Lisboa > Bairro da Graça > Festival Todos 2019 > 29 de setembro de 2019 > Janelas.
Foto (e legenda); Luís Graça (2019)
nas paredes do meu quarto.
Sem vidros nem bambinelas
posso ver através delas
o mundo em que me reparto.
Por uma entra a luz do sol,
por outra a luz do luar,
por outra a luz das estrelas,
que andam no céu a rolar.
Pela maior entra o espanto,
pela menor a certeza,
pela da frente a beleza,
que inunda de canto a canto.
Pela redonda entra o sonho,
que as vigias são redondas,
e o sonho afaga e embala
à semelhança das ondas.
Todos os risos e choros,
todas as fomes e sedes,
tudo alonga a sua sombra
nas minhas quatro paredes.
Oh janelas do meu quarto,
quem vos pudesse rasgar!
Com tanta janela aberta
falta-me a luz e o ar.
Tradução de um dos mais famosos poemas de Li Bai, por António Graça de Abreu
月下獨酌
花間一壺酒
獨酌無相親
舉杯邀明月
對影成三人
月既不解飲
影徒隨我身
暫伴月將影
行樂須及春
我歌月徘徊
我舞影零亂
醒時同交歡
醉後各分散
永結無情遊
相期邈雲漢
bebo sozinho, sem amigos.
Levanto o copo e convido o luar,
com a minha sombra somos três.
Ah, mas a Lua não sabe beber,
a sombra só sabe acompanhar meu corpo.
O luar por amigo, a sombra por escrava,
vamos todos fruir a Primavera, festejar.
Eu canto e passeiam no ar
os raios de luar.
Eu danço e volteia no espaço
a sombra de mim.
Lúcidos, nós três desfrutámos prazeres suaves,
bêbados, cada um segue seu caminho.
Que possamos repetir muitas vezes
nosso singular festim
e nos encontremos, por fim,
na Via Láctea.
[ Seleção: Anjos Silva Mendes | António Graça de Abreu,
26/8/2020, 23h12]
Olhar-te bem nos olhos: que voragem!
Ouvir-te a voz na alma: que estridência!
É tão difícil termos coragem
de nos vermos enfim sem complacência.
É tão difícil regressar de viagem,
e descobrir no rastro tanta ausência…
Mas os meus olhos, súbito, reagem.
À tua voz chega o silêncio e vence-a.
Nos pulsos vibra ainda o mesmo rio
que no delta dos dedos se extasia
e moroso reflui ao coração.
O gesto de acusar-te? Suspendi-o.
Mas foi só aguardando melhor dia
em que tenha lugar a execução.
David Mourão-Ferreira
in, “Obra poética” a págs. 171/172
Editorial Presença, lISBOA, 2001
makèzú
—
«Kuakié!... Makèzú, Makèzú...»
..........................................................
O pregão da avó Ximinha
É mesmo como os seus panos,
Já não tem a
cor berrante
Que tinha
nos outros anos.
Avó Xima
está velhinha
Mas de
manhã, manhãzinha,
Pede licença
ao reumático
E num passo
nada prático
Rasga
estradinhas na areia...
Lá vai para
um cajueiro
Que se
levanta altaneiro
No cruzeiro
dos caminhos
Das gentes
que vão p’ra Baixa.
Nem criados,
nem pedreiros
Nem alegres
lavadeiras
Dessa nova
geração
Das «venidas
de alcatrão»
Ouvem o
fraco pregão
Da velhinha
quitandeira.
—
«Kuakié!... Makèzú, Makèzú...»
— «Antão,
véia, hoje nada?»
— «Nada,
mano Filisberto...
Hoje os
tempo tá mudado...»
— «Mas tá
passá gente perto...
Como é aqui
tás fazendo isso?»
— «Não
sabe?! Todo esse povo
Pegô um
costume novo
Qui diz quê
civrização:
Come só pão
com chouriço
Ou toma café
com pão...
E diz ainda
pru cima,
(Hum...
mbundo kène muxima...)
Qui o nosso
bom makèzú
É pra veios
como tu».
— «Eles não
sabe o que diz...
Pru quê qui
vivi filiz
E tem cem ano eu e tu?»
— «É pruquê
nossas raiz
Tem força do
makèzú!...»
In: Viriato da Cruz, "Poemas", 1ª edição. Lisboa, Casa dos Estudantes do Império, Colecção de
Autores Ultramarinos, 1961
[ Seleção: Luís Graça, 4 set 2020; "maquezo", do quimbundo makezu, plural de dikezu, noz de cola, fruto mascado ou de que se faz uma bebida; fruto sagrado na cultura bantu]
Último poste da série > 30 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21305: Blogpoesia (693): "As falésias", "Em ondas mansas..." e "As primeiras impressões", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728