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quinta-feira, 25 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25445: Os 50 anos do 25 de Abril (13): Testemunhos - Numa Das Malas Velhas Da Minha "Fundação" (António Inácio Correia Nogueira, ex-Alf Mil da CCAÇ 16 - CTIG, 1971 e ex-Cap Mil, CMDT da CCAV 3487/BCAV 3871 - RMA, 1972/74)

1. Em mensagem do dia 24 de Abril de 2024, o nosso camarada António Inácio Correia Nogueira, Doutor em Ciências Sociais, especialidade em Sociologia, ex-Alf Mil da CCAÇ 16 (CTIG, 1971) e ex-Cap Mil, CMDT da CCAV 3487 / BCAV 3871 (RMA, 1972/74), enviou-nos este artigo da sua autoria, publicado ontem no Jornal "O Despertar", de Coimbra:


TESTEMUNHOS

Numa Das Malas Velhas Da Minha "Fundação"

Regressei da guerra colonial há 50 anos, por isso é tão significativa, para mim, esta celebração do 25 de Abril. É muito tempo para quem continua vivo, é pouco tempo para quem quer esquecer os fragores dessa guerra injusta.

Na que era a casa do meu pai, aos Olivais, tenho um compartimento, que as minhas filhas apelidam, pomposamente, “Fundação”, onde guardo tudo o que constitui resquícios das memórias e das estórias da minha vida. Muitas vezes, inopinadamente, descubro relíquias que pensava já não existirem. Esta condicionante deve-se ao facto de ser muito desorganizado mas, ao invés, muito zelador como guardador de grandes e pequenos nadas.

Recentemente tive um convite da Escola do 1.º Ciclo de Fala onde estuda, no 4.º ano de escolaridade, a minha neta Lúcia, para comunicar algo às crianças sobre o 25 de Abril, principalmente, da minha experiência sobre esse dia memorável.

Para a sua preparação, dei-me ao trabalho de revisitar esse espaço mágico, na tentativa de encontrar material que pudesse entusiasmar a pequenada e incutir-lhe um pouco da importância do 25 de Abril, na construção da deles e da minha democracia e liberdade.

Encontrei uma mala velha, muito velha, que pressenti pesada. Tive receio de a abrir e de tirar tudo cá para fora. Ela podia conter, por ventura, esconder, os meus mitos, os ritos, os medos, os entusiasmos, as raivas, os desassossegos de então, enquanto jovem.

Obriguei-me a tal. Tirei quase tudo a monte cá para fora, espalhei pelo chão e verifiquei como o seu recheio estava envelhecido, amarelado pelo tempo, mas de valor incalculável. Os papéis, as imagens e as coisas agora velhas, que fui agasalhando à medida que lhes tocava, reportavam-me, com um misto de entusiasmo e melancolia, inenarráveis, à época e idade, tão jovem, de há tantos anos!

Fui encontrar o meu camuflado da guerra colonial, coçado pelas andanças de muitos quilómetros nas terríveis matas do Belenguerez na Guiné e do Maiombe em Angola. Primeiro, olhei-o indiferente, qual trapo que na altura detestava usar. Hoje, contemplei-o com benevolência e algum bem-querer.

Achei jornais e revistas diversos: o Diário de Lisboa, a Flama, a Vida Mundial, A Capital, A República, apresentando em grandes parangonas as primeiras notícias da Revolução de Abril; nas primeiras página, sempre o mesmo protagonista, Salgueiro Maia, o meu herói.

Os discos primeiros de José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Padre Fanhais e muitos outros cantores de protesto estavam por lá espalhados riscados de tanto terem tocado no meu velho gira-discos. Lá estava a Grândola do Zeca e O Depois do Adeus de Paulo de Carvalho. Estas duas canções foram as senhas para a saída das tropas revolucionárias.

As canções do Ary dos Santos e do Sérgio Godinho marcavam também a sua presença… estou a viver tudo como se tudo fosse hoje. Oiçam, oiçam, como eu, a voz e a música que saem da mala, ecoam cá fora:… só há liberdade a sério quando houver, a paz, o pão, saúde, educação, só há liberdade a sério quando houver liberdade de mudar e decidir… / Grândola, vila morena, terra da fraternidade, o povo é quem mais ordena dentro de ti, ó cidade… / e depois do adeus e depois do amor, e depois de nós, o adeus, o ficarmos só.

A medo e sem olhar, meti mais uma vez a mão, até apalpar o fundo da mala. Agora em silêncio, arvorei o punhado, veio prestes, um livro já velhinho, mil vezes sublinhado, A Praça da Canção, edição de 1969, de Manuel Alegre e um disco datado de 26 de Abril de 1974, Caxias, Portugal Ressuscitado, com a participação de Ary dos Santos, Pedro Osório, e vozes de Grupo In-Clave, Fernando Tordo e Tonicha.

Das duas preciosidades cantei exuberante, qual menino da revolução:
(…)
Mesmo na noite mais triste,
Em tempo de servidão,
Há sempre alguém que resiste
Há sempre alguém que diz não.

(…)
[Manuel Alegre]

Depois da fome e da guerra
Da prisão e da tortura
Vi abrir-se a minha terra
Como um cravo de ternura.

(…)
[J.C. Ary dos Santos]

Não quis tirar mais nada. Os meus 81 anos estavam exaustos de memórias tão vivas, tão presentes. Não vi o que restou por lá, mas abriguei lá dentro tudo o que trouxera para fora. Voltei a fechar a mala. Fui repousá-la no lugar que lhe pertencia, até que outro a abra. O que fará com aquelas memórias? Deita-as fora? Porventura, mas elas perdurarão na vida e para além da vida, sempre, sempre, em mim.

Fui cheio de ânimo, mas preocupado, ao encontro dos meus meninos.
As crianças à volta da sala de aula levantaram os cravos vermelhos, vestiram a farda, olharam os jornais, e prometeram que serão guardiães da liberdade e da democracia para sempre
Cantei com eles, levantei a bengala e senti-me, quase miúdo como eles o são.
Obrigado meninos. Vocês são o alento do meu fim de vida.

Com beijinhos para todos e também para a vossa professora Lúcia, de que muito gostei.
Até sempre!
Viva o 25 de Abril

António Inácio Correia Nogueira.
Jornal O Despertar

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Nota do editor:

Último poste da série de 24 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25439: Os 50 anos do 25 de Abril (12): Hoje, na RTP1, às 21:29, o primeiro de nove episódios: "A Conspiração", série documental realizada por António-Pedro Vasconcelos (1939-2024)

quarta-feira, 24 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25439: Os 50 anos do 25 de Abril (12): Hoje, na RTP1, às 21:29, o primeiro de nove episódios: "A Conspiração", série documental realizada por António-Pedro Vasconcelos (1939-2024)



RTP > Série Documental (9 episódios), da autoria de António-Pedro Vasconcelos 
(Leiria, 1939-Lisboa, 2024)


A última obra de António-Pedro Vasconcelos. Conhecemos os ícones, as músicas e os locais emblemáticos do 25 de Abril 1974. Mas como surgiu a Revolução que mudou o destino de Portugal?

"A Conspiração", série documental realizada por António-Pedro Vasconcelos, é o resultado de uma meticulosa investigação que conta com depoimentos exclusivos de protagonistas que conseguiram concretizar em menos de 24 horas, o que em 48 anos muitos outros não haviam conseguido.

Desde as reuniões secretas aos personagens-chave, é-nos revelado o extraordinário processo conspirativo que começou no verão de 1973 e que culminou na madrugada de 25 Abril de 1974, com o derrube do Estado Novo e a conquista da liberdade.

O resto, como dizem, é história.

Fonte: RTP > Programas TV (com a devida vénia..:)

 A Semente Revolucionária

Episódio 1 de 9

1961 marca o início do fim do império português. É nos confins da Guiné, Moçambique e Angola, nas frentes de combate e nas quentes noites no mato, que germina a semente revolucionária.

Os capitães, revoltados com as condições em que combatiam numa guerra que não podiam ganhar, apercebem-se que a única saída é uma solução política.

E no verão de 1973, os infames decretos-lei 353/73 e 409/73, revelam ser a gota de água que faz transbordar o copo. 

Uma onda de contestação progride dentro do exército, principalmente entre os capitães do quadro permanente e é em Bissau que surge a primeira reação colectiva. Os oficiais aí destacados, fazem chegar às chefias políticas e militares uma carta assinada por 53 oficiais, contestando os decretos. Era... "a pica no elefante".

Ficha técnica: 

Título Original A Conspiração | Intérpretes: Narração: Adelino Gomes ! Realização: António-Pedro Vasconcelos | Autoria: António-Pedro Vasconcelos | Ano: 2024

Próximas emissões deste episódio:

24 Abr 2024 21:20 RTP Internacional |  24 Abr 2024 21:29 RTP1 | 25 Abr 2024 02:23 | RTP Internacional América | 25 Abr 2024 15:09 | RTP Internacional Ásia

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Nota do editor LG:

Último poste da série > 23 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25426: Os 50 anos do 25 de Abril (11): Entrevista do nosso camarada, amadorense, cor art ref António- J. Pereira da Costa à TV Amadora: "É pá...A Guerra, pá...", vídeo c. 37')

terça-feira, 23 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25426: Os 50 anos do 25 de Abril (11): Entrevista do nosso camarada, amadorense, cor art ref António- J. Pereira da Costa à TV Amadora: "É pá...A Guerra, pá...", vídeo c. 37')


TV Amadora > Histórias de Abril > 11 de Abril de 2024 > António José Pereira da Costa - Entre a Amadora, Guiné e Coimbra | Vídeo 36' 53''

Sinopse:

"António José Pereira da Costa é um orgulhoso amadorense cuja história de vida acaba por estar intimamente ligada à Revolução dos Cravos, não tivesse ele feito parte do Movimento que viria a pôr fim ao 'estado a que tínhamos chegado', como disse Salgueiro Maia.

"A primeira história da rubrica 'Histórias de Abril' é a do oficial do exército António José Pereira da Costa, um testemunho vivo de memória, resiliência e ação."

Fonte: TVAMADORA (com a devida vénia...)


1. Mensagem da jornalista Helena Durães:

Data - 11/04/2024, 17:51
Assunto - Testemunho António José Pereira da Costa

Boa tarde, caro Luís Graça,

Espero que se encontre bem.

A título de curiosidade, envio o resultado da minha entrevista ao António José Pereira da Costa:

https://www.tvamadora.com/programas/historias-de-abril/antonio-jose-pereira-da-costa-entre-a-amadora-guine-e-coimbra/8349

Foi hoje publicada e inicia hoje a rubrica da TV Amadora dedicada ao 25 de Abril.

Agradeço-lhe, também, pela sua ajuda e amabilidade em me facilitar este contacto. Foi precioso.

Grata pela sua atenção.

Com os melhores cumprimentos,
Helena Durães
Jornalista
Carteira de Jornalista nº 6111
TV Amadora | telem 932 799 467


2. Do estatuto editorial da TV Amadora:
  • (...) "é um órgão de comunicação local e que tem por objectivo divulgar aquilo que acontece no município da Amadoranão desvalorizando a informação de interesse geral";
  • (...)  ainda como propósito dar a conhecer a cidade e a sua história, através de trabalhos de longa duração.
  • (...) compromete-se a respeitar e a realizar o seu trabalho tendo por base os princípios deontológicos e éticos jornalísticos, assim como garantir o respeito pela boa fé dos leitores.
  • (...) compromete-se a todos estes objectivos tendo por base os princípios da liberdade editorial, da igualdade e da verdade.

3. Comentário do editor:

A sugestão do nome do Tó Zé  foi nossa, face a um pedido da TV Amadora, que chegou no passado dia 12 de fevereiro:

"(...) Sou jornalista da TV Amadora e estou a realizar uma recolha de testemunhos de quem viveu a passagem do Estado Novo para a Democracia e é de elevada relevância conhecer a história de alguns ex-combatentes da guerra colonial. Encontrei o seu contacto no blog "Luís Graça & Camaradas da Guiné".

Deste modo, venho por este meio questionar se têm conhecimento de ex-combatente e que seja da Amadora? Ou de alguém que tenha mais conhecimento acerca desta questão?

Agradeço qualquer ajuda que me possam prestar. (...)
Helena Durães (...)"

Com o acordo do próprio e da jornalista, publicitamos aqui o link com o vídeo da entrevista ao nosso camarada, cor art ref, António J. Pereia da Costa


O António José Pereira da Costa, jovem academia e hoje, cort art ref. 


4. Nado e criado na Amadora, na Av Gago Coutinho, o To Zé (como é conhecido entre os amigos) aceitou colaborar com a jornalista Helena Durães. A sua entrevista, com a duração de c. de 37 minutos é o testemunho sincero, frontal e corajoso de uma história de vida, de um homem da nossa geração, que começa na Amadora (onde nasceu e cresceu, e onde frequentou os dois primeiros ano da Academia Militar, em meados dos anos 60), antes de, "ainda menor"(sic), ter ido enviado para o teatro de operações da Guiné.

Esteve na Guiné duas vezes no tempo da guerra, como alferes (1968/69) e depois como capitão (1971/74):
  • ex-alf art, CART 1692/BART 1914 (Cacine, 1968/69);
  • ex-cap art, cmdt da Btr AAA 3434, BA 12, Bissalanca, Bissau;
  • ex-cap art, CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo;
  • e ex-capt CART 3567, Mansabá, 1971/74.
É nosso grão-tabanqueiro desde 12/12/2007. Publicou um livro com as suas memórias ("A minha guerra a petróleo", Chiado Editora, 2019)... Tem cerca de 200 referências no nosso blogue.

Depois de regressar à metrópole, a vida militar confunde-se com a de muitos outros camaradas de armas. Estava em Coimbra, quando se deu o 25 de Abril. Pertenceu ao MFA. E o resto, o nosso leitor pode ouvir no visionamento do vídeo.

Em mensagem que nos mandou há dias, disse-nos: "a minha participação é demasiado modesta embora curiosa. Atenção que há no blog verdadeiros participantes no 25Abril."... Participação, "modesta", mas que ele assume publicamente, e que teve consequências na sua carreira... Irónico, acrescentou: "Participação modesta porém sabendo o suficiente para o deitar a baixo, ao regime"...


  • (...) "é um órgão de comunicação local e que tem por objectivo divulgar aquilo que acontece no município da Amadoranão desvalorizando a informação de interesse geral";
  • (...)  ainda como propósito dar a conhecer a cidade e a sua história, através de trabalhos de longa duração.
  • (...) compromete-se a respeitar e a realizar o seu trabalho tendo por base os princípios deontológicos e éticos jornalísticos, assim como garantir o respeito pela boa fé dos leitores.
  • (...) compromete-se a todos estes objectivos tendo por base os princípios da liberdade editorial, da igualdade e da verdade. (...)

5. Publicamos também, a seguir, algumas das fotos que o Tó Zé disponibiliziu, e que forma inseridas no vídeo. 


Amadora > Os putos da Av Gago Coutinho: da esquerda para a direita, (i) Eu, Tó Zé, (ii) o Zé Barros (Zé Gordo) empregado da loja do Martins na nossa rua; (iii) o Tony Levezinho, na primeira fila; (iv) o Vítor Levezinho, primo do Tony; (v) o "Fernandinho" que morava ao lado dos meus pais, creio que emigrou para o Brasil, assim como toda a família Ferreira da Silva (Oliveira); e (vi) o Fernando Levezinho (irmão gémeo do Vítor). Acrescenta o Tony: "o Fernando, meu primo (já falecido), também esteve na Guiné e o Vítor em Angola, tendo este sido condecorado por ter levantado uma mina anticarro, sozinho, embora não fosse sapador. Voluntarismo, inconsciência, ou as duas coisas"...


A Academia Militar, polo da Amadora, em meados dos anos 60, com a Reboleira, ao fundo, já crescer tentacularmente...com as construções J. Pimenta.


Instrução na Academia Militar... Coisas elementares como saber nadar não eram ensinadas aos futuros oficiais..., diz o Tó Zé em jeito de cítica à formação que recebeu


Guiné > Região de Tombali > Cacine > Cameconde > CART 1692/BART 1914 (Cacine, 1968/69)


O cap art António J. Pereira da Costa em 1972, no Xime (CART 3494)

Fotos: Cortesia de António José Pereira da Costa / TVAmadora (2024)
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Nota do editor:

Último poste da série > 20 de abril de  2024 > Guiné 61/74 – P25415: Os 50 anos do 25 de Abril (10): Até sempre, Nova Lamego! (José Saúde, ex-fur mil op esp/ranger, CCS / BART 6523, 1973/74)

sábado, 20 de abril de 2024

Guiné 61/74 – P25415: Os 50 anos do 25 de Abril (10): Até sempre, Nova Lamego! (José Saúde, ex-fur mil op esp/ranger, CCS / BART 6523, 1973/74)


Guiné  > Zona Leste > Região de Gabu > Nova Lamego > CCS/ BCAÇ 6523 (1973/74) > 
Na porta de armas,  o pessoal civil  por lá se aglomerava pós 25 de Abril



Guiné  > Zona Leste > Região de Gabu > Nova Lamego > CCS/ BCAÇ 6523 (1973/74) > O José Súde (à direita) com o furriel Santos, minas e armadilhas, no dia da nossa despedida do quartel

Fotos (e legendas): © José Saúde (2024). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Abril em Nova Lamego

por José Saúde


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.

Camaradas,

O 25 de Abril de 1974, dia em que se proclamou a Liberdade, permitiu o regresso dos camaradas, instalados em territórios africanos – Angola, Moçambique e Guiné - onde a guerrilha predominava, à Pátria mãe. Sentiu-se, então, que o fim do martírio de “miúdos” enviados para os palanques da guerra, havia terminado. Era um Abril a rejuvenescer à “sonância” de um cravo vermelho e a rapaziada, eufórica, a preparar-se para um retorno, a casa, antecipado.

Abril, e o seu cravo vermelho!

Somos filhos de longas madrugadas que se imortalizaram no tempo, mas onde a esperança da liberdade residiu permanentemente em nós. Somos também filhos de pessoas humildes, “que comeram o pão que o diabo amassou”, mas que nos educou, o quanto lhes foi possível, uma vez que os tempos da obscuridão ter-lhe-ão coartado a ânsia de mandar os seus descendentes para estudos médios ou superiores, visto que as possibilidades financeiras do clã familiar eram demasiado escassas, ou ainda filhos de um regime totalitário, Estado Novo, onde o poder sobre o mais incauto cidadão impunha ordens absolutas aquando o pessoal reclamava, apenas, um compreensível dia de trabalho que, nesses idos, eram tão-só sazonais.

Os tempos eram outros! Tempos em que a liberdade, melhor, a falta dela em expressar sensibilidades pessoais tinham o condão de enviar os mais destemidos para “campos de férias”, mas onde as grades de uma prisão se apresentavam como inequívocas realidades. Pessoas sérias, honestas, uns “letrados” com então a 4ª classe, já era bom, outros analfabetos, mas cuja altivez dalguns passou pela prisão política. Seres humanos que se entregavam de alma e coração a uma profícua convicção que entendiam como justa e, sobretudo, para o bem do seu povo. Mas, do outro lado, lá estavam sempre atentos os fiéis agentes de um regime que não dava tréguas ao mais honesto plebeu.

Fomos crianças alegres, brincámos na rua, jogámos ao berlinde, à bola, algumas de trapos outras com bexigas de porco cujo enchimento era feito através do ar que vinha dos nossos pulmões, à pata, ao eixo, ao pau da lua, e de tantas outras brincadeiras que ainda hoje recordamos, crescemos a ouvir as barbaridades omnipotentes vindas de um Estado Novo, de agentes de uma PIDE que tudo ou quase tudo dominavam, conhecemos inegáveis sofrimentos de famílias marcados pelos constrangimentos das austeras estratégias de pessoas que envergavam fatos à príncipes de Gales com gravatas de seda pura, mas vimos um dia o desamarrar das âncoras do medo que nos prendiam a uma governação que fora substancialmente impiedosa. 

Porém, o 25 de Abril de 1974, a glorificada Revolução dos Cravos, abriu-nos as portas para a Liberdade e, fundamentalmente, para o conhecer novos mundos e novas realidades.

Perfilho, com toda a legitimidade, que essas lealdades de outrora nos trouxeram novéis conhecimentos, novas vidas, novos universos que harmonizaram em indesmentíveis empatias sociais. Aliás, somos de uma geração que teve a oportunidade em conhecer as remodelações dos lugares, ou, em síntese, reestruturações humanas, créditos estes que paulatinamente se transformariam ao cimo desta imensa esfera chamada Terra.

Assistimos à guerra colonial da qual fomos mais um dos muitos milhares de camaradas que por lá andaram, no nosso caso em solo guineense, sendo que a peleja começou em Angola, 1961, estendendo-se a Moçambique e Guiné, terminando o conflito em terras de além-mar com a queda do poder até então instalado sob o camando dos Capitães de Abril.~

Nós, jovens militares, fomos enviados para o palco de uma guerra na qual os camaradas no momento em que se deparavam com os conteúdos reais da guerrilha, lançavam exclamações de raiva, de revoltas incontidas e de impropérios “berros” que os transportavam para um tabuleiro, que não sendo o de xadrez, mas um outro em que se esculpia a simples frase: “matar para não morrer”!

 Sim, como sabeis camaradas, porque é inevitavelmente verídico, muitos companheiros perderam as vidas nas frentes de combate, outros nas "picadas", ou em emboscadas, outros no interior dos seus quartéis resultantes de ataques noturnos levados a cabo pelo IN, mas quando descansavam num sono, que não sendo profundo, o seu descansar permite-me, agora e sempre, parafrasear uma metáfora que se traduzia, naqueles tempos, num "descansar de armas". E tantos foram os camaradas mutilados e de muitos outros cuja patologia os remete para inesperadas circunstâncias de vidas de todo inesperadas.

Quando a revolução de Abril “rebentou” e se ouviu o som do clarinete a emanar a sonoridade do toque a reunir, este vosso camarada cumpria a missão militar na Guiné, precisamente em Nova Lamego, Gabu. Claro que todos rejubilámos com tamanha aventura. Seguiram-se momentos de intercambio com elementos do PAIGC, o conhecer de rostos com os quais antes havíamos combatido, trocaram-se “galhardetes” e eles, por fim, assenhorearam-se das nossas instalações.

Naturalmente que pelo meio de tanto alvoroço, a população, sempre expectante, não dava tréguas aos camaradas que assumiam o serviço da porta de armas. Reuniam-se em grupo e vá de reclamar quiçá benesses. Os seus semblantes indicavam acumuladas incertezas.

 Compreendia-se. A nossa missão chegara ao fim. Brevemente voltaríamos a casa. Ficava o nosso repto: “até sempre,  Nova Lamego”!

E eis-me, finalmente, no dia 4 de setembro de 1974 com o camarada Santos à porta das nossas instalações de malas feitas e prontos para o embarque num avião Noratlas que nos conduziria ao aeroporto de Bissalanca, seguindo-se uma viagem para o quartel do Cumeré, local onde permanecemos até ao regresso a Lisboa, Figo Maduro.

Momentos inesquecíveis que levarei comigo para a eternidade, tendo em linha de conta aquele Abril, e o seu cravo vermelho!

Abraço, camaradas

José Saúde

Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

19 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25410: Os 50 anos do 25 de Abril (9): "Factum": c. 170 das melhores fotografias do Eduardo Gageiro, no Torreão Nascente da Cordoaria Nacional, até ao próximo dia 5 de maio

sexta-feira, 19 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25410: Os 50 anos do 25 de Abril (9): "Factum": c. 170 das melhores fotografias do Eduardo Gageiro, no Torreão Nascente da Cordoaria Nacional, até ao próximo dia 5 de maio


Foto nº 1


Foto nº 2 

Lisboa  > Cordoaria Nacional  > Torreão Nascente > 16 de abril de 2024 > Galerias Municipais / EGEAC > Até ao dia 5 de maio próximo, está a decorrer a exposição "Factum - Eduardo Gageiro", composta por 167 impressões emolduradas, impressão jato de tinta sobre "archival  fine art  baryta paper".

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2024). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Foto nº 3


Foto nº 4

Foto nº 5


Foto nº 6


Foto nº 7


Foto nº 8


Foto nº 9


Foto nº 9A


Foto nº 9B

Imagens colhidas por Luís Graça (2024),  com o único propósito de ilustrar  a notícia do evento e motivar os nossos leitores para agendarem uma visita o mais rápido possivel... São naturalmente "fracas cópias do original",  em termos técnicos e estéticos.  Com a devida vénia, de resto, ao autor e às Galerias Municipais / EGEAC.


1. Por ocasião dos 50 anos do 25 de Abril, as Galerias Municipais / EGEAC organizaram a exposição de fotografia "Factum", reunindo algumas (cerca de 170) das imagens captadas pelo Eduardo Gageiro (n. Sacavém, 1935), que mostram 7 décadas da evolução do pais, desde os anos 50, nas suas suas diferentes dimensões (política, social, demográfica, cultural, etc.).

Estão, naquele espaço expositivo fabuloso (a Cordoaria Nacional,  enorme edifício fabril pombalino, classificado como monumento nacional), algumas das melhores (e mais dramáticas) imagens do 25 de Abril de 1974, colhidas ali no Terreiro do Paço (e no Carmo):

 (i)  Fotos nº 7, 8, Terreiro do Paço: O ex-alf miliciano Brito e Cunha (à civil, empunhando  uma pistola Walther), Salgueiro Maia (quarto a contar da esquerda) e outros oficiais revoltosos, preparando-se para deter o major de cavalaria Pato Anselmo, do RC 7;

(ii) Fotos nºs 9, 9A, 9B: cap Salgueiro Maia e alf Maia de Loureiro, festejando a vitória, depois  de as tropas do Regimento de Cavalaria 7 terem aderido ao Movimento; sobre esta icónica foto, o Salgueiro Maia disse: "Venho a morder o lábio (foto nº 9B) para não chorar. É que o 25 de Abril venceu-se ali".

Destaque para outros temas,  tais como:

(iii) o trabalho (foto nº 5: depósito de combustível da Sacor, Sacavém, 1960; foto nº  6: obras dee construção  da cidade universitária, Lisboa, 1969);

(iv) a ditadura (foto nº 3: Salazar no Forte de São João do Estoril, 1964;  foto nº 4: Desfile do Dia da PSP, Restauradores, Lisboa, 1966);

(v) personalidades (retratos em geral na intimidade): de Spínola a Ramalho Eanes, de Mário Soares a Cunhal,  de Sophia de Melo Breyner a  Miguel Torga, de Eusébio a Amália...

Esta exposição levou um ano a montar!... Lê-se na ficha técnica: " (...) foram realizadas novas e cuidadas digitalizações, tratamentos de imagem, ampliações e impressões de todas as fotografias selecionadas, a partir dos seus negativos originais"... 

Isto dá  ideia do rigor e do empenho que foi posto no seu planeamento e execução em estreita colaboração com o autor, um dos fotojornalistas portugueses de nível mundial. Exposição a não perder.  (LG)
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Nota do editor:

quinta-feira, 11 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25369: Os 50 anos do 25 de Abril (8): Convite para a inauguração da exposição "O MFA e o 25 de Abril", amanhã, dia 12 de Abril, pelas 17h00, na Gare Marítima de Alcântara - Lisboa (Pedro Lauret, Capitão-de-Mar-e-Guerra Reformado)



1. Mensagem do nosso camarada Pedro Lauret, Capitão-de-Mar-e-Guerra Reformado, com data de 11 de Abril de 2024:

Meu caro Carlos Vinhal,
Venho convidar-vos a estar presentes na inauguração da exposição “O MFA e o 25 de Abril” amanhã pelas 17:00, na Gare Marítima de Alcântara, onde o nosso Blogue figura na Ficha Técnica, assim como o Miguel Pessoa e o Casimiro de Carvalho.

Quem não puder estar presente a exposição estará aberta até fim de Junho, acesso livre, nos horários do Convite.

Forte Abraço
Pedro Lauret

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Nota do editor

Último poste da série de 9 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25359: Os 50 anos do 25 de Abril (7): exposição em Santiago do Cacém, "Filhos da Terra, Soldados do Ultramar"

terça-feira, 9 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25359: Os 50 anos do 25 de Abril (7): exposição em Santiago do Cacém, "Filhos da Terra, Soldados do Ultramar"


Cartaz da exposição "25 de Abril, 50 Anos: Filhos da Terra, Soldados do Utramar", Santiago do Cacém, a inaugurar no próximo dia 12 de abril de 2024.

Fonte: TV Canal Alentejo, 8 de abril de 2024 (com a devida vénia...)


1. Da nossa amiga SS (endereço de email: ssambado@gmail.com ), sobrinha de um camarada nosso, da FAP (Força Aérea Portuguesa), já falecido (em 9 de novembro de 2022),  e que passou pelo TO da Guiné (*), chegou-nos uma notícia que pode interessar aos nossos leitores,  a de um exposição, a ser inaugurada dentro de dias, em Santiago do Cacém, sobre os "filhos da terra" que foram "soldados do ultramar"...

Do Canal Alentejo, respigamos  a seguinte informação sobre o evento (com a devida vénia):

(...) "Entre os dias 12 e 30 de abril, os cidadãos de Santiago do Cacém têm a oportunidade de testemunhar uma parte importante da história nacional através da Exposição 'Filhos da Terra, Soldados do Ultramar'. 

"Esta mostra, que decorre na Biblioteca Municipal Manuel da Fonseca e na Travessa de São Sebastião, é uma oportunidade para refletir sobre a experiência dos santiaguenses que foram soldados durante a Guerra do Ultramar.

"A inauguração da exposição está marcada para o dia 12 de abril, às 15h00, na Biblioteca Municipal Manuel da Fonseca, onde será também apresentado o Arquifolha n.º 5. Este evento inaugural será seguido, às 15h30, por uma conversa com antigos soldados do Ultramar, moderada pelo Dr. Sérgio Pereira Bento, no Auditório da Biblioteca Municipal Manuel da Fonseca.

"A Exposição 'Filhos da Terra, Soldados do Ultramar' é mais do que uma simples coleção de fotografias e relatos. Ela representa uma parte da história vivida por muitos santiaguenses em tempos de guerra, oferecendo um olhar humano e íntimo sobre um período marcante e por vezes doloroso.

"As fotografias, gentilmente cedidas por ex-soldados e suas famílias no âmbito do projeto 'Imagens com História', oferecem um testemunho poderoso e autêntico desse período conturbado. É uma oportunidade única para todos os interessados em compreender e honrar o legado daqueles que viveram esta experiência.

"Esta iniciativa faz parte das Comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, celebrando não apenas a liberdade alcançada nessa data histórica, mas também reconhecendo os sacrifícios e as vivências daqueles que estiveram envolvidos na Guerra do Ultramar. 

"É um convite para todos os cidadãos de Santiago do Cacém participarem nesta jornada de memória e reflexão sobre o passado coletivo de Portugal." (...)

2. Comentário do nosso editor LG:

Agradeço à nossa amiga SS, que regularmemte nos fornece informação relativa aos antigos combatentes. com origem em fontes do seu Alentejo e comunicação social em geral. 

Aproveito também por saudar esta iniciativa do Municipio de Santiagodo  Cacém, ao querer manter viva, 50 anos depois do 25 de abril e do fim da guerra de África / guerra do ultramar / gierra colonial (**), a memória dos seus filhos que lá combateram, e alguns morreram (um total de 32, segundo o portal UTW - Ultramar TerraWen).

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(**) Último poste da série > 1 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25326: Os 50 anos do 25 de Abril (6): "Geração D - Da Ditadura À Democracia", por Carlos Matos Gomes; Porto Editora, 2024 (3) (Mário Beja Santos)

domingo, 7 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25352: Agenda cultural (853): 25 de Abril, Três Livros em Festa: amanhã, dia 8, segunda feira, às 18h30, em El Core Inglés, Lisboa (Manuel S. Fonseca, Ed. Guerra e Paz)





1. Mensagem do Manuel S. Fonseca, da editora Guerra e Paz:  

Data - 7 de abril de 2024, 14:45
Assunto - Um convite muito livre que mete livros
Cartoon de Nuno Saraiva



Gostava muito que viesse.
Vai ser uma festa. Amanhã, às 18:30, 
no El Corte Inglès. 

Não prometo que seja assim, como no desenho do Nuno Saraiva,  mas lá que haverá “vivas” a organismos…

Sem sermões, com humor e liberdade. E um delicioso cocktail no final. 

Até amanhã.

2. Mais informação sobre o evento:

O Âmbito Cultural do El Corte Inglés e a Editora Guerra e Paz têm prazer de convidar para a apresentação dos livros :
  • “Antes do 25 de Abril: Era Proibido”,  de António Costa Santos;
  • “50 Anos de Abril no Algarve, Uma Revolução Tranquila na Escrita dos Dias”,  de Ramiro Santos;
  • “25 de Abril, No Princípio era o Verbo”,  de Manuel S. Fonseca e Nuno Saraiva;
a realizar-se no dia 8 de Abril, pelas 18h30,a na Sala de Âmbito Cultural, piso 6, El Corte Inglés de Lisboa.

Sinopse 

Talvez – e já comecei mal, qual talvez, qual carapuça! Nunca mais voltaremos a ter um dia tão deliciosamente festivo, inocente e delirante, como aquele. E eu nem preciso de dizer: sabem todos muito bem, qual foi. 

Ora vejam, malta exaltada a correr pelas ruas com a palavra liberdade a sair-lhes cantada e chorada da boca para fora. Uns, maravilhosamente malvestidos, cabelos desgrenhados, calças à boca de sino, anarcas de corpo e alma, espantadíssimos a gritar, cheios de ironia, «Anarquia, sim, mas não tanto, por favor»; outros, seriíssimos militantes – vá lá, tipo mrpp –, punhos a bater no peito, como se o coração fosse um tambor, clamando «Estaline está morto, mas vive nos nossos corações». 

Eis a liberdade sem freios, pura, esfusiante. 

A editora Guerra e Paz concentrou essa liberdade em três livros, cujos seus autores são as vedetas da sessão mais livre e mais divertida dos 50 anos do 25 de Abril. Esta sessão.

segunda-feira, 1 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25326: Os 50 anos do 25 de Abril (6): "Geração D - Da Ditadura À Democracia", por Carlos Matos Gomes; Porto Editora, 2024 (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Março de 2024:

Queridos amigos,
É o término da viagem memorial de um Capitão de Abril que escolheu um longo itinerário e não hesitou em dizer-nos como levou uma vida pautada por decisões de risco e pela independência de pensamento. Tenho sérias dúvidas que algo parecido possa surgir tão cedo à volta deste meio século que abarca o fim do império e as sinuosidades que têm atravessado o nosso sistema democrático.

Um abraço do
Mário


Porventura o testemunho mais eloquente sobre a guerra colonial e o depois,
Palma de ouro para a literatura nas comemorações dos 50 anos do 25 de Abril (3)


Mário Beja Santos

Carlos de Matos Gomes é o romancista Carlos Vale Ferraz, autor do romance mais influente de toda a literatura de guerra colonial. Agora muda de rosto, volta a ter perto de 20 anos, faz comissões em Angola, Moçambique e na Guiné, prepara muita gente para a guerra, pertenceu ao grupo mais ativo do MFA na Guiné. Posteriormente, envolveu-se no processo revolucionário, chegou a hora de fazer um balanço do que viveu e do que se lembra.

Acaba de sair o seu livro de memórias "Geração D, Da Ditadura à Democracia", agora é, sem margem para equívocos, Carlos de Matos Gomes, Porto Editora, 2024, um assombroso ecrã sobre as primícias da guerra, os seus bastidores, o funcionamento da hierarquia castrense, a burocracia, sobretudo o exame de consciência do que é que um oficial do quadro permanente ia assimilando nas matas e nos quartéis quanto ao tremendo equívoco que era procurar até ao desespero urdir uma ficção sobre a propaganda doutrinal do Estado Novo sobre uma “guerra justa” para aquele império com pés de barro. 

É esta a parte das memórias construídas com uma assombrosa arquitetura literária que aqui se procura, aos poucos, desvelar.

Cumpriu três missões em Angola, Moçambique e Guiné, louvado e condecorado, preparou uma companhia de Comandos de que foi seu comandante, o cenário de Moçambique foi determinante para ele questionar a fundo o mais que havia para além da honra e do dever, para além da vasta panóplia de requisitos que impõem a vida militar, vai numa operação em que o guia é um negro que promete levá-los a um objetivo, vai amarrado a um dos seus homens, uma inquietação sem limites começa a tomar-lhe a razão, que causa o ligava àquele negro e aos homens que estavam sob o seu comando? Que causas justificava a presença de cada um deles naquele palco? 

Tomou nota de que operações como a Nó Górdio nada resolviam, revolvia-se um território, a guerrilha e a população civil acoitavam-se até a operação passar, tudo voltava ao princípio, se bem que a comunicação social afeta ao regime louvaminhasse o feito, era a política da representação.

Geração D é um singularíssimo livro de memórias, já se disse o que este militar viveu até ao 25 de Abril e como ele, e muitos dos seus camaradas tiveram a possibilidade de ver na Guiné que se caminhava para uma hecatombe, tudo iria redundar num bode expiatório, seriam os militares os maus da fita, resolvido o incómodo da Guiné, julgavam os avatares no Estado Novo, todos os meios iam ser postos à disposição das joias imperiais, Angola e Moçambique, contava-se com o auxílio da África do Sul e da Rodésia. 

Matos Gomes adere ao 25 de Abril, alista-se na esquerda revolucionária, põe ênfase na relação que estabelecera com Jaime Neves e como seguiram vias separadas. Detalha o verão quente, as manobras, as alianças, os documentos, a ação de Otelo, o papel do COPCON, a mestria de Costa Gomes de gerir as fações, a impor o acatamento, recorda também como os paraquedistas voltaram a ser traídos.

Findo o 25 de novembro, Matos Gomes está suspenso, aguarda ser chamado ao Conselho Superior de Disciplina do Exército, é convocado e conta-nos o que aconteceu:

“O general promotor leu a acusação com fraco entusiasmo. Formalmente era acusado de ter assinado um documento, o mais comum dos crimes na altura. Entreguei um passaporte que revelava, através dos carimbos das alfândegas, que naquela data me encontrava na Alemanha. Recebera um telefonema de um dos signatários a perguntar se subscrevia mais este documento. Claro que sim. Estávamos do mesmo lado da barricada. 

Também era acusado pelo novo Chefe do Estado-Maior de ter assinado um outro, num encontro no Regimento de Polícia Militar, resultante de uma reunião determinada por Otelo Saraiva de Carvalho, na qualidade de comandante do COPCON. Entreguei aos generais uma ordem de serviço do Hospital Militar onde constava o meu nome e o do Chefe do Estado-Maior, então major e ainda meu contemporâneo na Academia Militar. 

Face a estes factos, concluía pela má-fé do Chefe do Estado-Maior e pedia para constar na ata do julgamento a minha queixa formal contra ele. De seguida, o general presidente deu-me a palavra. Tratava-se do julgamento político de um conflito entre defensores de opções políticas para a sociedade, e a disciplina não é, ou não devia ser, utilizada para esse fim. Estava à mercê da força e não do direito, menos ainda da disciplina. 

O general presidente deu a sessão por encerrada, mas antes do Conselho pedir para eu me retirar, a fim de deliberar, o General Leão Correia, a olhar para o meu uniforme cinzento sem uma condecoração ou emblema, limpo, perguntou-me por que não trazia as fitas com as duas cruzes de guerra com que fora agraciado. Apresentei as razões que me levaram a não usar condecorações: a primeira das cruzes de guerra havia-me sido imposta em Bissau, por um General Comandante-Chefe, Spínola, perante forças em parada, comandadas por um coronel, também ele condecorado. A segunda fora-me entregue há uns meses na secretaria da Direção de Arma de Cavalaria pelo Sargento Leitão, dentro de um envelope, como se fossem umas peúgas. ‘Ora, como não sei se foi a primeira a forma correta de ter sido condecorado, ou a segunda, para não ofender o Exército, decidi não usar condecorações até que seja esclarecido.’ 

O veredito do Conselho reconheceu-me idoneidade para continuar a ser oficial do Exército.”

Matos Gomes é mandado apresentar-se no Serviço Prisional Militar, com sede no edifício da PIDE/DGS, torna-se carcereiro, estão ali algumas figuras graúdas da PIDE. Procura aprofundar o que aconteceu após o 25 de novembro de 1975. Fez 30 anos, tinha uma casa, uma mulher e uma filha com 1 ano, houve eleições legislativas e autárquicas, a cena política internacional transfigurava-se, por cá vivia-se aconchegado com a normalidade democrática, as coisas não corriam favoravelmente às ex-colónias portuguesas. 

Exara nas suas memórias o poder sugestivo que lhe deixou ter-se envolvido no poder popular. Acompanhou Otelo em parte da sua caminhada, era um ser estranho entre aquelas organizações, não era marxista-leninista, revela o seu quadro de pensamento: 

“Rejeito a luta de classes como o princípio dominante das transformações políticas, entendo-a apenas como mais um, e não o determinante. A propósito desse elemento determinante, nunca soube nem procurei descobrir qual é a gota de água que faz transbordar o copo, mas assisti a intermináveis discussões teológicas com muito fumo e fé sobre o assunto. 

Também não perfilhava o princípio da necessidade histórica da alteração das relações de poder ser liderada pela vanguarda do proletariado, pelo partido. Nem era adepto de uma ditadura do proletariado, que ofendia a minha liberdade, a ideia de igualdade dos seres humanos, independentemente da posição que ocupam no processo de trabalho, e contrariava a realização das ditaduras do proletariado estabelecidas.” 

Afastar-se-á das Forças Populares 25 de Abril quando surgiu a radicalização da violência armada.

Lançou-se na escrita, louva o seu quadro de amigos, exulta com a camaradagem que pode manter com um punhado de militares. E a viagem prossegue. 

Quem escreve estas memórias singularíssimas, quem continua a intervir ativamente como observador atento e com opiniões aceradas, é o mesmo escritor que nos legou Nó Cego, Soldadó ou A Última Viúva de África

Há que saudar quem coligiu este punhado de anotações tão íntimas que vão da ditadura à democracia e dizer sem hesitações que não há nada parecido na literatura portuguesa, pois é o testemunho de um bravo militar, um capitão do MFA, alguém que foi revolucionário e nos doou a mais bela joia da literatura da guerra colonial, como se afirmasse, ponto por ponto, que a sua coerência e postura política não estão à venda.

quarta-feira, 27 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25310: Os 50 anos do 25 de Abril (5): Exposição de fotografias de Alfredo Cunha, Galeria Municipal Artur Bual, Jan-jun 2024: "25 de Abril de 1974, Quinta-feira"


Cartaz da exposição. Gravura de Alexandre Farto / Vhils (capa do livro do Alfredo Cunha, com o mesmo título: "25 de Abril de 1974, Quinta-feira" ( Lisboa, Tinta da China, 2023)


Exterior da Galeria Municipal Artur Bual, Amadora


Interior da exposição (i) 


Interior da exposição (ii) 


Interior da exposição (iv) 


Cartaz de rua (detalhe)


Fotograma (1)


Fotogramaa (ii)





Excerto do  texto do jornalista 
 Luís Pedro Nunes


Fotograma (iii): Excerto de texto do Carlos Matos Gomes


Interior da exposição (iv)

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2024). Todos os direitos reservados. [Edição:  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Está a decorrer, na Galeria Municipal Artur Bual, na Amadora, a exposição "25 de Abril de 1974, Quinta feira.
 Fotografias de Alfredo Cunha". Multimédia e música de Rodrigo Leão. 

A exposição termina em meados de Junho de 2024.
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Nota do editor: 

Último poste da série > 25 de março dfe 2024 > Guiné 61/74 - P25307: Os 50 anos do 25 de Abril (4): "Geração D - Da Ditadura À Democracia", por Carlos Matos Gomes; Porto Editora, 2024 (2) (Mário Beja Santos)