O SOLDADO
Nas sortes não se safou,
já homem bebeu e fumou,
em braços em casa entrou,
aa farda não se livrou.
A sorte Guiné ditou,
estúpida guerra enfrentou,
três gritos por quem lá ficou,
pelo povo se emocionou.
Em 1972, Spínola já não tem ilusões sobre a vitória militar, disse-o frontalmente no final do ano anterior no Conselho Superior da Defesa Nacional, a situação é crítica, carece de mais recursos humanos e de novos armamentos para retomar a iniciativa, o Governo de Lisboa nada tem para oferecer.
Mas o seu livro de memórias não se confina ao que ele viveu no Tombali, tem um muito antes, o seu meio familiar, a cultura que o embebeu e de que se orgulha, os usos e costumes do seu lugar, a religiosidade, todo aquele ambiente em que ainda era impensável falar-se na sociedade de consumo, naquela atmosfera havia baldios, mercearias e tabernas e viagens extenuantes até ao local de trabalho, como ele testemunha.
Até esta narrativa do livro de memórias, estou absolutamente seguro de que o leitor ficará cativado pela ternura que emana destas recordações do pai José, da mãe Gracinda, do elenco dos manos, dos acontecimentos do quotidiano, tudo numa aldeia onde o Minho acaba e o Douro começa, vida dura, aliviada por feiras e romarias e o embasbacamento da descoberta do cinema e também da televisão.
O autor, também conhecido por o Furriel Pequenina, falará da guerra sem alardes de heroísmo ou farroncas de que andou de peito feito às balas. Em dado passo começará um parágrafo por dizer “Por considerar humanamente relevante”, considerei a expressão um achado de tudo quanto escreveu quer na primeira edição quer na segunda.
Lá foram numa LDG até Buba, daqui até Aldeia Formosa. Nada de excessos no batismo de fogo, mas muita ênfase será dada às minas, as anticarro e as antipessoal. E depois do Natal em Aldeia Formosa chega a hora de partir para Cumbijã, uma terra de ninguém, um posto abandonado, também aqui se vai reocupar um lugar do Cantanhez.
E assim nasce Cumbijã, confesso que me emociona imenso as imagens daqueles tijolos amassados, vivi peripécia semelhante noutras paragens da Guiné, mais propriamente no regulado do Cuor, no Centro-Leste, uma flagelação brutal reduziu a cinzas dois terços das moranças e assentos militares, tivemos de fazer algo análogo ao que o autor descreve, Cumbijã a sair do nada e com flagelações de canhão sem recuo bastante frequentes. E é muito bonito saber que o forno deixado em Cumbijã ainda hoje coze pão para toda a região.
A Grande Empresa será um assunto arrumado pelos acontecimentos de 1973, nomeadamente com a Operação Amílcar Cabral, que levou à retirada de Guileje e aos terríveis acontecimentos de Guidaje e Gadamael. Tanto sofrimento para nada.
Se já houve o antes e o durante a guerra, temos o depois, as histórias do regresso, a vida de professor depois de acabar o curso, um saltitar por Santo Tirso, Portalegre, Santarém e muito mais, um encanto de memórias avulsas, mas aonde a questão central foi o que se viveu e como se fez homem naqueles pontos do Tombali, no aceso de uma temível guerra de guerrilhas, onde aquele jovem vindo de uma aldeia entre o Minho e o Douro aprendeu que há uma camaradagem que ficará para toda a vida.
Um abraço fraterno a este contador de histórias, um narrador de afetos, exímio no que deve ser o nosso dever de memória.
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(**) Último poste da série > 8 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26022: Lembrete (47): Sessão de apresentação do livro "O (Ainda) Enigma da Vida Intelectual e Científica de João Barreto", de Mário Beja Santos, a ter lugar no próximo dia 10 de Outubro de 2024, quinta-feira, pelas 16h00, na Sociedade de Geografia de Lisboa