sábado, 8 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25621: Os 50 anos do 25 de Abril (27): "A Academia Militar, os Seus Militares e a Revolução dos Cravos", Exposição relativa aos 50 anos do 25 de Abril na Academia Militar


1. Mensagem do nosso camarada António Carlos Morais da Silva (ex-Instrutor da 1.ª CCmds Africanos em Fá Mandinga; Adjunto do COP 6 em Mansabá e Comandante da CCAÇ 2796 em Gadamael, 1970 e 1972), com data de 8 de Junho de 2024:

Caro Vinhal
Julgo não ter enviado a notícia da exposição na Academia Militar homenageando os seus militares participantes no 25 de Abril (Otelo, Garcia dos Santos, Morais Silva....).
A ser assim, como julgo, aqui vai informação e uma foto do dia da inauguração. Se considerar útil agradeço anúncio no blogue.

Cumprimentos cordiais
Morais Silva

Dia da inauguração da Exposição
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Nota do editor

Último post da série de 6 DE JUNHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25612: Os 50 anos do 25 de Abril (26): A exposição, na Gare Marítima de Alcântara, sobre os antecendentes e a origem (com enfoque na guerrra colonial) e os protagonistas do 25 de Abril de 1974... Para ver até 26 de junho - Parte I: Os bodes expiatórios do regime

Guiné 61/74 - P25620: Os nossos seres, saberes e lazeres (631): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (157): Em Tavira, a Vila a Dentro, em profundo derriço com as suas imponentes muralhas (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Fevereiro de 2024:

Queridos amigos,
Não é mais do que o passeio à volta de muralhas, não se trata de um interrogatório à História, nem se veio fiscalizar se há para aqui obras bizarras, Tavira oferece aos seus cidadãos e a quem a visita esta singularidade de ter um casco histórico inserido, adossado, participando do benefício de uma lendária construção militar. Por aqui se cirandou, agradado ou um tanto inquieto, há evidentes situações de que se está a asfixiar a fruição dos panos de muralha, a entaipar vistas, descontinuando a contemplação de um equilíbrio que cede à ganância dos construtores. O resultado final ainda continua positivo, mas assiste ao visitante deixar algumas questões a todos aqueles que queiram ver o seu património (também nosso) protegido e valorizado.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (157):
Em Tavira, a Vila a Dentro, em profundo derriço com as suas imponentes muralhas


Mário Beja Santos

Tenho para mim que um dos encantos da cidade de Tavira se prende com o intenso e permanente diálogo dos vestígios das muralhas com a organização da chamada Vila a Dentro. Porque há uma parte de Tavira que se fixa, contorna, confronta, se embebe, nos panos da muralha. Que o visitante inicie a sua viagem fora delas, por exemplo, começando nos Paços do Concelho, passa ao lado do Núcleo Museológico Islâmico, vire à direita, dá com a Porta de D. Manuel I, esta até parece que está suportada por dois edifícios paralelos, dá para imaginar o que houve antes deles e até que aproveitamento se faz da muralha um suporto à habitação. Desça-se, começa-se a circundar todo o exterior, nada de ter a tentação de visitar a Igreja da Misericórdia, a muralha fenícia, o Palácio da Galeria, há tempo para mirar a Torre do Relógio na Igreja de Santa Maria do Castelo, e estamos agora no castelo, foi a partir dele que se desenvolveram as muralhas da cidade. O seu interior está ajardinado, quem subir à torre octogonal vai desfrutar de uma panorâmica espetacular, logo no primeiro plano os telhados de quatro águas.

Edifícios encostados a panos de muralha é acontecimento banal no país e na Europa, quem vive em Lisboa e se passeie no interior do Castelo de S. Jorge encontrará casas adossadas dentro e fora, e há mesmo aspetos curiosos (continuamos a falar do Castelo de S. Jorge) em que no exterior e próximo de um pano de muralha se ergue um belo templo religioso, a Igreja do Menino de Deus. O que atrai o visitante, neste Aquém da Ponte, é namoriscar como se processa o entrosamento entre todos estes vestígios da muralha, as habitações existentes, os espaços circundantes e, vamos lá, se há uma valorização do património de molde a não entaipar a contemplação das muralhas (e não se esconde um certo pesar por se ver construções atentatórias de uma fruição visual, houve para ali autorizações de construção de valia mais do que duvidosa).

E sem mais, vamos percorrer o perímetro e o que há de circundante das muralhas tavirenses, há uma impressionante beleza, desleixos a remediar e erros na autorização de empreendimentos que deviam servir de lição aos cidadãos hipotecados no respeito que é devido a estes bens patrimoniais que dão tanta graciosidade a Tavira.

A porta de D. Manuel I, um dos monumentos-ícone da cidade
Só espero que não se venha a entaipar esta vista, afogando os terrenos com hotéis e habitação
Assim sim, é uma beleza ver esta torre de vigia que parece despontar do empreendimento
Mostra-se este pano de muralha em dois sentidos, aqui aparentemente só há à vista a degradação do que terá sido um torreão, mas fica-se na dúvida se não cortaram o pano de muralha para pôr construção
Salvo melhor opinião, houve para aqui uma atrocidade, a que título se meteu aquele paredão, interrompendo o enfiamento da muralha, quem autorizou a sua demolição?
Sim, aqui há proteção, por favor, não venham agora sufocar a vista deste impressionante pano de muralha metendo para aqui construção habitacional ou hoteleira
O jardim do castelo está muito bem tratado, apanhei em boa floração este cipó, também conhecido por flores de S. João, este jardim é um dos atrativos da cidade, é de visita obrigatória, é quase certo que houve esmero nas intervenções feitas, são panos de muralha que não se deixaram degradar, dá encanto por aqui passear e ver uma boa parte da cidade de cima para baixo.
O castelo parece ter ganho vida ao nível dos seus fundamentos, a construção privada e até mesmo a piscina não entravam a vista e, ponto curioso, até parece correto dizer-se que há mais castelo fora do castelo, veja-se aquela torre, que parece de menagem, lá em cima, espera-se que aquelas duas gruas não estejam a construir edificações fora da escala.
Houve cuidado no elemento urbanístico, o bom propósito de deixar ao cidadão poder aproximar-se de umas muralhas que, mais tarde ou mais cedo, vão carecer de uma manutenção adequada.
Ao vermos estas três imagens fica-nos certamente umas perguntas por responder, como as manter como bons exemplares de património militar, como garantir que se mantenha um bom diálogo entre o militar e o civil, entre o passado que exige salvaguarda e o que se melhora por já estar construído e como se garante que o que bate à porta para construir de movo algum acarretará degradação visual. Responda bem quem melhor estiver habilitado.

Aqui finda a visita a Tavira, daqui segue-se para Belas, que além dos conhecidos bolos que dão pelo nome de Fofos tem património que merece seguramente uma cuidada visita.

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 1 DE JUNHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25591: Os nossos seres, saberes e lazeres (631): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (156): Em Tavira, para visitar Balsa, cidade romana, que existiu há cerca de 2000 anos (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P25619: Elementos para a história do Pel Caç Nat 52 (Missirá e Bambadinca, 1966/74) - Parte I: os comandantes, cinco dos quais são nossos grão-tabanqueiros: por ordem de antiguidade militar, Henrique Matos, Mário Beja Santos, Joaquim Mexia Alves, António Sá Fernandes e Luís Mourato Oliveira


Emblema do Pel Caç Nat 52 (Enxalé, Missirá, Bambadinca, Mato Cão, 1966/74)



Lisboa > Sociedade de Geografia de Lisboa > 6 de março de 2008 > O periquito Joaquim Mexia Alves, à esquerda, e o velhinho Henrique Matos mostram o seu regozijo pelo lançamento do livro "Na Terra dos Soncõ", do Beja Santos (ao centro). 

Os três têm em comum o facto de, em diferentes épocas, terem comandado os valentes soldad0s do Pel Caç Nat 52, entre 1966 e 1973 (/Enxalé, Missirá, Bambadinca, Mato Cão, 1966/74). O último comandante do Pel Caç Nat 52 foi o Luís Mourato Oliveira, nosso grão-tabanqueiro nº 730, que foi alf mil inf, de rendição individual, na açoriana CCAÇ 4740 (Cufar, 1972  até agosto  de 1973) e, no resto da comissão, no Pel Caç Nat 52 (Setor L1 , Bambadinca, Mato Cão e Missirá, 1973/74).


Lisboa > Casa do Alentejo > 6 de março de 2008 > Em primeiro plano, à direita, o nosso celebrado autor, Berja Santos, rodeado por três outros comandantes de pelotões de caçadores nativos da Guiné: o Henrique Matos (Pel Caç Nat 52), o Jorge Cabral (Pel Caç Nat 63) e o Joaquim Mexia Alves (Pel Caç Nat 52)... Todos os quatro passaram por Missirá (Sector L1, Bambadinca), em diferentes épocas.


Fotos (e legendas): © Henrique Matos (2008). Todos os direitos reservados. Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Às voltas com os "brasões, guiões e crachás" dos Pelotões de Caçadores Nativos (*), tínhamos inevitavelmente que revisitar  a "história"   do Pel Caç Nat 52, de que temos cerca de 200 referências e vários representantes na Tabanca Grande: nada menos do que cinco comandantes, o que é caso único:  Henrique Matos, Mário Beja Santos, Joaquim Mexia Alves, António Sã Fernandes e Luís Mourato Oliveira. 

Esta subunidade, formada tal como as outras por graduados  e especialistas metropolitanos e praças do recrutamento local (fulas e mandingas), atuou sempre no Leste, região de Bafatá, sector L1 (Bambadinca).

Quisemos saber mais sobre alguns dos seus comandantes e do historial do seu algo estranho brasão, que ostenta a figura de um gavião (ave de repina qeur não existe na Guiné) e de uma caveira, e que tem por lema ou divisa "Matar ou Morrer"...

Perguntei a alguns dos nossos tabanqueiros se o emblema era do tempo do açoriano Henrique Matos, "pai-fundador" (1966/68)...Infelizmente, deste e doutros Pel Caç Nat,  "não reza a  história", há registos  dispersos, e os próprios  livros da CECA (Comissão para o Estudo das Campanhas de África) são omissos sobre os seus feitos... 

2. Eis algumas respostas que obtive, por mail ou comentários (*)

(i) Joaquim Mexias Alves: 

(...) Julgo que faltam 2 Comandantes no Pel Caç Nat 52.

O Alf Wahnon Reis, julgo que antes do Beja Santos, e  foi apenas por pouco tempo.

E o Alf António Sá Fernandes, que foi a seguir a mim.

5 de junho de 2024 às 15:27


(ii) Luís Graça:

Sim, Joaquim, a seguir ao Beja, veio o Nelson Wahnon Reis, natural de Cabo-Verde... Mas, infelizmente, nunca deu a cara aqui no blogue. Não temos notícias dele ...

Os Wahnon era gente conhecida em Cabo Verde... Convivi há uns largos anos com um Wahnon, economista, do Banco de Portugal, que não fez a guerra, viveu sempre em Lisboa, mas terá sido militante ou simpatizante do PAIGC na juventude... Possivelmente era parente do Nelson.

O Nelson Wahnon Reis, o periquito do Mário Beja Santos, não terá sido bem recebido pelos guineenses (fuklas e mandingas) do Pel Caç Nat 52... Por ser justamente cabo-verdiano...

Vê aqui o texto do Mário (Poste P 3266, de 3 de outubro de 2008) (**)

Quanto ao António Sá Fernandes, sim, é membro da nossa Tabanca Grande e sucedeu-te a ti, Joaquim, no comando do glorioso Pel Caç Nat 52. Vivia em Valença em 2008 (***)

Tem 7 referências no nosso blogue:

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/search/label/Ant%C3%B3nio%20S%C3%A1%20Fernandes


(iii)  Mário António Beja Santos (6 de junho de 2024, 10;11):
 
 Meu caro Luís, a autoria do crachá do Pel Caç Nat 52 foi do então furriel Zacarias Saiegh, deu discussão com azedume, foi-me apresentada como um facto consumado, não gostei daqueles traços apiratados, encolhi os ombros, o meu crachá foi devorado pelo fogo da flagelação de 19 de março de 1969 que só me deixou os ferros da cama. 

Concordo contigo, uma das provas de completa discriminação era não exigir aos pelotões de caçadores nativos, comissão após comissão, relatórios que contribuíssem para a sua história, atividade operacional, localização, composição dos efetivos. 

Já não vale a pena chorar sobre o leite derramado (...) 


(iv) Joaquim Mexia Alves (6 de junho de 2024, 10:26):
 
Caro Luís: Pois eu soube que o Nelson Wahnon Reis esteve pouco tempo no 52 precisamente por ser cabo-verdiano e os militares do 52 não o quererem como comandante.

Quanto ao emblema, no meu tempo limitei-me a mandar fazer em Lisboa novos emblemas que os militares ficaram muito satisfeitos de receberem.

O desenho ou motivo, de que nunca gostei, são muito anteriores a mim, mas obviamente não lhe mexi e assim o aceitei. (...)

(v) António Sá Fernandes (7 de junho de 2024, 22:32) (foi alf mil. CART 3521 e Pel Caç Nat 52, 1971/73)
 (foto à esquerda)

Vivia e vivo em Valença!

Um abraço para todos,

 Sá Fernandes


(vi) Henrique Matos  (8 de junho de 2024, 00:12)

Caro Luís

Estive a gozar uns dias nas ilhas de bruma (como sabes foi lá que nasci e cresci) e não houve tempo para ligar o PC. 

Deparei-me agora com a estória dos crachás e vou meter o bedelho na conversa. Uma nota: tenho um problema com datas, varreram-se da memória. Já pedi uma cópia da folha de matrícula ao Arquivo Geral do Exército. 

No meu tempo o pelotão não tinha brasão/crachá e nunca se falou nisso. O autor (de mau gosto,  na minha opinião) terá sido o malogrado Zacarias Saiegh quando comandou o pelotão em Missirá, antes da chegada do Beja Santos. 

Também sei, pelo testemunho dos meus furriéis, que durante algum tempo (pouco) comandou o pelotão, também em Missirá, um alf mil Azevedo, natural de Castelo Branco, mas do qual não têm mais qualquer referência.

Para a história do 51 posso adiantar que o seu 1.º comandante foi o alf mil José Manuel Dias Perneco, vive em Lisboa, estive com ele no encontro dos pelotões. Interessante foi saber que o Perneco foi substituir o 1.º nomeado que deu à sola antes de embarcar para a Guiné. (...)

(vii) Luís Mourato Oliveira (23 de julho de 2013 às 16:30) (foto à direita):
 
(...) Caros camaradas, estive ao serviço entre 1972 e 1974 na Guiné. Primeiro na CCAÇ  4740 e depois no Pel Caç Nat 52 que desmobilizei e onde terminei a comissão já após o 25 de Abril.

Sou habitual visitante do blogue. Conheci pessoalmente o camarada Luís Graça no almoço de 2012 em Monte Real [VII Encontro Nacional da Tabanca Grande], embora sejamos originários da região Oeste, ele da Lourinhã, eu da Marteleira.

(...)  Guardo com enorme carinho e saudade aquela terra e aquele povo com quem tive o privilégio de servir e que,  quanto mais tempo passa e mais a tecnologia nos inunda e consome, mais apreço tenho pela sua cultura e tradições, sobretudo no que concerne ao respeito pelos homens grandes, pelas crianças e pelos seus mortos e história. (...)

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Notas do editor:
 
(*) Vd. poste de 4 de junho de 2024 >  Guiné 61/74 - P25600: O armorial militar do CTIG - Parte I: Emblemas dos Pelotões de Caçadores Nativos: dos gaviões aos leões negros, das panteras negras às águias negras...sem esquecer os crocodilos

(**) 3 de outubro de  2008 > Guiné 63/74 - P3266: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (46): Chegou o meu periquito

 (***) Vd. poste de 22 de Abril de 2008 >  Guiné 63/74 - P2788: Tabanca Grande (64): Apresenta-se Sá Fernandes, ex-Alf Mil da CART 3521 e Pel Caç Nat 52 (Guiné 1971/73)

Guiné 61/74 - P25618: Casos: a verdade sobre... (43): sim, a situação político-militar agravou-se em 1973/74, no CTIG, mas o PAIGC não fez a declaraçáo unilateral de independència... em Madina do Boé: um erro toponímico sistemático que a nossa historiografia militar anda a replicar há meio século...

 

Imagem de satélite (Cortesia de Google Earth)  com indicação de algumas das tabancas situadas na região oriental do Boé. Refere-se, também, Tiankoye, situada em território da República da Guiné, local por onde circularam as forças do PIAGC que atacaram Madina do Boé, em 10 de Novembro de 1966, e onde morreu o cmdt Domingos Ramos (1935-1966). 

Lugajole, Vendu-Leidi e Lela (esta já no território da Guiné Conacri) estão mais próximos do local "misterioso" onde o PAIGC fez a declaração unilateral da independência, a única zona acidentada da Guiné- Bissau (com pequenas colinas que chegar aos 100, 200 e até 300 metros, nas falda do Futa Jalon)... 

Madina do Boé, seguramente, é que não foi o "berço da Nação", embora desse mais jeito ao PAIGC para efeitos propagandísticos...  De Madina do Boé até á fronteira (passando por Vendu-Leidi), a leste, são 70 km, em linha reta. Para sul, são 10 km. (Vd. mapa da antiga província da Guiné, 1961, escvala 1/500 mil)

Naquele tempo não havia GPS, as fronteiras eram porosas, o Boé não tinha estrada para a fronteira a leste (nem picadas transitáveis em plena época das chuvas como era o caso em setembrto de 1973)... 

E todas as testemunhas (os protagonistas) do lado do PAIGC já morreram: o Luís Cabral não se lembrava do nome da tabanca mais próxima, o Vasco Cabral dizia que era Vendu Leidi... Fica a amnésia da História (e de um povo).. .

De qualquer modo, era preciso "ter lata"  para declarar "urbi et orbi" a independência da Guiné... num país estrangeiro. Mesmo assim estava garantida, na ONU, o reconhecimento imediato da nova república logo por cerca de 80 países... 

Foi a grande jogada de mestre do Amílcar Cabral desenhada antes de morrer... E o pior erro estratégico de Spínola, ainda "periquito",  a retirada das NT do Boé (Beli, Madina e Cheche).  E acresente-se: do Hélio Felgas, profundo conhecedor do território, mas que subestimou a importância do Boé para a logística e a propaganda do PAIGC.... De qualquer modo, quem não tinha cão, caçava com gato (*)...

Infografia: Jorge Araújo (2021). Legenda: JA/LG












Painel, reproduzido com a devida vénia, da exposição "MFA 25A - O Movimento das Forças Armadas e o 25 de Abril", Lisboa, Gare Marítima de Alcântara (Abril-junho de 2024)

1. A propósito da exposição "MFA 25A - O Movimento das Forças Armadas e o 25 de Abril" (**). que está a decorrer na Gare Marítima de Alcàntara, em Lisboa, de 14 de abril a 26 de junho de 2024 (no horário  das 14h00 às 20h00, de quarta feira a domingo), já chamámos a atenção para um erro factual imperdoável: dar Madina do Boé como local onde o PAIGC proclamou a independência unilateral da Guiné-Bissau, em 24 de setembro de 1973 (ver imagem do painel, acima reproduzida, com o topónimo sublinhado a vermelho, por nós)

Não sabemos de quem é a autoria do texto. Pode ser um deslize, mas é lamentável.  Hã anos que temos batalhado, aqui no nosso blogue, contra este "embuste histórico" do PAIGC, infelizmente replicado  por historiógrafos militares e jornalistas portugueses, para não falar de académicos, uns e outros pouco ou nada conhecedores da geografia  da região do Boé. (*).  

Fica aqui o nosso protesto: damos importância, no nosso blogue, à "verdade factual" (***)... De qualquer modo, continuamos a aconselhar a visita à exposição, a qual, de resto, utiliza alguns materiais do nosso blogue (fotos do Jose Casimiro Carvalho e do Miguel Pessoa).
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Notas do editor:

(*) Vd. postes de:

5 de abril de 2021 > Guiné 61/74 - P22106: Um olhar crítico sobre o Boé: O local 'misterioso' da proclamação solene do Estado da Guiné-Bissau, em 24 de setembro de 1973, em plena época das chuvas - Parte I: A variável "clima" (Jorge Araújo)

21 de abril de 2021 > Guiné 61/74 - P22122: Um olhar crítico sobre o Boé: O local 'misterioso' da proclamação solene do Estado da Guiné-Bissau, em 24 de setembro de 1973, em plena época das chuvas - Parte II: Missão a Gaoual (Jorge Araújo)

12 de junho de 2021 > Guiné 61/74 - P22275: Um olhar crítico sobre o Boé: O local 'misterioso' da proclamação solene do Estado da Guiné-Bissau, em 24 de setembro de 1973, em plena época das chuvas - Parte III: A Brigada de Fronteira de Gaoual e o apoio no controlo dos movimentos na Região de Lela em novembro de 1966 (Jorge Araújo)

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2021/06/guine-6174-p22275-um-olhar-critico.html

Mas também:


20 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3920: Dossiê Madina do Boé e o 24 de Setembro (2): Opção inicial, uma tabanca algures no sul, segundo Luís Cabral (Nelson Herbert)

1 de março de  2009 > Guiné 63/74 - P3955: Dossiê Madina do Boé e o 24 de Setembro (3): O local estava minado e o PAIGC sabia-o (Jorge Félix)

17 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4042: Dossiê Madina do Boé e o 24 de Setembro (4): Ajudas de memória (Abreu dos Santos)

9 de outubro de  2009 > Guiné 63/74 - P5079: Dossiê Madina do Boé e o 24 de Setembro (5): Lugajole, disse ele (Luís Graça)


(***) Último poste da série > 24 de janeiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25104: Casos: a verdade sobre... (42): O "making of" do livro do Amadu Djaló (1940 - 2015), "Guineense. Comando, Português" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, il.) (Virgínio Briote)


Guiné 61/74 - P25617: II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte I: "E as crianças, meu Deus, porque lhes dais tanta dor?!"

 


Timor Leste > Liquiçá, Manati, Boebau > Outubro de 2017 > Aqui estava a erguer-se a futura escola luso-timorense de São Francisco de Assiz, um projeto da ASTIL.


Texto e fotos: © Rui Chamusco  (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Fundadores: Rui Chamusco,
Glória Sobral e Gaspar Sobral


1. Segunda viagem e estadia do Rui Chamusco (de 27 de janeiro a 14 de junho de 2018) (*), em Timor Leste: foi uma longa estadia de quatro meses e meio, que culminou com a inauguração da Escola de São Francisco de Assis (ESFA), em 18 de março de 2018, em Boebau, Manati, Liquiçá.


O Rui Chamusco, nosso grão- tabanqueiro nº 886, é professor de música, do ensino secundário, reformado (e homem de sete instrumentos), natural da Malcata, Sabugal, a viver na Lourinhã. 



Rui Chamusco e Gaspar Sobral (2017).
A família Sobral tem um antepassado
comum que foi lurai, régulo,
no tempo dos portugueses.
As insígnias do poder (incluindo a espada)
estão na posse do Gaspar,
que vive em Coimbra.
Foto: LG (2017).


Tem-se dedicado de alma e coração a um projeto de solidariedade no longínquo território de Timor-Leste (a 3 dias de viagem, por avião, a cerca de 15 km de distância em linha reta). 

É cofundador e líder da ASTIL - Associação dos Amigos Solidários com Timor-Leste, com sede em Coimbra. 

Através da família Sobral, e das crónicas do Rui, vemos seguramente melhor Timor-Leste, de ontem e de hoje: uma visão macro e micro. Enfim, um privilégio, para os nossos leitores.  E um obrigado ao nosso cronista, extensivo ao Gaspar, ao Eustáquio, à Aurora, à Adobe e outros protagonistas destas histórias (LG).

 

II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte I


27.01.2018, sábado - Daqui,  Timor...

Pela segunda vez na minha vida piso terras do Oriente, mais propriamente Timor Leste. Eram as 13.30 horas do dia 27 de janeiro de 2018, sábado.

Depois das formalidades habituais a que fui sujeito, verifico que a minha mala de porão foi brutalmente aberta, não sei aonde, à procura de não sei o quê, pois nada faltava do que em Portugal nela foi metido. Apenas o computador apresentou o ecrâ estragado. Talvez um dia eu entenda porquê. Felizmente as autoridades aduaneiras compreenderam a situação e facilitaram o levantamento da mala.

Cá fora estavam os braços de um bom grupo de amigos, que à vez, apertavam o “malai” num abraço bem sentido, desejando-me um bom regresso à sua terra.

De volta a Ailok Laran, passando pelo cemitério de Santa Cruz para prestarmos homenagem ao pai do Gaspar e do Eustáquio, fomos recordando sítios, lojas, ruas, bairros, caminhos e vielas que, de salto em salto, nos levaram ao destino Bairro Pité -Ailok Laran.

À chegada, mais uma cena de beijos e abraços de muitas crianças e pais que ansiosamente nos esperavam. Muitos olhares de curiosidade, notícias sobre padrinhos e madrinhas, visita aos melhoramentos na casa do João Moniz (verdadeiro nome do Eustáqui), aposentos onde vamos permanecer a maior parte do dias.

Um jantar timorense: arroz, flor de papaia, mano (frango), água. Depois de mais uma conversa sob o céu estrelado, foi a hora do descanso e retempero corporal pelo sono.

28.01.2018, domingo - Carne de cão

O tempo para conversas neste momento é abundante. Por isso a cada instante há cenários de quem está à nossa volta, que nos dispomos a ouvir. Neste caso é o marido da Assun, que é de origem chinesa, e que na sua terra caçava macacos paravender. Diz ele que a carne de macaco é muito apreciada, e que quem dela come fica mais ágil e leve ( e macaco também?!)... e que a canja de carne de macaco afasta os maus espíritos. 

E esta, hein!!!...  Por isso nada me espanta que haja garrafas de licor com lagartos e outras coisas lá dentro.

Miséria a quanto obrigas!

Hoje o Eustáquio revelou que durante os três anos que ele, a irmã Benedita e a mãe estiveram em fuga no tempo da invasão indonésia,  chegavam a comer a proteção, a pele de vaca ou de cabrito,  que cobria o manípulo das catanas. E que o suor que se acumulava na folha das mesmas sempre que eram transportadas nos sovacos era bebido (lambido) com sofreguidão.

Como é que não devemos admirar estes heróis, que depois de tanta privação se ergueram e reconstruiram as suas vidas?

29.01.2018, segunda feira -  Valente, o filho de Vitor

Hoje, logo de manhã, estava combinado ir à escola do Valente, Fatumeta. Valente é um dos 13 filhos do falecido Vitor, que frequentava o sétimo ano, e que desde que morreu o pai não mais voltou à escola. Primeiro pela dor de ter perdido o baluarte da casa, depois porque a família não tem posses para pagar o dinheiro das fardas e outros. Informado sobre o caso prometi que iria resolver a situação.

Às 8 horas da manhã estava pronto para a irmos à escola de Fatumeta. Mas não tardou o recado: o Valente não pode ir à escola porque está doente. Tem febre... Foi então que resolvi ir a sua casa (uma humilde barraca a rebentar de pessoas e deobjetos), munido de dois comprimidos de Brufen, e armado em médico lhe ordenei: "Tomas um agora e outro daqui a oito horas". 

Fui acompanhado pela Assun e pela Adobe, minha afilhada. A nossa visita, o nosso gesto foi seguido pela gente do bairro(?) e logo aí me senti compensado pelos sorrisos e saudações que nos dirigiam. À noite voltamos lá a fim de saber se o remédio tinha dado resultado. Assim foi.

Medi-lhe a febre, com o termómetro que entretanto fui comprar, e o Valente estava em forma para prosseguirmos esta ação de reintegração escolar.

31.01.2018, quarta feira - O Valente volta à escola donde nunca deveria ter saído

O regresso de Valente à escola foi bem sucedido. Depois de uma longa caminhada por veredas e becos a torto e a direito, e sob um calor sufocante devido à alta densidade de humidade, durante uns quarenta minutos lá chegamos à escola: eu, oValente, a Adobe e a Marcelina. Recebidos com simpatia por parte de alguns funcionátios e professores, fomos atendidos por um elemento do conselho diretivo que amavelmente nos informou do que era necessário fazer. 

Feito o pagamento de 43 dólares destinados às duas fardas e a despesas escolares, pudemos fazer o caminho de volta. A professora Ina encarregou-se de telefonar para indicar o ano e a turma em que o Valente ficará incluido. Logo ao princípio da tarde chegou o a informação: O Valente frequentará a turma E do 7º ano, e terá a primeira aula às 13 horas. 

Missão cumprida!...  Mas eu pergunto: como é que por 43 dólares se deixa uma criança fora da frequência escolar? A família não pode pagar, e eu sou disso testemunha, Mas não doerá a cabeça a quem podendo resolver o problema o deixou arrastar? Quem puder entender que entenda...

Turmas com 50 alunos!

Pois é! Pensem o que quiserem, mas não posso deixar passar esta observação.

Enquanto estamos esperando de ser atendidos, e em conversa com a professora que nos fazia companhia, vim a saber que as turmas nas escolas de Timor têm como norma 50 alunos. Ouviram bem? O dobro das turmas das nossas escolas portuguesas. Como pode um professor dar a devida atenção a tantos alunos em simultâneo?! 

“Saimos daqui com uma grande dor de cabeça”, comentava a colega timorense. Nós em Portugal protestamos tanto quando as turmas ultrapassam os 25/30. Claro que não somos nós que estamos mal. “Com a dor dos outros aguento eu bem”. Mas é bom apercebermo-nos de que há outros em condições bemdiferente, bem piores que as nossas.

01.02.2018, quinta feira - "Fa Recadu", o culto dos mortos

Em Ailok Laran, sentados na “esplanada” gozando a fresca da manhã, chegam duas moças bem vestidas que com simplicidade vêm fazer um “Fa recadu”. Fiquei curioso em saber o que se passava. Foi então que me deram a seguinte explicação: 

Trata-se de um “Fa Recadu” - “da parte da família do defunto fazemos chegar os cumprimentos a toda a vossa família, e anunciamos que na próxima sexta feira, à noite, iremos fazer a vigília do desluto até de manhã, que será seguida de missa. E depois vamos todos ao cemitério depôr flores. Depois vamos para casa, onde será servido num simples café. As pessoas que quiserem podem ficar até ao dia seguinte para a festa”.

Este ritual faz parte das cerimónias de luto quando morre alguém, a saber: “a flor amarga” para a família mais chegada. Comem e vão ao cemitério rezar e e depôr flores; “a flor doce” para agradecer a todas as pessoas que acompanharam a família na sua dor. Todos os que cheiraram a morte devem participar nos festejos. 

Ainda fui informado de que, os parentes mais chegados devem guardar o luto durante um ano: as mulheres usam camisola preta ao avesso e os homens uma fita preta no braço.

Como diz o Eustáquio, a memória e a presença do falecido deve ser respeitada e celebrada, custe o que custar. É o respeito e a veneração por quem tanto bem nos fez.

 Temporal e brincadeira

Chuva torrencial com alguns relâmpagos e trovões à mistura findam a tarde e a noite de hoje. Vento forte derrotou algumas árvores do pátio. A intempérie que deflagrou parecia querer atemorizar a gente, mas não conseguiu.

Crianças de tenra idade desafiavam o vento e a chuva. Todos molhados divertiam-se com naturalidade nas poças de água ou em jogos improvisados; nadavam em seco, bachicavam-se uns aos outros curtindo a situação. Assim mesmo. Brincavam...Gente rija, sem preconceitos, capaz de tudo fazer sem nada ter. “Simples como as pombas...”

02.02.2018, sexta feira -  Como ir à montanha com este tempo ?

O sol está de volta, mas não sabemos por quanto tempo. As condições climatéricas continuam instáveis. Esta situação traz-nos alguma preocupação e ansiedade, pois a ida à montanha, a Boibau, torna-se perigosa. Árvores caídas, deslizamentos deterras, obstáculos sem conta. Dizem-nos que o “motor” (motorizada) é o melhor meio de transporte, mas que mesmo assim será preciso que o pendura desça de vez em quando para empurrar a mota devido à lama que bloqueia os caminhos.

Pois!...se tiver que ser, que seja!...

“Os discípulos de Emaús”

Companheiros de jornada e de ideais, de vez em quando damos connosco a relatar episódios pessoais das nossas vidas, partilha que nos faz cada vez mais amigos. E então o Gaspar, começando a contar, é um livro aberto com muitas páginas. Nem mesmo que se repita (alguns episódios já foram contados diversas vezes) acaba sempre por ter graça, porque o seu envolvimento total na história que relata, rindo-se de ele prórpio, acaba sempre por nos contagiar e de nos deixar bem dispostos.

Algumas vezes é dominado pela emoção, e chora se for preciso chorar. Recomposto, retoma o discurso com a mesma boa disposição. É uma pessoa muito culta, com bons sentimentos, mas também muito dispersa.”Talvez um dia transforme em livro as estas, vivências”, diz ele entusiasmado. Bagagem não lhe falta. E se o fizer, cá estamos nós para recomendar a sua leitura. E eu seu condiscípulo, a pensar que já sabia muito do meu amigo! Afinal, muito há para contar. (...)

03.02.2018, sábado - Halibur,  Família Sobral

Aproveitando a nossa chegada e estadia, o Painô (filho do falecido Pai Zé que era o mais velho dos seis irmãos Sobral) resolveu fazer uma festa de família, com o objetivo de manter e reforçar os laços familiares. Muita gente, vinda sobretudo da Dili e arredores; muitas crianças, muitos sorrisos, muitos abraços...um clima de verdadeira festa. 

Depois dos preparativos necessários, e já entrando pela noite, foram os discursos da praxe: Painô, Gaspar, Rui (com tradução para tétum pelo Gaspar), Álvaro, Abeka, Mari, Eustáquio (João Moniz) e por fim a Bene, única mulher dos 6 irmãos) fechou com a chave de ouro. Todos manifestaram o seu contentamento por este acontecimento e apelaram à união da família Sobral.

Muitas palmas, alguns esclarecimentos, nomeação por sorteio do mordomo do próximo encontro (Mari), que será no dia 6 de Janeiro de 2019. É uma benção de Deus ter uma família tão grande unida por laços familiares de sangue.

No final, para além das conversas informais que se prolongaram pela noite fora (o Gaspar esteve falando até às duas horas da manhã), houve músicas e danças com as crianças. O acordeão esteve e novo em ação.

06.02.2018, terça feira - O dinheiro para os afilhados

Hoje de tarde procedeu-se à entrega dos donativos em dinheiro que os padrinhos/madrinhas enviaram para os seus afilhados (as). Já não é a primeira vez que isto acontece, mas hoje tive a oportunidade de, in loco, presenciar o ato.

A alegria de ter na mão o molho de notas era evidente por parte das crianças e dos adultos (pais). Para quem não tem ordenado fixo e para quem tantas privações padece, qualquer dádiva é significativa. Todos estão informados de que o dinheiro recebido se destina particularmente ao apoio no desenvolvimento escolar dos seus protegidos. Fazemos confiança que assim seja, ainda que o controlo direto das economias familiares não esteja ao nosso alcance.

Claro que tenho de aqui expressar o agradecimento que em direto me fizeram todos os beneficiários desta entrega. Espero que cada padrinho/madrinha se sinta desta maneira agraciado, mas desejo que cada afilhado (a) o faça, pelas vias hoje mais utilizadas (facebook, whatsapp, messenger, telemóvel, etc...)

“Quem ajuda os pobres empresta a Deus”.

07.02.2018, quarta feira - Estranha e feliz convivência


O  Toqué ou Toké (em Timor), ou Tokay Gecko.
Copyright (c) 1998 Richard Ling/GFDL
Fonte: Wikimedia Commons
(com a devida vénia...)
Vd. aqui áudios com as vocalizações
deste pequeno réptil
(Wikipedia, em inglês).

Nestes bairros que circundam Dili, em Ailok Laran, a natureza que é mãe mostra todo o seu esplendor através de uma saudável convivência entre humanos, animais, répteis, aves... Com ou sem razão a galinha e os pintaínhos entram e passeiam pela casa; os teques  (osgas) percorrem as paredes; o toqué anda de árvore em árvore dando as horas; os leitões fossam os quintais; os cães têm livre trânsito; as melgas e os mosquitos picam onde bem entenderem. 

Há um profundo respeito e algum “animismo” em atribuir significado aos sinais que todos estes seres emitem. Por exemplo, se alguém vai sair de casa e encontrar um teque na saída, deve adiar a saída porque a presença do teque é um aviso: “não saias porque alguma coisa de mal vai acontecer”. 

Esta gente é muito crente, não só na fé religiosa que professam, nas igrejas de que são fiéis, nos santos e santas de cada religião mas também nos espíritos que habitam as coisas. São de uma sensibilidade religiosa impressionante. Por isso respeitam com significado religioso todas estas formas de vida. Talvez por isso este povo é alegre e feliz, apesar de passar por muitas dificuldades e privações.

Viver integrado neste mundo natural, considerar-se parte deste todo, respeitar mutuamente todos os seres, faz sentido e dá a cada um e à sociedade razões para ser feliz, ainda que pareça estranho.

08.02.2018, quinta feira  - “E habitou entre nós”

Ainda há muita gente que se admira da minha capacidade de adaptação. O facto de um malai ter escolhido viver como eles vivem, refiro-me claro está a viver sem as condições a que em Portugal estamos habituados, mais propriamente as que dizem respeito a hábitos de higiene e a hábitos alimentares. Até eles mesmos, os timorenses que nos albergam,  estranham a nossa força e vontade de ser como eles.

Mas só assim é possível uma verdadeira encarnação, não é verdade? Quem chega tem o dever de se adaptar e não de se impôr, mesmo que tenha de se humilhar e perder alguma coisa do que é seu, do que lhe é próprio.

Na verdade, até sinto alguma vaidade quando vendo o meu comportamento eles dizem: “este é dos nossos; só lhe falta mudar a cor da pele”. “O tiu Rui já é timorense”. Não posso querer melhor elogio...

09.02.2018, sexta feira - Alegria no trabalho

Hoje foi dia da instalação elétrica na casa do Eustáquio, mais propriamente nos quartos que preparou para a nossa estadia em Ailok Laran. O Painô, sobrinho do Gaspar,  que para além de ser “guarda costas” do Ramos Horta na sua residência em Areia Branca (Dili) é também o eletricista. É ele que vai fazer a instalação na escola de Boibau. Esteve connosco até às duas da manhã, mas deixou tudo pronto. Trabalhouque nem um desalmado, até o suor lhe escorrer no rosto.

E então os outros homens que com ele estavam, faziam o quê? Mais ou menos como em Portugal: enquanto um (funcionário) trabalha os outros vêm, dão opiniões ou assobiam para o ar. Ou seja, foi um tempo bem passado, com músicas tocadas,cantadas ou assobiadas que trouxeram alegria e boa disposição no trabalho. Já referi em ouras crónicas o ouvido musical que toda esta família tem como dom. Todos cantam, todos tocam. E depois apareço eu feito professor, (porque estudei música) a corrigir isto ou aquilo. Não há necessidade!.. Esta gente curte a música à sua maneira, que muitas vezes é bem melhor que a nossa, porque temos a maia de ser inteletuais.

Haja luz!...

10.02.2018,  sábado - É de cortar o cortar o coração!...

Mais uma vez fui visitar a casa do falecido Vitor. Despedaçou-me o coração! Como é que de um montão de chapas de zinco com dois ou três blocos de cimento à mistura vivem 14 pessoas, com crianças de todas as idades aos magotes? 

Algo temos de fazer! Alguém tem de ajudar! E eu sei que esse alguém vai aparecer. Isto não é pobreza. É miséria!... Confdesso que tive de me conter para não chorar. E noentanto, esta gente parace feliz. Irradiam sorrisos e simpatia por todo o lado.

Por outro lado fui saber das crianças que frequentam, a escola. O Mário, afilhado do João Meireles, a Marcelina, afilhada do José Manuel Campos e o Valente, meu protegido, estavam na escola. Fiquei satisfeito e vou continuar a estar informadosobre as crianças desta família tão necessitada. Tenho a certeza de que o Vitor, lá nooutro mundo, estará muito contente com esta nossa preocupação de fazer a suafamília um pouquinho mais feliz.

“Quem dá aos popbres empresta a Deus”. Não precisa de pagar o empréstimo. Basta que cuide de nós...

“Sobe a montanha! Sobe a montanha... e verás...”

Faz hoje 15 dias que chegamos. Muita coisa temos feito, mas há uma que ainda não conseguimos concretizar: subir a montanha rumo a Boibau. Queremos lá ir o mais depressa possível. O Painô já aqui tem o material eletrico para proceder à instalação da luz na escola. Possivelmente teremos de ir em motorizada, e de vez em quando haverá que descer para empurrar a mota. Vamos a ver em que aventuras nosmetemos. Espero que compreendam esta nossa demora, pois ela não depende exclusivamente de nós. Estamos prontos para a primeira oportunidade. Iremos dando notícias. Abraço!...


Obrigado,  crianças!

“De velhinho se volta a menino”, diz o ditado. A Adobe e a Noélia (afilhada da Evelyne) resolveram brincar comigo de uma forma muito carinhosa. Fizeram de mim gato sapato, com as suas invenções e criatividade, desde “penteados à punk”,massagens à desportista, cuidados de “manicure”; enfim, um pedaço de plasticina nas mãos de artistas. A alegria e a boa disposição sempre presentes, indicando que“grande arte é a música, a poesia e a dança. Mas o melhor de tudo são as crianças”...

De vez em quando dou comigo integrado nas suas brincadeiras: jogar à bola (claro que me dão um grande baile!), jogo das escondidas (com os mais pequeninos),cantar e tocar, etc... Aceitam-me tal e qual como sou: velhinho, malaio (estrangeiro).

Sou o Ti Rui, o pai Rui, o avô Rui, o irmão Rui. A maneira como me chamam pouco interessa, mas sim o que eu sou para elas e o que elas são para mim. Sinto-me bem,como um menino. Obrigado crianças!...


11.02.2018, domingo  - “Expressões de Timor Lorosae”

Eram já as 1.30h locais quando conseguimos uma ligação em direto, através do Whatsapp para Portugal, mas própriamente com Malcata. Quisemos dizer “presentes!” na inauguração da exposição “Olhares de Timor” da autoria do sr. Vitor Cordeiro,que amavelmente acedeu ao convite da Associação Malcata Com Futuro (AMCF) para assinalar o protocolo celebrado com a ASTIL (Associação de Amigos Solidárioscom Timor Leste), e que vai estar na sua sede (AMCF) durante alguns meses para que possa ser visitada. Dizia o sr. Vitor Cordeiro: “É a primeira vez que lhe ocorre umdireto de Timor, de todas as vezes em que a exposição é inaugurada”.

É a nossa forma de agradecer ao autor, à AMCF na pessoa do seu presidente da direção engenheiro José Escada, aos estimados sócios e pessoas presentes neste acto. Estamos convictos de que com estes olhares cruzados, graças à tecnologia utilizada, a ASTIL, a AMCF, Malcata, Timor, o Projeto de Solidariedade ficarão mais reforçados no caminho da cooperação e da interculturalidade.

“Parecem bandos de pardais à solta... Os putos, os putos...

Crianças
Em frente da casa do Eustáquio há um grande largo, onde cada dia, num abrir e fechar de olhos, se juntam às dezenas as crianças para jogar e brincar. Nada que os demova, nem o sol nem a chuva. Mas o cenário mais desejado é quando começa achover, a chover torrencialmente. Todos molhados desafiam o vento e a chuva, saltam de alegria, atiram-se para as poças de água. Como que gatos pingados correndo uns atrás dos outros. Desde crianças de dois anos, ninguém tem medo damolha ou das suas consequências. Enxugam a pouca roupa que vestem no próprio corpo como que a desafiar as leis da medicina, e pronto: estão quites para outrosdesafios. A satisfação e a resistência que manifestam causam-nos inveja, com vontade de voltar a ser criança. Somos uns priveligiiados podermos assistir a este espetáculo.

 Obrigado,  crianças!...

12.02.2018, segunda feira  - Manga caída do céu...

Há fenómenos que por mais que digamos serem coincidências mais parecem que são milagres. À frente da casa do Eustáquio há uma grande mangueira, com mais de cinco metros de altura e uma larga copa. É suposto que o tempo da floração seja no mês de Maio e que os frutos estejam prontos a comer nos meses de Julho ou Agosto. Já durante a primeira estadia, em Junho de 2016, lamentávamos o facto de nos irmos embora sem provar os seus deliciosos frutos. Muito menos agora, mês de Fevereiro de 2018, era de esparar provar esta iguaria.

Então não é que, devido a um forte vendaval, vem cair a nossos pés um manga bem madura que eu e o amigo Gaspar logo a seguir devoramos com sofreguidão?!

Vá se lá saber a que é devido que isto aconteça! Para nós foi um mimo de Alguém, que mesmo “contra natura” nos presenteou com uma manga (maná) caída do céu.

14.02.2018, quarta feira  - Concerto de Alvorada


Aqui e agora, em Ailok Laran - Timor, há um concerto galináceo matinal, a fazer lembrar Malcata-Portugal há mais de cinquenta anos. Quase todas as casas (famílias)têm aves e animais em convivência diária. Todos sabemos que é desde a manhã, de madrugada que se começa o dia. E é então que o concerto sonoro começa: o galo cantor, que ergue a sua voz num desafio constante; as galinhas que cacarejam; ospássaros piantes, os porcos que grunhem; os reclames dos vendedores ( primeiro é o

Pao! Pao! Pao!"...; as crianças que cedo vão para a escola; as saudações de quem por aqui passa... Já são oito e meia da manhã e os galos continuam a cantar. Esta natureza é luxuriante em tudo, até na qualidade do timbre destes bons cantores.

Aqui ao lado está um galo preso, cujo destino era ter sido morto para manjar da gente da casa. A meu pedido “ não matem o bicho que eu quero ouvi-lo cantar”, ainda está vivo, agora mesmo cantou. Afinal, não é só o Galo de Barcelos que canta depois de morto. Também aqui há um “morto vivo” que, juntamente com os outros bichos de côro, nos alegram cada manhã.

Santa impaciência!...


Os dias a passarem e nós aqui, impacientes, com pressa de ir a Boebau. Hoje esteve uma grande parte da tarde e da noite a chover, com trovoadas e relâmpagos à mistura. Começo mesmo a ficar impaciente. Primeiro é o atraso da partida do barco que traz as nossas encomendas, agora é o adiamento da ida para a montanha.

Parece até que alguém está a emperrar o andamento das coisas. Eu sei que nem sempre pode ser como a gente quer, mas tanta demora é devida ao quê? Virtude (feitio) timorense? Vontade de fazer bem as coisas? Não me conformo... Estou em pulgas!... Que Deus me dê paciência!... Santa paciência!!!

João Crisóstomo,
um amigo de Timor-Leste

 Notícia reconfortante

Há dias assim. Quando tudo parece que nada anda para a frente, surge uma notícia que nos anima e nos conforta. Eram já as dez horas da noite, quando toca o meu telemóvel, com uma chamada vinda dos Estados Unidos da América, do amigo João Crisóstomo. O João, que desde o encontro organizado na Paraia de Santa Rita (Torres Vedras) pelo amigo comum Eduardo Jorge Ferreira, se entusiasmou e embarcou neste nosso projeto de solidariedade (aconselho uma consulta na net ao site “João Crisóstomo - o Mordomo"), comunicou-me coisas  muito importantes, a saber:

(i) O Sr. Ralph Niemeyer vai chegar aí, a Timor, no dia 3 de Março. Ficará a cargo da Fundação Oriente e encetará contactos com o atual Presidente da República Sr. Francisco Guterres. Permanecerá três semanas em Timor, no intuito de ajudar e apoiar projetos de solidariedade. Na segunda semana pretende deslocar-se às montanhas, a Boebau, para conhecer in loco o projeto de “construção da escola em Boebau/Manati”. A terceira semana será dedicada a entrevistas e conferências de imprensa, particularmente em Dili, com entidades representativas da comunidade timorense.

(iii) Eu, João Crisóstomo, chegarei o dia 4 e juntar-me-ei ao amigo Óscar. Logo que chegue comunicarei convosco (Rui e Gaspar) para traçarmos programa para estes dias. Aí, no terreno, combinaremos melhor. Quero que vocês participem nas ações conjuntas, particularmente nas entrevistas e conferências de imprensa.

Este é o grande João Crisóstomo que, apesar da idade (e já lá vão 73) não pára de se envolver e lutar por causas que valham a pena. Foi assim por Aristides Mendes, foi assim pelo povo de Timor, foi assim pelas gravuras de Vila Nova de Foz Côa, e é assim pela criação de escolas em zonas carenciadas de Timor Leste. Um grande amigo que contagia, seja quem for, pelo seu dinamismo e clarividência. Um verdadeiro amigo, um tesouro...

Quanto a mim, sinto-me um privilegiado ser incluido entre os seus amigos. Mas confesso que me sinto acomplexado perante a necessidade de ter que aperecer na alta roda social. Não tenho estilo nem geito para altas andanças, e receio até fazermá figura. O João, que me está a meter nisto tudo, que me perdoe, mas sinto-me melhor em meios mais humildes, mais simples. Mas se tiver de ser, pois que seja.

“Tem de acontecer, porque tem de ser/ E o que tem de ser tem muita força/ E sei que vai ser, porque tem de ser/ Se é pra acontecer, pois que seja agora...”

15.02.2018, quinta feira  - Rituais de vida e de morte

Eram mais ou menos 21h00 quando um grupo de jovens, alguns munidos de guitarras, deram nas vistas, descendo o caminho que abrange a casa que nos alberga. Eu já me tinha dado conta de cantorias vindas das redondezas. Por issoperguntei a quem comigo estava: o que se passa?

Vim então a saber que, há mais ou menos um mês, tinha falecido uma senhora, professora, e que se cumpria o ritual vigente na região de Dili: durante quarenta dias as pessoas e sobretudo os jovens, juntam-se à noite na casa do defunto e com cânticos, rezas, jogos, conversas, comes e bebes celebram a vida e a morte do(a) falecido(a).

Aqui, há uma sintonia muito grande entre vivos e mortos. Com toda a naturalidade se convive com os sinais e símbolos dos que já partiram, mas que se sentem bem presentes. O respeito e veneração que os mortos merecem dos vivos são constantes,mas não há medo nem receio de os invocar ou recordar. Mais parece que estão connosco, mesmo que invisíveis. Não se veem... sentem-se. Mistérios profundos dasdicotomias: vida, morte; princípio, fim; alpha, omega; natural, sobrenatural; matéria, espírito; alma, corpo, etc, etc...

16.02.2018, sexta feira  - Água, um bem precioso...

Já há dois dias que não há abastecimento de água. Há muita água doce em Timor, pois chove quase todos os dias, mas há falta de água nas mangueiras. O sistema de abastecimento deixa muito a desejar. As infraesturas são carentes e/ou inexistentes.

Grande trabalho ainda há por fazer!

Estou a escrever este relato neste bairro periférico de Dili, a capital, aqui tão perto do centro das decisões politico sociais, e aonde as carências básicas de higiene, vias de transporte, saneamento, e muitas outras tanto se fazem sentir. Será assim em todos os povos em via de desenvolvimento?

alvez estas situações sejam mais sentidas pelos estrangeiros que pelos nativos.

Quem é de cá tem mais capacidade de resistência. Aliás este é o grande apanágio deste estimado povo: a resistência, a qualquer tipo de adversidade. Por isso mesmo o “Museu da Resistência” é tão visitado e apreciado. Mas, a melhoria das condições de vida é um desejo profundo de qualquer cidadão, de qualquer povo, de qualquer país. Também dos irmãos timorenses, dos amigos de Ailok Laran.

Urgência: defesa e promoção da língua portuguesa

É sobretudo através da linguagem verbal que a gente se entende, seja qual for a língua que se utilize. Aqui, em Timor Leste, o tétum e o português são as duas línguas oficiais, por opção dos governos timorenses. Outros tentaram que assim não fosse, especialmente os australianos que aliciaram com o inglês. Os indonésios, durante a ocupação deste território, tudo fizeram para que a língua bahasa fosse aprendida e divulgada. E, em boa verdade, podemos dizer que conseguiram os seus objetivos, através da criação de uma considerável rede escolar (mas que não chega a todo o território, nomeadamente às zonas montanhosas como é o caso de Boebau/Manati.

Soube nestes dias, que proibiam as crianças de falarem a nossa língua, e que castigavam os que fossem apanhados em flagrante. Em conclusão, a língua portuguesa foi ultrapassada pelo língua bahasa. Ontem mesmo presenciei um jogo de crianças em que a contagem era feita em bahasa. 

Hoje, apesar de todos os esforços feitos pelos governos timorenses e portugueses, a maioria das crianças, dos jovens e adultos não se fazem entender na língua de Camões. As escolas dereferência, os programas de Formar+ destinados a formar professores, os professores destacados de Portugal têm dado um precioso contributo, mas não chega. Precisamos de mais ação, de mais apoios, de mais empenho dos governos ede entidades afins para que a promoção e a defesa da língua portuguesa seja real.

O nosso projeto de solidariedade, que abrange a construção da escola em Boebau e o apadrinhamento de crianças pobres, tem este objetivo em vista: ajudar as crianças na apredizagem da língua portuguesa. Saber entender e falar muitas línguas éóptimo. Mas muitas vezes a confusão reinante é demais. Como diz o meu amigo D.Basílio do Nascimento “em Timor neste momento fala-se a língua tetumbahasês “.

Exemplos vivos de luta e resistência


Cada dia que passa somos surpreendidos pela presença de pessoas que sobreviveram heroicamente ao tempo e à guerra da invasão indonésia. Ouvir de suas bocas relatos e testemunhos é uma ocasião cheia de emoções. E então esta família Sobral está repleta de acontecimentos e episódios, muitos já relatados nas minhas primeiras crónicas de Viagem a Timor (*). 

Ressalto a figura da senhora Pascoela que há dias nos visitou, uma figura quase invisível pois a massa corpórea que apresenta pouco passará dos trinta quilos. O Gaspar abraçou-a cheio de emoção e de cuidados, porque já há muitos anos que não se encontravam. Creio até que chorou...

Pois a Pascoela fez parte do pequeno grupo de fuga, que orientado pela grande senhora Felismina de Oliveira, mãe dos Sobrais e madrinha da Pascoela, andaram três anos e mais escondidos pelas montanhas. Eram cinco: a mãe Felismina, os filhos João Moniz (Eustáquio) e a Benedita ainda crianças adolescentes, a Pascoela afilhada e o seu irmão Filomino. Percorreram a pé vales e montanhas até Liquiçá e mais paraalém até que, informados de que já não havia perigo, decidiram entregar-se às autoridades indonésias em Liquiçá.

O que o Eustáquio conta é de pasmar. A sobrevivência a que foram sujeitos obrigou-os a alimentar-se de tudo o queencontravam nas montanhas: raízes (mandioca), frutos, folhas. Arroz nem vê-lo!

Agora imaginem o que é um timorense viver três anos sem comer o alimento básico (arroz). Tinham um critério: o que as cabras comiam, sobretudo folhas, comiam eles também. Aconteceram fenómenos naturais que, só com a proteção divina foi possível superar. Eles dizem que foram milagres e a sua narração faz-nos acreditar que assim foi. A mãe, senhora Felismina, que era quem dirigia e orientava o grupo,levou sempre com ela um crucifixo e a imagem de Santo António. A primeira coisa que fazia era uma espécie de pequeno altar, ante o qual todos rezavam. Todos os elementos do grupo sobreviveram, dizem eles mais uma vez, por milagre, pois houve situações em que as balas passavam de um lado e do outro sem que alguém do grupo fosse atingido. A partir de 1979 foram regressando aos locais de origem: Bidau, Ailok Laran (Dili).

Como a casa de família tinha sido arrasada e queimada,tiveram de improvisar uma barraca. Depois, com o passar dos anos, foram reconstruindo as suas vidas e hoje a família Sobral é o baluarte de mais de uma centena de pessoas que honestamente vão contribuindo para que a sua terra Timor Lorosae seja um país em vias de desenvolvimento que a pouco e pouco se afirma no contexto das nações, no mundo. Na família Sobral revejo muitos outros grupos e famílias graças às quais a esperança de um mundo melhor é possível, também em Timor.Obrigado, Timorenses, por nos fazerem acreditar!... Obrigado Dona Felismina mulher de armas (crucifixo e imagem de Sto. António) e de combate, Dona Pascoela, Bene, Eustáquio, Filomino. Sois os exemplos vivos de resistência e de luta por um mundo sempre novo. Mereceis todo o nosso respeito e consideração.


17.02.2018, sábado - As carências e dificuldades na montanha

Há momentos tocou o telemóvel do Eustáquio. Era uma chamada do Abílio (construtor da Escola em Boebau) informando que precisava de gasolina paracontinuar o trabalho de colocação das janelas. Lá teve que o Amali (filho do Eustáquio) ir a Liquiçá comprar gasolina e enviar a gericana pela carreta (transporte público), que não sei a que horas chegará ao destino.

É asim a vida atribulada de quem habita as montanhas, o interior desconhecido, onde a falta de meios tanto se faz sentir. É precisa muita força de vontade para viver (sobreviver) em ambientes tão carentes de condições de vida e de comodidades que os meios urbanos proporcionam. 

A vida na montanha não é fácil, sobretudo para quem chega. Valha-nos a riqueza de paisagens e de recursos que a mãe natureza nos oferece, a hospitalidade dos seus habitantes, os sorrisos das crianças, a proteção de

Deus e dos antepassados.

Répteis preciosos...

Toqué e Teque  [vocábulos ainda não grafados nos dicionários de português] são dois répteis que todas as noites aparecem para nos fazerem companhia. O primeiro, lagarto de maiores dimensões, tem um som característico inconfundível: “Toqué!... Toquê!...” 

Dizem que, mais ou menos, de hora em hora manifesta a sua voz. Um bom relógio noturno. O governo timorense já decretou que é um animal em vias de extinção, e que portanto tem de ser protegido. Em tempos da ocupação indonésia chegaram a ser moeda de troca: um carro por um toqué. (*)

Hoje como já disse está protegido, gozando por isso liberdade de andar por onde quiser. Se por acaso entrar em casa considera-se a casa abençoada e é ele quem manda. Longe qualquer agressão, sairá quando ele assim bem entender. Neste momento, na casa do Anô aqui ao lado, anda um toqué que é rei e senhor. Que o toqué vos abençoe,  amigo!

Teque é uma espécie de lagartixa, para mim é uma osga, que se expressa em tom mais suave e que soa assim: “ Teque...Teque... Teque “. 

Aparece durante a noite onde houver alguma luz, com o objetivo de caçar algum mosquito ou inseto que lhe sacie o apetite. É impressionante a reação. Faz-me lembrar o lince, só que neste caso será “olho de teque e não olho de lince”. Passeiam por tudo o que é sítio em casa.

Eu até já na mala de roupa vi um. Também o teque é respeitado e apreciada a sua presença. Por exemplo, se alguém vai sair de casa por qualquer motivo e estiver um teque nos umbrais da porta, é sinal que não deve sair porque o teque avisa que alguma coisa má vai acontecer.

Culturas diferentes que temos de respeitar e acatar.

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(Seleção, alguns dos substítulos, revisão / fixação de texto: LG)

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Nota do editor:

(*)  Vd. poste de 4 de junho de 2024 > Guiné 61/74 - P25602: Viagem a Timor: maio/julho de 2016 (Rui Chamusco, ASTIL) - VI (e última) Parte: Regresso a Lisboa, via Singapura e Londres... E que Deus seja louvado!