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À porta do IPO, à espera de Deus e de remédio para as suas obras imperfeitas
por Luís Graça
Aqui, esperas, desesperas, esperas. Que a esperança é a última coisa a morrer, diziam-te na tropa os gajos mais otimistas, os safados dos instrutores, sobretudo dos coirões, velhos, dos cabos RD, readmitidos, que sabiam que já não iam à guerra, nem nunca morreriam docemente pela Pátria.
Joga-se com a teoria das probabilidades: daqui a cinco a anos, terás cinco por cento de hipóteses de estar vivo, se te diagnosticarem um cancro no pâncreas, diz o teu amigo que está lá dentro a esta hora… Pálido como a cal da parede, sentado na sala de espera, esperando o pior, imaginas tu... Como o réu que aguarda a sentença de morte do coletivo de juizes...
Também ele espera, desespera, espera. Imaginas tu, que nunca entraste no IPO, por medo, por superstição, ou muito simplesmente porque nunca até agora precisaste de lá ir. (Cruzes, canhoto!)...
Enganas-te, já não se pintam paredes com cal, que era antigamente um bom desinfetante. Nem se cobrem os mortos com cal, hoje são cremados, sobretudo se morrerem de cancro. Dantes, no tempo em que morreu a tua mãe, não se pronunciava sequer a palavra cancro, escrevia-se nos jornais, na notícia necrológica, que o fulano ou fulana de tal morrera de doença de evolução prolongada. Ou grave e incurável. De doença maligna. Um eufemismo. Um pudor hipocrático. Uma hipocrisia social. Como se houvesse doenças benignas!...E uma boa morte! (É verdade, evitamos pronunciar palavras como cancro ou morte.)
E quem vem da província, não está habituado ao trânsito de Lisboa. Foste buscá-lo ontem a Sete Rios, que é ali perto do IPO. Desta vez, veio no "Expresso", de vespera. Ficou na tua "morança", agora demasiado grande para um homem que vive só. Ofereceste-te para ir buscá-lo a casa. Recusou, polidamente. Se tivesses insistido, teria aceite. Quando vier aos tratamentos, se vier (mas é o mais provável(, virá de ambulância. É sócio dos bombeiros da terra, não longe da capital, em Samora Correia. Trabalhou como técnico agrícola lá nas Lezírias. Acabara de se reformar há pouco tempo. ("Um gajo reeforma-se e, zás!, cai-lhe tudo em cima, mano!... Parece que alguém nos quer cobrar a fatura por, continuando vivos, sermos um peso morto para os ativos"...)
2. Farmácia Curie, nº 15A. Frente à entrada principal do IPO. Grande cartaz publicitário, que cobre a montra. Faz propaganda a um “medicamento” que, depois, vai-se a saber, é apenas uma “vitamina”… Uma "mesinha", como se dizia na Guiné. Um placebo, uma droga para enganar doentes e sãos. Do Laboratório Militar, que dava para tudo, até para a tusa, o paludismo, a dor de corno, a blenorragia, a saudade, a neuratesnia, o medo... Tomavam-se com uísque, as "pastilhas LM"...
Mas qual a diferença entre uma coisa e outra, numa botica onde é pressuposto vender-se tudo o que te faz bem à saúde e até o que te envenena e te mata?!... E ainda por cima tem o nome de alguém, uma mulher, que nunca foi boticária, a Madame Curie, a avaliar pelo que tu sabes das palavras cruzadas. Prémio Nobel de qualquer coisa, física ou química, sabes lá. Que a tua incultura geral é do tipo Reader's Digest.
Esperas dentro do carro, mal estacionado, em segunda fila. E, talvez para não desesperares, jogas o jogo do “voyeurista”. Não, não espreitas o mundo pelo buraco da fechadura, mas estás meio escondido, na semiobscuridade do interior do teu carro, a ver o que se passa lá fora, à tua volta… Simplesmente, para passar o tempo, fazer horas... Não sejas cínico. muito menos medricas: estás apenas a tentar a disfarçar o nervoso miudinho, a tentar esquecer ao que vieste, acompanhar um amigo em sofrimento, com uma espada de Dâmocles em cima da cabeça...
Do teu posto de observação, vê-se num raio de noventa graus. Aqui o teu olhar, mesmo distraído, é seletivo. O olho de periscópio do camaleão podia ter-te dado jeito lá na guerra, quando atravessavas a bolanha ou cambavas o rio, mas não aqui, que tens para ver apenas o que se passa entre o nº 15 e o nº 19 do prédio ou prédios, à tua frente, no início da Av Madame Curie.
Por uma questão, digamos, de eficiência oftalmológica, tens de estreitar o teu campo de visão. Tens duas palas nos olhos, com o o burro. É um ângulo de noventa graus, abarcando sensivelmente um quarto do pequeno, pequeníssimo, mundo que te circunda e estrangula. Há gente que vive assim e morre na cama, feliz. Não acreditas, mas o que é que te contam: "felizardo, teve uma morte santa, não sofreu nada, foi um ar que lhe deu!|"...
Uma nesga do planeta que nada tem de deslumbrante, empolgante ou minimamente interessante . O que tu vês é o pequeno mundo do formigueiro humano, mesmo que seja gigante aos olhos da formiga: a saída de casa para a rua, o metro, o trabalho, o café, a creche, a escola, o hospital, ou o simples passeio higiénico com o cão pela trela… Nem sequer vês quem entra e quem sai do IPO, estás de costas. Uns com cancro, outros sem cancro, e os outros que cuidam de quem está doente, ou vai visitar um doente... Mas era talvez o único sítio que te deveria prender a atenção: daqui a um bocado o teu amigo (e antigo camarada de armas) sai, cabisbaixo ou de cabeça erguida…
Estás inclinado a apostar que ele sairá de cabeça erguida, mesmo com um prognóstico reservado: era, tanto quanto te lembras dele na Guiné, à distância de meio século, um dos gajos tesos, que mostravam grande lucidez, dignidade, calculismo, sangue-frio e coragem na adversidade. Qualidades, de resto, que lhe valeram um louvor, e que faltavam a outros tantos, com mais divisas ou galões do que ele.
Nunca tiveste grandes amigos na vida. Se é que tiveste amigos... E muito menos daqueles do peito, como se costuma dizer. Este é um deles, dos muito poucos que te ficaram para a vida. Estiveram, ambos, na guerra, tu e ele. Sempre te tratou por "mano". Ele, o Zé Conde, era um exímio caçador, e tu um reles fotógrafo amador, nas horas vagas.
Do teu posto de observação, vê-se num raio de noventa graus. Aqui o teu olhar, mesmo distraído, é seletivo. O olho de periscópio do camaleão podia ter-te dado jeito lá na guerra, quando atravessavas a bolanha ou cambavas o rio, mas não aqui, que tens para ver apenas o que se passa entre o nº 15 e o nº 19 do prédio ou prédios, à tua frente, no início da Av Madame Curie.
Por uma questão, digamos, de eficiência oftalmológica, tens de estreitar o teu campo de visão. Tens duas palas nos olhos, com o o burro. É um ângulo de noventa graus, abarcando sensivelmente um quarto do pequeno, pequeníssimo, mundo que te circunda e estrangula. Há gente que vive assim e morre na cama, feliz. Não acreditas, mas o que é que te contam: "felizardo, teve uma morte santa, não sofreu nada, foi um ar que lhe deu!|"...
Uma nesga do planeta que nada tem de deslumbrante, empolgante ou minimamente interessante . O que tu vês é o pequeno mundo do formigueiro humano, mesmo que seja gigante aos olhos da formiga: a saída de casa para a rua, o metro, o trabalho, o café, a creche, a escola, o hospital, ou o simples passeio higiénico com o cão pela trela… Nem sequer vês quem entra e quem sai do IPO, estás de costas. Uns com cancro, outros sem cancro, e os outros que cuidam de quem está doente, ou vai visitar um doente... Mas era talvez o único sítio que te deveria prender a atenção: daqui a um bocado o teu amigo (e antigo camarada de armas) sai, cabisbaixo ou de cabeça erguida…
Estás inclinado a apostar que ele sairá de cabeça erguida, mesmo com um prognóstico reservado: era, tanto quanto te lembras dele na Guiné, à distância de meio século, um dos gajos tesos, que mostravam grande lucidez, dignidade, calculismo, sangue-frio e coragem na adversidade. Qualidades, de resto, que lhe valeram um louvor, e que faltavam a outros tantos, com mais divisas ou galões do que ele.
Nunca tiveste grandes amigos na vida. Se é que tiveste amigos... E muito menos daqueles do peito, como se costuma dizer. Este é um deles, dos muito poucos que te ficaram para a vida. Estiveram, ambos, na guerra, tu e ele. Sempre te tratou por "mano". Ele, o Zé Conde, era um exímio caçador, e tu um reles fotógrafo amador, nas horas vagas.
Ele sempre foi muito mais corajoso e determinado do que tu: como caçador saía ao lusco-fusco, sempre convicto de que ia caçar alguma coisa de jeito, na orla da bolanha, no charco onde a bicharada ia dessedentar-se ou, à noite, no fim da pista de aviação, onde crescia a erva que fazia as delícias de alguns animais. Quem espera, sempre alcança. E ele apanhava lebres, galinhas de mato, rolas, raramente caça grossa, quando muito uma gazela ou um javali. Qualquer coisa, enfim, com que a malta pudesse matar a malvada nos dias seguintes, lá na messe.
Tu eras como o fotojornalista do quotidiano: punhas a tua máquina a tiracolo, uma Minolta (se bem te lembras) e ias dar um giro domingueiro pelas tabancas. Nunca foste capaz de levar a máquina para o mato, para uma operação. Aliás, nunca foste sequer um fotógrafo de jeito. E perdeste tantos momentos de tirar fotos com sangue, suor e lágrimas, ou seja com emoção, que é afinal o "spice of life", o sal da vida!
Há tempos ele pediu-te para o acompanhares até ao IPO. "Alguma coisa de grave?", pergunta, estúpida, da tua parte. "Eh!, pá, porra, ainda não sei bem..., parece que estou com um cancro", respondeu-te ele... Ele não disse logo cancro, disse carcinoma, neoplasia, linfoma, ou outra merda qualquer, enfim, um vocábulo mais técnico, mais neutro, mais enganador... "Mas hoje não há nada que não tenha remédio, até o sacana do cancro", arrematou depois, com ironia. "Parece que estou com um carcinoma na próstata, estou o PSA alto como o caraças... O urologista fez o toque recta e mandou-me fazer uma biópsia, nal sinal... Vou lá saber o veredicto".
Ficaste sem pinga de sangue, sem jeito para lhe responder, assim apanhado de chofre. Balbuciaste umas palavras, secas, de circunstància, com mais compaixão do que de solidariedade. Tentaste gracejar, aliviar a tensão: "Não há de ser nada... Os amigos são para as ocasiões... Vou contigo ao IPO, nunca lá entrei, nem sei bem o caminho... mas a gente desenrasca-se".
Há tempos ele pediu-te para o acompanhares até ao IPO. "Alguma coisa de grave?", pergunta, estúpida, da tua parte. "Eh!, pá, porra, ainda não sei bem..., parece que estou com um cancro", respondeu-te ele... Ele não disse logo cancro, disse carcinoma, neoplasia, linfoma, ou outra merda qualquer, enfim, um vocábulo mais técnico, mais neutro, mais enganador... "Mas hoje não há nada que não tenha remédio, até o sacana do cancro", arrematou depois, com ironia. "Parece que estou com um carcinoma na próstata, estou o PSA alto como o caraças... O urologista fez o toque recta e mandou-me fazer uma biópsia, nal sinal... Vou lá saber o veredicto".
Ficaste sem pinga de sangue, sem jeito para lhe responder, assim apanhado de chofre. Balbuciaste umas palavras, secas, de circunstància, com mais compaixão do que de solidariedade. Tentaste gracejar, aliviar a tensão: "Não há de ser nada... Os amigos são para as ocasiões... Vou contigo ao IPO, nunca lá entrei, nem sei bem o caminho... mas a gente desenrasca-se".
Em Lisboa não tem ninguém. E dos dois filhos, o que está mais perto é em Angola, de quem, aliás, és padrinho de casamento. Tem um outro na Austrália. Somos um raio de um povo repartido pelos cinco continentes, com os filhos, os sobrinhos e os netos separados, por mares e oceanos, dos pais, dos tios e dos avós.
2. Farmácia Curie, nº 15A. Frente à entrada principal do IPO. Grande cartaz publicitário, que cobre a montra. Faz propaganda a um “medicamento” que, depois, vai-se a saber, é apenas uma “vitamina”… Uma "mesinha", como se dizia na Guiné. Um placebo, uma droga para enganar doentes e sãos. Do Laboratório Militar, que dava para tudo, até para a tusa, o paludismo, a dor de corno, a blenorragia, a saudade, a neuratesnia, o medo... Tomavam-se com uísque, as "pastilhas LM"...
Mas qual a diferença entre uma coisa e outra, numa botica onde é pressuposto vender-se tudo o que te faz bem à saúde e até o que te envenena e te mata?!... E ainda por cima tem o nome de alguém, uma mulher, que nunca foi boticária, a Madame Curie, a avaliar pelo que tu sabes das palavras cruzadas. Prémio Nobel de qualquer coisa, física ou química, sabes lá. Que a tua incultura geral é do tipo Reader's Digest.
"Absorvit – don't worry, be happy!”: em inglês, em letras garrafais, para consumo do turista estrangeiro que, por engano, se aventurar por estas bandas da cidade onde o trânsito é caótico, por causa das obras na Praça de Espanha.
E, logo a seguir, em letras mais pequenas, tipo legenda de filme, para o indígena lusitano, tratado por você, por deferência ou cinismo: “Sente-se em baixo? Viva o seu lado positivo da vida”. (Eh!, pá, o gajo que traduziu a frase, devia ter apanhado um monumental chumbo no exame em inglês!).
Mas adiante: ficas a saber que o “Absorvit é muita vitamina”… E registas no teu bloco de notas: “A vida tem dois lados, ou dois polos: um positivo, outro negativo. E às vezes funde-se como as lâmpadas”. Já lá vai o tempo em que se fabricavam lâmpadas elétricas e fusíveis para toda a vida... Que bom, quando na vida não havia curto-circuitos ! (... Idiota, quem te meteu essa cabeça?!)
E, logo a seguir, em letras mais pequenas, tipo legenda de filme, para o indígena lusitano, tratado por você, por deferência ou cinismo: “Sente-se em baixo? Viva o seu lado positivo da vida”. (Eh!, pá, o gajo que traduziu a frase, devia ter apanhado um monumental chumbo no exame em inglês!).
Mas adiante: ficas a saber que o “Absorvit é muita vitamina”… E registas no teu bloco de notas: “A vida tem dois lados, ou dois polos: um positivo, outro negativo. E às vezes funde-se como as lâmpadas”. Já lá vai o tempo em que se fabricavam lâmpadas elétricas e fusíveis para toda a vida... Que bom, quando na vida não havia curto-circuitos ! (... Idiota, quem te meteu essa cabeça?!)
Fazes coleção de frases feitas, expressões lapidares, lugares comuns, grafitos, provérbios excêntricos, anexins, citações famosas... É um dos teus passatempos, além da sopa de letras, no café do teu bairro, com a bica depois do almoço. Disseram-te que era bom para prevenir o Alzheimer, ou pelo menos adiá-lo. És um hipocondríco de merda, tens um medo das doenças que te pelas. De resto, quem não tem? Até os médicos e os padres...
Espantosamente os muros do IPO parecem estar livres dessa peste dos grafiteiros. Talvez os gajos sejam supersticiosos e lá, no mais recôndito do seu íntimo, tenham um medo do caraças do deus do cancro que os vigia, qual big brother. Não acreditas em deus, mas começas a suspeitar que há um deus do cancro. Ou até que há um deus para tudo.
E vem-te à cabeça, uma frase cruel que te impressionou, do Camilo Castelo Branco, nas "Memórias do Cárcere":
"Ignoro (...) se Deus deixou remédio para os defeitos das suas obras; confesso só que é um blasfemo atrevimento querer-lhas corrigir"...
Conhecias outra, um provérbio, que é ainda mais devastador para um crente:
"Se Deus o marcou, é porque algum defeito lhe achou".
De que vale, afinal, um gajo, lutar contra o destino, se o teu corpo já traz, logo à nascença, as marcas dos "defeitos de fabrico"?!... E as taras todas dos teus antepassados até à cagagésima geração!...
Mesmo assim, não te deixas intimidar: aqui estás, à porta do IPO, à espera de Deus e de remédio para as suas obras imperfeitas
Enfim, ficas pelo menos a saber que há um lado da vida que se trata com antibiótico, outro com vitamina. Antibiótico, faca, bisturi, laser, radioterapia, isótopos, quimioterapia, penicilina, morfina, etc., vem tudo a dar no mesmo. O que será o que esconde aquela fachada do IPO onde nunca entraste? Daqui a uns anoos nem batas brancas haverá, serás tratado por robôs, muito mais inteligentes do que tu...
Não disfarças a tua ansiedade, confessa. Nunca lidaste bem com as doenças, sobretudo a dos outros. E muito menos com a morte dos que te eram queridos: a tua primeira mulher, ainda tão jovem, os teus pais, já velhotes... Estás a escrever furiosamente como se fumasses cigarros uns atrás dos outros. Já não fumas há muito. Desde os anos 80, quando apanhaste aquela maldita pneumonia, a seguir a uma vulgar gripe sazonal. Ou crise palúdica, febrões, sezões de África?! ...
Enfim, ficas pelo menos a saber que há um lado da vida que se trata com antibiótico, outro com vitamina. Antibiótico, faca, bisturi, laser, radioterapia, isótopos, quimioterapia, penicilina, morfina, etc., vem tudo a dar no mesmo. O que será o que esconde aquela fachada do IPO onde nunca entraste? Daqui a uns anoos nem batas brancas haverá, serás tratado por robôs, muito mais inteligentes do que tu...
Não disfarças a tua ansiedade, confessa. Nunca lidaste bem com as doenças, sobretudo a dos outros. E muito menos com a morte dos que te eram queridos: a tua primeira mulher, ainda tão jovem, os teus pais, já velhotes... Estás a escrever furiosamente como se fumasses cigarros uns atrás dos outros. Já não fumas há muito. Desde os anos 80, quando apanhaste aquela maldita pneumonia, a seguir a uma vulgar gripe sazonal. Ou crise palúdica, febrões, sezões de África?! ...
Chegaste a temer tratar-se da doença nova que então espalhava o terror entre a malta que estivera em África, o HIV-Sida. No teu caso, na Guiné e depois em Angola. Lembras-te do médico que não conseguiu escondeu o nervosismo: depois de te apalpar o baixo ventre, foi logo direitinho ao lavatório do cubículo para lavar as mãos... O que estranhaste: os médicos que tu conhecias, até então não lavavam as mãos à frente do doente... Afinal, o ato médico sempre foi revestido de uma certa sacralidade...
Há um corropio de gente que vai comprar tabaco ou cartões da raspadinha. E mais raramente o jornal... Acabam de entrar e sair dois jogadores compulsivos, com o ar de quem não acordou em dia de sorte. Para tudo é preciso sorte. No amor, no jogo, na caça, na política, na guerra. Mas tentam, uma e outra vez. Contaste até seis, as raspadinhas que eles deitaram fora. Depois desistiram e perderam-se no meio da multidão, ao dobrar da esquina. Irritados, chateados... Amanhã talvez tenham mais sorte. Afinal, só calha a quem joga. Também devem acreditar que há um deus da sorte, como há um deus do cancro, e do amor, e do jogo, e da caça, e do poder, e da guerra.
As mães levam as criancinhas para a escola, logo de manhã. Vão com ar ensonado, as criancinhas, ainda a comer o resto do papo-seco. Por que é que, meu Deus, dão pão de plástico às criancinhas?!... Passeiam os vizinhos os cãezinhos. Um pai, com ar apressado, leva um carrinho de bebé, com duas crianças, a mais velha dependurada no estribo, em posição instável. Já vão atrasados para a escolinha.
Os velhos, como tu, já apareceram nas esplanadas, a seguir à Tabacaria e Papelaria Polana, no nº 17A, se não erras. Não perdem pitada dos primeiros raios de sol. E que raio de nome é o do restaurante, no nº 19? “Bogani Desperta Caxito”, lê-se no toldo. Café, pastelaria, take away, restaurante Caxito. Outro topónimo de ressonância africanista, neste caso uma cidade de Angola, a norte de Luanda, mas onde tu nunca foste quando lá estiveste. Quanto a Bogani, é marca de café, deduzes tu. Bogani Desperta. Enquanto há gente que espera, desespera, espera, à porta do IPO..., ficas a saber que o Bogani Desperta, diz a publicidade no toldo.
Não é mal pensado, um comes & bebes aqui à beira de um hospital, para mais oncológico, por onde passam centenas, milhares de pessoas, todos os dias. Um gajo pode estar a morrer de cancro, mas continua a comer todos os dias, nem que sejam bifanas, pizas ou hambúrgueres (se é assim que se escreve).
E no nº 17 o restaurante Quinta Avenida. Que nome pomposo! Faltam-te os arranha-céus, para te sentires em Nova Iorque. O edifício mais alto, por aqui, ainda é o velhinho, quase centenário, IPO, que não terá mais do que seis ou sete andares, se bem os contaste, por deformação profissional. Em Angola, eras o "senhor engenheiro pela Universidade Técnica de Lisboa". Cá, dizias, com graça, no tempo da Expo 98, que eras um "trolha da construção civil com diploma de engenheiro".
Segue as instruções do teu psicoterapeuta: "Relaxe, respire fundo, peito aberto, coração ao alto!"... Ou "ao largo? "... Há uns que são mais aviadores, e ordenam-te" "coração ao alto!". Outros são mais marinheiros, e berram "coração ao largo!".
Há mais carros estacionados em segunda fila, com os condutores lá dentro e os piscas ligados, à espera de alguém que foi ao IPO. É um corropio de carros e ambulâncias a entrar e a sair do IPO, olhas tu pelo retrovisor do esquerdo.
Um assistente operacional (é assim que se diz agora?!, dantes dizia-se operário, houve uma "upgrade" da nomenclatura ...), com a bata do IPO, vem também à Tabacaria. Na esplanada há já quatro pessoas, dois homens e duas mulheres, a fumar. Um condutor de ambulância da Cruz Vermelha Portuguesa compra o "Record". A menina do Restaurante Quinta Avenida monta o resto das mesas e cadeiras da esplanada que ocupa parte do passeio. O segurança do IPO também vem comprar raspadinhas. Há duas jovens a tomar café. Uma, mais gordinha, fuma. A outra, mais magrinha, também fuma e está ao telemóvel. Devia ser proibido fumar num raio de cem metros do IPO, apontas tu no teu bloco de notas. E agora até dizem que os telemóveis também fazem mal à saúde. Por causa das radiações. És um trolha da construção civil, não sabes nada de (ir)radiações, ionisantes ou não-ionisantes.
Deixaste de fumar por conselho médico, mas sobretudo por medo do cancro do pulmão. “O medo tem muita força, meu amigo”, diz-te o Zé Conde que está lá dentro à espera do veredicto dos médicos. Como se os médicos tivessem o poder da vida ou da morte. Ou não têm mesmo?!
3. Há mais carros em segunda fila. Estás no teu carro, no lugar do condutor, enquanto aguardas o regresso do teu amigo, teu "mano" e teu compadre que vieste acompanhar. Estás impaciente, vê-se que não gostas de esperar, muito menos à porta de um hospital, para mais oncológico. Até na barriga da tua mãe, não gostaste de esperar. Com medo do escuro, com medo de ficar sufocado. Ficaste com a fobia do ventre materno. Acabaste por nascer prematuro.
Estás no lugar do condutor. O do morto é ao lado. Lembras-te das colunas logísticas que fazias na Guiné. Ias na GMC do tempo da guerra da Coreia. Sentado ao lado do condutor. No lugar do morto. Com os pés virados para a mata, sempre pronto a voares ao primeiro tiro ou explosão...
3. Há mais carros em segunda fila. Estás no teu carro, no lugar do condutor, enquanto aguardas o regresso do teu amigo, teu "mano" e teu compadre que vieste acompanhar. Estás impaciente, vê-se que não gostas de esperar, muito menos à porta de um hospital, para mais oncológico. Até na barriga da tua mãe, não gostaste de esperar. Com medo do escuro, com medo de ficar sufocado. Ficaste com a fobia do ventre materno. Acabaste por nascer prematuro.
Estás no lugar do condutor. O do morto é ao lado. Lembras-te das colunas logísticas que fazias na Guiné. Ias na GMC do tempo da guerra da Coreia. Sentado ao lado do condutor. No lugar do morto. Com os pés virados para a mata, sempre pronto a voares ao primeiro tiro ou explosão...
Continuas mal estacionado, agora no lugar reservado às cargas e descargas da farmácia e estabelecimentos contíguos. A esta hora da manhã já não há lugares livres para estacionar. Aqui e no quarteirão à volta, delimitado pelos muros do IPO, a Av Madame Curie e a Rua Professor Lima Basto. Tiveste que fixar os nomes das ruas e chegar ao IPO pelo GPS... Estás em Lisboa há uma porrada de anos, e ainda há sítios que tu mal conheces: ruas, becos, praças, calçadas, escadinhas, miradouros, vilas e até bairros...
Nem a pagantes, lá dentro ou cá fora, há lugares de estacionamento. O lisboeta não gosta de pagar o estacionamento do carro. Daqui um bocado o gajo da EMEL ou o polícia municipal vai chatear-te. Mas ainda é cedo. Não te enerves.
À tua frente, ao lado da Farmácia, na esquina da Avenida Madame Curie, fica a tabacaria e papelaria Polana… Nº 17A, se bem descortinas o número de polícia. Deve ser de alguém que retornou de África, de Moçambique, uma das joias da coroa do nosso império colonial. Tens uma vaga ideia de ouvir falar do Hotel Polana, havia um dos gajos da companhia na Guiné que era moçambicano. Nunca fostes para esses lados do Índico. Trabalhaste em Angola. Há anos que não voltas lá, a última vez foi para estar com o teu filho e o teu afilhado. E agora tens lá netos que ainda não conheces. Nem sabes se ainda vais ter tempo de os conhecer.
À tua frente, ao lado da Farmácia, na esquina da Avenida Madame Curie, fica a tabacaria e papelaria Polana… Nº 17A, se bem descortinas o número de polícia. Deve ser de alguém que retornou de África, de Moçambique, uma das joias da coroa do nosso império colonial. Tens uma vaga ideia de ouvir falar do Hotel Polana, havia um dos gajos da companhia na Guiné que era moçambicano. Nunca fostes para esses lados do Índico. Trabalhaste em Angola. Há anos que não voltas lá, a última vez foi para estar com o teu filho e o teu afilhado. E agora tens lá netos que ainda não conheces. Nem sabes se ainda vais ter tempo de os conhecer.
Há um corropio de gente que vai comprar tabaco ou cartões da raspadinha. E mais raramente o jornal... Acabam de entrar e sair dois jogadores compulsivos, com o ar de quem não acordou em dia de sorte. Para tudo é preciso sorte. No amor, no jogo, na caça, na política, na guerra. Mas tentam, uma e outra vez. Contaste até seis, as raspadinhas que eles deitaram fora. Depois desistiram e perderam-se no meio da multidão, ao dobrar da esquina. Irritados, chateados... Amanhã talvez tenham mais sorte. Afinal, só calha a quem joga. Também devem acreditar que há um deus da sorte, como há um deus do cancro, e do amor, e do jogo, e da caça, e do poder, e da guerra.
As mães levam as criancinhas para a escola, logo de manhã. Vão com ar ensonado, as criancinhas, ainda a comer o resto do papo-seco. Por que é que, meu Deus, dão pão de plástico às criancinhas?!... Passeiam os vizinhos os cãezinhos. Um pai, com ar apressado, leva um carrinho de bebé, com duas crianças, a mais velha dependurada no estribo, em posição instável. Já vão atrasados para a escolinha.
Os velhos, como tu, já apareceram nas esplanadas, a seguir à Tabacaria e Papelaria Polana, no nº 17A, se não erras. Não perdem pitada dos primeiros raios de sol. E que raio de nome é o do restaurante, no nº 19? “Bogani Desperta Caxito”, lê-se no toldo. Café, pastelaria, take away, restaurante Caxito. Outro topónimo de ressonância africanista, neste caso uma cidade de Angola, a norte de Luanda, mas onde tu nunca foste quando lá estiveste. Quanto a Bogani, é marca de café, deduzes tu. Bogani Desperta. Enquanto há gente que espera, desespera, espera, à porta do IPO..., ficas a saber que o Bogani Desperta, diz a publicidade no toldo.
Não é mal pensado, um comes & bebes aqui à beira de um hospital, para mais oncológico, por onde passam centenas, milhares de pessoas, todos os dias. Um gajo pode estar a morrer de cancro, mas continua a comer todos os dias, nem que sejam bifanas, pizas ou hambúrgueres (se é assim que se escreve).
E no nº 17 o restaurante Quinta Avenida. Que nome pomposo! Faltam-te os arranha-céus, para te sentires em Nova Iorque. O edifício mais alto, por aqui, ainda é o velhinho, quase centenário, IPO, que não terá mais do que seis ou sete andares, se bem os contaste, por deformação profissional. Em Angola, eras o "senhor engenheiro pela Universidade Técnica de Lisboa". Cá, dizias, com graça, no tempo da Expo 98, que eras um "trolha da construção civil com diploma de engenheiro".
Se o polícia te aparecer a chatear-te, dizes que estás à espera de um doente. O que é verdade, mas não adianta. Ele põe-te a mexer. E, se refilares, ameaça-te com "o papelinho da multa", a arma dos pequenos poderes. Dantes, na tropa, embrulhavam-te em papel selado. Ainda és desse tempo, vê como estás velho. Agora acabaram com o papel selado. Azul. Vinte e cinco linhas. E margens regulamentares. Proibido escrever nas entrelinhas, muito menos nas margens.
Mas ainda é cedo para te preocupares com o polícia ou o fiscal da EMEL. A esta hora estão a fazer a barba para pegar ao serviço. Depois vão tomar a bica, dar uma olhadela pelo jornal "A Bola", no quiosque da esquina e, pelo meio da manhã, talvez venham para a rua exercer a função.
Mas ainda é cedo para te preocupares com o polícia ou o fiscal da EMEL. A esta hora estão a fazer a barba para pegar ao serviço. Depois vão tomar a bica, dar uma olhadela pelo jornal "A Bola", no quiosque da esquina e, pelo meio da manhã, talvez venham para a rua exercer a função.
4. Já função do pâncreas, náo sabes qual é!... Mas deve ser um órgão fodido... Devias saber mais da anatomia e fisiologia do corpo humano. E a função do fígado? E do baço? E da tripa? E do rim, e da bexiga ?... E até do raio da próstata!... Nunca deste conta da tua... Até um dia em que começares a mijar sangue e a levantares-te de noite, diversas vezes, para aliviar a bexiga...
"Don't worry, be happy": é a melhor frase do dia, regista-a aí, no teu caderninho. Se tu a repetires muitas vezes ao longo do dia, talvez resulte e tu consigas chegar à tua casa, vazia, onde ninguém te espera, nem um cão nem um gato, no Bairro de Santos, com o ar de quem ainda pode vir a esperar algumas coisas boas da vida, e até dar-se ao luxo de aspirar a ser feliz. Põe a felicidade na tua lista de desejos a pedir ao Pai Natal, se ainda acreditas nalguma coisa.
Segue as instruções do teu psicoterapeuta: "Relaxe, respire fundo, peito aberto, coração ao alto!"... Ou "ao largo? "... Há uns que são mais aviadores, e ordenam-te" "coração ao alto!". Outros são mais marinheiros, e berram "coração ao largo!".
Mas, não, não tens psicoterapeuta, se calhar até gostavas de ter, a tua ex, a segunda, também tinha, as amigas dela também tinham... Os psis faziam parte da herança de família mas tu é que pagavas a conta... Nunca deu certo um gajo ir para África trabalhar que nem um mouro e deixar cá as gajas, o cão e o gato. Hoje não tens mulheres, nem cães, nem gatos.
"Don't worry, be happy!"... É bom saber que alguém te ajuda (ou pode vir a ajudar) quando estás na merda. Um condutor de ambulância do Alentejo profundo (Mértola, se bem consegues ver pelo retrovisor o que está escrito na frente da viatura...) veio para aqui, à esquina da farmácia, fumar um cigarro eletrónico. Agora também está na moda, o raio do cigarro eletrónico.
"Don't worry, be happy!"... É bom saber que alguém te ajuda (ou pode vir a ajudar) quando estás na merda. Um condutor de ambulância do Alentejo profundo (Mértola, se bem consegues ver pelo retrovisor o que está escrito na frente da viatura...) veio para aqui, à esquina da farmácia, fumar um cigarro eletrónico. Agora também está na moda, o raio do cigarro eletrónico.
Mas reparaste, logo à entrada do IPO, num cartaz de 2 por 2 metros com os dizeres: "IPO sem tabaco"... Ao fim destes anos todos?... Afinal, tu estás muito à frente do IPO... Tu conseguiste deixar de fumar, depois de apanhares um cagaço... O cagaço faz bem à saúde. Os fumadores deviam apanhar um cagaço. Um pequeno cagaço não lhes faria mal.
Uma jovem sai do nº 15 para o trabalho com a lancheira na mão. Também está na moda, a lancheira na mão, de casa para o trabalho... O que fará ela?... "Call centre", adivinhas tu!... Bingo!... Mais uma aventura no país dos "call centers".
Há mais carros estacionados em segunda fila, com os condutores lá dentro e os piscas ligados, à espera de alguém que foi ao IPO. É um corropio de carros e ambulâncias a entrar e a sair do IPO, olhas tu pelo retrovisor do esquerdo.
Um assistente operacional (é assim que se diz agora?!, dantes dizia-se operário, houve uma "upgrade" da nomenclatura ...), com a bata do IPO, vem também à Tabacaria. Na esplanada há já quatro pessoas, dois homens e duas mulheres, a fumar. Um condutor de ambulância da Cruz Vermelha Portuguesa compra o "Record". A menina do Restaurante Quinta Avenida monta o resto das mesas e cadeiras da esplanada que ocupa parte do passeio. O segurança do IPO também vem comprar raspadinhas. Há duas jovens a tomar café. Uma, mais gordinha, fuma. A outra, mais magrinha, também fuma e está ao telemóvel. Devia ser proibido fumar num raio de cem metros do IPO, apontas tu no teu bloco de notas. E agora até dizem que os telemóveis também fazem mal à saúde. Por causa das radiações. És um trolha da construção civil, não sabes nada de (ir)radiações, ionisantes ou não-ionisantes.
Porra, afinal o que faz mal à saúde, é um gajo estar vivo!... A vida é que faz mal ao cancro!... O cancro da mama, do esófago, da próstata, do pâncreas, da pele, do fígado, dos pulmões...
Uma mulher de meia idade veio cá fora raspar um cartão. Raspa com raiva. Ou é fé e determinação? Não lhe saiu nada. A Santa Casa da Misericórida de Lisboa (SCML) tem um móvel, à porta das papelarias, com um caixote do lixo só para os restos da raspadinha. Ecológica, a Santa Casa, amiga do ambiente. Há de comemorar os mil anos daqui a quinhentos, a Santa Casa.
Tens um marco do correio, vermelho, mesmo à tua frente. Um senhor, já mais velho do que tu, muito para cima dos 80, mas ainda com farta cabeleira branca, com ar de ter sido inglês e diplomata no Extremo Oriente, na outra incarnação, vem pôr uma carta no marco do correio... Já não vias este gesto, civilizado, urbano, romântico, e sobretudo tão terno, pòr uma carta de amor no marco do correio, há muitos anos. Quem será a felizarda da destinária? Afinal, nunca é tarde para amar... (Se bem te recordas, era uma canção italiana do teu tempo de Guiné.)
Um casal (ele, mestiço, não digas mulato que é racista) entra na papelaria. Mulatas são as mulas. Ela acaba de fumar e mandar a beata para o chão. Há gente sem educação cívica. Ou és tu que estás hoje mais sensível e intolerante?!... Em Luanda, fazias o mesmo... Mas Luanda tinha metros e metros cúbicos de lixo a cada esquina.
Uma mulher de meia idade veio cá fora raspar um cartão. Raspa com raiva. Ou é fé e determinação? Não lhe saiu nada. A Santa Casa da Misericórida de Lisboa (SCML) tem um móvel, à porta das papelarias, com um caixote do lixo só para os restos da raspadinha. Ecológica, a Santa Casa, amiga do ambiente. Há de comemorar os mil anos daqui a quinhentos, a Santa Casa.
Tens um marco do correio, vermelho, mesmo à tua frente. Um senhor, já mais velho do que tu, muito para cima dos 80, mas ainda com farta cabeleira branca, com ar de ter sido inglês e diplomata no Extremo Oriente, na outra incarnação, vem pôr uma carta no marco do correio... Já não vias este gesto, civilizado, urbano, romântico, e sobretudo tão terno, pòr uma carta de amor no marco do correio, há muitos anos. Quem será a felizarda da destinária? Afinal, nunca é tarde para amar... (Se bem te recordas, era uma canção italiana do teu tempo de Guiné.)
Um casal (ele, mestiço, não digas mulato que é racista) entra na papelaria. Mulatas são as mulas. Ela acaba de fumar e mandar a beata para o chão. Há gente sem educação cívica. Ou és tu que estás hoje mais sensível e intolerante?!... Em Luanda, fazias o mesmo... Mas Luanda tinha metros e metros cúbicos de lixo a cada esquina.
Mais uma mãe com a criancinha pela mão. Saem batas brancas, de vez em quando, do IPO. Vêm aqui tomar qualquer coisa na Pastelaria. Não dá para ver o que consomem nem muito menos para ouvir as conversas lá dentro. Uma bata branca sentou-se cá fora, puxa de um cigarro. O café puxa o cigarro, ainda te lembras do teu vício quando fumavas nos anos 80?... Grande camelo!... Gostavas do "Camel"!...
Uma jovem mãe também se senta, com um carrinho de bebé. Fuma e fala ao telemóvel. Desalmadamente. E é feliz ou parece sê-lo. A maternidade torna as mulheres felizes, aponta aí no teu caderninho.
A Farmácia Curie não tem mãos a medir, tem muita clientela, velhos que vêm aviar receitas. É uma mina, a velhice, para os boticários, os médicos, os fisioterapeutas, os nutricionistas, os ginásios, os hospitais, os cafés, os centros de dia, e até as juntas de freguesia. "Teme a velhice, que ela nunca vem só", apontaste há dias este provérbio dito popular, no teu caderninho. "Badameco" (do latim, "vade mecum", vai contigo), também lhe chamas, quando estás irritado contigo e com o mundo.
Uma jovem mãe também se senta, com um carrinho de bebé. Fuma e fala ao telemóvel. Desalmadamente. E é feliz ou parece sê-lo. A maternidade torna as mulheres felizes, aponta aí no teu caderninho.
A Farmácia Curie não tem mãos a medir, tem muita clientela, velhos que vêm aviar receitas. É uma mina, a velhice, para os boticários, os médicos, os fisioterapeutas, os nutricionistas, os ginásios, os hospitais, os cafés, os centros de dia, e até as juntas de freguesia. "Teme a velhice, que ela nunca vem só", apontaste há dias este provérbio dito popular, no teu caderninho. "Badameco" (do latim, "vade mecum", vai contigo), também lhe chamas, quando estás irritado contigo e com o mundo.
Os estabelecimentos estão todos bem situados, só o nº 15 é que te parece ser uma entrada de um prédio de habitação, com porteira. Se contaste bem, o prédio tem quatro andares e, pelo estilo e estado de conservação, deve ser dos anos 30. Disso percebes tu, que foste encarregado de obras, ganhaste bom patacão no tempo da Expo... ("Patacão", graveto, cacau... em crioulo da Guiné.)
A menina do restaurante Quinta Avenida veio, agora, fardada a rigor, de preto, e com um guardanapo branco no braço, fumar cá fora um cigarro eletrónico. Adoras as mulheres fardadas, ficam com um ar sexy, quando combinam bem o preto e o branco. Um adolescente de origem africana, auscultadores nos ouvidos, passa a falar alto ao telemóvel, e a gesticular, com ar gingão de rapper angolano. Parece feliz. A vida é bela quando um gajo está na casa dos verdes anos e não tem que ir para a puta da guerra, como tu foste na idade dele. Ou não está à espera de um amigo, à porta do IPO. Nem de Deus e de remédio para as suas obras imperfeitas.
Mais um estúpido de um gajo a fumar à porta do Bolgani Desperta Caxito. Deve ter 60 anos. Sabes lá se tem 60 anos, nunca foste bom a tirar idades... Nem pintas. Se tivesses tirado a pinta à tua, nunca te terias casado com ela, nem ela te deixaria viúvo aos 40 e picos anos. Porra, mal tiveste tempo de a amar!
Mais um jovem e uma velha a fumar na esplanada. Na papelaria, o negócio do tabaco e da raspadinha continua em alta, e ainda o dia é uma criança. Estás visivelmente irritado com a demora do teu amigo... E o IPO ali ao lado, a mexer-te com os nervos.
5. Desistes aqui do teu jogo, desistes de continuar a observar e a registar o formigueiro humano. Fechas o vidro do carrro mas ainda dá para ver a mulher da limpeza da farmácia a apanhar as beatas que formam uns montinhos à porta. Tudo por causa da merda da raspadinha. Deviam depositar o lixo à porta da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, a tal fábrica de fazer milionários excêntricos.
Pelo retrovisor do lado direito, apercebes-te que o teu amigo, camarada e compadre está de volta, o rosto inexpressivo, impávido e sereno, como nos dias, de manhã muito cedo, em que iam, os dois, de Unimog, cada um a comandar a sua secção, encher os bidões de água na "Fonte das Bajudas" (ou das "beijudas", dizia ele, sempre maroto, brincalhão, gaiato, que nada tinha de marialvo, mesmo crescido na campina ribatejana).
– Está no ir, mano: começo para a semana a quimeoterapia, daqui a umas semanas a radioterapia!... Não vou morrer desta merda, e até pode ser que me safe, diz-me o urologista...
Ligas o carro, fazes inversão de marcha, lês pela última vez o idiota do anúncio do Absorvit: "Don't worry, be happy!"... Que é como quem diz: "Foda-se, sê feliz!"
– Está no ir, mano: começo para a semana a quimeoterapia, daqui a umas semanas a radioterapia!... Não vou morrer desta merda, e até pode ser que me safe, diz-me o urologista...
Ligas o carro, fazes inversão de marcha, lês pela última vez o idiota do anúncio do Absorvit: "Don't worry, be happy!"... Que é como quem diz: "Foda-se, sê feliz!"
Não falaram mais pelo caminho, foste levá-o a casa, a 40 e tal quilómetros de Lisboa. Mas reviste, nessa manhã, na viagem de regresso, todo o filme da morte do "Campino", alcunha de filho e neto de campinos, que era o condutor da GMC que transportava os bidões da água. Era um filme com cinquenta anos, a preto e a branco, com duas testemunhas, mudas e impotentes, tu e o Zé Conde, o teu doente do IPO...
Mas um gajo, por muito que queira, não esquece o que viu e sofreu. Há meses que não havia sinais de atividade do IN (abreviatura de Inimigo, o turra), nas imediações do quartel, a menos de dois ou três quilómetros. Era uma operação de rotina, duas ou três vezes por semana. A água era racionada. Deixou de se picar o caminho quando se ia à água da "Fonte das Bajudas", de resto frequentada pela população local, maioritariamente fula... Os gajos nunca punham minas antipessoais naquele troço. Até esse dia fatídico em que o "Campino", que ia à frente, acionou uma mina anticarro reforçada, já no início da época das chuvas.
Restos do seu corpo e da pesada viatura foram encontrados num raio de cento e tal metros. Era um puto porreiro, deixou viúva e uma filha que nunca chegou a conhecer. Falava muito com o furriel Zé Conde, eram os dois ribatejanos, e trabalhavam antes da tropa na Quinta do Infantado, na Companhia das Lezírias, ele na coudelaria. Adorava touros e cavalos. Lembraste-te sempre dele, quando passas por aqui, por Porto Alto.
Ao chegar a Samora Correia, à porta do restaurante, já conhecido, onde almoçariam enguias fritas e umas sandochas de codorniz desossada, no Tretas & Olés, o Zé Conde, a partir de agora "o teu doente do IPO", só te disse, com um sorriso amarelo:
– Lembras-te?... Há cinquenta anos, a gente costumava dizer um para o outro: não te chateies, mano, a vida continua... dentro de momentos!
– "Don't worry, be happy!" – martelaste tu, três vezes, com a cabeça no espelho retrovisor do lado do condutor...
© Luís Graça (202o). Última revisão: 8 de junho de 2023. (*)
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Nota do editor:
(*) Originalmente publicado em 13 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21447: A galeria dos meus heróis (38): Don't worry, be happy! / Não te chateies, sê feliz (Luís Graça)
Nota do editor:
(*) Originalmente publicado em 13 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21447: A galeria dos meus heróis (38): Don't worry, be happy! / Não te chateies, sê feliz (Luís Graça)