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sábado, 21 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25963: Os nossos seres, saberes e lazeres (646): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (171): As mulheres carregam o mundo, exposição de Lekha Singh, Museu Nacional de Etnologia (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Junho de 2024:

Queridos amigos,
No mínimo, saímos dali sobressaltados: porque elas são milhões, transportam milhões de quilos, e por milhões de quilómetros, transportam na cabeça, nas costas ou nas espáduas; carregam o mundo e não se sabe desde quando, transportam os filhos, a lenha, a água, a comida, tijolos, pedras, montanhas de algodão. As imagens de Lekha Singh desvelam os fardos que lhes pesam, é uma homenagem a não sei qual percentagem de mulheres do mundo, sabemos que praticam desportos, são mulheres de família, alimentam os filhos, são verdadeiras mulas humanas, olhamos cuidadosamente para os seus rostos de pele gretada e engelhada, pegamos nos números que nos dão as agências das Nações Unidas e ficamos a saber que há pelo menos 2000 milhares de milhões de pessoas que não têm acesso a água, é trabalho de mulheres e também de crianças; há regiões onde elas transportam à cabeça o equivalente a 70% do seu próprio peso. Mas também ficamos a saber, quando olhamos estas imagens, que pelo mundo fora estas mulheres estão num processo crescente de afirmação e rompendo com as barreiras de género.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (171):
As mulheres carregam o mundo, exposição de Lekha Singh, Museu Nacional de Etnologia


Mário Beja Santos

Não foram poucos os que me azucrinaram que era indispensável ir ver a exposição da Lekha Singh, no Museu Nacional de Etnologia. Esperei pelo último dia para ir contemplar este conjunto de imagens fora de série. Lekha Singh é uma artista visual norte-americana, o seu olhar e a sua sensibilidade têm o foco na enorme sobrecarga física que recai desde tempos imemoriais sobre a mulher, em inúmeros locais do planeta. Mas há outros alertas, a despeito do caráter vital das funções que as mulheres desempenham nas esferas familiar e económica, permanecem marcadas pela falta de reconhecimento. Fica por aqui a objetiva desta artista norte-americana, dá para que possamos ver as capacidades físicas das mulheres, tradicionalmente valorizadas apenas pela sua dimensão reprodutora, mas secundarizadas no que respeita à atividades produtivas; há como que um cuidado da artista em querer mostrar que as mulheres constituem uma crescente fonte de afirmação, estão a promover crescentes ruturas nas barreiras de género. Lekha Singh fotografou na Índia, no Butão, no Japão, em Marrocos, no Quénia, no Ruanda, na Tanzânia, na Namíbia e nos Estados Unidos da América. A sua obra fotográfica tem estado patente em instituições consagradas como a Smithsonian Institution, o Musée de l’Homme, ou The International Center of Photography de Nova Iorque.
Na apresentação desta exposição, observa o diretor do Museu Nacional de Etnologia, Paulo Ferreira da Costa, que “há virtuosismo da artista visual a tratar a condição feminina em sociedades de caráter tradicional ou moderno, Lekha Singh polariza-se nestas questões fundamentais em que nos desvela o mundo e a sociedade em que vivemos, mas também para pensarmos no mundo e as sociedades que queremos construir para o futuro, e o lugar que as mulheres neles devem ter.”
Cheguei tarde mas em boa hora para uma exposição notável. Não podendo o leitor desfrutá-la presencialmente, aqui lhe deixo uma mostra fotográfica de indiscutível valor que nos obriga a pensar sobre o modo de transporte não motorizado em que cabe à mulher deslocar de um lado para o outro cargas por vezes sobre-humanas.
Que desfrutem!

Quénia, desde que se casaram que transportam à cabeça a alimentação da sua família, é trabalho que fazem desde pequeninas, como farão as suas filhas, e depois as suas netas
Quénia, aquele cesto é todo o seu património
Índia, elas transportam grandes cestos de algodão
Índia, ao fundo da escadaria corre o rio onde ela lavou a roupa da família, agora sobe-a levando na cabeça toda essa roupa molhada
Butão, faça chuva ou faça sol o trabalho agrícola nunca falta, transporta-se às costas ou na cabeça
Estados Unidos da América, esta mulher transporta o seu filho, foi assim no passado, é no presente e será no futuro
Quénia, esta mulher percorreu uma longa distância para trazer à cabeça uma pedra que é fundamental para a lareira onde preparará a comida da sua família
Índia, esta mulher caminha para o rio Ganges, transporta todos os seus haveres à cabeça, o seu filhinho também se irá banhar no rio sagrado
Tanzânia, nas margens do lago Tanganica, esta mulher transporta um enorme pote de barro à cabeça, já percorreu uma longa distância com ele vazio, vai regressar a casa com o pote cheio de água, pesará 22 quilos
Índia, mesmo com o rosto protegido, esta mulher transporta ramos de acácia para fazer a sua lareira, a lenha continua a ser a fonte de energia mais usada pelos muito milhões de gente pobre de todo o mundo
Quénia, esta mulher, pertencente ao povo Pokot, usa pesados anéis de missangas ao pescoço, que nunca deverá retirar. Cada círculo representa uma determinada dimensão da sua biografia: marido, filhos e estatuto social. As missas são ainda investidas de significados próprios, consoante a cor: o amarelo promove a paz, o branco representa o leite, o verde simboliza a erva, o negro a pele, o vermelho o sangue, o laranja a beleza e o azul Deus nos céus.
Índia, trabalha-se em qualquer idade e por toda a vida
Estados Unidos da América, halterofilista que detém 7 recordes mundiais de levantamento de pesos
Índia, ela leva à cabeça a comida para toda a família
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Nota do editor

Último post da série de 14 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25942: Os nossos seres, saberes e lazeres (645): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (170): Restos de coleção de visitas inesquecíveis ou lugares esplendentes (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25866: Humor de caserna (70): um "tuga"... (de)composto, ou uma estória pícara num almoço fula (Alberto Branquinho, autor de "Cambança final", 2013)



Fonte: Excertos de Alberto Branquinho  - Cambança final: Guiné, guerra colonial:  contos. Vírgula, Lisboa, 2013, pp. 95/96




Alberto Branquinho (n. 1944, Vila Foz Coa),
advogado e escritor, a viver em Lisboa desde 1970,
ex-alf mil, CART 1689 / BART 1913,
Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69),
tem 140 referências no nosso blogue:
é autor das notáveis séries "Contraponto"
e "Não venho falar de mim,,, nem do meu umbigo".


Um "tuga"... (de)composto

por Alberto Branquinho


Era a segunda vez que o alferes ia almoçar àquela tabanca fula, a convite do Bacar e do Jau, soldados do seu pelotão.

Feitos os cumprimentos às várias mulheres e depois de umas brincadeiras com a garotada, estava o alferes a passear pela morança com os dois soldados, quando as mulheres começaram a chamar para o almoço.

Balaios e alguidares esmaltados estavam já colocados no interior de um círculo de esteiras, colocadas no chão batido. Arroz, muito arroz, peixe miúdo da bolanha em molho de palma, galinha em pequenos pedaços e condimentos.

As mulheres ficaram do lado da casa, com as crianças. No lado oposto o alferes, no meio dos dois soldados nativos. Todos sentados no chão, com as pernas cruzadas, em cima das esteiras e por baixo do telheiro, também feito de esteira.

Começou o almoço e a conversa. As mulheres deram indicações sobre comida e
  
temperos e os homens passaram-nas, em crioulo, ao alferes.

Falaram sobre a última operação, sobre os outros militares, sobre os vizinhos, enquanto as mulheres algaraviavam entre elas, no meio gargalhadas.

Comiam fazendo as habituais bolas de arroz com a mão direita ou esquerda (ao jeito de cada um), que, depois, uma a uma, eram molhadas nos condimentos dos alguidares mais pequenos, acrescentadas do conduto, depois mordidas, mastigadas, engolidas. Toda a gente conversava em fula, exceto quando os soldados falavam com o alferes em crioulo.

As mulheres tinham que se levantar continuamente para obrigar as crianças mais pequenas e fugidias a dar as suas dentadas na bola de arroz ou a petiscar pequenas doses, agarradas entre o polegar e o indicador.

A meio do almoço o alferes notou uns risos abafados e brejeiros de duas ou três mulheres à sua frente. Logo a seguir um dos rapazes, com cinco ou seis anos, levantou-se e colocou-se atrás delas. Com ar enojado e mantendo sempre a sua bola de arroz na mão, começou a olhar o alferes no rosto e, alternadamente, para as pernas. Depois começou a cuspir, cuspir, cuspir para o chão, ao mesmo tempo que limpava, com os pés, as cuspidelas do chão.

O alferes olhou para as suas pernas e viu que o testículo esquerdo se tinha libertado do controle das cuecas e assomava, curioso, espreitando para fora dos calções. Discretamente levantou-se, arrumou o indiscreto como pôde e… tudo voltou ao seu lugar.

O almoço decorreu sem mais incidentes.


(Título,  revisão / fixação de texto: LG)  (Com a devida vénia ao autor e à editora...)

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Nota do editor:

Último poste da série > 18 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25856: Humor de caserna (69): Na Op Tridente, entre ferozes combates, também havia lugar para a boa disposição e até para se fazer uns piqueniques na praia, com uns bons nacos de vitela, uma boa perna de cabrito ou uns ovos mexidos de tartaruga (Excerto de Armor Pires Mota, "Tarrafo", 1965, pp. 52/53)

segunda-feira, 5 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25809: Timor: passado e presente (16): Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) - Parte VII: As chacina de Aileu e Ainaro, em outubro de 1942... E a coragem da jovem Julieta Lopes, de 17 anos, que gritou aos assassinos, em tétum: Quétac óhò feto ò labáric! (Na guerra não se matam mulheres e crianças!)



Timor Leste  > Dli >  c. 1936/40  > O Palácio do Governador



Timor Leste > Díli > c. 1936/40 > "Sua Excelência o Governador e S. E. Reverendissima o Bispo da Diocese"... Trata-se do governador Álvaro Fontoura (1891-1975), que exerveu o cargo antes dos acontecimentos aqui descritos, ou seja, entre 11/9/1937 e 10/5/1940. Duarante a Guerra Mundial, foi governador o cap inf Manuel de Abreu Ferreira de Carvalho (1893-1968).



Timor Leste > Díli > 1937 > "Baleeira governamental quando da chegada de S. E. o Governador"


Timor Leste > Díli > c. 1936/40 > Baucau > "Residência do Governador (Vila Salazar)"



´Timor > Bacau ou "Vila Salazar > c. 1936-1940 > Um aspeto da vila

Fotos do Arquivo de História Social > Álbum Fontoura. Imagens do domínio público, de acordo coma Wikimefdia Commons.




1. Estamos a publicar notas de leitura e excertos do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (*), disponível em formato digital no Internet Archive.

 Timor Leste, como é sabido, foi o único território  português ultramarino (na altura, designado como "colónia" , até 1951)  que foi invadido e esteve ocupado por forças estrangeiras, durante a II Guerra Mundial (entre dezembro de 1941 e setembro de 1945): tropas aliadas (anglo-australianas  e holandesas, primeiro, e japonesas depois),

O livro em apreço é um documento importante para se conhecer melhor este dramático  período da história de Timor. Devido à censura, o "caso de Timor", ou todo o seu horror,  só foi conhecido depois do fim da guerra. Timor foi uma "pedra" na bota de Salazar, que vociferou contra os aliados e praticamennte calou-se ante os nipónicos.

Para ajudar a leitura, reproduzimos no fim deste poste o mapa de Timor em 1940 (da autoria de José dos Santos Carvalho). Em termos administrativos, a atual República Democrática de Timor-Leste encontra-se dividido em 13 distritos: 

(i) Bobonaro, Liquiçá, Díli, Baucau, Manatuto e Lautém na costa norte;  | (ii) Cova-Lima, Ainaro, Manufahi e Viqueque, na costa sul;  ! (iii) Ermera e Aileu, situados no interior montanhoso;  | (iv) e Oecussi-Ambeno, enclave no território indonésio.

 

Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) 

Parte VII:   As chacina de Aileu e Anaro,  em outubro de 1942... E a coragem da menina Julieta Lopes que gritou aos assassinos, em tétum: Quétac óhò feto ò labáric!   (Na guerra não se matam mulheres e crianças!)


(i) Na madrugada de 1 de outubro de 1942, quinta feira, 
deu-se um dos episódios mais trágicos de toda a guerra 
no Timor português: o ataque à Companhia de Caçadores 
e à casa do seu comandante, o cap inf  Freire da Costa; 
uns morreram de armas na mão 
fazendo frente a uma "coluna negra",
 outros suicídaram-se. 

Segundo o adjunto da Companhia, o tenente Antóni0 Oliveira Liberato, dispunha de 200 homens, quase todos timorenses, 2 metralhadoras Vickers, 1 Lewis e 48 espingardas... do séc. XIX, Kropatchek, e umas escassas milhares de munições, velhas. Os prometidos morteiros, essenciais num território montanhoso,
ficaram, prometidos, em Lisbos. 

Toda a estratégia militar de Salazar e Santos Costa, na II Guerra Mundial, esteve orientada para a defesa das ilhas atlânticas (Madeira, Açores e Cabo Verde),  Tim0r foi, metaforicamente falando, 
riscada do mapa.

Nesta época, a população de Timor, de origem metropolitana, não ultrapassaria as duas centenas (não contando com as famílias): cerca de 90 deportados ("políticos e sociais"), meia centena de militares, umas escassas dezenas de funcionários administrativos, pessoal das missões católicas... Não havia colonos, ou contavam-se pelos dedos,
 

(...) Na tarde do dia 2 de outubro de 1942, o chanceler do consulado japonês, sr. Irié, veio ao hospital informar o engenheiro Canto de que em breve aí chegariam vários portugueses provenientes de Aileu.

De facto, cerca das 21 horas, apareceram três camionetas do exército nipónico, transportando portugueses de Aileu, entre os quais vinha o administrador Virgílio Castilho Duarte, o tenente reformado João Cândido Lopes e suas três filhas, o sargento António Lourenço da Costa Martins, o sargento Carlos de Miranda Relvas, o sargento Manuel dos Santos, os cabos Porfírio Soares e Jacinto Santos, e os enfermeiros Marcelo Nunes e Daniel Madeira.

Contou-nos, então o sargento Martins que na madrugada do dia 1 de Outubro, o aquartelamento da Companhia, instalado no depósito de degredados de Aileu, havia sido subitamente atacado e bombardeado por morteiros e, em seguida, por granadas de mão e alvo de tiros de metralhadora e espingarda, ouvindo-se gritos em língua indígena desconhecida no Timor português mas entre as quais se distinguia a palavra «Atambura» (1).

Tratava-se, pois, de uma coluna negra principalmente recrutada nessa cidade do Timor holandês. A guarda da Companhia, encurralada dentro dos muros do presídio, pois os japoneses haviam exigido que não patrulhasse as suas imediações, reagiu, saindo à portada, disparando uma metralhadora e espingardas, os cabos Evaristo Gregório Madeira e Júilo António da Costa, os soldados Álvaro Henrique Maher e João Florindo e vários soldados timorenses, tendo morrido, atingidos pela metralha, aqueles quatro europeus e seis soldados timorenses.

O ataque parou então, o que permitiu a fuga dos sobreviventes tendo, porém, alguns militares europeus ficado dentro do edifício do aquartelamento, escondidos e acaçapados no vão de um sobrado, coberto com as tábuas que tinham levantado. Assim se mantiveram até que, na manhã seguinte a tropa japonesa que visitou o edifício, os descobriu, com evidente surpresa e desapontamento.

A menina Julieta, filha do tenente Lopes (2) , eontou-me pormenorizadamente a tragédia que se tinha desenrolado na habitação em que estava instalado o comandante da Companhia e situada perto do aquartelamento.

Naquela noite, temerosos de acontecimentos terríveis que pressentiam, haviam-se acolhido à casa do comandante, o administrador Virgílio Duarte, o dr. Dinis Ângelo Arriarte Pedroso (delegado de saúde da zona oeste que habitava em Aileu desde o mês de junho), o secretário da administração de Aileu, José Gouveia Leite, sua esp
osa  [Cacilda] e dois filhos (um de sete anos de idade e outro ainda de peito), o chefe de posto auxiliar Antono Afonso, as três filhas do tenente Lopes  (2) e o filho do tenente Liberato, de doze anos de idade (3) .

O ataque principiou pelo quartel mas logo passou à casa do comandante que foi varrida por saraivadas de balas e a que começou a ser lançado fogo, pegando-o a uma dependência que servia de capoeira e lhe estava encostada. 

Não tendo dúvidas de que iriam ser mortos e torturados pelos assaltantes, tal como acontecera ao sr. Martins Coelho em Maubisse, e vendo que ficariam assados no braseiro em que a casa ameaçava tornar-se, todos os que ali se encontravam foram tomados do maior pânico, em especial os que temiam os piores vexames para as suas esposas que preferiam ver mortas

Em resultado deste estado de espírito, o capitão Freire da Costa suicidou-se com um tiro de pistola na cabeça, a sua esposa procedeu do mesmo modo com um pequeno revólver, o dr. Pedroso encostou uma espingarda ao peito e desfechou sobre o coração, e o secretário Gouveia Leite e o chefe de posto António Afonso meteram espingardas sob o queixo e dispararam. Em poucos instantes todos estes estavam mortos.

O administrador Virgílio Duarte teve, então, a ideia de se misturar com os cadáveres e se fingir morto. Assim fez, e foi isso que lhe salvou a vida. Entretanto, o fumo do incêndio, que alastrava, já quase asfixiava os sobreviventes, o que os obrigou a abrirem a porta para sair para o exterior. 

A turba ululante que se preparava para os exterminar foi então detida pela enérgica e decidida acção da menina Julieta Lopes (2), que, como conhecedora dos costumes primitivos timorenses,  se lhe dirigiu em alta voz, em tétum: Quétac óhò feto ò labáric! (4). Assim, lembrando àqueles homens que na guerra não se matam mulheres e crianças, salvou a vida do desgraçado grupo.

Entrou a malta na casa e saciou o seu ódio disparando, ainda, tiros sobre os cadáveres, um dos quais feriu levemente no nariz, actuando de ricochete, o administrador Virgílio Duarte. As senhoras e crianças sobreviventes dirigiram-se então, livremente, para a residência do administrador que, tal como todas as casas de Aileu, com exceção do quartel e a do comandante, não havia sido atacada pela coluna negra.

Manhã cedo, militares japoneses vieram do seu acampamento vistoriar Aileu e foram eles que encontraram os militares portugueses escondidos nos escombros do quartel da Companhia e o administrador Virgílio na casa do comandante. 

Ficaram todos os sobreviventes da chacina de Aileu alojados na residência do administrador e, no dia seguinte, escoltados por soldados japoneses, tiveram de fazer a pé a longa caminhada entre Aileu e a ribeira de Cômoro onde encontraram as três camionetas que os transportaram ao hospital de Lahane, sendo recebidos com o carinho e a emoção fáceis de imaginar.

Passados poucos dias, seguiram a hospedar-se em casas de Liquiçá. Somente dias depois, soubemos em Lahane que em 2 de Outubro, dia seguinte à da chacina de Aileu, uma coluna de tropa japonesa acompanhada de timorenses havia assassinado em Ainaro, com requintes de selvajaria, os missionários, padres António Manuel Pires e Norberto de Oliveira Barros e o deportado Luís Ferreira da Silva que, na missão de Ainaro, prestava serviço como mestre-de-obras.

Devido a tantos acontecimentos desastrosos, o tenente Ramalho retirou-se do seu acampamento de Ai-Hou, daí saindo e dirigindo-se para leste, no dia 5 de outubro, chegando à Baucau a 24. 

O tenente Liberato ainda se manteve uns dias em Bobonaro, porém teve que retirar para Atsabe, no dia 12, seguindo a f ixar-se no lugar de Mânu-Tássi, a dois quilómeros da Hátu-Lia, cumprindo uma ordem do Governador que o incumbia de orientar a atuação nas áreas dos postos ainda ocupados pelas autoridades administrativas — Atsabe, Lete-Fóho, Hátu-Lia, Cailaco e Ermera — e cobrindo com as tropas as regiões de Liquiçá, Bazar-Tete e Boibau (6).

Entretanto, factos graves se passavam em Bazar-Tete e tropas japonesas, acompanhadas de indígenas, ameaçavam Lete-Fóho. Na primeira dessas localidades, apareceu de surpresa, à hora em que se realizava o bazar (7) , uma coluna negra, vinda de Aileu. Precedendo a sua entrada de breve fuzilaria, puseram em debandada os timorenses e os europeus que se encontravam no mercado.

O sr. Moreira Rato, chefe do posto, e família, perseguidos a tiro, conseguiram escapar aos assaltantes, refugiando-se no mato. Auxiliados por timorenses dedicados, alcançaram Liquiçá. Exaustos, rotos, corpos cheios de arranhaduras, entraram na vila, onde foram socorridos pelo chefe de posto José Nascimento. Incansáveis, ele e sua esposa, prestaram-lhes carinhosa assistência. Outro tanto haviam feito já aos refugiados de Aileu.

No dia 19 de outubro, os japoneses entraram em Lete-Fóho, afugentando os moradores com rajadas de metralhadora e incendiando as residências, armazéns, etc, e regressando a Hátu-Builícu, donde tinham ido. Dois europeus, o deportado Emílio Augusto Caldeira e o condenado João Romano da Silva, morreram às mãos dos indígenas que acompanhavam os nipónicos (6).


(ii) Isolados do mundo (com a estação radiotelegráfica de Taibessi nas mãos dos japoneses), não há sinais de esperança, vindos de Lisboa, pelo que o governador (e os restantes portugueses) acaba por ter de aceitar a "solução japonesa", a de os concentrar em Liquiçá e Maubara.

Entretanto, há já aviões norte-americanos a bombardear o território... Dois anos depois, em 28/11/1944,  a diplomacia portuguesa, jogando com o pau de dois bicos (a famosa "neutralidade colaborante") consegue assegurar a restituição da soberania de Timor, ao conceder aos EUA facilidades na utilização 
da base da ilha de Santa Maria, Açores. 



(...) Após as chacinas de Aileu e Ainaro, o Governador resolveu informar do acontecido a população europeia instalada em Baucau pedindo-lhe, ao mesmo tempo, para se pronunciar sobre a urgente necessidade de se enviar um telegrama para Lisboa, rogando a evacuação de Timor, da população que estava sistematicamente a ser dizimada. 

O caso, que primeiro foi tratado com os que residiam no hospital de Lahane, pessoalmente pelo Governador, revestia-se de excecional delicadeza. A nossa dificílima situação era motivada, não pela impotência de dominarmos os limitados focos de rebelião de timorenses-portugueses mas, sim, pela impossibilidade de podermos castigar e reprimir os bandos de indígenas do Timor holandês que os japoneses lançavam contra nós e que, sem dúvida alguma, protegeriam.

Ora, desde o dia 31 de maio que estávamos isolados de qualquer comunicação com o resto do mundo por os japoneses terem ocupado a nossa estação radiotelegráfica de Taibéssi e, somente por intermédio deles poderíamos enviar um SOS ao Governo central. 

Porém, como explicar-lhe que todas as nossas aflições resultavam da velada ação nipónica, em telegrama aberto, pois o cônsul japonês logo claramente informara o engenheiro Canto de que a mensagem, por razões de segurança das forças militares, não poderia ser em cifra ?

Seguiu então para Manatuto e Baucau o capitão Vieira, enviado do Governador, no dia 4 de outubro, tendo recebido o assentimento dos portugueses aí reunidos para se mandar ao Governo um telegrama que, pelo seu apelo desesperado, lhe desse a entender que estávamos inteiramente impossibilitados de garantir a vida de qualquer de nós. 

A resposta do Governo central não se fez esperar, tendo eu sabido, por meias palavras do engenheiro Canto, que nela não havia qualquer esperança de alívio para a nossa situação, julgada perfeitamente controlável pelos meios locais.

Não restou, assim, ao Governador outra hipótese de solução, senão aceitar o oferecimento, que já várias vezes tinha sido feito, de o exército japonês garantir a nossa segurança desde que todos os não-timorenses se concentrassem na zona constituída pelas povoações de Liquiçá e Maubara, por eles escolhida. Todos os portugueses de Lahane concordaram com esta ideia, o mesmo acontecendo com os da zona Leste, a quem o capitão Vieira foi novamente informar do que se passava, partindo para Baucau no dia 11 de outubro.

Era, então, absolutamente claro para todos, não podermos ter a mínima confiança em os nipónicos cumprirem a palavra  dada. Todavia, nada mais nos era dado escolher e tínhamos que nos sujeitar ao que entendíamos ser um subterfúgio para afastar as autoridades portuguesas dos seus postos de soberania

No dia 14 de outubro, passados os dois meses da minha estadia voluntária em Díli, voltei para Baucau e o dr. Rodrigues regressou ao hospital de Lahane, tendo deixado a sua esposa naquela vila, hospedada na residência do secretário Howell de Mendonça de cuja esposa era íntima amiga.

Decorridos três dias, fui surpreendido em Baucau pela notícia de que a família do Governador tinha chegado na noite da véspera trazendo consigo outras pessoas e que todos estavam instalados no «palácio», uma residência de férias dos governadores. Imediatamente, como me cumpria, me dirigi ao palácio para apresentar os meus cumprimentos e no seu átrio encontrei o capitão Vieira que me informou do que se passara em Manatuto, no dia 16 de outubro. 

Aviões com o distintivo americano, haviam, então bombardeado a estrada de Manatuto a Saututo, tendo caído bombas muito perto da residência do administrador, o que motivara a vinda de todos os que aí habitavam para Baucau com exceção do dr. Mendes de Almeida e do secretário Augusto Padinha.

Estavam, assim, no palácio, a senhora D. Cora Ferreira de Carvalho e as suas três filhas, o capitão Vieira e sua esposa e filha, a esposa do tenente Alves e suas duas filhas e um filho, a esposa do administrador dr. Mendes de Almeida e a esposa do secretário Padinha e seus filho e filha. 

No dia 24 de outubro, à tarde, as filhas do Governador e a do capitão Vieira estavam a jogar o ténis comigo. Com grande surpresa, nossa, avistámos, marchando, uma coluna de tropa portuguesa à frente da qual comandava o tenente Ramalho. Era, de facto, este oficial que voltava da sua missão de combater a rebelião de Maubisse e que ia alojar a sua tropa no belo edifício da escola de Baucau, a cerca de quinhentos metros para norte da vila. 

Fui visitá-lo, na manhã do dia seguinte, tendo-lhe oferecido roupas interiores e umas calças minhas que ele, reconhecidamente aceitou, pois não tinha possibilidade de substituir as que ainda usava, rasgadas pelos espinhos do mato, durante as árduas lutas em que tomara parte.

No dia seguinte ao da chegada do tenente Ramalho apareceram, em Baucau o engenheiro Canto e o tenente Alves que convocaram uma reunião onde compareceram quase todos os portugueses não-timorenses. Deram então conhecimento de que tinha sido concluido o acordo com o comando nipónico, negociado por intermédio do engenheiro Canto e do cônsul japonês, pelo qual aceitávamos a sua protecção, e a deslocação para a zona de Liquiçá e Maubara e de que traziam instruções sobre a forma como esta última se havia de processar.

O meio de transporte seria o vapor Oé-Kússi (5) que ainda demoraria a vir cerca de duas semanas, e que começaria por fazer viagens somente com géneros alimentícios (que se deviam juntar em Baucau pois a zona era muito pobre em agricultura) e com bagagens dos passageiros, os quais seguiriam depois. Vários dos assistentes à reunião tomaram então a palavra, sendo o primeiro o Coronel Castilho e seguindo-se-lhe os administradores, tenente Pires e Sousa Santos. Todos foram unânimes na opinião de que não tinham a mínima confiança nas promessas dos japoneses, mas que para nós não havia outra alternativa senão a de seguir para a zona de concentração, que, à boca pequena, se classificava como «o açougue dos portugueses».

As disposições relativas à concentração dos portugueses, tomadas de acordo com o comando nipónico, foram então referidas, de um modo vago, pelo engenheiro Canto e encontramo-las num dos livros do capitão Liberato (6), do qual as passo a transcrever.

«A zona de concentração, necessidade premente, imposta pela situação aflitiva que a colónia atravessava, abrangeria as áreas dos postos administrativos de Liquiçá e Maubara. 

"Ali se concentrariam todos os portugueses. Os destacamentos militares, o meu e o do tenente Ramalho dos Santos, estabelecer-se-iam respectivamente em Boebau (8), área de Liquiçá, e nas montanhas de Maubara, com a missão de defender a integridade da zona, contra os ataques dos indígenas. 

"Cada português poderia conservar em seu poder uma arma de fogo para defesa pessoal. Os indivíduos cujas funções obrigassem a permanecer em Díli, residiriam no hospital Dr. Carvalho, em Lahane».

O acordo foi firmado em bases imprecisas, porque os nipónicos sempre se recusaram a reduzir a escrito os pormenores regulando a sua execução, como insistentemente lhes foi pedido è nas próprias bases era prometido. Manhosos, velhacos, nunca quiseram firmar um compromisso que de certo modo lhes pudesse cecear a sua acção sobre os portugueses. Jamais se decidiriam a penhorar á sua palavra, assinando um documento que no fúturo constituísse a demonstração insofismável da sua desleal conduta (9).

Em minha casa, onde ficou hospedado, me contou o engenheiro Canto que tinha trazido um pedido do Governador para o administrador de Manatuto adquirir, juntar e enviar para Baucau todo arroz que lhe fosse possível obter, para embarcar no OeKussi. 

Transmitidas pelo tenente Pires as instruções do Governador ao administrador de Lautém, todos começaram os seus preparativos para a deslocação, mas sem qualquer ansiedade pois havia um razoável período de espera pelo transporte.

So mais tarde eu soube que no dia 28 de outubro, bastantes portugueses dos lados da Hátu-Lia e Ermera e que se encontravam albergados na plantação de Fátu-Béssi,  haviam abandonado esse local e ido para parte incerta, para não seguirem para a zona.

Conta-nos o dr. Cal Brandão (10) que um oficial australiano que a passara com a sua guerrilha, os informara não ser do conhecimento do seu comando a criação duma zona neutra e que, assim, eles não se julgariam obrigados a respeitar uma convenção feita sem o seu assentimento. 

Depois, o major Bernard Callinan (11), segundo-comandante australiano, declarara que o seu comando criaria também, uma zona de protecção às famílias portuguesas, a evacuar para a Austrália em caso de necessidade, com a condição dos homens lhe prestarem ajuda, ficando como seus intérpretes e colaboradores (10) .

«O facto tornou-se conhecido, fizeram-se os preparativos necessários para a viagem, que podia ser acidentada, e era demorada por certo. No dia 28 de outubro, logo de manhã cedo, com doze australianos a proteger-nos a retirada e sentinelas colocadas nas encruzilhadas em que seria possível um mau encontro, pôs-se a caminho uma caravana de cerca de oitenta pessoas, muitas mulheres e crianças, umas a pé outras a cavalo, em bicha indiana serpeando pelos estreitos carreiros cavados nas encostas de íngremes montanhas» (10) .

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Notas do autor (complementadas pelo editor LG):


(1) Atambua era uma cidade do Timor holandês, situada próximo da nossa fronteira.

(2) O intendente militar, tenente reformado João Cândido Lopes , tinha 3 filhas, entre elas a Julieta Lopes (aqui citada pelo autor), de 17 anos. 

(3) O tenente António Oliveira Liberato, viúvo, deixara o seu filho Luís Filipe, de 12 anos,  à protecção do capitão Freire da Costa, quando partira com o destacamento da Companhia a combater a rebelião dos povos da Fronteira.  Casará depois, em 1943/44, com a Cacilda, viúva do secretário da administração de Aileu, Júlio Gouveia Leite.  (O casal tinha chegado a Timor em setembro de 1936.)  

António Liberato e Cacilda vão reencontrar.se no campo de concentração, com os 3 filhos (dois dela, um dele).

(4) Esta frase, em tétum, significa: "Não se devem matar (após a vitória em combate) as mulheres e as crianças".

(5) O vapor Oé-Kússi, havia sido tomado pelos japoneses para seu serviço no mês de maio de 1942, depois de repetidas vezes, a sua cedência ou aluguer lhes serem negados pelo governador.

(6) Vide Capitão António Oliveira Liberato, O Caso de Timor, Portugália, Lisboa.

(7) Em Timor os mercados públicos têm a designação comum de «bazar».

(8) Onde hoje fica a ESFA (Escola de São Francisco de Assis), construída pela ASTIL - Associação de Solidariedade com Timor Leste.

(9) Vide Capitão António de Oliveira Liberato, Os japoneses estiveram em Timor, Empresa Nacional de Publicidade. Lisboa, 1951.

(10) Vide Carlos Cal Brandão, Funo. Porto, 1946.

(11) E não Callini, lapso do autor ou gralha tipográfica. (Nasceu em 1913 e faleceu em 1995, sendo um grande amigo de Timor Leste).

Fonte: José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972, pp. 44-53.

 
(Seleção, revisão / fixação de texto, título, notas introdutórias, reorganização das notas, itálicos e negritos: LG)






Mapa de Timor em 1940. In: José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972, pág. 11. (Com a devida vénia).

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)


Timor Leste > Com c. 15 mil km2, e mais de 1,3 milhões de habitantes, ocupa a parte oriental da ilha de Timor, mais o enclave de Oecusse e a ilha de  Ataúro. Antiga colónia portuguesa, tornou-se independente desde 2002, depois de ter sido  invadida e ocupada pela Indonésia durante 24 nos, desde finais de 1975.   Na II Grande Guerra, conheceu por duas vezes a invasão e ocupação por tropas estrangeiras (os Aliados, em 17 de fevereiro de 1941; e depois os japoneses, em 20 de fevereiro de 1942). Na altura teria pouco mais de 400 mil habitantes. O território era administrado por Portugal desde o início do Séc. XVIII.

Infografia : Wikipédia > Timor-Leste |  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné 
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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 2 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25802: Timor-Leste: passado e presente (15): Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) - Parte VI: e o terror continuou no 2º semestre de 1942...

quarta-feira, 31 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25797: (De)Caras (214): Cecílica Supico Pinto: a "líder carismática" do Movimento Nacional Feminino, com acesso privilegiado a Salazar, que veio preocupadíssima com a situação na Guiné, na véspera do 25 de Abril de 1974

 

Foto nº "34. Cilinha no porto de Lisboa na despedir-se de militares que partiam para as 'províncias ultyramarinas'. O MNF apoiava moralemnet os soldados na frente de batalha, mas não esquecia o apoio às famílias que ficavam na retaguarda.  (Arquivo do Diário de Notícias)".

Foto nº "37. Acompanhada pela Comissão Central do MNF, Cilinha fala aos jornalsitas sobre as atividades do Movimento" (Serviço do Arquivo de Lisboa / DGARQ / CPF/ MC / SEC / AG/01- 171/1546AR.)" (A Renata Cuha e Costa, vice-presidente do MNF, é a terceira a contar da direita.)

Fot nº "33. O presidente da Câmara de Lisboa, general França Borges,com algumas senhoras do MNF. dirante a receçãpo que lhes ofereceu em Montes Claros por ocasio do primeiro congresso daquele organismo, 1966. (Serviço do Arquivo de Lisboa / DGARQ / CPF/ MC / SEC / AG/ 01- 171/1586AR.)"



Foto nº "37. Condecorada com a medalha de prata do Mérito Femino pelo ministro do Exército, coronel Joaquim Luz Cunha, por ocasião do sexto aniversário do MNF, 1967. (Serviço do Arquivo de Lisboa / DGARQ / CPF / MC / SNI / RP /03- 6704/56410.)".


~
Foto nº "42. Oliveira Salazar apreciava a alegria e frontalidadfe de Cecília Supico Pinto que considerava 'um verdadeiro príncipe'.  Foi uma das últimas pessoas a vê-lo com vida. (Arquivo do Diário de Notícias)".

Fotos selecionadas e reeditadas pelo blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024), com a devida vénia


Capa do livro de Sílvia Espírito-Santo, “Cecília Supico Pinto: o rosto do movimento nacional feminino”. Lisboa: A Esfera do Livro, 2008, 222 pp.



1. Confidenciou a Cecília Supico Pinto (Lisboa, 1921 - Cascais, 2012) à sua biógrafa, Sofia Espírito-Santo (op cit, pág., 98):

(...) "O Dr. Salazar gostava que eu lhe contasse tudo o que via e ouvia e acreditava em mim porque sabia que eu não tinha medo de lhe dizer a verdadae, doesse a quem doesse! No fim dizia-me sempre: 'Para que quer a menina que eu vá a Angola se a menina ma traz aqui? ' " (..:)


Não duvidamos da autencidade desta confidência: Cecília Supico Pinto não foi "la Pasionaria" do regime salazarista, mas podia tê-lo sido... Tinha, inegavelmente, algumas qualidades pessoais, como por exemplo a liderança carismática, o charme, a elegância, a educação, a coragem, a coerência, a dupla elevação (física e moral) de algumas (poucas) mulheres da elite portuguesa da época: por exemplo, era mais alta que muitos homens e que a generalidades das mulheres portuguesas... (Vejam-se as fotos acima.)

De qualquer modo, o que nos chamou mais atenção, nesta seleção de fotos que tomámos a liberdade de fazer (com a devida vénia à Sílvia Espírito-Santo) foi a legenda da foto nº 34, que serve de imagem da capa do seu livro.

Por mensagm de 22/07/2024, 08:31, o João Sacôto, ex-alf mil at inf, CCAÇ 617 / BCAÇ 619 (Catió, 1964/66), legendou a fot0 nº 34, do seguinte modo:

"Nesta fotografia estão: da esquerda para a direita: (i) o comandante do Batalhão de Caçadores 619, coronel Matias; (ii) o alf mil Montes (da CCAÇ 616, que foi para Empada); (iii) outro alferes, da CCAÇ 616 de que não me lembro o nome; (iv) a D. Cecília Supico Pinto; (v) outra cara desconhecida; (vi) o major Jesus Correia, 2º. comandante do BCAÇ 619; (vii) e finalmente outra cara de que me não recordo."

Falando ao telefone, com o meu amigo e vizinho de Ferrel, Peniche, Joaquim Jorge, ex-alf mil da CCAÇ 616 (Empada, 1964/66), ele confirmou que o Montes foi seu camarada: Fernando Paulo Montes, mais tarde médico de clínica geral, no SNS. Vivia em Sesimbra, chegou a ir aos primeiros encontros anuais da malta. Depois perdeu-lhe o contacto. Já morreu, infelizmente, de cancro.

2. O Joaquim Jorge também me confirma, para surpresa minha, que a Cilinha esteve em Empada em 1964 ou 1965, "já uns meses depois de o batalhão ter chegado". Não podia ter sido em 1966, uma vez que o BCAÇ 619 embarcou para Lisboa, a 27 de janeiro. Até agora, só tínhamos referenciado quatro visitas da "Cilinha" à Guiné: 1966, 1969, 1973 e 1974.

A Guiné será, entretanto, a última visita que ela fará, ao serviço do Movimento Nacional Feminino,  já a escassas semanas do 25 de Abril de 1974. Foi lá que tomou contacto com o livro do general Spínola, "Portugal e o Futuro" (que achou "nada de especial nem sequer bem escrito") (pág. 182).

Veio de lá com sentimentos contraditórios, tendo de imediato partilhado, ao telefone, com o Ministro da Defesa, Silva Cunha, os seus temores:

(...) As coisas não estão nada brilhantes, venho preocupadíssima da Guiné, também estive em Angola e Moçambique, o senhor sabe que eles comigo abrem-se e não fazem qualquer cerimónia. E vou dizer-lhe mais, eu parece-me que não sou uma pessoa com falta de coragem, tenho andado debaixo de fogo,tenho ido aos sítios mais complicados, mas não tenho é vocação para mártir e ou vocês fazem realmente qualquer coisa, realizam que isto está muito grave ou isto acaba mal. Como lhe digo não tenho vocação para mártir" (...) (Cecília Supico Pinto, Cascais, 22 de novembro de 2004, em entrevista dada à Sílvia Espírito-Santo, op. cit., 2008, pág. 183.)


Contrariamente a Salazar, de quem era íntima (e por isso amada e odiada dentro do próprio regime), a "Cilinha" não manteve com Marcello Caetano a mesma relação pessoal de mútua admiração e confiança. "Salazar era mais forte que Marcelo" (pág. 178).

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Nota do editor:

Último poste da série > 20 de julho de 2024 > Guiné 61/74 - P25765: (De) Caras (304): Não conheci pessoalmente o cap inf Manuel Aurélio Trindade, último cmdt da 4ª CCAÇ e primeiro cmdt da CCAÇ 6 (Rui Santos, ex-alf mil, 4ª CCAÇ e CIM Bolama, Bedanda e Bolama, 1963/65)

segunda-feira, 15 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25744: In Memoriam (507): António Carlão (Mirandela, 1947 - Esposende, 2018), ex-alf mil at inf, CCÇ 2590 / CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadina, 1969/71) (Jorge Alvarenga, amigo da família)


Helena e António Carlão (1947-2018).
Foto dapágina do Facebook
da Helena Carlão, com
a devida vénia

1. O António Carlão (Mirandela, 1947 - Esposende, 2018) foi alf mil at inf da CCAÇ 2590 / CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, 1969/71). Soubemos tardiamente,  cerca de dez depois da sua morte em 14/11/2018 (*). 

Muito recentemente foi postado um comentário no poste P20164 (*), de alguém que conviveu com ele e a família. É dirigido à sua filha Cristina Carlão, que, tanto quanto julgamos saber, tem página no Facebook aqui: Cristina Carlão Areias

Publicamos os comentários de ambos, na "montra grande" do blogue. De outro modo, já ninguém os iria ler (**).  Ficamos a saber, pelo Jorge Alvarenga, amigo da família, que o nosso António Carlão, depois de vir da Guiné, foi viver para Moçambique,  tendo regressado em 1975. 

A última vez que tivemos com ele (e com a Helena) foi em Fão, Esposende, em 1994, quando ele organizaou o 1º encontro anual do pessoal de Bambadinca (1968/71). A Helena (ou Lena) foi "uma das mulheres que foi à guerra", passou parte da comissão do marido
em Bambadinca (c. 1970/71).


(i) Cristina Carlão (*)

Obrigada, fiquei muito comovida, o meu pai falava com muita saudade de todos,a vida deu muitas voltas, mas continuou a amar o próximo e deixou muitas saudades
Filha Cristina

Nota:  vim da guerra na barriga da minha mãe Helena


(ii) Jorge Alvarenga (*):

Menina Cristina Carlão,

Homenagem póstuma ao seu pai... Honra e Glória ao 'Tony'!

Espero que a sua mãe Lena esteja bem..., cumprimentos sentidos e afectuosos do "Hóspede" da sua avó Palmira, Quinta do Canal, Mirandela.

Lembro-me bem das narrativas heróicas do seu pai, estilo cowboy/Chuck Norris,  para sair de Moçambique após a Independência de 1975, dos saltos para o rio Tua e da última prancha (uma brutalidade de altura) no Clube Atlético (Náutico?/Sport?) de Mirandela...

Agora e lendo este Blog, percebo donde lhe vinha a genica e fibra de Herói, não sabia desta sua passagem pela Guiné (um Inferno).

Um dia (há mais ou menos 46 anos):

– Jorge, atira-me esta maçã ao ar e bem alto!!!

Assim fiz, de imediato dois  tiros de caçadeira (uma Santétienne de canos sobrepostos, presumo) soaram e a maçã desfez-se no ar, ainda antes de iniciar a curva descendente em direcção ao solo.

Mais tarde, e noutro episódio memorável, "obrigou-me" (conveceu-me com muita simpatia) a comer da raposa que tinha caçado e que a D.ª Palmira tinha com soberba mestria cozinhado (no forno?)... Estava deliciosa, pese embora eu não quisesse,  porque dizia que era o mesmo que comer cão (tinha 15 anos)..., Foi a primeira e única vez que o fiz.

Por último, ainda guardo os bilhetes do KateKero que ele me vendeu..., jogo de pirâmide, na altura na moda, e que prometia,  aos seus compradores/jogadores, fortunas miríficas e ganhos sem fim... Fiquei sempre com a sensação de que era um Grande Otimista e Sonhador, assim como eu, ainda hoje.

Paz à sua Alma!

Felicidades mil e muita Saúde, para si,  Cristina e toda a família.

Os melhores cumprimentos,
Jorge Alvarenga, "O Hóspede"


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(**) Último poste da série > 11 de julho de 2024 > Guiné 61/74 - P25734: In Memoriam (506): Armando Carvalhêda (1950-2024), "um senhor da Rádio", que passou pelo Programa das Forças Armadas da Guiné, o "PIFAS", entre Abril de 1972 e Setembro de 1973, morre aos 73 anos (Hélder Sousa, ex-Fur Mil TRMS - TSF)

quinta-feira, 11 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25733: O melhor de... A. Marques Lopes (1944-2024) (3): "A morte da professora de Samba Culo ainda me pesa na consciência"...



"Um vaso de flores" (Imagem: Página do Facebook do A. Marques Lopes, 19 de abril de 2023): 

(...) "Reparou melhor no quadro à sua frente. Era de madeira pintada de preto e tinha desenhado a giz branco um vaso com uma flor, tudo muito naïf. Por baixo dele tinha escrito, também a giz branco, um vaso de flores. À sua frente, do sítio onde tinha disparado, estavam quatro carteiras escolares de madeira, muito rústicas e com bancos também de madeira perto de cada uma delas. Virou-se e viu que havia mais duas fileiras atrás também com quatro carteiras cada. Reparou, depois, que o seu guarda-costas, ao pé do quadro, folheava um livro." (...)



Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Geba > CART 1690 (1967/69) > O A. Marques Lopes em 1967, com duas bajudas da localidade .  

Fotos (e legendas): © A. Marques Lopes (2023). Todo os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1.  Nunca é demais relembrar aqui a morte trágica da professora do PAIGC que, tal como o  nosso saudoso amigo e camarada A. Marques Lopes (1944-2024),  então alf mil da CART 1690 (Geba, 1967/68) estava no sítio errado, e à hora errada, na barraca" de Samba Culo, no antigo regulado de Banjara, em 7 de julho de 1967, uma sexta-feira.  Foi morta por um rajada de G3, disparada pelo alf Lopes. Seria de etnia manjaca e cristã.

Foi um duelo de morte, coisa que era raro acontecer naquela guerra de guerrilha e contraguerrilha: os combatentes de um lado e do outro não tinham muitas ocasiões para se olharem olhos nos olhos. Como nos filmes do Faroeste,  o alferes foi mais rápido a puxar pelo gatilho. Fora treinado para matar. Mas só queria não morrer. A morte da professora marcou-o, para o resto da vida (*).

Trinta anos depois, em 2008, o A. Marques Lopes (já como cor inf ref, DFA) voltou lá, a Samba Culo, na margem esquerda do Rio Canjambari, no antigo regulado de Banjara, para fazer contas com os fantasmas do passado. (**)

E deixa-nos, em prosa poética (**), um texto que é revelador dos valores e princípios de um grande ser humano e de um militar português com sentido de honra e consciência moral.

Sobre este episódio da sua vida de combatente escreveu "ad nauseam" (no nosso blogue, no sue livro, na sua página do Facebook...). O fantasma da professora de Sama Culó tê-lo-á perseguido toda a vida. E isso ajuda a explicar  o seu gesto solidário, ajudando mais tarde a construir  a escola de Samba Culo:  fez-se sócio da ONGD "Ajuda Amiga" (****).

Há dois anos e 4 meses, ainda em vida,  em 19 de janerio de 2022, ele deixou esta mensagem pungente na sua página do Facebook:


(...) A morte da professora ainda me pesa na consciência 

Escrevi isto no meu livro “Cabra-cega”. Os nomes são fictícios, não os reais dos intervenientes. Mas há um que denuncio: o Aiveca é o alferes Lopes, (...)



Voltamos a transcrever este excerto que ele selecionou, do livro "Cabra Cega" (205, pp. 389/393), omitindo deliberadamente (?) o pormenor escabroso, patológico.  em que o soldado Cosme (nome fictício, que morrerá mais tarde em combate, em Sinchã Jobel)) "estava em cima da rapariga" (já cadáver...) "puxando-lhe a saia para cima e com a mão já nas cuecas" (pág. 393).  São 16 linhas que ele em 2022 censurou, considerando a cena indigna de um "tuga"...



A. Marques Lopes
(1944-2024).
Foto de LG (2015)
A morte da professora 
de Samba Culo ainda me pesa na consciência

por A. Marques Lopes


(...) Seguiram à beira da mata por uma faixa não alagada. Foram três horas e meia a ser massacrados pelo sol e pelos mosquitos, às vezes a enterrar-se quase até aos joelhos em poças de lama. Viu um ou outro soldado a sair da coluna para ir encher o cantil na água da margem mas não disse nada. Eles só queriam era beber, não se preocupavam e ele já não
 estava  para se chatear com isso. Já não sabia   que era pior, se uma doença ou aquilo  em que andavam metidos.

Pararam finalmente. O PCV, que volteara por ali desde o início e desaparecera algumas vezes, andava agora no ar novamente. O Lindolfo é que sabia, porque estava em contacto, mas Aiveca supunha que, quando desaparecia, era para se ir reabastecer. 

Estavam todos sentados e com as camisas do camuflado abertas. O Sousa Rato estava lixado dizendo que tinham sido muito mais de três quilómetros, tinham sido para aí uns seis ou mais. Aiveca desculpou-se, fora o capitão Lindolfo que lhe dissera que eram três. Alguém se aproximava vindo lado da companhia e reconheceu o alferes Rodrigo.

 
− É, pá, o Lindolfo diz que ficamos aqui um bocado a descansar. Só arrancamos quando o PCV ordenar. Agora é o gajo lá de cima que manda.

−  Lá em cima não se deve estar mal - comentou Aiveca.

Soergueu-se massajando as costas com a mão direita.

− E, olha
 continuou o Rodrigo  − quando estivermos em cima da base,  o Lindolfo diz para te avisar que vamos avançar em linha. Tu pela direita e nós pela esquerda.

Parou para ver se ele tinha entendido.

− Ok, chefe.

Bateu-lhe a pala, gozão, e esticou-se novamente. O Rodrigo não lhe ligou mais e foi-se embora.

Foi pouco descanso. Muito pouco tempo depois de o Rodrigo se ter afastado e de o PCV ter passado por cima uma vez, mas bastante por alto, depreendeu que não queria denunciar a presença da tropa ali. Notou, depois, que os soldados da companhia se estavam todos a levantar com as G3 na mão.

 Andor, pessoal!  
− disse para os seus.

Meteram pela mata atrás dos outros. Após vinte minutos tiveram de parar, os da frente tinham feito o mesmo. Já deviam ter andado um quilómetro mas parecia-lhe que ainda havia muita mata pela frente. Estava a criticar mentalmente o Guilhermino por também não saber calcular as distâncias quando vieram de longe, mas não muito, os sons de numerosa fuzilaria e rebentamentos.

−  É o capitão Guilhermino que está a levar  
− disse para o Belmiro, que estava com ele à cabeça.

Os da companhia retomaram a marcha, mas de forma mais acelerada. Deu indicação para fazerem o mesmo. Dez minutos andados e as árvores foram substituídas por arbustos, não muito altos mas que os tapavam. Os da companhia estavam parados e em linha. 
Eram três e meia da tarde. Fizeram igual. Os furriéis e o Belmiro estavam ao pé dele quando o Rodrigo lhe viera dar o recado, tinham ouvido as indicações. Começaram a andar. As G3, que tinham andado descansadas a tiracolo ou aos ombros como enxadas, iam agora nas mãos com ar ameaçador de sanha assassina. 

Após andarem uma trintena de metros lá estava a base, mesmo ali, quase a tocar-lhes. Do lado esquerdo, na direcção dos da companhia eram talvez umas trinta casas, algumas com telhados de zinco. Em frente dele uma barraca rectangular com paredes e cobertura de capim, estava bastante separada das casas. O Guilhermino continuava a levar. Era do outro lado, percebia-se bem agora.

Quando avançaram todos rapidamente, quase em corrida, Aiveca e os seus entraram de rompante na barraca. Os do Lindolfo, do outro lado, já tinham começado às rajadas. Viu logo que era uma escola. Uma rapariga que estava ao pé do quadro tirava uma kalashnikov que estava lá pendurada.

Levantou a mão esquerda ao alto para ninguém disparar.

− Tá quieta! Firma lá!  
− gritou-lhe.

Mas ela não. Com a arma já empunhada meteu o dedo no gatilho. Disparou instintivamente. Ela caiu para trás e as balas da kalash furaram o capim do tecto.

Ficou estático de olhos esbugalhados fitados nela. A cabeça escaldava-lhe e o coração parecia querer soltar-se. Os soldados puseram-se à volta dela a observar e a comentar. A sua rajada acertara-lhe na barriga e no peito. Era bonita e devia ter vinte e poucos anos. Alguns levantavam a cabeça para Aiveca mas, ao ver a cara que tinha, preferiam não dizer nada.

 
− Meu alferes, se não tivesse disparado,  ela matava-o − acabou por dizer o sargento Belmiro.

Os outros apoiaram-no. Acalmou um bocado. Reparou melhor no quadro à sua frente. Era de madeira pintada de preto e tinha desenhado a giz branco um vaso com uma flor, tudo muito naïf. Por baixo dele tinha escrito, também a giz branco, um vaso de flores. À sua frente, do sítio onde tinha disparado, estavam quatro carteiras escolares de madeira, muito rústicas e com bancos também de madeira perto de cada uma delas. Virou-se e viu que havia mais duas fileiras atrás também com quatro carteiras cada. Reparou, depois, que o seu guarda-costas, ao pé do quadro, folheava um livro.

 Deixa-me ver isso, Carmelita.

 Estão ali uma data deles por trás do quadro, meu alferes.

Tinha uma capa vermelha. Na metade superior e em letras grandes brancas dizia: "O Nosso Primeiro Livro de Leitura". Na outra metade tinha a reprodução a cores da fotografia de um grande ajuntamento com um cartaz: O PAIGC Vencerá. Folheou-o também. Eram as várias letras e ditongos do alfabeto com vários exemplos de palavras portuguesas. Havia também alguns textos sobre a luta deles.

− Meu alferes, venha ver o que está aqui.

Era o Martins ajoelhado a um canto ao pé de uma mala aberta.

−  Carmelita, guarda-me este livro no bolso das calças.

Foi ver o que tinha o Martins. Ficou pasmado assim que olhou. Era um casulo para a missa. Ajoelhou-se também e pôs-se a remexer no que estava na mala, cada vez mais pasmado. Estava lá tudo o que bem conhecia da liturgia da missa: o casulo, a estola, a alva e o cíngulo para a apertar. Aiveca estava completamente atónito. (...)



(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos, itálicos, parênteses retos: LG)



Guiné > Região do Oio > Carta de Farim (1954) (Escala 1/50 mil) > Detalhe > Posição relativa de Samba Culo, na margem esquerda do Rio Canjambari, a sudoeste de Canjambari, afluente do rio Farim, e aonde havia, em 1967, uma "barraca" do PAIGC, com uma escola e uma professora.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)
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(**) Vd. poste de 8 de março de 2013 > Guiné 63/74 - P11215: Blogpoesia (327): In Memoriam: A professora de Samba Culo, morta em 7/7/1967, de Kalash na mão (A. Marques Lopes)

(***) Postes anteriores da série >