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quarta-feira, 19 de maio de 2010

Guine 63/74 - P6428: Estórias cabralianas (60): O manifesto do nosso alfero (Jorge Cabral)

 1. Este texto do ex-Alf Mil Art Jorge Cabral,  comandante do Pel Caç Nat 63 (Fá Mandinga e Missirá, 1969/71) já foi publicado há mais de quatro anos, na I Série do nosso blogue, sob a forma de um carta aberta. Um texto, portanto, desconhecido da maioria dos nossos leitores. Na altura comentei (*):

"Esta carta (aberta), dirigida à minha pessoa, honra-me e sensibiliza-me. Prendem-me, ao Jorge, laços de amizade e de cumplicidade. Orgulha-me tê-lo cá, nesta tertúlia, entre amigos e camaradas. Obrigado, Jorge, pela tua (corrosiva) lucidez e sobretudo pela tua (generosa) abertura de espírito à aventura humana e à descoberta do outro bem como pelo teu arreigado anti-etnocentrismo. Poupa-me as palavras. Por mim, disseste tudo"...

Eu, que gostaria de ver publicadas este ano, em livro, as  Estórias Cabralianas, e estou indigitado como prefaciador-mor das ditas, acho que este naco de prosa (ou de poesia, como queiram) tem de ser recuperado, lido, divulgado, debatido e se possível inserido na mesma publicação como posfácio. É um texto descomplexado, de um homem a corpo inteiro, sem alibis nem subterfúgios, onde muitos de nós reconhecem...  Foi revisto por mim, nesta data, recuperei-lhe o ritmo discursivo. É dirigido, através de mim, às centenas de camaradas que nos lêem, e que em Fevereiro de 2006 ainda eram umas escassas de dezenas. É um texto que eu gostaria de ter conseguido escrever. Vou chamar-lhe simplesmente "O Manifesto do Nosso Alfero". Que o Jorge me perdoe a ousadia,  os atropelos e os abusos.

Caro Luís,
nunca será demais enaltecer o teu blogue,
o qual nos tem permitido, principalmente recordar.

Como tu dizes,
fui um tropa desalinhado,
marginal
e quase sempre provocador,
características que mantive ao longo da vida.

Sempre procurei realçar os aspectos ridículos das pessoas e situações,
gozando e criticando,
às vezes com um humor demasiado ácido…

Sobre a Guerra Colonial na Guiné,
sei que lá estive,
e procurei ver.

Não sinto nem orgulho, nem vergonha.
Não fui herói, nem cobarde,
limitei-me a garantir a minha sobrevivência,
bem como a dos que comigo se encontravam.

Tratava-se obviamente de uma guerra absurda
e previsível,
logo evitável,
para a qual nos mandavam mal preparados,
num estado de absoluta ignorância
sobre o país, sua gente e cultura
(contei-te daquele soldado periquito,
que apresentado em Missirá,
me pediu para ir ver o jogo do Sporting
que dava na televisão naquela noite,
na Tasca da Muda,
ali mesmo à esquina…).

Se alguma qualidade intelectual possuo
é a curiosidade,
que me leva a tentar compreender tudo e todos,
ciente que as diferentes formas de estar e ser
são legítimas e sempre explicáveis.

Assim, na Guiné,
quer em Fá, quer em Missirá,
procurei entender,
e através de longas conversas com Homens e Mulheres Grandes
aprendi alguma coisa.

Dessa forma me inteirei da excisão
(a qual depois presenciei)
e do infanticídio ritual,
dois temas de que, há mais de vinte anos,
falo nas minhas aulas.

Percebi que uma Guiné idílica e pacífica,
de negros portuguesismos,
nunca existira…
Todo o território ao longo dos séculos
foi palco de imensas guerras,
sangrentas repressões
e alguns desastres das nossas tropas.

Perante o meu espanto,
indicaram-me em Fá,
o local onde no tempo, dos avós, dos avós deles,
havia sido aprisionado o Governador,
que teve de pagar resgate aos beafadas (#).

E em Missirá levaram-me a conhecer o campo
onde as forças portuguesas e seus ajudantes
estiveram longo tempo entrincheirados,
preparando a conquista de Madina/Belel,
na luta contra o grande guerreiro Unfali Soncó,
no princípio do século XX (##).

Foram também os velhos que me falaram de Abdul Injai,
régulo do Cuor e do Oio,
companheiro de Teixeira Pinto,
herói tão amado quanto odiado,
caído em desgraça no fim da vida,
e degredado para Cabo Verde.

Chegado a Lisboa,
e desde então tenho tentado estudar,
convicto que é impossível compreender a guerra colonial
e o que se seguiu,
sem reflectir na história do país
e nas múltiplas acções de resistência armada contra os Portugueses.

Claro que o PAIGC,
ao iniciar a Luta Armada,
pretendeu aglutinar todas essas resistências sectoriais,
num projecto global de Libertação,
que simultaneamente edificasse o Estado Nação.
Pelo menos a Libertação foi conseguida…

Tendo estado sempre com tropa africana e milícias,
não fiquei indiferente ao que aconteceu aos meus soldados,
uns obrigados a fugir
 e outros fuzilados.

Alguns ainda hoje lutam por uma pensão,
e há poucos anos,
tive de confirmar,  por escrito,
que um servira no exército português.

Discutir agora quem foi o responsável pelos fuzilamentos,
se foi o Nino ou o Luís Cabral,
parece-me supérfulo.

A responsabilidade cabe por inteiro aos Portugueses,
que não souberam garantir a segurança dos militares africanos.
Procederam como os seus antepassados,
pois o destino dos aliados dos portugueses
foi sempre o mesmo.
Abandonados à sua sorte,
vitimas das represálias dos vencedores…

Ás autoridades negociadoras competia proteger
todos os que lutaram integrados no Exercito Português
e mesmo assegurar,  aos que quisessem,
a nacionalidade portuguesa.

Isso sim, teria sido uma atitude revolucionária.
Foram conservadores.
Contradições características
de uma descolonização tardia e apressada…

Desculpa a seriedade deste arrazoado,
mas considero importante contribuir
para a destruição de certos mitos e equívocos,
naturalmente persistentes numa ex-potência colonial.

Um grande abraço

Jorge

(#) Ocorreu em 1861 no âmbito de uma “campanha” contra os Beafadas de Badora, os quais prenderam o Major Correia Pinto, encarregado da Administração da Província na ausência do Governador. Também nessa altura foram hasteadas bandeiras britânicas, em Bambadinca, Fá e Ganjara.

(##)  Tratou-se de uma das mais importantes "operações" ocorridas antes da Guerra Colonial. Os efectivos das NT eram para a época impressionantes. Estando 50 marinheiros destacados em Bambadinca, a coluna comandada pelo Governador Muzanty, compreendia:

- 7 oficais do estado maior,
- uma companhia da marinha (4 oficiais e 132 marinheiros),
- uma companhia de infantaria metropolitana (5 oficiais e 251 sargentos e soldados),
- uma companhia mista de infantaria (3 oficiais e 101 atiradores),
- uma bateria de artilharia (3 oficiais e 69 sargentos e soldados),
- mais sete oficiais (médicos veterinários e de intendência),
- a que é preciso acrescentar o “exército” de Abdul Injai (2 oficiais, 2 chefes e 100 cavaleiros) e
- ainda a nona companhia indígena de Moçambique.

Pois toda esta tropa  atravessou o rio frente a Bambadinca, tendo conquistado todas as tabancas, até junto de Missirá, onde em Carenquecunda acampou, cavando trincheiras, e preparando a conquista de Madina, que veio a ser tomada em 9 de Abril de 1908, tendo tido papel determinante Abdul Injai e os seus 100 cavaleiros.

Também eu entrei em Madina em 1971, sem cavaleiros, mas à custa de um decisivo apoio aéreo.

P.S. – O desastre do Cheche, tem um antecedente histórico,  ocorrido em 30 de Dezembro de 1878 na Ponta de Bolor, entre os Felupes. Porém deste, em que morreram mais de 50 militares, conhecem-se os que pela sua incompetência, foram responsáveis: o Governador António José Cabral Vieira e o Tenente Calisto ~
dos Santos.

_____________

Nota de L.G.:

(*) Vd. poste de 15 de Fevereiro de 2006 Guiné 63/74 - DXXXVI: Carta (aberta) ao Luís (Jorge Cabral)