesma coisa: legal e
tecnicamente, ele não foi um "fujão", como alguns que a gente conheceu. Foi
refratário, com muitos outros… Refratário ou desertor era bem mais grave do que faltoso na
época, até porque estávamos em guerra.
Aqui o Jorge gracejou comigo, dizendo:
− Eras ainda um puto, não te deves lembrar... Mas em 1961, e eu já em Angola, não tenho ideia de
Portugal ter declarado guerra contra nenhum Estado estrangeiro soberano:
− A não ser talvez a Índia que, no final desse ano, vai ocupar e usurpar descaradamente...
− ... a nossa joia da coroa!...− apressou-se o Jorger a completar a minha frase.
E depois elucidou-me:
− Afinal, lembras-te!... E, como os nossos homens capitularam, e não se bateram até a última gota de sangue contra as tropas do Pandita Nehru, Salazar tratou os nossos prisioneiros de guerra, no seu regresso à Pátria, com o maior dos desprezos…
− Só soube muito mais tarde... Também nunca vi semelhante humilhação aos militares, na nossa história.
− Sou dessa geração, tenho dois ou três colegas do tempo de escola e da tropa, naturais do concelho, que ficaram prisioneiros de guerra na Índia e que, quando regressaram, coitados, estiveram semanas e semanas sem sair à rua com vergonha... Vergonha de serem gozados ou escarnecidos pelos vizinhos.
− Mas tu também te lixaste, Jorge, foste dos primeiros da terra a marchar para Angola, "rapidamente e em força"...
− De pistola-metralhadora em punho, capacete de aço e farda amarela. E as praças equipadas com mauser, estás a imaginar?!… A desfilar na marginal de Luanda. Mas tive uma sorte danada, uma hepatite recambiou-me cedo para o hospital de Belém.
Foi então a ocasião para conhecer melhor a história do Ulisses,
o Ulysses com y grego, como ele gostava de escrever, e do seu pai, o senhor Anselmo.
Das suas origens do Anselmo, sabia-se pouco. Sabia-se que tinha vindo
de fora. E, tal como outros que vieram de fora, tinha sido bem recebido na terra e
tivera sucesso, em termos pessoais, familiares e profissionais. Aqui casou aqui, teve filhos e aqui criou e desenvolveu os seus negócios.
− Os "saloios" sempre trataram bem os "galegos", os que vinham de fora, do Norte... − observou, com sarcasmo, o Jorge.
Muito antes de Portugal ter aderido à EFTA, a Associação Europeia de Comércio Livre, já o Anselmo tinha um negócio de import-export (como gostava o filho de dizer aos basbaques dos putos da escola)…
− Digamos, tinha alguns contactos, embora ainda
tímidos, mas pioneiros, com países da
Europa do Norte. Com uma ou outra representação de empresas escandinavas (e depois italianas), na
área das alfaias e máquinas agrícolas.
Começou no tempo da Segunda Guerra Mundial, com uma pequena oficina metalúrgica, aventurando-se depois na reparação automóvel. Passou, entretanto, a ter uma bomba de gasolina da Shell. Uma novidade, já que ainda havia poucos carros. Havia poucos automóveis particulares, um ou outro carro de aluguer, uma meia dúzia de camionetas de transporte de mercadorias... Ainda sou do tempo em que só havia uma camioneta de passageiros por dia com destino à capital... E a estrada ainda era macadmizada.
Todavia, sabia-se pouco da sua história de vida passada. Sabia-se, isso sim, que tinha vindo "de fora"... Insinuavam alguns dos seus poucos inimigos que tinha vindo "foragido" da Marinha Grande logo a seguir à revolta de 1934.
− O 18 de Janeiro de 1934 ?... − indaguei eu.
− Sim, mas ele não gostava de falar desses tempos, pelo menos quando eu frequentava a casa da família, depois de casado. O pai era operário vidreiro, desde miúdo, e terá morrido misteriosamente uns meses depois da revolta de 1934. Havia versões contraditórias, para uns o pai tinha morrido, de infeção, depois de baleado, num perna, pela tropa de Leiria; para outros, teria morrido, muito simplesmente de silicose, o que sempre me pareceu mais verosímil ...
A mãe, a avó paterna do Ulisses, era operária na Tomé Feteira. Era natural de Vieira de Leiria. Terá morrido ainda mais cedo, de tuberculose. Lá em casa do Anselmo, só havia uma velha foto da família, dos anos de 1910, com os pais e os irmãos, pequenos. Também nunca houve grande curiosidade em saber mais da vida desses obscuros (e, de algum modo, incómodos) antepassados.
Das poucas vezes que o Anselmo, a mulher e os filhos foram a Veira de Leiria, em passeio, aproveitando para visitar uns primos, deu para perceber melhor a sua origem: esses parentes viviam, como os pescadores, em "palheiros", casas de madeira, sob estacaria, construídas na duna e que na época balnear alugavam aos forasteiros.
− Apesar da distància, naquela época, o meu ex-sogro gostava de ir à Praia da Vieira, só para assistir à arte xávega e passar lá uns dias na terra da sua mãe... Chegou a alugar um "palheiro" nos anos cinquenta... Mas a muher e os filhos detestavam... preferindo São Pedro de Moel, que já era chique nesse tempo, atraindo as famílias burguesas da região...
Estamos, entretanto, a falar de uma época em que o industrial era menos considerado socialmente do
que o comerciante. O proprietário agrícola, de média ou grande dimensão, esse,
sim, tinha mais estatuto. E o Estado
Novo estava bem representado por algumas famílias tradicionais agrárias. Umas eram de tradição republicana, e outras não escondiam a seu amor à bandeira azul e branca da monarquia.
Com o 28 de Maio de 1926, e sobretudo com o salazarismo, clarificaram-se as águas… Os agrários da região, absentistas nalguns casos, deram-se bem com o Deus, Pátria e Família, monárquicos e republicanos reconciliaram-se, sentindo-se representados, mal ou bem, na União Nacional...
A "praça da jorna" continuou a funcionar ao longo dos anos, fornecendo mão de obra dócil e abundante, os "cavadores de enxada", às principais casas agrícolas. Até que veio, como uma enxurrada, o êxodo rural, a emigração para as cidades e para França, além da guerra colonial... e depois o 25 de Abril.
Mas, também, ao fim de três ou quatro gerações, o património fundiário (e nomeadamemnte as quintas) destas famílias já andava pelas ruas da amargura: nuns casos, hipotecado aos bancos, noutros expropriado por interesse público ou vendido ao desbarato para a especulação imobiliária, ou, noutros casos ainda, mal entregue a caseiros ou a feitores... Poucos se modernizaram, inviabilizando as explorações agrícolas. Os netos ou os bisnetos já tiveram que mendigar um emprego "à mesa do Estado".
Foi, além disso, o Anselmo, um homem de visão, como então se dizia… Pôs os quatro filhos a estudar. As raparigas tinham o quinto ano, o rapaz foi mais longe, chegando a embaixador na então CEE . Comunidade Económica Europeia. Uma das raparigas foi professora primária, outra assistentes social. A mais velha, a ex-mulher do Jorge, ficou a trabalhar com o pai, no escritório das empresas.
O Anselmo nunca foi íntimo das famílias mais tradicionais da terra, mas acabou por ser um dos homens mais endinheirados da região. Investiu no bom tempo também no imobiliário, fez um bairro de casas "à Raul Lino", com o nome da esposa. E acabou por vender as moradias a seguir ao 25 de Abril, antes que fossem ocupadas.
Não se adaptou bem aos novos tempos, mas também não se colou aos partidos que, entretanto, nasceram com a liberdade. Os negócios tiveram altos e baixos, com a descolonização, depois a crise económica e financeira dos anos 70 e 80. A integração na CEE já chegou tarde para ele. A fábrica teve de ser intervencionada. Antes da declaração de falência, e muito por desgosto com a vida, e com o rumo que tomou o país, para além de problemas de saúde (era diabético), morreu nos princípios dos anos 90, com oitenta e tal anos. Tinha nascido com a República.
O Ulisses ainda foi meu colega de escola… Mas não propriamente meu amigo, Separavam-nos três anos e os seus "tiques de classe", quero eu dizer os seus trejeitos de menino rico… Ele já na 4.ª classe e sempre na primeira fila. Na altura juntavam-se os putos das várias classes. Ele tirou o 2.º ano (hoje o 6.º ano) no colégio da terra, que eu nunca pude frequentar. Depois o pai mandou-o para Lisboa para seguir o liceu. Ficou na casa de uma tia materna, cujo marido trabalhava nas finanças. Tinha explicações particulares de francês e de inglês. E fez a sua primeira viagem ao estrangeiro por ocasião da Expo 58, em Bruxelas. Ganhou o gosto pelas viagens e pelas línguas estrangeiras.
− É capaz vir desse tempo o sonho de enveredar pela carreira diplomática − interrompeu o Jorge.− Estou a vê-lo, no regresso da Expo 58... Imagina, um luxo que não era para todos, ir de Lisboa a Bruxelas, de comboio… Um puto com 14 anos!... Eu já namorava com a irmã mais velha… Ofereceu-me um cartaz a cores com o ícone da Expo 58, o Atomium, se bem recordo.
Uns anos depois, estava a frequentar, na faculdade de letras de Lisboa, o curso de germânicas... Ainda apanhou a crise académica de 1962 mas o pai tratou de o ir buscar rapidamente, antes que as coisas dessem para o torto (como deram). Entretanto foi à inspeção com a malta do ano dele, a de 1944. O pai estava convencido que ele nunca seria apurado para o serviço militar. Tinha um problema no ouvido esquerdo devido a uma otite, mal curada, que apanhara em criança, na época balnear. Vinha munido de uma valente cunha e de um relatório médico, passado por um conceituado otorrino, professor da faculdade de medicina de Coimbra. O pai fez questão de entregar pessoalmente o documento ao presidente da junta médica militar.
O melhor que o Ulisses conseguiu foi uma ida ao Hospital Militar Principal, na Estrela, para uma consulta da especialidade. A gravidade do diagnóstico não foi confirmada. E o Ulisses viu-se apurado para todo o serviço militar, para grande desgosto dos pais.
Podia ter acabado o curso de germânicas, antes de ser chamado para a tropa, mas, logo em 1964 numa viagem à Alemanha, numa "summer school" organizada pelo Instituto Goethe, ele arranjou maneira de ficar por lá, tendo-se fixado na Holanda, onde o pai tinha contactos.
− Tudo combinado com o pai, que mexeu todos os pauzinhos para o pôr a bom recato. − adiantou o Jorge. − Não foi uma decisão fácil para o meu ex-sogro: o Ulisses era o único rapaz da família, e era esperado que fosse o seu sucessor à frente dos negócios.
− Mas a vida trocou-lhe as voltas − acrescentei eu.
De facto, aqui contava muito a opinião da mãe que, segundo uma cena melodramática que terá feito lá em casa, "preferia ir ver o seu filho a Amsterdão, terra de herejes, do que ir ao cemitério depositar-lhe uma coroa de flores". A mãe era uma senhora conservadora, beata e amiga dos pobres. E não autorizava que se falasse de política à hora das refeições. De resto, não era hábito falar-se política naquela época, muito menos nas casas das pessoas decentes.
A senhora tinha ficado muito impressionada com a morte do Licas, o filho mais velho da empregada doméstica (na altura, dizia-se "criada"), que morrera em Angola, em 1962. Fora o primeiro soldado da terra a morrer na "guerra do ultramar". E o caixão nunca veio, "nem cheio de pedras". A família era pobre de mais para pagar a urna de chumbo e o transporte marítimo...
A verdade seja dita: o Ulisses não desperdiçou as novas oportunidades que lhe surgiram pela frente... Formou-se em direito europeu na Holanda, trabalhou no Parlamento Europeu e, talvez ainda mais importante, casou com uma holandesa, filha de um importante dirigente político, de um partido na área da social-democracia, filiado na Internacional Socialista. Abriram-se-lhe depois as portas da diplomacia europeia.
− Foi o Euromilhões do Ulisses, diríamos hoje! − comentou o seu ex-cunhado. − Hoje tem uma reforma dourada, um vasto capital de relações sociais, é livre de fazer os seus negócios na área do imobiliário, vive entre o Algarve e a Holanda, a terra dos seus filhos e netos... Não nos falamos, desde que eu me divorciei da sua irmã. Nem nunca mais apareceu por cá.
− De qualquer modo, ele é mais holandês do que português! − arrematei eu. − Que é como quem diz, tem o melhor de dois mundos. Mas temos de reconhecer que teve um bom pai.
© Luís Graça (2023)Título das páginas centrais (4 e 5) do "Diário de Lisboa", de 18 de janeiro de 1934. São escassas as referências ao que se passou na Marinha Grande e noutros pontos do país, de Almada a Silves, de Lisboa a Coimbra... E nos dias seguintes a censura foi implacável: não há mais referências a estes acontecimentos, de resto ainda hoje mal conhecidos dos portugueses... Sobre o 18 de janeiro de 1934, ler por exemplo o artigo de Fátima Patriarca, publicado na "Análise Social", em 1993.
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Nota do editor: