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segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22849: Notas de leitura (1402): Memórias de um alferes, Leste da Guiné, 1967-1969: A CART 1690, uma das mais sinistradas, em toda a Guerra da Guiné (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Dezembro de 2021:

Queridos amigos,
Aqui fica o relato que António Martins Moreira dedicou à sua CART 1690, de vida tão atribulada, no setor de Geba, nunca pensei que os meus vizinhos para lá da ponte do rio Gambiel atingissem tal nível de sofrimento. No início da guerra houve uma separação radical da população no regulado de Mansomine, região onde o PAIGC passou a dispor de algumas bases como Sinchã Jobel, e mais para o interior Sara-Sarauol, confinando, um pouco mais abaixo, com Belel, aqui estacionavam, tal como em Madina, os meus atacantes. Ficamos a dever a António Martins Moreira um belo depoimento, ele não se cansa de afirmar que comandou gente de bravura e de enorme capacidade de sacrifício. Veio a tempo, felizmente, uma importante narrativa para que não se esqueça o que foi a vida dura no setor de Geba entre 1967 e 1969.

Um abraço do
Mário



Memórias de um alferes, Leste da Guiné, 1967-1969:
A CART 1690, uma das mais sinistradas, em toda a Guerra da Guiné

Mário Beja Santos

Trata-se de uma edição do Município de Idanha-a-Nova, com data de 2018, são as memórias do então alferes António Martins Moreira, que combateu na região de Geba, entre 1967 e 1969, não quis o destino que nos conhecêssemos, éramos vizinhos, ele estava para lá da ponte do Rio Gambiel, eu para cá, e quando ele diz que a paisagem era deslumbrante, estou à vontade para o confirmar. Este nativo de Penha Garcia foi para Mafra em janeiro de 1966, onde permaneceu até julho, promovido a aspirante foi transferido para o Regimento de Infantaria em Abrantes, e aqui mobilizado e colocado na CART 1690, do BART 1914, frequentou o curso de operações especiais, em Lamego, ainda andou por Lisboa, Torres Novas e Oeiras, desembarcou no Pidjiquiti em 15 de abril de 1967, quem comanda a companhia é o Capitão Manuel Carlos Guimarães. Faz-se a viagem sacramental até Bambadinca, seguem para Bafatá, é-lhes atribuído o setor de Geba. Nesta localidade substituem a CCAÇ 1426. A Companhia dissemina-se por quatro destacamentos. A 17, avança para Banjara, que ele classifica como pior destacamento a seguir a Madina do Boé. “Banjara era um destacamento de alto risco, situado na estrada de Bafatá-Mansabá, a cerca de 40 quilómetros de Geba, e outros tantos de Bafatá, na mata do Oio”

Descreve Banjara e o seu perímetro. O destacamento era um verdadeiro inferno se bem que só tenha havido uma flagelação, era o isolamento, não havia população civil, os abastecimentos e o correio chegavam uma vez por mês. Banjara tinha um grupo de combate, reforçado por uma seção de autometralhadoras, Granadeiros da Cavalaria de Bafatá, um Esquadrão de Reconhecimento, 15 milícias, uma seção de armas pesadas, num total de 70 a 80 homens. “Lá passámos os 8 mais longos meses da nossa juventude”. Descreve as atividades desenvolvidas em Banjara.

Em 21 de agosto morre o comandante da Companhia e o seu guarda-costas, caíram num campo de minas anticarro e antipessoal na estrada de Geba-Banjara, depois de terem ultrapassado o destacamento de Sare Banda. O Alferes Domingos Maçarico passou a comandar a Companhia, Martins Moreira e Maçarico trocam posições, Martins Moreira vai para Geba. O histórico desta unidade militar é marcado por várias infelicidades, para além da morte do Capitão Guimarães, os alferes Maçarico e Marques Lopes foram evacuados com ferimentos em combate. Recorda situações penosas como quinze dias de alimentação sem sal e depois dá-nos uma descrição do destacamento de Cantacunda, a cerca de 35 quilómetros para norte, refere os efetivos, não esquecem o nome do comandante do pelotão de milícias, Samba So, o destacamento tinha população civil e régulo. 

Parecia calmo e seguro, mas era profundamente vulnerável, como se comprovou em abril de 1968, um numeroso grupo do PAIGC apanhou a guarnição descontraída, tomou de assalto a caserna e os abrigos, aprisionou 12 elementos, assassinou um à facada. Muitos militares conseguiram escapar e chegaram a Geba depois deambularem pelo mato uma noite inteira. Dez destes prisioneiros virão a ser resgatados em 1970, no âmbito da Operação Mar Verde.

O novo comandante da CART 1690 passou a ser o Capitão Sarmento Ferreira, é chamado a Bafatá onde lhe entregam uma ordem de operações para uma batida de Sinchã Jobel, uma importante base do PAIGC, vão dois destacamentos, a CART 1690 com três grupos de combate, Martins Pereira está em Banjara, mas dá-nos a versão dos acontecimentos. Quando os efetivos chegaram as imediações do objetivo já estavam bem referenciados pelas sentinelas, as nossas tropas caíram numa emboscada brutal, procuraram reagir abatendo os atiradores que estavam na copa das palmeiras, mas o embate era fortíssimo, retiraram deixando para trás alguns mortos e feridos e cerca de 25 desaparecidos que só se conseguiram recuperar, completamente extenuados e famintos, no dia seguinte. 

O Alferes Fernandes foi assassinado a sangue frio, conforme testemunhou o seu guarda-costas, que nessa ocasião se fingiu de morto. O Alferes Fernandes tinha substituído o Alferes Marques Lopes, ferido em 21 de agosto. O resultado desta operação foram nove mortes e cerca de vinte feridos.

O autor refere que faltavam cerca de 25 elementos, no rescaldo desta ida a Sinchã Jobel foi recuperar os desaparecidos, na manhã seguinte. Ao amanhecer, estavam em frente ao objetivo, foram aparecendo soldados a correr em grupos, completamente exaustos, um deles vinha gravemente ferido. Teve apoio aéreo e um dos pilotos avisou que à frente, a cerca de 2 quilómetros, aguardava-os uma forte emboscada, inverteram a marcha, novo aviso que há emboscada à frente, então afastam-se da picada e embrenham-se na mata até à margem do rio Geba.

 Repetiu-se a operação de resgate no dia seguinte, ainda faltavam 9 ou 10 homens, recuperaram todos com exceção do assassinado Alferes Fernandes e de um capturado, gravemente ferido e levado para Ziguinchor. “Ficou ainda o Armindo Correia Paulino, o magarefe da Companhia, também assassinado, fria e cobardemente, à facada por vários elementos do PAIGC, depois de o terem cercado e aprisionado”.

Fazendo o balanço da situação, o autor estima que em maio de 1968 a sua unidade vivia numa situação muito difícil, o comandante Companhia morto em combate, dois alferes evacuados, o Alferes Fernandes assassinado, em abril passado o assalto a Cantacunda com resultados trágicos, a Companhia estava desmoralizada. 

Em junho, o destacamento de Sare Banda, na estrada Bafatá-Mansabá, com quarenta milícias, foi tomado de assalto pelo PAIGC, com a cumplicidade do chefe de tabanca. Os guerrilheiros incendiaram todas as moranças. “Sare Banda era um destacamento vital que nos garantia a progressão a poente na direção de Mansabá até ao nosso destacamento de Banjara, o mais isolado. Retornava-se, pois, imperioso reocupar, reconstruir e reforçar este destacamento. Foi esta a missão que recebemos”

E dá-nos conta dos trabalhos de reconstrução, ergueram-se seis abrigos subterrâneos, construiu-se uma autêntica fortaleza. Findas as obras, Martins Moreira regressa a Geba. Em 12 de junho, o PAIGC ataca Sare Gana, o pelotão de milícias reage com bravura, houve que recuar, PAIGC instalou-se, na manhã seguinte as nossas tropas puseram os atacantes em debandada. Ao fim de 19 meses no setor de Geba, a CART é transferida para Bissau, teve uma comovente despedida em Geba, os últimos 4 meses foram relativamente tranquilos, fazendo colunas, rusgas, preceitos da rotina, várias emboscadas sem confronto, em 2 de março de 1969 embarcam para Lisboa. Há ainda alguns textos soltos, a completar a missão.

Um relato bem sentido da história de uma unidade militar que conheceu o martírio e o pleno sofrimento, muitos mortos, sequestros, homens devastados e perdidos depois de uma tempestade de fogo. E enternecedor, atenda-se que António Martins Moreira já não é criança, mas exigiu-se ao dever da memória, fielmente cumprido.

António Martins Moreira, no lançamento do seu livro na Câmara Municipal de Idanha-a-Nova
Bafatá
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Nota do editor

Último poste da série de 21 DE DEZEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22828: Notas de leitura (1401): "Adeus... até ao meu regresso": livro de memórias fotográficas de 56 antigos combatentes, naturais de Vila Real, incluindo o Miguel Rocha, ex-alf mil inf, CCAÇ 2367/BCAÇ 2845, "Os Vampiros" (Olossato, Teixeira Pinto e Cacheu, 1968/70) - Parte I

domingo, 16 de junho de 2019

Guiné 61/74 - P19894: A galeria dos meus heróis (31): Fatumata, a gazela furtiva de Sare Ganá (Luís Graça)

 

Contuboel, c. junho / julho de 1969... Furriel Henriques,
CCAÇ 2590/CCAÇ 12. Foto: Luis Graça
A galeria dos meus heróis > 

Fatumata, a gazela furtiva de Sare Ganá


por Luís Graça






Não, hoje já não saberias lá chegar. Foste de Bambadinca até Bafatá e aí cortaste para a vila de Geba, a outrora praça forte e presídio de Geba, agora em decadência, ofuscada pelo progresso e a beleza de Bafatá, a "princesa do Geba", como lhe chamavam os colonos brancos… (*)

Lembras-te de atravessar a ponte nova, uma bela ponte em betão sobre o rio Geba Estreito… Ponte Salazar, que o homem grande de Lisboa ainda era vivo… Mas já ninguém queria saber dele nem do seu nome. O novo homem grande era o Marcello (com dois ll) Caetano, cujo nome os teus soldados eram simplesmente incapazes de pronunciar e muito menos de soletrar: não falavam português, com exceção do Suleimane (que gostava de ser o teu intérprete, guarda-costas, secretário e cozinheiro). 

Levavas uma secção, 11 militares contigo, guineenses, incluindo um operador de transmissões, metropolitano. Em pleno agosto, no tempo das chuvas. Sare Ganá, no subsector de Geba, a noroeste de Bafatá. Apanhas nos teus papéis, ou no que resta deles, 
num caderno escolar, roído pela traça, as seguintes notas do teu diário de 1969:

“Sare Ganá. A última das tabancas do regulado de Joladu, no subsector de Geba. Estive aqui destacado duas semanas, em reforço ao sistema de autodefesa... O que não é irónico, porque a população é fula, está ao lado dos tugas, seus antigos inimigos e agora aliados".

A mais de 4500 quilómetro de distância, de Lisboa… Será que Sare Ganá ainda existe ou alguma vez existiu ?

"Armadilhada entre as duas fiadas de arame farpado e guarnecida por um pelotão de milícia (o PM nº 109, da Companhia de Milícias nº 3) e grupos civis de autodefesa, Sare Ganá é uma espécie de aldeia estratégica. Aqui termina a nossa soberania territorial, a norte do Rio Geba e começa a zona de intervenção do Com-Chefe que inclui, entre outras, as regiões de Mansomine, Caresse e Óio”.

E acrescentavas:

"É aqui que vive o régulo, uma solitária figura de aristocrata fula, de elevada estatura. A sua cabeça destaca-se acima da cabeça dos demais. Presumo que seja futa-fula. Não fixei o seu nome. Todos os seus súbditos, mandingas, balantas e manjacos, que viviam em Joladu, 'foram no mato' (leia-se: aderiram à guerrilha ou fugiram das NT). Hoje o seu regulado está circunscrito ao perímetro de Sare Ganá e a mais duas ou três tabancas: Sinchã Sutu, Sare Banda"...



Guiné > Carta de Bambadinca (1955) >  Escala de 1/50 mil > Posição relativa de Sinchã Jobel (IN) e de aquartelamentos, destacamentos e tabancas em autodefesa (NT): a sul, Missirá e Fá Mandinga; a leste, Geba, Sare Ganá, Sinchã Sutu... Pelo meio o rio Geba Estreito...Sare Banda ficava mais a norte (vd. carta de Banjara).

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2019)


Tinhas chegado a 18 de julho de 1969, a Bambadinca, vindo de Contuboel, do Centro de Instrução Militar de Contuboel, um oásis de paz (**), e a tua CCAÇ 2590 (mais tarde CCAÇ 12) era agora uma companhia de intervenção ao serviço do comando do BCAÇ 2852... Como dizias com sarcasmo, eras um preto de 1ª e os teus soldados pretos de 2ª.

"Quase todos os dias ouvíamos os Fiat G-91 bombardearem Sinchã Jobel, uma base da guerrilha a 10 km a norte, e que é inacessível no tempo das chuvas devido às bolanhas e lalas que a rodeiam”.

“Até Farim é tudo terra para queimar”, diziam-te os milícias locais. “Nenhuma tropa apeada, ao que parece, se atreve a penetrar neste santuário do IN. Fala-se aqui da ‘mata do Óio’, como um misto de temor e de terror, domínio do sagrado e da morte”…

Ainda estava na memória da população o ataque de há um ano atrás, em 12 de agosto de 1968, ao tempo da CART 1690: à meia noite em ponto, um grupo IN estimado em cerca de 60 elementos, ou seja um bigrupo reforçado, vindo de Sinchã Jobel, tinha atacado Sare Ganá.

“Um ataque medonho”, segundo o testemunho de alguns milícias com quem falaste, com o Suleimane a servir de intérprete.  O ataque iniciou-se por tiros de morteiro (82 e 60), lança-granadas-foguete (RPG) e metralhadoras, com uso de granadas incendiárias. O IN conseguiu alcançar o arame farpado do lado Norte,   penetrando na tabanca por este lado e pelo lado Sul. Uma falha de segurança, no perímetro de arame farpado, mesmo armadilhado,  terá permitido a passagem de uns alguns atacantes, empunhando armas ligeiras automáticas. Algumas moranças começaram logo a arder. 


A reação das NT não se fez esperar: os valentes milícias fulas, uns a partir dos abrigos, outros dispersos pela tabanca, reagiram pelo fogo, aguentando o ímpeto inicial do ataque e dificultando o mais que puderam a infiltração dos guerrilheiros. Grande parte da população, os homens, estava armada e colaborou na defesa da tabanca. Mas depressa se esgotaram as munições, obrigando a milícia a recuar. A disciplina de fogo nunca foi apanágio do guineense, quer empunhasse uma G3 quer manejasse uma Kalash.

Em Geba, sede da CART 1690, a escassa meia-dúzia de quilómetros, logo que se ouviram os primeiros rebentamentos, saiu um piquete de socorrro, num viatura: meio pelotão, enquadrado por um alferes e um furriel. Nas proximidades de Sare Ganá, cerca de meia hora de depois, o grupo subdividiu-se em dois ou três, aproximando-se, a pé, da tabanca, com a intenção de procurar surpreender as forças atacantes.

Ao mesmo tempo que apoiavam a retirada da população, as forças da CART 1690 iam abrindo caminho, morança a morança, à força de bazucadas e curtas rajadas de G3. Gente brava!...

Às tantas, o IN, surpreendido pelo contra-ataque, lançou um “very light” e iniciou a sua retirada, arrastando consigo as baixas que sofrera e carregando o respetivo material. Devido à escassez de efetivos e à escuridão da noite, a perseguição encetada pelas NT não terá ido além da orla da mata próxima.

Uma hora depois do ataque chegou uma coluna de socorro, em viaturas, oriunda de Bafatá, composta por cerca de dois pelotões reforçados, da CCS/BCAV 1904, do EREC 2350, e do Pel Caç Nat 64. Normalizada a situação, as forças de Bafatá, com exceção do Pel Caç Nat 64, regressaram com os feridos mais graves da milícia e da população local. Foi montada segurança à tabanca nessa noite e dias seguintes.

Apurou-se então que o IN terá tido 5 mortos e outras baixas prováveis. De entre o material capturado, contaram-se duas armas ligeiras, uma metralhadora Dectyarev, com bipé, uma pistola metralhadora Sudayev PPS-43, uma das lendárias armas ligeiras da II Guerra Mundial (além de uma fita de metralhadora com 85 cartuchos e 2 granadas de mão ofensivas). Do lado dos defensiores, soube-se que tinha havido baixas entre a milícia e a população local. Parte da tabanca teve que ser reconstruída.

“Um ano depois eu aqui estou, periquito, de 5 a 17 de agosto [de 1969], integrado no 4º Gr Comb da CCAÇ 12 que foi reforçar o Sector L2 (Bafatá), sendo destacada uma secção para Sare Ganá e duas para Sare Banda (subsector de Geba). 


“Dias antes [da nossa chegada a Sare Ganá]k  o IN fizera um ataque malogrado à tabanca em autodefesa de Sinchã Sutu. Agora, por causa de um possível ataque da guerrilha, é proibido, à noite, fazer lume ou foguear na tabanca de Sare Ganá.

“Aqui come-se cedo e deita-se cedo. Ficam os vampiros dos mosquitos. Por sorte, não apreciam lá muito o meu sangue. Deve-lhes saber a uísque.” 


E mais à frente escreveste, no teu diário, a 15 de agosto de 1969:

“Destacado ou desterrado ? O que farei eu com uma seção de combate, uma bazuca, um morteiro 60, dez G-3 e um rádio se isto der para o torto ? Depois do ataque malogrado à tabanca próxima, Sinchã Sutu, a população fula anda inquieta... Sinto-me como os bombeiros, atrás da ameaça de fogo-posto, mas ainda não fiz sequer o meu batismo de fogo, contrariamente à maior parte da companhia, que teve os seus primeiros feridos graves em Madina Xaquili, há menos de 3 semanas."


Perguntas-te sobre o sentido e o alcance da tua missão:

“Limito-me a estar aqui: de manhã, durmo como um porco; às dez ou onze levanto-me, porque o calor dentro da minha palhota é já absolutamente insuportável. Devoro o almoço que o Suleimane entretanto já me preparou. Depois oiço velhas lendas dos tempos em que os cavaleiros do Futa Djalon eram donos e senhores destas terras. Ao fim da tarde dou um giro para fingir que me mantenho operacional.”

(Dormir que nem um porco!... Muito anos mais tarde, já como professor de sociologia e de saúde pública, passaste a fazer teu o sábio conselho do provérbio popular: 'Três horas dorme o santo, quatro o que não é santo, cinco o viajante, seis o estudante, sete o porco e oito o morto'... Foi, afinal, na Guiné que aprendeste que dormir muito fazia mal à saúde...)

E relatas, no teu diário, “uma bravata estúpida, bem típica de um periquito”, feita logo no princípio das tuas andanças por aqui. É uma das tuas duas recordações marcantes da estadia em Sare Ganá, uma má, outra boa:

“Fui sozinho com um milícia local fazer o reconhecimento duma aldeia próxima, abandonada pela população e armadilhada. Talvez Sinchã Famora, a sul, não fixei o nome. O tipo ia à frente com uma varinha feita de caule de capim seco (!), tentando detetar os fios de tropeçar que atravessavam os trilhos da aldeia, de resto já pouco visíveis.

" A meio do percurso, apanho um susto: um antílope, que pastava perto, atravesssou-se-nos no caminho, em plena área supostamente armadilhada. Foi mais do que um susto, apanhei um calafrio: é que na noite anterior, um felino que vinha no encalce dos galináceos domésticos, tinha feito acionar um das armadilhas do perímetro de defesa de Sare Ganá. E de pronto comecei a ouvir, de todos os lados, sucessivas rajadas de G-3... O pessoal, assustadíço, anda mesmo nervoso.”

Ainda hoje te perguntas como é que tu arriscaste a tua vida e a do milícia local, nesta estúpida e inútil aventura de ir “reconhecer” uma aldeia abandonada e armadilhada ?!… Não fazia parte da tua missão!... Foi pura bravata!... Ou talvez quisesses provar a ti mesmo que também eras “um gajo com tomaste", tu que nem sequer eras um atirador de infantaria, nem tinhas, ao certo, nem pelotão nem secção...Eras o "pião das nicas", como te chamava o teu capitão, suprias as faltas de graduados, em todos os pelotões...

A outra recordação marcante foi a da visita à tua morança, da “Fatumata, a gazela furtiva":


“ (…) Ainda não me habituei foi ao ‘black-out’ total, imposto por óbvias razões de segurança: não posso ler nem escrever na minha morança (faz-me falta uma pequena lanterna de pilhas), o que torna ainda mais insuportáveis estas longas noites de Sare Ganá (...).

“Resta-me a companhia silenciosa e furtiva da Fatumata, uma das quatro mulheres do comandante da milícia (presumo pou supeito): logo ao segundo ou terceiro dia, introduziu-se-me, lesta como uma gazela, na palhota onde durmo, junto ao espaldão do morteiro 60. Tapou-me a boca com a mão, esboçou um sorriso cúmplice, puxou o pano de chita até à cintura, virou-se delicadamente de costas e ofereceu-me o seu esguio corpo de ébano, ressumando húmidos odores da floresta!...

“De pé, ligeiramente curvada para a frente, enigmática como uma máscara, lasciva como a serpente bíblica, submissa como uma fêmea de felino!"...

Não te olhou olhos nos olhos, mas tu fizeste questão de a mirar de alto a baixo, de frente:

“Não é bonita, o rosto deve-lhe ter sido marcado pela varíola, quando mais nova... É sensual e ainda jovem, de seios duros mas pequenos. É provável que seja infértil e nunca tenha parido.”


Tiveste dificuldade em perceber a sua atitude e em adivinhar-lhe a idade:

“Terá vinte e tal anos, menos de trinta. Tínhamos trocado apenas olhares no primeiro dia, quando cheguei, na linguagem mais universal dos seres humanos” (…)

“E, tal como tinha chegado, partia depois, furtivamente, pela calada da noite, sem dizer uma única palavra em português ou crioulo: a única, de resto, que até agora lhe ouvi, foi uma estranha corruptela do meu apelido.”

Um "affaire” no mato ? “Que palavra tão deslocada aqui no cú do mundo, num país em guerra!”, comentaste tu.

De qualquer modo, este momento foi “celebrado com uma singela troca de roncos: dei-lhe a minha toalha de banho turca, colorida,  e fiquei-lhe com a sua pulseira de missangas vermelhas e brancas como recordação das estranhas noites de Sare Ganá.”


Nem sequer te ocorreu "partir patacão" com ela: não querias, de modo algum, estragar a singeleza e até a beleza daquele momento, a partilha de corpos entre um homem e uma mulher que pertenciam a dois mundos opostos...mas tinham em comum a infelicidade do "hic et nunc", do aqui e agora...

Ainda hoje tens dificuldade em entender o significado… socioantropológico desta cena!... Simples atração sexual de um mulher por um estrangeiro ? Simples favores sexuais sem pedir mais nada em troca ? Cumprimento da obrigação feminina de hospitalidade, por ordens expressas do régulo ou do comandante de mílicias que tu mal conheceras ? Ritual de submissão ao representante dos tugas, os "senhores da guerra"? Solidão, despeito, ciúme, não sendo a mais nova das mulheres do comandante de milícias, e muito provavelmente sendo infértil, uma das piores maldições que pode recair sobre a honra de uma mulher em África ?

Este caso não não era virgem, na época, e outros camaradas teus contaram-teestórias semelhantes de partilha de favores sexuais, de iniciativa feminina... em contexto de guerra.


E concluias a escrita desse dia, no teu diário, antes de regressares a Bambadinca:

“Deveríamos ser, ali, em Sare Ganá, os dois seres mais deslocados e solitários do mundo... Nunca mais a vi, nem cheguei a saber a sua verdadeira estória. Nem sei se ainda voltarei a Sare Gana. Mas a sua imagem de gazela furtiva, essa, não vou tão cedo apagá-la da minha memória."


E, de facto, ainda não a apagaste, cinquenta anos depois...Nem nunca mais voltaste a Sare Ganá.

© Luís Graça (2006). Revisto: 24 de junho de 2023.
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 11 de maio de 2019 >  Guiné 61/74: P19775: A galeria dos meus heróis (30): Depressa, tuga, dá-me o tiro de misericórdia!... E que o teu deus te pague!... (Luís Graça)



(**) Vd. poste de  25 de junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6642: A minha CCAÇ 12 (4): Contuboel, Maio/Junho de 1969... ou Capri, c'est fini (Luís Graça)


(...) Aqui a consciência humana tem a dimensão da tribo, do grupo étnico ou até da aldeia. Uma precária serenidade envolve a azáfama quotidiana destes povos ribeirinhos do Geba que, no meu eurocentrismo de viajante, recém-chegado e distraído, descreveria como felizes, gentis e hospitaleiros. 

O que eu observo, sob o frondoso e secular poilão da tabanca, é uma típica cena rural: (i) as mulheres que regressam dos trabalhos agrícolas; (ii) as mulheres, sempre elas, que acendem o lume e cozem o arroz; (iii) as crianças, aparentemente saudáveis e divertidas, a chafurdar na água das fontes; (iv) os homens grandes, sempre eles, a tagarelar uns com os outros sentados no bentém, mascando nozes de cola…

Em suma, um fim de tarde calma numa tabanca fula de Contuboel que daria, em Lisboa, uma boa aguarela, para exposição no Palácio Foz, no Secretariado Nacional de Informação (SNI). E, no entanto, o seu destino, o destino destes homens, mulheres e crianças fulas, já há muito que está traçado: em breve a guerra, e com ela a morte e a desolação, chegará até estas aldeias de pastores e agricultores, caçadores e pescadores, músicos e artesãos, místicos e guerreiros…

O chão fula vai resistindo, mal, ao cerco da guerrilha. De Piche a Bambadinca ou de Galomaro a Geba, os fulas estão cercados. Mas por enquanto, Bafatá, Contuboel ou Sonaco ainda são sítios por onde os tugas podem andar, à civil, desarmados, como se fossem turistas em férias! (...).

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Guiné 61/74 - P18347: Fotos à procura de... uma legenda (101): a "turpeça" do Jorge Araújo (ex-fur mil op esp/ranger, CART 3494 (Xime-Mansambo, 1972/1974)


Guiné > Região de Bafatá > Xime > Tabanca >  c. agosto / setembro de 1972 > O nosso camarada Jorge Araújo sentado na sua "turpeça"..

Foto (e legenda): © Jorge Araújo (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Jufunco ou Djufunco > 9 de maio de 2013 >  Os dois régulos locais  com as suas "turpeças" que nunca largam por nada deste mundo... Dois tipos agarrados ao poder, deve ter pensado o régulo da Tabanca de Matosinhos, Zé Teixeira... Sentar-se no banquinho do régulo é punível com a pena capital... Os felupes não fazem a coisa por menos...

Foto (e legenda): © José Teixeira (2013). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem, enviada hoje, às 19:22, pelo nosso colaborador permanente (e próximo editor), Jorge Araújo, ex-fur mil op esp/ranger, CART 3494  (Xime-Mansambo, 1972/1974):

Caro Luís,

Será que pode-se considerar uma "turpeça", onde me encontro sentado? A ser verdade, deve ser uma muito antiga, ou um modelo diferente das que vimos nas fotos do camarada  Zé Teixeira. (*).

Ab. Jorge Araújo.


2. Comentário do editor LG:

Jorge, é surpreendente a capacidade de resposta dos nossos grã-tabanqueiros, a qualquer hora do dia, da noite ou da semana... Há sempre uma história, uma foto, um episódio, uma expressão, uma palavra... a propósito de tudo ou quase tudo o que aqui  abordamos, relativamente à nossa querida Guiné, às suas gentes, à sua cultura, à  sua história e à nossa relação com aquela terra, aquele povo...

Obrigado pela tua foto, enviada carinhosamente, "just in time"... Pois, claro, que é uma "turvela" o banquinho em que estás sentado, com uma criança ao colo e com uma catana na mão direita... Deve ser no Xime, por volta de 1972, mas também podia ser no Enxalé ou em Mansambo (aqui menos provável, já que a população era reduzida, pelo menos no meu tempo, aos guias das NT e suas famílias).

É uma "turvela", sim, senhor, embora mais tosca do que as dos "colegas" do nosso  Zé Teixeira, os régulos de Djufunco, no chão felupe... As "turpeças" deles são  mais artísticas e mais leves, e curioso, têm uma reentrância que facilita o seu transporte manual...

Mais curioso ainda, e não vá o irã tecê-las, têm uma cordel atado à mão do régulo que é o único (e cioso) proprietário do "banquinho"... Não sei o que é que aconteceria  Zé Teixeira (ou a esposa) se se sentasse, inadvertidamente, na "turpeça" do régulo... No mínimo, teríamos um grave incidente diplomático... Ainda bem que o Zé Teixeira é um profundo conhecedor das idiossincrasias guineenses... e sobretudo é um homem sábio.

A tua "turvela", meu caro Jorge, parece ser fula e,  nesse caso, diz-se um "cirã"... Em mandinga, não sei como se diz... Oferecer uma "turvela" a um convidado, estrangeiro como nós, era um ato de grande hospitalidade e de deferência... Claro que não era pelos nossos lindos olhos mas pelo que representávamos, aos olhos dos régulos, das milícias e da população...

Recordo-me de, em Saré Ganá (**), com dois meses e meio de Guiné, ainda "periquito" com todas   as penas verdes no corpo, me terem "oferecido" (sic) uma  morança, uma enxerga de palha de capim, uma "turpeça" e... uma jovem trintona  (uma das mulheres do comandante da milícia),  quando fui, com uma secção, reforçar o frágil sistema de autodefesa da tabanca, no desgraçado regulado de Joladu, no subsetor do Geba... 

Meio embaraçado com a hospitalidade local  (fula ou mandinga?), foi lá que me apercebi do profundo significado socioantropológico de ter ou não ter uma "turpeça"... Os meus soldados, fulas, dormiam numa esteira, quer dizer, no chão... e comiam à volta de um alguidar de arroz, acocorados no chão... Só ontem, ao fim de quase 50 anos, é que eu ouvi ou li, pela primeira vez, a palavra "turpeça"... e apercebi-me da importância de se ter ou não uma "turpeça" naquelas paragens, ontem e hoje...
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 23 de fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18345: Fotos à procura de...uma legenda (100): quem não tem "turpeça", senta-se no chão... e quem "turpeça" também cai...

(**) Vd. poste de 17 de fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - P535: Fátima, a furtiva gazela de Sare Ganá (Luís Graça)

sábado, 14 de novembro de 2015

Guiné 63/74 - P15367: (De)caras (25): Fui, na manhã de 11/4/1968, de Sara Ganá em socorro a Cantacunda, com a minha secção do pelotão de morteiros e um pelotão da CART 1699... Quando chegámos, não havia nada nem ninguém, apenas o cadáver (mutilado) do bravo João Alves Aguiar, natural de Ponte de Lima, que tentou resistir ao ataque IN, de armas na mão (Carlos Valente, ex-1º cabo, Pel Mort 2005, Bafatá, 1968/69)


Foto nº 1



Foto nº 2


 Foto nº 3


Foto nº 4

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Abril de 2006 > Regresso a Cantacunda: tabanca atual (foto nº 1), antigas instalações do pelotão (foto nº 2), estrada atual para Cantacunda (fotos nºs 3 e 4)


Fotos (e legendas): © A. Marques Lopes (2006). Todos os direitos reservados. [Edição: LG]


1. Mensagem de ontem do Carlos Valente, o nosso mais recente membro da Tabanca Grande (ex-1.º Cabo do Pel Mort 2005, Bafatá, 1968/69)

Assunto: ataque a Catacunda

Amigo Luís e Carlos, este recorte da notícia da fuga de Conacri...foi tirada do Primeiro de Janeiro, no dia a seguir que a notícia estalou na RTP e o sargento Lobato (piloto aviador) prestou declarações na TV (não me lembro quando foi isso, mas penso que se pode averiguar).




Título de caixa alta do Primeiro de Janeiro, de 29 ou 30 de novembro de 1970.
Cortesia do  Carlos Valente


Continuando com o tema do ataque a Catacunda [, de 10 para 11 de abril de 1968] (*) ...

Do nosso destacamento de Sare Gana, já bem entrada a noite, podíamos ouvir as explosões em Cantacunda, o qual indicava que a coisa estava séria. Com não podíamos abandonar o nosso destacamento de Sare Gana para dar apoio, saímos de manhã cedo para fazer um reconhecimento. 

Uma secção do meu Pelotão de Morteiros 2005, acompanhada por um pelotão da CART 1690, uns 45 homens, fomos os primeiros a chegar ao destacamento de Cantacunda. Quando chegamos, não havia ninguém, nem armamento nenhum. 

Demos uma volta ao destacamento, sem saber o que tinha acontecido ali, e encontramos a seguir o nosso camarada [João] Aguiar morto. Parece que ele durante o ataque foi um dos poucos que ofereceu resistência com metralhadora e com G3 desde o abrigo subterrâneo. Foi atingido por uma granada de mão atirada para dentro do abrigo. Mesmo ferido, o nosso camarada parece ter saído do subterrâneo. Foi então capturado e esfaqueado duas vezes dum lado, por baixo do braço. Queimaram-lhe a pera (barba) numa fogueira que os turras fizeram. Foi assim neste estado, com uma garrafa de cerveja na boca, que o encontramos. 

Mais tarde falava-se que dois dos nossos camaradas da CART 1690 foram levados feridos pelos turras e morreram pelo caminho.

Tomamos conta do destacamento e preparámo-nos para o pior, ate chegarem reforços. Aí ficamos instalados por duas semanas. Estávamos muito tensos e nervosos. Não pregávamos o olho durante toda a noite na expectativa de outro ataque, sem estarmos bem armados, sem morteiros e sem armamento pesado, só com G3. Finalmente, depois de duas semanas, chegou um pelotão de periquitos para tomar conta de Cantacunda.

Como e que que os "turras" conseguiram entrar no destacamento e levarem a malta?  (**) 

Comentava-se muita coisa, uma delas era que no dia do ataque a CART 1690 celebrava o primeiro aniversário de Guiné e tinha-se celebrado com umas cervejas. O pessoal estava descontraído e foram apanhados todos na caserna, sem terem tempo ou até nem estarem em condições para reagir ao ataque. Os turras estavam bem informados de tudo que se passava em todos os destacamentos, e os ataques em dias de celebrações era já um costume. Diz-se que o alferes do destacamento de Cantacunda não estava nessa noite. Que casualidade!

Dadas as precárias condições de quase todos os destacamentos (sem abrigos, alguns sem trincheiras, armamento pouco e pobre), por sorte ou destino, não ficamos lá todos porque o inimigo não quis. Sobrevivemos para contar o que passou.

Amigos, eu escrevo o que vi, ouvi e vivi, vocês vejam o que se pode e deve pô no blogue, cortem e corrijam o que vocês virem necessário. Tenho mais histórias, anedotas e fotos para outro dia.

Agradeço muito a vossa amabilidade e amizade, bem hajam. Parabéns pelo vosso trabalho. Nem que seja só em honra dos que ficaram nessas terras, dando a sua vida por uma causa justa ou não, vale a pena o que vocês estão a fazer.

Um grande abraço,
Carlos Valente


Guiné > Mapa geral da provcíncia (1961) > Escala 1/500 mil > Posição relativa de Geba, Sara Gana e Cantacunda, na zona leste

Infogravura Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2015)
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 5 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14972: (De)caras (24); o meu retrato, pintado em 1970 pelo Leão Lopes, do BENG 447 (Humberto Reis, ex-fur mil op esp, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)

(**) Vd. poste de 18 de maio de 2005 > Guiné 63/74 - P21: O ataque e assalto do IN ao destacamento de Cantacunda (1968) (Marques Lopes)

(...) Ataque a Catacunda. 10/11 de Abril de 1968. Desenrolar da acção:

"No dia 10 do corrente cerca das 00h00, o destacamento de Cantancunda foi atacado por numeroso grupo IN.

"Devido à hora a que o ataque foi realizado, a guarnição do destacamento encontrava-se quase toda a dormir na caserna. Devido à configuração do terreno (do lado Norte do destacamento existe uma floresta que dista, no máximo de 5 metros do arame farpado; do lado Poente essa floresta prolonga-se e verifica-se que havia 2 aberturas no arame farpado: uma que durante a noite era fechada com um cavalo de frisa, outra que devido às obras e construção da pista de aterragem se encontrava aberta; do lado Sul existia a tabanca cujas moranças confinavam com o arame farpado; do lado Nascente existe uma bolanha), e devido também à falta de iluminação exterior, o IN pôde aproximar-se do arame farpado sem ser detectado pelas sentinelas e abrir fogo com bazookas e lança rocketes sobre a caserna, tendo em seguida atacado pelos lados Norte, Poente e Sul: pelo lado Norte o IN atirou com troncos de árvores para cima do arame farpado tendo em seguida ultrapassado o mesmo; do lado Poente afastou o cavalo de frisa e penetrou por essa abertura, e pelo lado da pista; pelo lado Sul infiltrou-se pelas tabancas que queimou e em seguida penetrou no aquartelamento.

"Devido à simultaneidade com que os movimentos foram efectuados (os mesmos foram comandados do exterior por apitos), verificou-se que as NT não puderam atingir os abrigos e foram surpreendidos no meio da parada. Note-se, contudo, que alguns elementos das NT ainda conseguiram atingir os abrigos (por exemplo os 1°s. Cabos Esteves E Coutinho e os Soldados Areia e [João] Aguiar, tendo este último sido morto no local e os restantes conseguido escapar).

"Devido ao numeroso grupo IN não foi possível contudo organizar uma defesa eficaz pelo que as NT foram obrigadas a abandonar o destacamento. No entanto só 9 elementos é que conseguiram escapar, tendo 11 desaparecido (provavelmente feitos prisioneiros) e 1 morto.

"Possíveis causas do insucesso das NT:

- O poder de fogo do IN;

-O grande numero de elementos que constituíam o grupo IN;

-A violência com que o ataque foi desencadeado;

-A pontaria certeira do grupo IN, que acertou os primeiros disparos na caserna das NT;

-O comando eficaz do grupo IN;

-A falta de iluminação existente no destacamento;

-Possível insuficiência de abrigos;

-As proximidades da mata do arame farpado;

-As proximidades da tabanca do arame farpado;

-O reduzido efectivo das NT;

-Possível abrandamento das condições de segurança;

-Longa distância deste destacamento à Sede da Companhia (cerca de 50 kms)" (..:)

Comentários [AML]:

Posteriormente veio a saber-se, por declarações de alguns milícias e elementos da população civil detidos para averiguações, que o ataque teve a conivência do próprio Comandante da milícia e de elementos da população [local]. Todos os elementos que [o IN] precisava, tais como distâncias para colocar as armas pesadas, local da entrada no destacamento e vias de acesso ao mesmo, foram fornecidos por eles."

(...) O soldado Aguiar (João Alves Aguiar) foi o único que tentou resistir com a G3 à boca do abrigo e morreu, por isso. Onze foram capturados, entre eles o furriel que comandava o destacamento, o Vaz. Foram libertados, depois, aquando da tentativa de invasão na Guiné-Conakri (Operação Mar Verde). Menos o Armindo Correia Paulino e o Luís dos Santos Marques, que morreram lá de cólera. Apesar das péssimas condições e dos fracos efectivos, é evidente (e sei que foi assim, porque me contaram) que houve desleixo e facilitismo em excesso. Se não tivesse havido, não tenho dúvidas que as coisas não teriam sido tão fáceis para os atacantes.

(...) Militares retidos pelo IN (#)

Fur. Mil.  João N. Vaz
1º Cabo José S. Morais
1º Cabo  José M. M. Duarte
Soldado  Armindo C. Paulino (##)
Soldado  Francisco G. Silva
Soldado  Luís S.A. A. Vieira
Soldado  António A. Duarte
Soldado  José S. Teixeira
Soldado  Domingos N. Costa
Soldado  David N. G. Pedras
Soldado  Luís S. Marques (##)
Soldado  João C. Sousa

(#) O termo "retido pelo IN" era um eufemismo. O Governo Português não reconhecia o PAIGC como inimigo, face à convenção de Genebra. Oficialmente, não havia "prisioneiros".

(##) Morreram de cólera durante o cativeiro.

domingo, 4 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15200: (Ex)citações (295): Fui advogado e amigo de Luís Cabral, e até agora não encontrei uma explicação racional para o assassinato (gratuito) dos 4 oficiais portugueses no chão manjaco nem para o fuzilamento, no pós-independência, de muitos ex-militares guineenses que serviram lealmente as NT (António Martins Moreira, ex-alf mil inf, CART 1690, Geba, 1967/69)


Lisboa > Jantar de Natal 2007 > Os quatro magníficos da CART 1690 (Geba, 1967/69), todos eles alferes milicianos... e todos eles membros da nossa Tabancca Grande: da esquerda para a direita,
(i) o António Moreira, (ii) o Domingos Maçarico,  (iii) o Alfredo Reis e (iv) o A. Marques Lopes,

Natural de de Idanha-a-Nova, o Moreira é advogado em Torres Vedras e fez parte, no triénio de 2008/2010,  do Conselho Geral da Ordem dos Advogados;

Foto (e legenda) : © A. Marques Lopes (2007). Todos os direitos reservados.


1. Mensagem do António Martins Moreira, ex-alf mil inf, CART 1690, Geba, 1967/69; ten mil inf, EPI, Mafra, 1970/71, e hoje advogado:




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Nota do editor:

Último poste da série > 19 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15128: (Ex)citações (294): A vida é uma cabra-cega (A. Marques Lopes)

sexta-feira, 24 de abril de 2015

Guiné 63/74 - P14514: Memória dos lugares (289): Gentes do Geba, parte I (A. Marques Lopes, coronel inf, DFA, na situação de reforma, ex-alf mil da CART 1690, Geba, 1967; e da CCAÇ 3, Barro, 1968)


Foto nº 16


Foto nº 26


Foto nº 22

Foto nº 50


Foto nº 14


Foto nº 67


Foto nº 2


´Foto nº 11



Foto nº 18



Foto nº 22


Guiné > Zona Leste > Geba > CART 1690 (1967)... A povoação de Geba fica na margem direita do Rio Geba Estreito entre Bambadina e Bafatá... Foi um ponto importante de apoio à colonização portuguesa até ao princípio do séc. XX... Perdeu importância para Bafatá. Há vários camaradas do blogue que por lá passaram, nessa terra perdida no tempo e no espaço,  nomeadamente o A. Marques Mendes e o Fernando Chapouto. Passei por lá, como cão pr vinha vindimada, quando me tocou, logo no início da comissão, em meados de agosto de 1969, e já com batismo de fogo, fazer um reforço à tabanca em autodefesa de Sare Gana, no desolado e desolador regulado de Joladu, a norte de Geba... (LG)


Foto: © A. Marques Lopes (2005). Todos os direitos reservados [Edição: LG]


Fotos, sem legendas, do álbum de  A. Marques Lopes, coronel inf, DFA, na situação de reforma, ex-alferes miliciano da CART 1690 (Geba, 1967) e da CCAÇ 3 (Barro, 1968). É nosso grã-tabanquerio da primeira hora.
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Nota do editor:

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2006

Guiné 63/74 - P535: Fátima, a furtiva gazela de Sare Ganá (Luís Graça)

Excertos do Diário de um tuga. 20 de Agosto de 1969 (1)

Os dias em Sare Ganà [ no subsector de Geba, a noroeste de Bafatá] ainda vão sendo suportáveis, à aparte o calor, as moscas e o estado de sítio...

As noites, essas, é que são longas e penosas. O que me custa mais é não poder ler. Os meus soldados fulas estão de serviço, reforçando o sistema de autodefesa (2).

Por causa de um possível ataque da guerrilha (3), é proibido fazer lume ou foguear na tabanca. Aqui come-se cedo e deita-se cedo. Ficam os vampiros dos mosquitos. Por sorte, não apreciam lá muito o meu sangue. Deve-lhes saber a uísque.

Resta-me a companhia silenciosa e furtiva da Fátima, uma das mulheres do comandante da milícia: logo ao segundo ou terceiro dia, introduziu-se-me, lesta como uma gazela,  na palhota onde durmo, junto ao espaldão do morteiro. Tapou-me a boca com a mão, esboçou um sorriso cúmplice, puxou o pano de chita até à cintura, virou-se delicadamente de costas e ofereceu-me o seu esguio corpo negro, ressumando húmidos odores da floresta!...

De pé, ligeiramente curvada para a frente, enigmática como uma máscara, lasciva como a serpente bíblica, submissa como uma fula!

Não é bonita, o rosto deve-lhe ter sido marcado pela varíola, quando mais nova... Mas é sensual e ainda jovem.

Mulher africana.
Pano tradicional de Cabo Verde.

© Luís Graça (2005)

Tenho dificuldade em perceber a sua atitude e em advinhar-lhe a idade. Terá menos de trinta. Trocámos apenas olhares no primeiro dia, na linguagem mais universal dos seres humanos.... E, tal como tinha chegado, partia depois, furtivamente, pela calada da noite, sem dizer uma única palavra em português ou crioulo: a única, de resto, que até agora lhe ouvi, foi uma estranha corruptela do meu apelido.

O affaire (que palavra tão deslocada aqui no cú do mundo) foi celebrado com uma singela troca de roncos: dei-lhe a minha toalha de banho turca e fiquei-lhe com a sua pulseira de missangas vermelhas e brancas como recordação das estranhas noites de Sare Ganà.

Deveríamos ser, ali, em Sare Ganá, os dois seres mais deslocados e solitários do mundo... Nunca mais a vi, nem cheguei a saber a sua verdadeira estória.

Luís Graça (ex-furriel mil Henriques da CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)
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(1) Post já aqui reproduzido com outro título: 11 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXXXVIII: As estranhas noites de Sare Gana

(2) Vd. post o post de 30 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXXI: Sare Ganá, a última tabanca de Joladu

"(...) 15 de Agosto de 1969:

"1. Sare Ganá. A última das tabancas do regulado de Joladu, no sub-sector de Geba. Estive aqui destacado duas semanas, em reforço ao sistema de autodefesa. O que não é irónico, porque a população é fula.

"Armadilhada entre as duas fiadas de arame farpado e guarnecida por um pelotão de milícia e grupos civis de autodefesa, Sare Ganá é uma espécie de aldeia estratégica. Aqui termina a nossa soberania territorial, a norte do Rio Geba e começa a zona de intervenção do Com-Chefe que inclui, entre outras, as regiões de Mansomine, Caresse e Óio.

"É aqui que vive o régulo, uma solitária figura de aristocrata fula. Todos os seus súbditos, mandingas, balantas e manjacos, que viviam em Joladu, foram no mato (leia-se: aderiram à guerrilha ou fugiram das NT). Hoje o seu regulado está circunscrito ao perímetro de Sare Gana e a mais duas ou três tabancas (Sare Banda, Sinchã Satu...).

"Quase todos os dias ouvíamos os Fiats bombardearem Sinchã Jobel (...)".

(3) Vd. post de A. Marques Lopes, de 28 de Maio de 1969 > Guiné 69/71 - XXIX: Um ataque a Sare Ganá (1968)