Mostrar mensagens com a etiqueta Vassalo Miranda. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Vassalo Miranda. Mostrar todas as mensagens

segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25947: Memórias de um artilheiro (José Álvaro Carvalho, ex-alf mil, Pel Art / BAC, 8.8 cm, Bissau, Olossato e Catió, 1963/65) - Parte IX: De novo em Catió... P*rra, deixem-me comer o petisco em paz!

 


Guiné > Região de Tombali > Ilha do Como >Ilustração, in "Tridente - Memórias de um Veterano", de António Manuel Constantino Vassalo Miranda @ 12Fev2007, 29 pp. (Disponível em formato pdf, no Portal UTW - Dos Veternos da Guerra do Ultramar
https://ultramar.terraweb.biz/Livros/AntonioVassalo/OpTridenteAntonioVassalo.pdf) (com a devida védia...)


1. Estamos a publicar algumas das memóras do ex-alf mil art, José Álvaro Carvalho, membro  nº 890 da nossa Tabanca Grande:

(i) tem 85 anos, sendo natural de Reguengo Grande, Lourinhã;

(ii) com 26 meses de tropa, acabou por ser moblizado para o CTIG por volta da primavera de 1963 (não conseguimos ainda  apurar a data);

(iii) foi render um alferes de uma companhia de intervenção, de infantaria, sediada em Bissau (QG/CTIG) (não conseguimos ainda identificar qual); 

(iv) irá cumprir mais uns 26 ou 27 meses, no TO da Guiné, entre o primeiro trimestre de 1963 e o início do segundo semestre de 1965;

(v) passou por Bissau, Olossato, Catió e a ilha do Como, aqui já a comandar um Pel Art, obus 8.8 (a duas bocas de fogo), com que participou, entre outras, na Op Tridente (jan-mar 1964);

(vi) no CTIG era popularmente conhecido pelo seu nome artístico, "Carvalhinho" (cantava o fado de Lisboa e tocava guitarra); em Bissau, chegou a fazer espetáculos com o alf médico Luís Goes (que cantaca e tocava o "fado de Coimbra"); 

(vii) tornou-se também amigo dos então alferes milicianos 'comandos' Justino Coelho Godinho e Maurício Saraiva (já falecidos), quando se estavam a organizar os Comandos do CTIG (ofereceu-se para os "comandos",mas náo foi aceite);

 (viii) o José Álvaro Almeida de Carvalho (seu nome completo) publicou em 2019 o "Livro de C", Lisboa, na Chiado Books (710 pp.) ("C" é o "nickname" pelo qual o pai o tratava); 

(ix) é empresário reformado, trabalhou também como quadro técnico em  empresas metalomecânicas como  a L. Dargent Lda; aqui foi  diretor do departamento de trabalhos exteriores, e sócio minoritário (fez, por exemplo, a montagem da superestrutura metálica e cabos de suspensão da ponte na foz do Rio Cuanza em Angola).


2. Voltando às memórias do José Álvaro Carvalho (*), estamos agora em 1964, em Catió, no BCAÇ 619, 1964/66, onde ele está destacado com um Pel Art 8.8 a duas bocas de fogo,  e vai participar em grandes operações no setor de Catió ("Tridente", "Broca", "Macaco", "Tornado" e "Remate"). A sua atuação operacional, comandante do Pel Art,  valeu-lhe, em 1967, uma Cruz de Guerra de 3ª Classe.

O alferes Carvalho esteve em dois meses na Ilha do Como, no àmbito da  Op Tridente (jan-mar 1964). 

 
Memórias de um artilheiro (José Álvaro Carvalho, ex-alf mil, Pel Art / BAC, 8.8 cm, Bissau, Olossato e Catió, 1963/65) - 

Parte IX:  De novo em Catió... P*rra, deixem-me comer o petisco em paz!


O calor e a humidade transformavam corpos saudáveis em coisas moles difíceis de descrever.

Havia dias que o alf mil art Carvalho tinha regressado à sua sede [ em Catió] e não entrava em operações.

Os oficiais do batalhão para onde fora destacado  [ BCAÇ 619] tinham menos
um ano de guerra do que ele, pelo que não conseguia adaptar-se aos temas das suas conversas que passavam por preocupações carregadas de ansiedade para si já distantes.

Todo o tempo que passara no mato em operações, tanto no primeiro ano, como oficial dum pelotão infante – a companhia para onde viera em rendição individual, embora constituída por pessoal de artilharia, por necessidade, fora destinada a operações de infantaria enquanto que agora, ali no Sul, comandava um pelotão indígena independente de artilharia com 2 obuses de 88 milímetros, anexo a um Batalhão de Cavalaria - tinha-lhe retirado a paciência para ouvir opiniões afastadas da realidade, que não lhe apetecia contradizer.

Deste modo quando não se encontrava em operações, levantava-se cedo, mandava formar o pelotão e levava-o para a mata com tractores reboques de obus, alguns machados e pás.
Passavam toda a manhã a cortar árvores cujos troncos eram rebocados para o quartel e serviam para reforçar a paliçada que o rodeava, construir paióis para as munições, ou ainda reforçar os existente que eram constituídos por um buraco quadrangular no chão coberto ao nível superior por várias camadas de árvores em cruz, sendo a última camada coberta de terra. A entrada era formada em rampa com passagem para um homem.

Depois disto o pessoal ia almoçar e passava a tarde a descansar. Ele almoçava sozinho porque desencontrava as horas do almoço para esse efeito. Em seguida deslocava-se ao estabelecimento dum sírio, que tinha uma esplanada com 2 mesas de ferro debaixo duma velha árvore.  Sentava-se numa e o sírio, por ser esse o costume, trazia-lhe 4 cafés e 4 cálices de anis, que bebia calmamente para depois se enfiar a dormir no seu quarto até, não havendo qualquer emergência, Deus o acordar.

Nestes dias sentia-se particularmente bem e às vezes até jantava com os outros oficiais ou pelo menos ia até ao tosco bar da messe jogar pocker ou bridge

Este era um desses dias mas com uma particularidade acrescida. Tinha chegado para um dos oficiais com quem mais convivia, um frasco de farmácia de 3 litros em vidro, com trouxas de ovos. A mãe também lhe enviava de quando em quando uma lata de banha com lombo de porco assado lá dentro. A alimentação era escassa no que se refere a alimentos frescos e a guloseimas ou petiscos. As famílias enviavam para o quartel general encomendas deste género que eram por sua vez levadas para a sala de operações militares no aeroporto e, quando os pilotos de avião ou helicóptero tinham alguma missão que os faziam passar nas zonas indicadas no endereço,  levavam-nas.

O oficial das trouxas de ovos, que habitualmente convidava para comer o lombo de porco que a mãe lhe enviava, sentiu-se na obrigação de lhe retribuir, convidando-o para saborear a delícia recebida. Estas ceias eram destinadas a pequenos grupos com mais afinidades e realizavam-se depois de os outros se deitarem uma vez que tais mimos por natureza pequenos não chegavam para todos.

Naquele dia, após as cartas, ficaram a aguardar que todos se retirassem. Foi então trazido o frasco ainda acondicionado da viagem, servidas as bebidas de acompanhamento: whisky e cerveja. 

Mas pouco depois, começaram a ouvir-se metralhadoras a norte, no mato a dispararem para o aquartelamento. Eram metralhadoras lentas de 12mm e pistolas metralhadoras de 9 mm que se distinguiam pelo “Pec-Bum! Pec-Bum! Pec-Bum!” mais lento e mais pesado para as primeiras e mais vivo rápido e menos forte para as restantes. O ruído de “Pec” era originado pela passagem da bala e o “Bum” pelo seu disparo. Por isso se ouvia primeiro o PEC e depois o BUM!

Logo em seguida foram apagadas as luzes e a noite ficou mergulhada na escuridão, constantemente interrompida por very-lights – foguetes disparados para o ar que caíam lentamente com grande poder de iluminação.

A povoação era atacada em média 2 vezes por semana. Eram ataques sem grande perigo e não duravam muito mais do que uma hora.

Nestas situações não lhe tinha sido destinado fazer nada, uma vez que as granadas de artilharia eram caras para repelir ataques de pouca importância e que se destinavam a flagelação e desgaste. Quanto aos outros oficiais, cada um tinha a sua função.

Continuou sentado e a beberricar as bebidas até que o ataque terminou, o sossego voltou, acenderam-se as luzes, os seus companheiros regressaram e continuaram os preparativos para comerem o desejado manjar.

Quando já prontos para comer, de novo se ouviram as metralhadoras inimigas. Foram outra vez apagadas as luzes, cada um seguiu para o seu posto e ele continuou a beberricar. Não era normal haver ataques sucessivos e começou a pensar se por qualquer capricho do destino, aquilo não teria alguma coisa a ver com as trouxas de ovos.

Ficou assim sozinho, sentado no bar a remoer calúnias até que de novo o ataque terminou e tudo regressou à normalidade precária habitual da situação. Os companheiros regressaram. Os pratos foram distribuídos, as resplandecentes trouxas de ovos começaram a ser distribuídas e novamente se ouviram metralhadoras inimigas a alvejar o aquartelamento.

Achou que era demais. Já tinha entretanto bebido o suficiente para tomar atitudes pouco prudentes. Levantou-se, dirigiu-se á caserna, chamou o pessoal atribuído a um dos dois obuses do pelotão, mandou os municiadores trazerem munições, para o seu estacionamento, - um abrigo escavado até á altura do tubo do obus com acesso através de trincheira junto ao posto de sentinela que o guardava a um dos cantos do quartel - e logo de seguida disparou 70 granadas em tiro direto para a mata a leste do quartel com diferenças de direcção de alguns graus o que cobriu toda essa zona.

Durante duas semanas não houve ataques de flagelação ao aquartelamento.


(Seleção, revisão / fixação de texto, título e substítulo, parênteses retos: LG)

_____________

Nota do editor:

Último poste ds série > 8 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25921: Memórias de um artilheiro (José Álvaro Carvalho, ex-alf mil, Pel Art / BAC, 8.8 cm, Bissau, Olossato e Catió, 1963/65) - Parte VIII: Uma voltinha de Alouette II

sexta-feira, 16 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24403: Notas de leitura (1590): "O Cântico das Costureiras - Crónicas D'Uma Vida Adiada - Guiné 1964 - 1965", por Gonçalo Inocentes; Modocromia Edições, 2020 - As Peregrinações de Gonçalo Inocentes, zombeteiras e resilientes (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Janeiro de 2021:

Queridos amigos,
Há dez anos, quando estava a preparar o meu livro sobre a literatura da guerra da Guiné, ainda suponha que a veia literária dos velhos combatentes se pudesse encaminhar pelo leito do romance, o que então parecia afirmar-se categoricamente era a literatura memorial. Parece que o romance secou, a poesia é cada vez menos pródiga , há, é certo, investigação, documentação, apresentação de acervos fotográficos, mas são as memórias que pontificam. E Gonçalo Inocentes aparece num estado de louçania e vivacidade que nos assombra, e toma conta de nós, pois cedo se percebe que aquela poesia não é sobranceira e muito menos destinada a altos voos literários, são dimensões do afeto que pontuam uma alegria de viver, de alguém que se apresenta sem tiques de heroísmo nem apelos à comiseração. Bom será que continue, se mais memórias houver para contar.

Um abraço do
Mário



As Peregrinações de Gonçalo Inocentes, zombeteiras e resilientes

Mário Beja Santos

Já aqui no blogue o Luís Graça entoou loas a este inesperado presente, O Cântico das Costureiras, por Gonçalo Inocentes, Modocromia Edições, 2020. Limito-me a fazer minhas as palavras do orador que me precedeu… e adicionar loas da minha lavra, nestas coisas da recensão é benéfico que os olhares se complementem ou até mesmo se contradigam. Vê-se pela imagem que é homem apaziguado, talvez coloquial e bonacheirão, o seu currículo dá logo para folgar: “Curtiu-se em três guerras, ex-técnico agrícola, ex-combatente, ex-piloto de linha aérea, ex-marinheiro”.

De tanta vivência cinge-se exclusivamente ao que andou a fazer na Guiné, onde a sorte nunca o pôs de lado. Em março de 1964 sabe que tem o destino traçado para a Guiné, caminha para Lisboa e enquanto aguarda transporte anda faceto e manganão, percorre casas de fados e até guardou recordações de uma cuequinha vermelha. Parte de avião e bem consolado, vai em rendição individual. Do Pidjiquiti parte para Bolama e daqui para São João, é a sua nova morada e a sua nova família. Começam as peripécias. Encontra-se com o capitão, está a ser barbeado e tem ao lado uma mulher chinesa, por ali perto está um bidonville tropical, as imagens que publica falam por si e tece laudes a um piloto que muitos de nós conhecemos: o Honório, de nome completo Honório Brito da Costa. Fala-nos do Corão, da sua amizade com a G3, sempre que vem a preceito dá-nos poesia. E tal como anuncia no preâmbulo, recorda a máquina de costura Singer, o seu tiquetaque e a PPSh, vulgo “costureirinha”, tambor de 70 balas e um ritmo de 1000 por minuto, com alcance efetivo de 150 metros.

Movimenta-se com uma mini Minolta, o que lhe deu para registar este acervo de memórias. Lê-se num só fôlego, ninguém espere encontrar um herói ou anti-herói, é de têmpera folgazão, o lado positivo da vida anda quase sempre ao de cima, tira partido da aprendizagem e suas componentes, que podem ser a solidão, o corpo extenuado, o escrever o aerograma (aproveita a oportunidade para nos contar a história do bom funcionamento do Serviço Postal Militar e fala-nos de alguém que se chama Ernesto Tapadas e que esteve por trás de máquina tão eficiente), em vez de jogos de cartas aproveitava os banhos de mar e na Pensão Central, dessa ícone que deu pelo nome de Dona Berta, apareceu-lhe uma empregada grávida no quarto com um propósito muito evidente, interroga-se quanto à tragédia que pode levar uma mulher quase a ser mãe a tal iniciativa. Como não venho aqui contar as façanhas de guerra, descreve o que o meio permite, vive-se numa santa paz ou na mais formidável beligerância: é o caso dos tornados, em atmosfera tropical arrancam telhados, volteiam e rodopiam, destruindo e apavorando, e inopinadamente como aparecem deixam-nos numa serenidade com o caos à volta.

Se nos recorda as minas e fornilhos, logo estrondeia a peripécia das falsas cartas de condução que terão dado a felicidade e o pão a muita gente, e volta à página para nos falar nos guias, alguns de uma lealdade a toda a prova, tendo muitos deles tido um final inglório. Naquele ano de 1964 havia que retomar espaços abandonados, no caso vertente de quem estava em São João havia que provar que as estradas de Quinhará estavam transitáveis, lá foi uma coluna de carros para Nova Sintra, nenhum engenho explodiu no itinerário, mas foram colhidos pelo fogo cerrado em Nova Sintra. No regresso uma viatura derrapou mas vem logo um comentário pícaro a propósito: “Os soldados que seguiam nele (Unimog, que tinha capotado) ficaram por baixo da viatura e sem cuidar da segurança todos acorremos a socorrer. Grande asneira, só não correu pior porque o IN era também muito mau”.

Vai interpolando as suas memórias com poesias a jorros. Chegou a hora de partir para Ponta de Jabadá, dali o PAIGC castigava com fogo quem navegava pelo Geba. Recorda uma flagelação em que uma granada de morteiro 82 ceifou vidas e logo salta para a recordação de António Gladstone Silva Germano, natural da ilha de São Nicolau, que depois da guerra da Guiné andou por Ceca e Meca e Olivais de Santarém até aterrar no aeroporto da Portela onde geria o restaurante. Gonçalo Inocentes vem para contar recordações, elas dispõem-se bem com as imagens ao tempo colhidas, e exalta a figura do médico do destacamento em Jabadá, o Dr. Torcato Adriano Serpa Pinto. E com a maior das naturalidades confessa-se: “Não sei onde fui buscar, mas sempre carreguei uma constante alegria de viver que, se por um lado me engalanou tantos dias, também me acarretou alguns dissabores. Posso dizer que foi a mais bela armadura deste cavaleiro do imprevisível”.

Com a sorte benfazeja, ele que andava junto à CCAÇ 423, em abril de 1965 recebeu ordens de marcha para Bissau e daí para Farim, mas em Bissau disseram-lhe que já não ia para Farim, terminara a sua comissão, afinal já não ia para a CCAV 488. Fala-nos de Vassalo Miranda, um desenhador de BD sempre em cenários de guerra, está mais do que apresentado aqui no blogue. Recorda-nos como se atravessava em João Landim da ilha de Bissau para Mansoa. E vai até São Vicente e ocorre-lhe um poema, isto a propósito de um banho na Guiné, que é muito provavelmente o seu cartão de cidadão: “Sou feliz pois Deus me deu,/ a capacidade de ver,/ mesmo no escuro da vida,/ a beleza a acontecer./ P’ra alimentar a esperança/ De um mundo a renascer”.

E assim regressa, vai a Estremoz entregar a trouxa e segue para a Chamusca onde foi entregar a Maria Helena Fragoso a cruz que esta lhe pusera no pescoço antes de ir para a Guiné. Receando a tanta fartura daquela comissão encurtada, e mesmo continuando a receber a parte do vencimento que era depositada no Banco Totta e Açores da Chamusca, foi logo comprar o bilhete de passagem para Angola, para regressar à casa de onde tinha saído há dez anos. “Não toquei no dinheiro que fiquei a receber indevidamente e coloquei-o a prazo. Sabia que eles viriam buscar. Durante vários anos tive pesadelos onde me via ser chamado para regressar à Guiné. Acordava sempre banhado em suores”.

E bem a propósito despede-se das suas memórias relembrando os costureiros, ou seja, a malta da PPSh. “Tinha uma certa admiração por estes homens que fizeram uma guerra que até terminou num triunfo armado. Já pelos políticos não nutro qualquer simpatia porque fizeram uma guerra assente em promessas desonestas que sabiam não poder cumprir. Demonstraram ao longo dos anos de independência uma incapacidade absoluta. Tantos mortos para coisa nenhuma. Ter uma bandeira serve apenas para içar e para arrear. O povo, esse, ficou a perder. Passou de colonizado a escravo do tráfico de droga”.

Chegámos a um tempo em que já não se esperam romances mas literatura memorial, creio ser este hoje o retorno possível, tantos são os anos passados. E há que saudar estes cotejos e estas imagens arredadas de gabarolices ou espaventos sem contraditório.

____________

Nota do editor

Último poste da série de 12 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24392: Notas de leitura (1590): Uma obra fundamental por quem se interessa por estudos africanos: "Atlas Histórico de África, da Pré-História aos Nossos Dias", Direcção de François-Xavier Fauvelle e Isabelle Surun; Guerra e Paz Editores, 2020 (Mário Beja Santos)

terça-feira, 20 de outubro de 2020

Guiné 61/74 - P21469: Notas de leitura (1316): "O Cântico das Costureiras", de Gonçalo Inocentes (Matheos) - V (e última) parte (Luís Graça): Em Brá, no final da comissão, tem como companheiro de quarto o furriel mil 'comando' Vassalo Miranda, uma 'figura ímpar', grande autor de banda desenhada da nossa guerra


Guiné > Bissau > Brá > 1965 > Fur mil at cav Gonçalo Inocentes, de rendição individual, tendo passado pela CCAÇ 423  (São João e Jabadá) e pela CCAV 488 (Bissau e Jumbembem), entre 1964 e 1965. Fez 16 meses de comissão. Foi em Brá que conheceu o Vassalo Miranda, quando ambos aguardavam o regresso à Metrópole.

Foto (e legenda): © Gonçalo Inocentes (20w0) Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Quinto e último apontamento decorrente da leitura  do  livro do Gonçalo Inocentes (Matheos), "O Cântico das Costureiras: crónicas de uma vida adiada, Guiné, 1964/65" (Vila Franca de Xira, ModoCromia, 2020, 126 pp, ilustrado).(*)

De rendição individual,  o fur mil Gonçalo Inocentes juntou-se à CCAÇ 423, em 8 de abril de 1964. Um ano depois acaba a comissão dos "velhinhos". É com consternação que o autor vive esse dia, 14 de abril de 1965. Vê-os partir, por via terrestre, a caminho de Tite, sede do batalhão. 

É então  colocado na CCAV 677, "uma companhia completamente destroçada" (p. 100)... Destroçada, leia-se desmoralizada, em fim de comissão:

"Sem capitão, apenas com um alferes que, quando ouvia  o cantar do morse, se refugiava no quarto e era eu quem tinha de tomar as  decisões e escalar quem ia para o mato, respondendo aos rádios em nome do oficial" (p. 100)...

Mas logo dias depois, no 1.º de maio, passa a integrar a CCav 488 [Bissau e Jumbembem, 1963/65]. Mas por pouco tempo.  Quando estes  cumpriram o tempo, o nosso camarada, nascido em Angola,  Nova Lisboa (, hoje, Huambo)  já tinha mais de 16 meses, pelo que acabou por regressar com eles sem ter cumprido os dois anos de comissão, como era normal na altura.

Foi um tempo de transição, em que se ouvia cantar a "costureirinha" mas também já o temível morteiro 82 (, de maior alcance que o nosso 81), e o PAIGC começou a fazer uso generalizado de minas e armadilhas. 

Foi na Guiné que o autor aprendeu a montar e a desmontar a G3 e trocou, pela primeira vez, o capacete de aço (!) pelo boné... Era ainda, quando chegou, o tempo do caqui amarelo, e do Alouette II, a que ele dedica um belo poema (p. 91):

O Heli

Libelinha mágica, de voo pairante,
A nossa última esperança.
Aquele voar batejante,
Alegria de ouvir ao longe
Que um grito logo soltava
Em unísseno quando o víamos.
Tá ali! (...)

Libelinha levava em gemidos
À ilharga nossos amigos. 


É nesse período de espera, instalado em Brá, que conhece uma "figura ímpar", o furriel 'comando', Vassalo Miranda, seu companheiro de quarto [, foto à direita, da sua página no Facebook]:

"Originário de Vila Franca de Xira, o Miranda saiu da sua companhia quando lá chegou, voluntário para os comandos. Tinha muitas particularidades interessantes que faziam de dele um ser ímpar" (p. 107).

E particulariza: 

"Tipo muito alto, cabelo despenteado, usava óculos. Desenhava primorosamente tipo BD e sempre em cenários de guerra. O lençol que o cobria na cama, estava todo desenhado [com cenas] de combates onde ele era sempre o herói. Inclui nas cenas as imagens das namoradas dos colegas retiradas das fotos que alguns tinham nas mesas de cabeceira. Chegou a dar chapada"...

Vale a pena transcrever o resto da pág. 107:

"Quando o conheci tinha uma das lentes dos óculos pintada com tinta da china negra o que lhe dava uma aspecto tenebroso e que ele adorava.

"Contou-me que esteve castigado e proibido de pegar em armas porque na instrução dos  novos comandos o fazia com balas reais e feriu um instruendo nas costas.

"Tinha terminado a comissão e também iria embarcar no Niassa connosco [, CCAV 488]. Contou-me que quando foi de férias a casa, não avisou a família e apareceu à porta com a lente negra.  Quando a mãe abriu a porta, ele soltou o grito de ataque... A senhora desmaiou." (...)

Temos sete referências no nosso blogue ao Vassalo Miranda e a seguinte nota biográfica:


 (...) "O [António M.] Vassalo Miranda, nascido em Vila Franca de Xira, em 1941,  foi furriel mil 'comando', do Gr Comandos Panteras, participou na Op Tridente, é um veterano da Guiné, c. 1963/65. Passou também por Angola. Como civil, viveu algum tempo em Moçambique, na Rodésia (hoje Zimbábué) e na República Sul-Africana. É amigo do Virgínio Briote, do João Parreira, do Mário Dias... E é grande criador de banda desenhada infelizmente com problemas de saúde ocular. Infelizmente, também, não faz (ainda) parte da nossa Tabanca Grande." (**)

[Foto à esquerda: Lisboa, Belém, 10 de Junho de 2006 > 13º Encontro Nacional de Combatentes >  O Vassalo Miranda,  veterano dos velhos comandos de Brá.  

Foto (e legenda): © Luís Graça (2006). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Chega, por fim, o grande dia, o regresso do Niassa ao Tejo, em 14 de agosto de 1965... Com a companhia a marchar, mal, sob o comando de um alf mil médico que não sabia marchar, o dr. José Hipólito Sousa Franco, o médico da companhia (O que será feito dele?)... 

Aproveitou a peluda para revisitar as noites do fado na "Viela"... e dez anos depois tomou o avião para regressar a casa, à sua Angola. Aqui exerceu durante alguns anos a profissão de Regente Agrícola, antes de se meter noutras aventuras...

Enfim, um livrinho de memórias, em verso e prosa, que se lê num ápice, com agrado. E tem algum interesse documental, pelo seu recheio fotográfico.
___________

Notas do editor:

(*) Vd. postes anteriores da série:

7 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21426: Notas de leitura (1313): "O Cântico das Costureiras", de Gonçalo Inocentes (Matheos) - Parte IV (Luís Graça): as primeiras minas e fornilhos A/C

22 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21383: Notas de leitura (1309): "O Cântico das Costureiras", de Gonçalo Inocentes (Matheos) - Parte III (Luís Graça): a conquista da Ponta de Jabadá, em 29/1/1965, importante posição na defesa do rio Geba

10 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21344: Notas de leitura (1305): "O Cântico das Costureiras", de Gonçalo Inocentes (Matheos) - Parte II (Luís Graça): a importância de se ter uma máquina fotográfica e um bloco de notas

9 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21339: Notas de leitura (1303): "O Cântico das Costureiras", de Gonçalo Inocentes (Matheos) - Parte I (Luís Graça): voltar a ouvir a máquina "Singer" da mamã nas matas e bolanas de Quínara,,,

quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

Guiné 61/74 - P20587: Agenda Cultural (724): Palestra sobre a Op Mar Verde (22/11/1970) pelo escritor António José dos Santos Silva: Palacete Viscondes de Balsemão, Pr Carlos Alberto, 71, Porto... Sábado, 1 de fevereiro de 2020, às 14h30

Capa do Livro de Banda Desenhada de A. Vassalo (*)


C O N V I T E

DISSERTAÇÃO SOBRE A OPERAÇÃO "MAR VERDE"


Cartaz oficial do evento


Capa do livro do António José dos Santos Silva, "CIOE: DA GUERRA DO ULTRAMAR AOS DIAS DE HOJE" (Lisboa: Nova Arrancada, 2002 173 pp.)


Caras Amigas e Caros Amigos!

Nos 50 Anos (1970-2020) da Invasão da Guiné-Conacri, pelas Forças Armadas Portuguesas, o GRUPO VIRIATOS e ANTÓNIO JOSÉ DOS SANTOS SILVA têm a honra de os CONVIDAR para a Dissertação em cima anunciada. 

Entrada Livre. 

Como em casos similares,  não existem cadeiras que sejam previamente sujeitas a qualquer tipo de marcação.

Melhores Cumprimentos.

GRUPO VIRIATOS
ANTÓNIO JOSÉ DOS SANTOS SILVA (**)
____________

Notas do editor

(*) O [António M.] Vassalo Miranda, nascido em Vila Franca de Xira, em 1941,  tem seis referências no nosso blogue: foi furriel mil 'comando', participou na Op Tridente, é um veterano da Guiné, c. 1963/65. Passou também por Angola. Como civil, viveu algum tempo em Moçambique, na Rodésia (hoje Zimbábuè) e na República Sul-Africana. É amigo do Virgínio Briote, do João Parreira, do Mário Dias... E é grande criador de banda desenhada  infelizmente com problemas de saúde ocular.  Infelizmente, também, não faz (ainda) parte da  nossa Tabanca Grande.

(**) Último poste da série de 22 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20583: Agenda cultural (723): Exposição de fotografia do nosso camarada Renato Monteiro, "Festas de N. Sra. da Troia", sábado, 25 de janeiro, 16h00, em Setúbal, no Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal (MAEDS)

terça-feira, 25 de dezembro de 2018

Guiné 61/74 - P19334: Memórias dos lugares (382): Bissau, 1952, quando lá passei o meu primeiro Natal, aos 15 anos: uma tradição crioula que se perdeu, as crianças de Bissau, vindas do Chão Papel, Alto do Crim, Cupilon, Gã Beafada, Santa Luzia e outros bairros, que inundavam as ruas com as suas casinhas luminosas ou com os “kinkons” articulados e garrafas para marcar o ritmo, "tintim, tintim, kinkon, kinkon"... (Mário Fernando Roseira Dias, compositor musical, ex-srgt 'comando' reformado, Brá, 1963/65)


Portugal > s/l, algures, >  de Setembro de 2005 > Um reencontro de velhos camaradas, militares portugueses que estiveram na Guiné, tendo participado na Op Tridente (Ilha do Como, de 14 de Janeiro a 24 de Março de 1964)... Quarenta anos depois... Alguns dos bravos da mítica batalha do Como... Entre eles, está o nosso Mário Dias (o segundo, a contar da direita). ... Já agora aqui fica a legenda completa (Os postos, referentes a cada um, são os que tinham à época dos acontecimentos): Da esquerda para a direita: (a) sold João Firmino Martins Correia; (b) 1º cabo Marcelino da Mata (hoje tenente-coronel, na situação de reforma); (c) 1º cabo Fernando Celestino Raimundo; (d) fur mil António M. Vassalo Miranda; (e) fur mil Mário Fernando  Roseira Dias (hoje sargento na reforma); (f) sold Joaquim Trindade Cavaco.

Foto (e legenda): © Mário Dias (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


Angola > Luanda > 1963 (?)  >  Em primeiro plano, o fur mil 'comando' Mário Dias, em segundo plano, da esquerda para a direita, o fur mil Artur Pereira Pires, o sold Adulai Jaló e o alf mil Justino Coelho Godinho (estes três últimos já falecidos). No  aeroporto de Luanda à espera de transporte para o QG / CTIG. O primeiro grupo de Comandos do CTIG, sob o comando do alf mil Saraiva, particpou na Op Tridente (jan-mar de 1964).  

Foto cedida por Vassalo Miranda, ex-fur mil,  Gr Cmds ‘Panteras’

Foto (e legenda): © Virgínio Briote (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


Guiné-Bissau > Bissau > 2001 > A catedral de Bissau símbolo do catolicismo, que sempre teve fraca penetração num país  em que predominam o islamismos e o animismo.

Foto: © David J. Guimarães (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1.  Mensagem de Mário Dias 

(i) Mário [Fernando Roseira] Dias [, foto de 2005, à direita]

(ii) nasceu em 1937 em Lamego;

(iii) foi pra a Guiné, com a família, em 1952, ainda adolescente;

(iv)  assistiu à modernização e crescimento de Bissau, capital da Província desde 1943;

(vi) conheceu, entre outros futuros dirigentes e combatentes do PAIGC,  Domingos Ramos, de que se vai tornar amigo, na recruta e depois no 1º Curso de Sargentos Milicianos [CSM], que se realizou na Guiné, em 1959;

(vii) com o posto de fur mil, partiu, em 29 de outubro de 1963, para Angola, integrando num grupo de Oficiais, Sargento e Praças, do CTIG, a fim de frequentarem um curso de Comandos, no CI 16 na Quibala - Norte, e on se incluía o major inf Correia Diniz; alf mil Maurício Saraiva;  alf mil Justino Godinho, 2º srgt Gil Roseira Dias, fur mil cav Artur Pereira Pires, fur mil cav António Vassalo Miranda, 1.º  cano at inf Abdulai Queta Jamanca  e Sold. At. Inf.ª Adulai Jaló.

(viii) este grupo esteve na origem da criação, em julho de 1965,  da Companhia de Comandos do CTIG (CCmds/CTIG), tendo sido nomeado seu comandante o cap art  Nuno Rubim, substituído em 20 de fevereiro de 1966 pelo cap art Garcia Leandro;

(ix) em 1966, seguiu para Angola, onde prestou serviço, seguindo a carreira militar.
(x) depois de reformado dedicou-se à música: dotado de grande sensibilidade e talentos artísticos,  é mais  conhecido por M. Roseira Dias, no meio musical, é autor de inúmeros arranjos musicais de canções populares  a açoriana Olhos Negros, e tantas outras que por aí circulam em Portugal e no Brasil: são e  dezenas e dezenas de arranjos para coro, saídos do talento musical do nosso camarada: por exemplo, Granada, de Agustin Lara; Minha História, de Chico Buarque; Morte que mataste lira (Popular, Açores); Natal de Évora (Popular); Lembranças do Douro (Folclore do Alto Douro); Perdigão perdeu a pena (Cancioneiro da Alta Estremadura); Tempo suão (Cancioneiro da Alta Estremadura)... Mas não só arranjos como músicas orignais: por exemplo, Dança do vento (poema de Afonso Lopes Vieira); Regresso ao lar (poema de Guerra Junqueira); Cantiga das tristes queixas (poema de Afonso Lopes Vieira)...só para citar uns tantos exemplos.

Escreveu ele na altura, nas proximidades do Natal de 2005 (*):

(...) Aqui vai, não propriamente uma estória, mas o que poderemos chamar uma crónica ou memória de como era celebrado o Natal pelos rapazes (nunca vi raparigas a participar) de Bissau.

Caros camaradas de tertúlia:

Tintim, tintim, tintim,… “Bom festa pa tudo dgenti. Prança Deus bó iangaça tudo quê que bó misti”

Traduzo, ou não é preciso? Então lá vai: Boas-festas para todos. Queira Deus que alcanceis tudo quanto desejais.

Mário Dias

Nota do editor: Achámos por bem reproduzir aqui, hoje, esta sua descrição do Natal de Bissau de 1952. É reveladora da sua grande sensibilidade socioantropológica.  Com votos de bom ano de 2019 e um alfabravo fraterno ao Mário, que é dos um membros da nossa Tabanca Grande, da primeira hora. Muitos dos mais recentes grã-tabanqueiros nunca tiveram oportunidade de ler os seus notáveis textos (como por exemplo as crónicas da Op Tridente, 1964 ou as "memórias do antigamente" de Bissau ou "o segredo"..., o seu reencontro no mato com o amigo Domingos Ramos...)


2. Memória dos lugares > O Natal de Bissau nos tempos do "antigamente"

por Mário Dias

Tinha 15 anos no tempo já distante de 1952. Ia passar o meu primeiro Natal em Bissau (**) e nem calculava, nesses meus verdes anos, quão verdadeiro é o ditado popular: “cada terra com seu uso; cada roca com seu fuso”.

Em casa de meus pais, reunida a família para celebrar a consoada, comecei a escutar na rua sons e cantigas que me eram de todo estranhas, bem diferentes das que, em Portugal, celebravam o Natal. Curioso, vim à varanda e deparei com um cenário que me encantou de tal forma que ainda hoje dele me recordo com muita saudade.

Toda a rua onde morava (ia dar à avenida principal, perto do cinema da UDIB) era um mar de luzinhas e de sincopados sons. Não resisti e fui ver. Não queria perder o espectáculo para mim novo e bem longe do que poderia imaginar pudesse existir.

Grupos de 3 ou 4 crianças, transportavam pequenas casas feitas com armações de finas tiras de cana ou material semelhante revestidas com papel de seda de várias cores. Com um coto de vela aceso no seu interior, resplandeciam como se de vitrais se tratasse. E como havia algumas tão bem construídas e belas!... A catedral de Bissau, a casa do governador, o edifício da Administração Civil, ou simples casas saídas da fértil fantasia do seu construtor.

Também havia quem desse asas à criatividade e aparecesse com navios, aviões e de quanto a imaginação fosse capaz.

Iam parando em cada casa, ora à porta quando situada ao rés do passeio, ora penetrando nos pequenos jardins das mais recuadas, e um deles, portador de uma garrafa vazia e de um pequeno ponteiro de ferro batia o ritmo: tintim, tintim. tintim…

Então, ao compasso que o “tocador de garrafa” ordenava, todos rompiam nesta cantilena: (por sinal bem afinados)

S. José, sagrada nha Maria,
e quando foi, quando foi para Belém,
a resgatar o Menino de Jesus,
lá ao pé, lá ao pé da santa cruz.


(refrão)

Adoro mistério sobrinho da minha alma (1)
sobrinho da minha alma louva o Senhor.
Coração Santo todo ruminado
Todo vez em quando sempre a chorar
ai, ai, ai de vez em quando sempre a chorar,
ai, ai, ai de vez em quando sempre a chorar. (2)


O Angelino, Angelino já morreu,
e não queria confessar senão do Papa,
e nem do Papa nem do Bispo confessou
para nos dar boas-festas boa sorte. (3)

(repetiam o refrão)

Terminada a cantilena, dirigindo-se aos donos da casa, soltavam o inevitável “partim festa” (dê-nos as festas), querendo com isso pedir dinheiro ou algo que lhes fosse útil. Um deles estendia a mão para o donativo que sempre surgia e enquanto iam a caminho de outra casa algum perguntava:

- Kanto qui dá-bo? (quanto te deu)
- Dôs peso e meio.
- Esse i bom branco.

Desta maneira corriam todas as ruas de Bissau, visitando as casas ou abordando quem passava nas ruas:

- Partim festa.
- Kanto que dá-bo?
- Só cinco patacon (20 centavos)
- Bé… rijo mon (bolas…que avarento)


Intercalados, outros grupos diferentes surgiam. Eram os rapazes do “Kinkon”. Traziam também uma garrafa para marcar o ritmo, (tintim, tintim, tintim,) mas o “chamariz” apelativo ao “partim festa” era outro. Um boneco recortado em papelão, com braços e pernas articuladas por um engenhoso sistema de cordéis e montado numa vara, era transportado por um dos miúdos que o fazia movimentar ao ritmo da batida na garrafa “tintim, tintim, tintim”.

O portador do boneco atirava:

- Kinkon, kinkon.

Respondiam os outros em coro:

- Rabada di kon.

De novo o líder:

- Kinkon, Kinkon.

Resposta do coro:

- Nariz di Kon.

E sempre alternando, líder e coro iam acrescentando à cega-rega diversas partes do corpo:

Kinkon, kinkon,
Cabeça di Kon.
Kinkin, kinkon,
Orelha di Kon.


Por vezes, os mais ousados lançavam alusões a partes anatómicas menos próprias. Alguns dos companheiros riam-se, outros não gostavam e protestavam:

-Abó ka t’a burgonho (tu não tens vergonha).

Mantinham a cantilena o tempo necessário a que alguém viesse oferecer as desejadas “festas” e seguiam para outro lado.

Por ali me quedava embevecido, admirando estas encantadoras cenas tão inesperadas e atraentes.

E por ter ficado de tal forma apaixonado com tão extraordinária tradição, todos os anos, mal se aproximava o Natal, não continha em mim a ânsia da sua rápida chegada, para mais uma vez veras crianças de Bissau, vindas do Chão Papel, Alto do Crim, Cupilon, Gã Beafada, Santa Luzia e outros bairros, inundarem as ruas com as suas casinhas luminosas ou com os “kinkons” articulados e garrafas para marcar o ritmo: 

…tintim, tintim… São José, sagrada nha Maria…
…tintim, tintim… Kinkon, kinkon,… rabada di kon…


Certamente que muitos dos que passaram por Bissau assistiram a esta tradição e dela se devem recordar. Quanto a mim, já passaram mais de 50 anos e ela continua tão viva na minha memória que, quando chega o Natal, dou por mim a cantarolar aquela lenga-lenga e nos meus ouvidos ecoa o “tintim, tintim”. Involuntariamente sinto-me transportado ao passado e perante mim desfila, com toda nitidez e riqueza de pormenores, o encanto de cores e de sons que os rapazes de Bissau me proporcionavam.

Falando há tempos com um amigo que lá esteve recentemente, por ele fui informado que esse costume se perdeu e que as actuais gerações nem o conhecem. Se assim for, é pena. Nenhum povo deve esquecer e, menos ainda, menosprezar as sua tradições.

Caros amigos guineenses: Vamos restaurar esta tão bela tradição?

Torna-se talvez conveniente explicar o significado da cantiga que, como devem ter reparado, não é crioulo. É pretensamente cantada em português, com versos de cânticos religiosos que os rapazes, na sua ingenuidade deturparam.

Notas do autor:

(1) “Adoro o mistério sobrinho da minha alma…” corresponde a: “Adoro o mistério sublime da minha alma…”

(2) “Coração santo todo ruminado, todo vez em quando, sempre a chorar” é do cântico “coração santo, tu reinarás, o nosso encanto, sempre serás”.

(3) Quanto a esta alusão ao tal Angelino, nunca consegui saber do que se trataria.
___________

Notas do editor:

segunda-feira, 9 de maio de 2016

Guiné 63/74 - P16068: Nota de leitura (837): “Quinto Centenário da Descoberta da Guiné 1446 / 1946", brochura com um conjunto de selos da autoria de Amadeu Cunha e Uma tocante homenagem ao Comando morto em combate por Vassalo de Miranda (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Julho de 2015:

Queridos amigos,
Já não era sem tempo que vos mostrasse um tesouro filatélico de que me orgulho muito, os selos das comemorações do V Centenário da Descoberta da Guiné.
É um tesouro e uma raridade, os trabalhos do artista Alberto Sousa no campo filatélico podem ser vistos no Museu das Comunicações, são de primeiríssima água; e uma raridade, duvido que haja meia-dúzia de exemplares com toda a coleção de selos à venda.
Como é dia de prodígios, junto a imagem de um impressivo quadro de Vassalo de Miranda que autorizou a sua reprodução no blogue. Leva-nos a comungar a dor que todos sentimos quando perdemos os nossos camaradas no campo de combate.

Um abraço do
Mário


1 - Uma preciosidade filatélica: Guiné, 1946

Beja Santos

No âmbito das comemorações do V Centenário da Descoberta da Guiné (1946) foi editada uma brochura com um conjunto de selos da autoria de Alberto Sousa, conhecido artista plástico e colaborador no desenho filatélico muito apreciado. A autoria do texto da brochura pertenceu a Amadeu Cunha, ligado através da Agência Geral das Colónias a uma colaboração assídua na revista “Muito Português” exclusivamente dedicada à problemática colonial.

Era sentimento da época de que fora Nuno Tristão o descobridor daquela região da Guiné, hoje é mais do que problemático que tenha sido assim. Escreve o autor: “Nuno Tristão recebeu o encargo de levar vela o mais longe que pudesse, da Ponta da Galé, o que fez, alcançado Carlo Branco; em 1443, de novo a reconhecer, navegava para o Sul e descobria as ilhas de Arguim e das Garças e, mais distante, uma terra que se presume ser a que, em 1445, Dinis Dias nomeou de Cabo Verde. Mais um escudeiro do Infante, Lançarote, saindo com seis caravelas, numa das quais Gil Eanes voltava à faina descobridora, chegara às ilhas das Garças, Naar e Tider. Do mesmo ano foi a saída de Gonçalo de Sintra, a quem o Infante havia recomendado “que fosse diretamente à Guiné e que por nenhum caso não fizesse o contrário”. Mas fê-lo, afinal, “desejando avantajar-se sobre os outros”, porque disso tiraria tanta honra como proveito. Preferiu, pois atacar a gente de Arguim, e na ilha de Naar encontrou a morte com mais 12 companheiros. Em 1446, Nuno Tristão, tornava às suas andanças de descobridor, “mui desejoso desta vida”. Havendo entrado com 22 dos seus, um rio, porque a corrente houvera afastado muito da caravela os batéis, vira-se, em certo passo, salteado por uma chusma de almadias, que deram neles, e todos, à exceção de três, sucumbiram, feridos por frechas empeçonhadas. Por memoração foi posto a certo rio o nome do herói. Rio de Nuno ficou a chamar-se. Mais a identificação suscita dúvidas. Foi esse, ou terá sido outro, o Geba, que serviu de cenário ao episódio? Nuno Tristão deixava descoberta a atual Guiné Portuguesa, legendada pelo seu sangue e o de seus companheiros”.


A coleção de selos mostra o forte de Cacheu, que surgiu em 1588, a igreja de Bissau, Honório Pereira Barreto, o presidente norte-americano Ulisses Grant, a quem coube arbitrar a questão de Bolama e também o capitão Teixeira Pinto, sobre quem o autor escreve: neto e filho de bravos, tendo já ganho a Torre e Espada na guerra contra o Cuamato, passava em 1912 à Guiné. Desde logo tratou de elaborar um plano de ocupação definitiva. Compreendia quatro campanhas: a primeira, de Abril a Agosto de 1913, ao Oio; a segunda, de Janeiro a Abril do ano imediato, contra os Papéis e Manjacos de Cacheu; a terceira, de Maio a Junho, contra os Balantas de Mansoa; de Maio a Agosto de 1915, a quarta, que foi de todas a mais dura e mortífera, contra os Papéis de Bissau. A cada campanha correspondera um êxito”.


************

2 - Uma tocante homenagem ao Comando morto em combate

Tive a alegria de receber a visita de Vassalo de Miranda, um Comando que esteve na Operação Tridente e que é um dos mais distintos artífices da banda desenhada portuguesa, aqui no blogue já falamos de três livros seus dedicados a feitos na Guiné, envolvendo operações e a lancha 302, várias vezes atingida, teve uma vida atribulada nos rios da Guiné.

O Vassalo de Miranda veio oferecer-me mais banda desenhada e dar-me conta dos seus trabalhos pictóricos. Foi a remexer nestes que encontrei esta imagem que não precisa de palavras, tal o seu vigor representativo. O autor autorizou a sua reprodução no nosso blogue e até me prometeu que em breve nos iria oferecer os seus textos sobre a Operação Tridente. Discutimos o título deste quadro e assentámos que poderá ficar conhecido como “A dor do Comando”. Em nome desta confraria onde labutam prestigiosos camaradas do Vassalo de Miranda, como é o caso do Virgínio Briote, o nosso muito obrigado.

 “A dor do Comando”
© Vassalo de Miranda, Comando que esteve na Operação Tridente e que é um dos mais distintos artífices da banda desenhada portuguesa 
____________

Nota do editor

Último poste da série de 6 de maio de 2016 Guiné 63/74 - P16056: Nota de leitura (836): “Portuguese Africa, A handbook”, com coordenação de David M. Abshire e Michael A. Samuels, respetivamente doutorados nas universidades de Georgetown e Columbia, nos EUA (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 6 de abril de 2015

Guiné 63/74 - P14438: Notas de leitura (700): “Operação Gata Brava": A BD original de António Vassalo Miranda (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Junho de 2014:

Queridos amigos,
Este criador de BD não é um nome estranho no blogue, já foi mencionado a propósito de outro trabalho “Operação Mar Verde”.
Tem um traço esplêndido, a ilustração é acompanhada de um texto sugestivo, trama dinâmica que assegura uma leitura absorvente. Bom seria que os nossos confrades abrissem os cordões à bolsa e mostrassem o que têm de BD e as guerras em África.
Foi graças à gentileza da Associação dos Comandos que tive acesso a esta preciosidade. A BD precisa de ser acarinhada. Tem reais potencialidades para chegar a um outro público que não o dos devoradores de livros.

Um abraço do
Mário


Operação Gata Brava: A BD original de António Vassalo Miranda

Beja Santos

A BD na guerra colonial tem dado provas de boa saúde, artistas meritórios revelam sucesso mas carecem de chegar ao grande público. Entre os nomes mais destacados desta expressão artística temos António Vassalo Miranda, de quem já fizemos referência. Para o conhecer melhor, o Google faz dele uma cabal apresentação e das suas obras mais representativas.

Falemos hoje do seu álbum "Operação Gata Brava", prova inegável do seu indiscutível talento. A BD ilumina os factos fundamentais que levaram Alpoim Calvão novamente ao Sul da Guiné onde destruiu um barco que tinha sido capturado pelo PAIGC no início da guerra, uma operação de grande arrojo e heroísmo.

Em 5 de março de 1970, os serviços de Radiotelegrafia em Bissau apanharam uma mensagem de Quitáfine para Boké, ficava-se a saber que o navio ia em breve recolher o agente Marcel a Kadigne. Calvão já afundara o “Patrice Lumumba” e aprisionara alguns dos seus elementos. Virá a descobrir-se que o barco que recolherá o agente Marcel era o “Bandim”, capturado pelo PAIGC em maio de 1963 na região de Cacine. Calvão é transportado pelo patrulha “Lira”, vai em direção à foz do rio Cacine. São arreados dois zebros, os botes com oito homens mergulham na noite, aproximam-se do canal e pelas 5h30 da manhã os botes anicham-se no tarrafo onde ficam emboscados. Já fora assim na Operação Nebulosa, em que se afundara o navio-motor Patrice Lumumba. Ali ficam, enquanto a Força Aérea informa que Bandim já partira de Kadigne.

Para movimentar a história, o autor, durante a longa espera, põe os militares a conversar sobre proezas anteriores e figuras de porte excecional. São lembrados os Furriéis Miranda e Artur Pires, o Cabo Marcelino da Mata e o Alferes Leonel Saraiva e os episódios vividos na Ilha do Como. Miranda dera provas de ser destemido e dotado de um impressionante sangue frio, como também se comprovou na “passagem do inferno”, que era uma passagem que ligava Cavane, na Ilha do Como, à floresta através de um arrozal. Miranda, aproveitando os intensos bombardeamentos da Força Aérea lança um ataque sobre as linhas inimigas, não desfaleceram mesmo quando um T6 foi atingido.

Entretanto, passam dois guerrilheiros numa canoa, os emboscados deixaram-nos seguir. O Tenente Barbieri insiste com Galvão para que conte mais façanhas da Operação Tridente que ele vai descrever e BD ilustra. A “Tridente” fora a maior escola de guerrilha que houvera até então. Para Calvão, não se soubera tirar partido dos resultados. Tudo começara depois do PAIGC ter anunciado que havia a República Independente do Como. O comandante Paulo Costa Santos propusera a Tridente, e assim tivera origem a operação mais longa, mais dura e a que mais efetivos envolveu e que fora para o narrador a melhor escola prática que nos graduara na arte da guerra. Calvão descreve o desembarque dos fuzileiros em Caiar de colaboração com a CCAÇ 557 e com os Comandos. O PAIGC tentou desalojá-los, em vão. A artilharia, formada por dois canhões 8,8, sediada na base da praia de Caiar, foi batendo com uma precisão admirável as zonas pré-estabelecidas; e a força aérea deu constantemente o seu apoio. Fuzileiros, Paraquedistas e Comandos e Exército, foram devassando o reduto defensivo do PAIGC. Calvão continua a sua narrativa relatando casos de heroísmo e desprezo pela morte, e de novo refere o Sargento Miranda, os 1ºs Cabos Marcelino da Mata e Jamanca que tinham ido ao socorro do Sargento Perry. No final da operação, o PIAGC retirou para o continente. O Tenente-Coronel Fernando Cavaleiro passeou-se no interior da ilha acompanhado de meia dúzia de homens. Deixou-se uma pequena guarnição em Cachil Pequeno. É nisto que alguém visa que se está a ouvir um barco, de facto era o navio-motor Bandim a aproximar-se. Inicia-se a caçada, um dos zebros, onde vai Barbieri, ataca por estibordo, Calvão e os seus homens por bombordo.

A BD torna-se um documentário poderoso, avassalador, o Bandim cercado, as tropas da Guiné Conacri a ripostar da margem esquerda, sem qualquer efeito. Uma granada de bazuca entra pelo albói da popa e vai explodir no interior da embarcação, o barco perde velocidade, e depois encalha. Trava-se a última batalha, assalta-se o Bandim, todos estão mortos. É impossível tirar dali o Bandim, ele vai ser destruído com petardos de trotil. Assim terminara a operação Gata Brava, os botes afastam-se e noite alta os fuzileiros são recolhidos pelo navio-patrulha Lira. A BD termina com António Spínola a felicitar Alpoim Calvão.

Este é, em síntese, o conteúdo de uma BD muito expressiva produzida por alguém que tem um traço magnífico.


____________

Nota do editor

Último poste da série de 4 de abril de 2015 > Guiné 63/74 - P14432: Notas de leitura (699): “Elefante Dundum – Missão, testemunho e reconhecimento”, por João Luíz Mendes Paulo, edição de autor, 2006 (2) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 30 de setembro de 2014

Guiné 63/74 - P13672: In Memoriam (197): Comandante Alpoim Calvão (1937-2014): o funeral realiza-se na quinta-feira, dia 2, para o cemitério dos Olivais, após a missa de corpo presente no Mosteiro dos Jerónimos


Tira da banda desenhada “Operação Mar Verde”, da autoria de A. Vassalo, uma edição da Caminhos Romanos, 2012. Na introdução, o autor, o ex-fur mil comando Vassalo Miranda, nosso camaraada da Guiné,  escreveu o seguinte, que é seguramente um grande elogio ao homem e ao operacional que foi Alpoim Calvão:

“Na Guiné, em 1964, conheci um homem incrível, que me catapultou para o imaginário. Ambos pertencíamos a unidades de elite das Forças Armadas. Eu, furriel dos Comandos,  e ele, 1º tenente, comandante do 8º Destacamento de Fuzileiros Especiais. Homem valente, altruísta, desvalorizando situações constrangedoras, animando os seus homens e, sobretudo, de uma grande humanidade tanto para os seus como para os adversários. Qualquer um de nós seguíamo-lo sem questionar. Nasceu entre nós uma grande empatia que dura até hoje. Obrigado, comandante Alpoim Calvão".




1. Mais uma  notícia, triste, que corre pelas redes sociais, e que nos chegou através do Ipad do nosso camarada Rui Vieira Coelho_

 

Data: 30 de Setembro de 2014 às 17:18

Assunto: Falecimento de Alpoim Calvão

Faleceu hoje de manhã no Hospital de Cascais o Oficial da Armada mais condecorado da Marinha Portuguesa,  Sr Comandante Alpoim Calvão.

Foi o grande estratega e o comandante operacional da célebre "Operação Mar Verde" que invadiu Conakri e libertou o piloto da Força Aérea António Lobato e mais 26 soldados das nossas Forças Armadas.

A operação foi gizada e treinada na Ilha de Soga, de onde partiu no dia 22 de Novembro de 1970. Todos os prisioneiros foram resgatados e enviados posteriormente para Lisboa.

Perante o infausto acontecimento só me resta curvar-me perante a memória deste Grande Português, deste Grande Militar e que Deus lhe de "O descanço do guerreiro" a que tem direito.

Bem haja por tudo o que fez por este país, ditoso filho desta Pátria.


Rui Vieira Coelho [, médico reformado, ex-alf mil médico,  BCAÇ 3872 e BCAÇ 4518, Galomaro, 1973/74]


2. Segundo o semanário Expresso, "o funeral de Alpoim Calvão realiza-se na quinta-feira para o cemitério dos Olivais, após a missa de corpo presente no Mosteiro dos Jerónimos. Segundo disse à Lusa uma fonte familiar, o velório terá início esta quarta-feira, a partir das 17h. A missa de corpo presente está prevista para as 11h de quinta-feira e o funeral sairá às 11h45."

O nosso blogue tem cera de duas dezenas e meia de referências ao comandante Alpoim Calvão, de seu nome completo Guilherme Almor de Alpoim Calvão, 
nascido em Chaves, em 1937).

O jornal Público recorda-o nestes termos, enquanto comnbatente no TO da Guiné:

(...) "Nascido em Chaves, viveu em Moçambique, cursou Marinha na Escola Naval entre 1954/57, especializando-se em mergulhador sapador e navegação submarina. Voluntaria-se como fuzileiro e desembarca na Guiné no final de 1963, como comandante do destacamento de fuzileiros onde participa em diversas operações. De regresso a Lisboa, em 1965, entra na Escola de Fuzileiros onde chega a director de instrução. Ali se mantém até 1969, quando entra em conflito com o ministro da Marinha e deixa o cargo para regressar em comissão à Guiné.

A operação Mar Verde, em Novembro de 1970, que teve em Alpoim o principal arquitecto, previa um ataque a Conacri para libertar cerca de três dezenas de prisioneiros de guerra portugueses nas mãos do PAIGC - como o sargento piloto António Lobato que esteve preso vários anos - destruir equipamento do movimento independentista e liquidar o Presidente Sékou Touré. Só os dois primeiros foram conseguidos - ainda que o segundo não totalmente. Mas também terá papel relevante noutras missões como as operações Trovão e Tridente." (...).

As nossas sentidas condolências à família, aos camaradas da Marinha que serviram sob as suas ordenas e aos demais amigos. (LG)
________________

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Guiné 63/74 - P13171: Efemérides (155): O baile dos alunos finalistas da Escola Técnica de Bissau na Associação Comercial, Industrial e Agrícola, em 5 de junho de 1965: "Alto lá e pára o baile!" (depoimentos de Virgínio Briote, João Parreira e Luís Rainha)



Guiné > Bissalanca > 1966 > Comandos a caminho de Bafatá, junto ao Dakota para operações na região do Xitole.


Marcelino da Matam, então 1º cabo,  é o primeiro da esquerda, na segunda fila, de pe.  O alf mil Briote é o segundo, a contar da esquerda, da primeira fila. O Capitão Rubim (hoje cor art na reserva) é o 6º da primeira fila, também a contar da esquerda.

Guiné > Bissalanca > 1966 > Comandos a caminho de Bafatá, junto ao Dakota para operações na região do Xitole. São essencialmente elementos do Gr Cmds Diabólicos, de que era comandante o nosso querido amigo, camarada, grã-tabanqueiro e editor (jubilado) Virgínio Briote, para quem mandamos um xicoração fraterno e que esperemos reencontrar em Monte Real, no dia 14 de junho próximo.


Foto: © Virgínio Briote (2005). Todos os direitios reservados [Edução: LG]


1. Vai fazer 50 anos, para o ano, o célebre baile dos finalista da Escola Técnica de Bissau (e não propriamente do Liceu  Honório Barreto), que ficou bem gravado na memória de alguns dos camaradas que pertenceram aos comandos do CTIG (Brá, 1965/66) como foi o caso dos nosso grã-tabanqueiros Virgínio Briote (, um histórico do nosso blogue, como autor e coeditor), João Parreira e Luís Raínha...

O Virgínio e o João já publicarm, na I Série, em 2005, a sua versão dos acontecimentos dessa noite, em que um grupo de militares, comandos e outros, forçaram a entrada no baile, por vol,ta das 2 h da manhã, e travaram-se de razões com os organizadores.  Os desacatos que se seguiram obrigaram à intervenção da Polícia Militar e da PSP. No final, acabou tudo à boa maneira portugesa, com umas porradas para uns bodes expiatórios e pedidos de desculpa do governador Schulz à Associação.

Não nos compete julgar o comportamento de nenhuma camarada nosso, de acordo com o espírito e a letra das nossas  normas editoriais.  Cenas destas passaram-se na metrópole, envolvendo civis e militares. Mas. neste caso, estamos num território em guerra, e numa cidade, Bissau, ainda em pleno desenvolvimento, mas com sinais de crispação entre os militares, metropolitanos, e a elite crioula...

Juntamos aqui 3 depoimentos, de camaradas nossos que estavam lá nessa noite: além do Virgínio e do João, o Luís Rainha (que é também o fundador., administrador e editor principal do blogue Comandos da Guiné- 1964 a 1966, co-editores: Júlio Abreu e João Parreira, os três também membros da nossa Tabanca Grande).

Os acontecimentos tiveram lugar na Associação Comercial, Industrial e Agrícola de Bissau, mesmo nas barbas do Governador Arnaldo Schulz.

Não encontrámos até à data nenhuma versão da parte dos civis,  organizadores do baile ou da direção da associação, muito menos do PAIGC (que ocupa hoje este edifício, de resto o melhor edifício da Bissau colonial, segundo a conceituada especialista em arquitetura colonial  estadonovista, a Ana Vaz Milheiro, já aqui vátias vezes falada).

Não sabemos de eventuais ligações, nesta época, ao PAIGC; por parte da direção ou de alguns membros dos corpos sociais da Associação Comercial e Industrial de Bissau, como parece insinuar o Luís Rainha no seu depoimento. O EliséeTurpin foi secretário-geral desta  Associação, de 1973 a 1976,  e não em 1965 (como já escreveu algures o Virgínio Briote), O que é mais espantoso é como é que o homem conseguiu escapar às malhas da PIDE/DGS, vivendo à luz do dia em Bissau... Nunca foi preso... Afinal tratava-se, nada mais nada menos, de um dos fundadores do PAIGC, em 1956!... Só há uma explicação, quanto a mim: a escola de resistência do PCP-Partido Comunista Português, de que o Elisée Turpin também era (ou tinha sido) militante...

Esta junção dos três textos, para além de uma homenagem aos seus autores (e muito em particular ao nosso editor jubilado Virgínio Briote que superou um grave 'roblema de saúde, do foro oftalmológico, ainda não há muito tempo) , é também uma forma de dar a conhecer melhor, aos nossos leitores mais recentes (ou "piras"),  o ambiente que se vivia em Bissau, em meados de 1965,  no tempo do Arnaldo Schulz, o general que antecedeu o António Spínola.



Guiné > Bissau > s/d > Associação Comercial, Industrial e Agrícola de Bissau. Bilhete Postal, Colecção "Guiné Portuguesa, 144". (Edição Foto Serra, C.P. 239 Bissau. Impresso em Portugal). O melhor edifício da cidade, segundo Ana Vaz Milheiro, especialista em arquitetura colonial estadonovista. É hoje sede... do PAIGC!

Foto: © Agostinho Gaspar / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guine   (20q0). Todos os direitios reservados [Edução: LG]



Guiné > Brá (?) > Setembro de 1965 >  Virgínio Briote, ao centro, tendo à sua esquerda o Marcelino da Mata e o Azecedo e *a sua direita o Black e o Valente

Foto: © Virgínio Briote (2005). Todos os direitios reservados [Edução: LG]


(i) A versão (ligeiramente ficcionada) do Virgínio Briote
ex-alf mil, comando, cmdt do Gr Cmds
Diabólicos (CTIG, Brá, 1965/66)

[Os parênteses retos, em itálico,  são da responsabilidade do editor,  LG]

Morreu um tipo de um país qualquer, o Salazar decretou 3 dias de luto e lá estamos nós a ouvir música de mortos com a nossa bandeira a meia haste. Custa-me engolir estas histórias quando os nossos mortos estão a ser ignorados.

Fala-se no próximo baile de finalistas, que vai ser uma festa de arromba! Alguns dos nossos vão roncar com as namoradas ou com os arranjinhos. O Uva   [, João Parreira,] anda todo satisfeito, até o Quintanilha, aquele alferes dos páras, mandou vir da metrópole um fato de cerimónia.

Quando estive de férias na metrópole logo a seguir à formação dos grupos, os Fantasmas accionaram uma mina e foi o que se sabe, 9 dos nossos já lá estão. Entre eles,  o meu grande amigo Artur. Morrem-nos 9 homens e a Emissora Nacional continua a twist e ié-ié. É isto que me custa engolir, estão a ouvir? E ainda por cima, cabo-verdianos e alguns sectores guineenses não vêem com bons olhos a nossa presença nas festas deles!

Mas que raio estava aqui a fazer? A Guiné não lhe estava a dizer nada, não a sentia como sua, até se sentia um intruso. Até com os civis brancos, poucos, duas dúzias se tanto, sentia-se sem convite.

Na esplanada do Bento, a 5ª Rep, como também era conhecida , bebia cerveja com mancarra, num grupo de 5 ou 6 comandos e páras. Um terá dito que naquela noite, na Associação Comercial de Bissau, havia o baile dos finalistas do Liceu [,  ou melhor, Escola Técnica de Bissau]. Outro lembrou-se de perguntar se alguém recebera convite. Eu não, tu não, aquele também não…Ninguém se lembrou de nós, como pode ser? Queres ir?

Dentro da Associação, no enorme salão de baile, finalistas e familiares todos animados a dançarem, com o Toni ao piano. Quando os viram entrar em fila, alto lá e pára o baile!... Depois, ninguém soube bem como tudo começou…

A princípio, as frentes pareciam bem delimitadas, os participantes em festa de um lado e a meia dúzia de intrusos do outro. Com o decorrer das hostilidades, as duas partes em confronto clarificaram-se ainda mais. Entre vivas ao camarada Presidente Amílcar, um pelotão da PM  entrou por ali dentro, despachou tudo o que lhe apareceu pela frente, trinta e tal tipos com escoriações para o hospital, a polícia civil e a pide também metidas. Vidros e loiças em cacos, cadeiras e mesas partidas, uma noite que nunca mais acabava.

Mesmo em frente ao Palácio do Governo, onde, soube-se depois, da janela, o Governador [, gen Arnaldo Schulz,] via aqueles gajos darem-lhe cabo da psico. Uma vergonha!

Os acontecimentos na Associação Comercial alteraram o ambiente na cidade. A desconfiança entre a população negra, cabo-verdiana e a tropa, os nervos crispados, a porcaria mais ou menos submersa, subiu tudo. Tentava-se levar a vida normal, mas via-se pouca gente nas ruas, sobretudo à noite. A PM aumentara os patrulhamentos. O PAIGC, como lhe competia, aproveitava e tirava dividendos.

Nos dias a seguir ao sucedido choveram exposições no Palácio, sete, dissera todo cheio de importância o ajudante de campo do Governador. O General Shulz recebera numerosas individualidades civis, apresentara desculpas formais à Associação Comercial e aos finalistas, prometera pagar os prejuízos, tomar providências enérgicas, o habitual nestes casos.

Em Brá, o capitão [, da CCmds / CTIG, Nuno Rubim,]  interrompeu os desenhos que estava a fazer quando o viu entrar. Começou por lhe dizer que as saídas para a cidade estavam proibidas. Depois, pediu-lhe explicações. Que se tudo tinha acontecido como se contava, que não tivesse dúvidas que haveria consequências. O Governo da Província estava a ver o programa de pacificação a andar para trás, que aguardasse o auto de averiguações, que era tudo, chutara o capitão, cada vez mais longe dele e dos outros. Logo a seguir deu-lhe ordem para ir para o Xitole, o grupo deveria manter-se lá até nova ordem, sem mais detalhes. Bater a zona, procurar o IN, dar-lhe caça, para que é que havia de ser?

Embarcaram num Dakota até Bafatá, depois apanharam boleia numa coluna auto que os levou para Fá, rumo ao Xitole, numa coluna a abarrotar de abastecimentos.

Até Fá Mandinga o percurso foi-se fazendo. Depois, até ao Xitole, foram sempre debaixo de chuva, os quilóemtros nunca mais acabavam, as viaturas civis que aproveitaram a boleia não estavam preparadas, metiam-se na lama até à carroçaria. O Corubal parecia o Atlântico quando o atravessaram. Chegaram no outro dia à noite, com os reabastecimentos reduzidos a metade, alguns destruídos pelas águas, outros desapareceram, ninguém soube dizer como.

Mantiveram-se lá quase 3 semanas, contactaram com o IN nas proximidades do Galo Corubal, em Satecuta [, subsetor do Xitole, na maregm direita do Rio Corubal]  , sem consequências para além de trocas de tiros à distância.

Da estadia no Xitole o que os marcou mais foi a chuva. E o toque a silêncio, tocado à noite por um profissional da corneta. Um solo de requinta, de arrepiar!

Percurso inverso, quase a mesma história, com a diferença de ter sido feito a pé até Bambadinca.

Dias depois em Brá, um capitão procurou-o, queria ouvi-lo para o tal processo que estava a decorrer, já tinha ouvido os outros, só faltava ele. O que tinha acontecido, como, quando, porque é que, quem fora o cabecilha, leia, assine aí em baixo, alferes Gil Duarte [, alter ego do autor.,]se estiver de acordo.

À noite fora até Bissau, encontrar-se com os companheiros do costume. Passaram-lhe para as mãos a Plateia, uma revista de cinema que saía em Lisboa. Folheou-a, os olhos na Brigitte Bardot a fazer festas no focinho de um burro, um pé da Sofia Loren num banco a tirar a meia preta com um tipo qualquer deitado numa cama, à espera. Parou numa página. Crónica da Guiné na Plateia, ora deixa ver! Uns arruaceiros tinham invadido as instalações da Associação, interromperam a festa dos finalistas e partiram tudo, à boa maneira dos teddy-boys de Liverpool e Manchester, escrevia escandalizado o correspondente [, que assinava Joaão Benamor]. Olharam uns para os outros, calados.

Fica assim, perguntou alguém? Que não, que era melhor falar com o correspondente, esclarecê-lo, tirar-lhe as dúvidas. Bissau era pequeno, foram até à esplanada do [Café] Bento [, a 5ª Rep], disseram que ele devia estar lá para cima, no café Império.

Encontraram-no, estiveram com ele, explicaram-se uns aos outros. Não foi logo na Plateia seguinte, mas a rectificação leram-na dois meses mais tarde, acompanhada de um cartão com os melhores cumprimentos.

Entraram no gabinete, fizeram-lhe a continência e puseram-se os 5 em linha, aprumados [, 2 alferes e 3 furrieis, todos dos Cmds / CTIG]. O Brigadeiro Sá Carneiro, Comandante Militar, mexia nuns papéis em cima da secretária, não encontrava, abriu gavetas, ah, estão aqui, satisfeito. Quando levantou os olhos para eles, mudou de cara.

Ora bem, meus senhores, antes de mais, devo manifestar-lhes a pena que tenho de os ter aqui nestas circunstâncias. Já tive convosco manifestações de apreço, quando o mereceram, o que não é o caso desta vez, infelizmente. Relatar aquilo que ficou apurado, é desnecessário…

Puno o alferes comando…., olhava primeiro para o citado, escrevia depois, três, cinco dias de prisão simples, o critério nunca se soube, porque no dia tal, às tantas horas,…grave prejuízo para a tranquilidade e bem-estar públicos…contrariando os esforços que o governo da Província…a lenga-lenga igual para todos.

Não sabia porquê, tinha apanhado três dias de prisão, a pena mínima, sabia lá, cara fechada para o Justo [1º cabo, guineense, do Gr Cmds Diabólicos, mais tarde, oficial graduado da 1º CCmds Africanos] que lhe perguntava porquê uma pena tão reduzida.

Desciam a escadaria quando o ouviu chamar outra vez, ó Gil, então, quando vais de férias?


(ii)   Depoimento do João Parreira  (ex-fur mil comando, Gr Cmds Fantasmas, CTIG, Brá, 1965/66)


[Foto à esquerda: O Joâo Parreira e o Vassalo Miranda, Bél+e, mo dia 10 de junho de 2010. Fotp de L,.G..]

[Os parênteses retos, em itálico,  são da responsabilidade do editor,  LG]



Conforme o prometido, passo a descrever a minha participação e os acontecimentos que deram origem à narração do V. Briote em 13/11/05 (*) sobre o baile dos Finalistas da Escola Secundária [, Escola Técnica, e não Lice«u],  realizado em Bissau, no Sábado, em 5 de Junho de 1965.

Na manhã daquele dia para me descontrair tinha ido com alguns camaradas para Quinhamel, uma vez que estava com grandes projectos para aquela noite. Semanas antes tinha conhecido a Helena,  uma moça cabo-verdeana, que era o que se costuma dizer uma “brasa” e andava todo entusiasmado.

Na véspera do baile, a Helena que era finalista, disse-me que me ia arranjar um convite para assim poder ir com ela . No próprio dia encontrei-me com ela da parte da tarde e ela disse-me que não tinha conseguido obter um convite, mas que me tinha comprado um bilhete. Assim dei-lhe os 100 pesos correspondentes ao preço do bilhete.

Estava a dançar com ela, já devia ser madrugada quando ouvi um grande borburinho, virei-me e reparei que o motivo era a entrada sem bilhete de vários militares desconhecidos e logo a seguir uma cara conhecida.

A música não parava de tocar e os pares continuavam a dançar. Várias finalistas e familiares encontravam-se sentadas em cadeiras que tinham sido colocadas junto às paredes. Alguns dos recém-chegados dirigiram-se de imediato a estas finalistas a pedir para dançar, mas não tiveram sorte.

No salão enorme, junto a uma das janelas encontrava-se uma mesa rectangular bastante comprida que dominava todo o salão e que estava totalmente ocupada com africanos e cabo-verdeanos que presumi serem os professores e o Principal [ , diretor] da Escola [Técnica].

Guiné > Bissau > Fevereiro de 1965 > O Furriel Miliciano Comando João Parreira, já depois de ter saído da CART 730... "Esta foto foi tirada numa esplanada em frente ao Hotel Portugal, creio que se chamava Café Universal".

Foto: © João Parreira (2005).Todos os direitos reservados


Notava-se que os ocupantes desta mesa ficaram furibundos com a intrusão. O alf Godinho, um dos “velhinhos”, foi um dos últimos a entrar, pelo que dirigiu-se logo para essa mesa e foi falar calmamente com um dos que se encontravam sentados no centro da mesa.

Desconheço o teor da conversa, mas o certo, pois eu estava a dançar perto, é que um deles lhe atirou com uma garrafa à cabeça. De imediato,  vindo da mesma mesa,  ouviu-se um deles gritar e logo a seguir outros a fazerem coro: "Se o nosso chefe estivesse aqui, e não em Conacri, nada disto acontecia”.

Com esta agressão e com as palavras insultuosas o ambiente ficou desde logo muito tenso.

Com todo este reboliço entraram de rompante 2 ou 3 camaradas que tinham ficado à porta do edifício, já que o porteiro não os tinha deixado entrar.

O Furriel V[assalo] Miranda alheio à situação e que na altura andava a passear o seu inseparável whisky, deixou-o ficar no hall de entrada à guarda de um porteiro, e também entrou.

O contacto físico em vários pontos do salão, não muito distante da pista de dança, começou já passava das 03h00 e prolongou-se por bastante tempo.

Apesar do que se estava a passar, a música não parava de tocar e parecia que todos os pares queriam estar alheios à situação. Como não podia deixar de ser, parei de dançar e pedi à Helena para não sair da pista pois ia ajudar os meus camaradas, e depois voltava.

Ela, que foi fantástica, disse-me para não ir pois podia ficar magoado, mas eu tranquilizei-a dizendo-lhe que em Lisboa tinha praticado boxe em clubes e tinha entrado em vários combates públicos.

Assim , por 3 ou 4 vezes, dava um pezinho de dança, atravessava a pista por entre os pares, ia a uma das zonas da pancadaria, envolvia-me como podia no meio de um dos grupos em contenda dava uns bons pares de murros e, quando me sentia satisfeito lá voltava novamente para junto da moça para continuar a dançar.

Dado o reboliço que se gerou também entraram no salão vários paraquedistas para darem uma ajuda aos que se encontravam em minoria. Entretanto alguém deve ter chamado a PM que entrou mais tarde e começou logo a tirar os nomes à rapaziada.

Tive mais sorte que o VB [, Virgínio Briote,]
e os outros camaradas pois logo que vi a PM entrar na nossa direcção apressei-me, sorrateiramente, a atravessar o salão pelo meio dos pares, a fim de ir ter com a Helena (a minha tábua de salvação) que estava a dançar sòzinha e agarrei-me logo a ela, pelo que a PM não deve ter percebido que eu também tinha andado no barulho.

Acabado o baile fui levar a Helena a casa, mas depois destes acontecimentos o ambiente não era propício pelo que vi gorados os projectos que tinha idealizado em Quinhamel.

Ao fim e ao cabo, feitas as contas tive sorte a dobrar pois livrei-me de ser punido e como tal de ter que ir passar uns tempos ao mato.

Domingo, 6 de Junho de 1965, às 19h00 dirigi-me com o V [assalo] Miranda e alguns fuzileiros para a Praça do Império onde se encontravam vários grupos de africanos em atitudes provocadoras e hostis, para tentarem tirar, talvez, ainda mais dividendos dos acontecimentos daquela madrugada.

Não sei bem como tudo começou, mas um deles apanhou o Miranda distraído e aplicou-lhe um tremendo murro que fez com que ele vacilasse, e depois fugiu. Corremos atrás dele mas não o apanhámos na rua pois foi refugiar-se no cinema UDIB. O porteiro, cabo-verdeano, que estava já a correr a porta de lagartas para o proteger não o conseguiu fazer, já que, com a ajuda do meu cinturão foi persuadido a não a fechar, e assim o Miranda entrou e ficou a sós com o seu agressor.

Voltámos para a Praça do Império onde o número de africanos tinha aumentado de uma forma incrível e notavam-se as mesmas atitudes agressivas. Como estávamos, mais uma vez, em grande desvantagem numérica, e com o intuito de os intimidar e evitar o confronto, mandei pedir a Brá para quem nessa altura estivesse disponível viesse ao nosso encontro.

Passada meia-hora chegou um jeep com o condutor e um Alferes (o único que vinha armado para o que desse e viesse) e logo atrás uma Mercedes com mais pessoal.

Infelizmente a intenção não deu resultado pois, ao aperceberem-se da chegada,  os africanos atiraram-se a nós à tareia usando os punhos e os pés.

Assim cada um de nós estava a ser agredido por 3 ou 4 pelo que, para evitar o pior, decidimos resolver o assunto com a máxima rapidez, e para esse fim usámos os nossos cinturões a torto e a direito, o que teve o condão de os obrigar a fugir. 

Com a Praça vazia usámos os mesmos veículos e regressámos a Brá.


(iii) Depoimento do Luís Raínha, ex-alf mil, comando, 
cmdt do  Gr Comandos Centuriões, CTIG,
Brá, 1965/66  (***)

A minha narrativa vai ser um pouco diferente, pois, eu fui ao baile convidado por uma Família de um dos finalistas, ou seja, todo o mundo sabia, sabe e sempre soube que eu tive uma grande paixão e amor por uma moça da família Barbosa. Uma das famílias mais importantes da Guinè, a Lu, como carinhosamente a tratava e ainda hoje a lembro com saudade.

Muitas coisas se fizeram contra este amor, a tudo ele foi resistindo, mas houve uma altura que caíu.
Bem, vamos ao que interessa, que é o Baile de Finalisatas do Liceu Honório Barreto de Bissau. Já lá vão cerca de quarenta e cinco anos e ainda me parece que foi ontem.

Pelas 19H00 do dia 05Jun65, o condutor do meu Grupo foi-me levar a Bissau e perguntou-me se era necessário ir-me buscar. Respondi que não, pois eu me arranjaria. Deixou-me junto à porta de casa de minha namorada e foi-se embora, dizendo um breve , até amanhã.

Fui buscar a Lu e fomos jantar ao Grande Hotel e de lá fomos para o baile. Não há que  contar novamente tudo, pois os meus camaradas já o fizeram e como tal interessa só o que se passou connosco, o que vi e ouvi. 

Já durante a jantar fui ouvindo que se estava preparar algo contra os brancos, informo que a minha Companheira era morena - muito bonita, pois não os iam deixar entrar no referido baile, como mais tarde aconteceu.

Depois do jantar, como era cedo ainda passámos por casa e os rumores continuavam; chegando ao ponto da própria me alertar de que podia ir descansado pois estava convidado. Chegados ao baile fomos à mesa que nos estava reservada e a seguir fomos dançar, mas o ambiente era tenso e ainda nem sequer se via nada de anormal. Cerca das duas horas da manhã é que as coisas começaram a azedar com a entrada em cena da tropa branca, que logo foi rodeada pelos cabo-verdianos aos gritos e insultos.

Estava declarada a guerra há tanto tempo esperada pelos cabo-verdianos. O pior de tudo é que os nossos Chefes não viram ou não quiseram ver as coisas como elas eram e estavam a acontecer. Enviaram as PM e a Policia civil para dar em tudo que fosse branco.

Eu, a única coisa que fiz foi proteger a senhora que estava comigo, por consequência à minha guarda. Colocando um dos meus braços por cima dos seus ombros e com o cartão de oficial do exército lá fui abrindo caminho pelo meio da multidão e dos Policias, estes distribuindo cacetada por tudo quanto era sítio, não poupando ninguém, tentavam aclamar os ânimos.

Quando íamos a caminho de casa vimos o General Shulz à varanda em pijama a ver o espectáculo.
Claro, que quando os cabo-verdianos quiseram a coisa acabou.

De tudo isto, podem-se tirar várias conclusões, mas duas  há que saltam logo aos olhos de qualquer pessoa medianamente inteligente. Toda a barraca foi muito bem preparada pelo PAIGC e os nossos Chefes da altura caíram que nem uns patinhos. E porquê? Por causa da ''psico-social', uma palermice em que os nossos governantes acreditavam ou queriam acreditar.

[Luis Rainha, foto atual à esquerda] 

Assim, acabou um episódio (****)que podia ter facturado para o nosso lado, mas pela incompreensão dos Chefes Militares foi o adversários que ficou com os louros.

Mas, sempre foi assim, nós havemos de ser os eternos coitadinhos.

(iv) Punições a que  foram sujeitos 4 dos 5 comandos alegadamente envolvidos nos incidentes do "baile dos alunos finalistas da Escola Técnica de Bissau" (*****)  

(Felizmente,  estes incidentes entre nuilitares e civis não pocdem ser comparados com os que tiveram lugar, em Bissau, precisamente dois anos depois, envolvendo paraquedistas e fuzileiros, e de que resultaram 2 mortos) (******).





Cópias da Ordem de Serviço nº 70, de 27 de agosto de 1965, do CTIG em que são punidos com prisão disciplinar 3 furrieis milicianos e um alferes miliciano da CCmds / CTIG, Brá, 1965/66. Rasurados os seus nomes. (Cortesia do blogue Comandos da Guiné- 1964 a 1966).

________________

Notas do editor:

(*) Vd. I Série  do nosso blogue > 13 de novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXVII: O 'baile dos comandos' na Associação Comercial [Virgínio Briote]

(**) Vd. I Série do nosso blogue > 13 de dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXIII: O baile dos finalistas do Liceu de Bissau de 1965 (João Parreira)

(***) Vd. blogue Comandos Guiné - 1964 a 1966 > 24 de abril de 2010 >  G.C.G. - A0032: Uma histórica verídca de vez em quando- 2ª Parte > O Celebérrimo "Baile na Associação Comercail de Bissau"

(****) Último poste da série > 4 de maio de 2014 > Guiné 63/74 - P12094: Efemérides (151): Dia da Mãe... Para celebrar, hoje como ontem, com poesia (Joaquim Luís Fernandes)

(*****) Recorde.se aqui a criação e a extinção da CCmds / CTIG, Brá, 1965/66

 Para dar continuidade à formação de Grupos de Comandos é criada a Companhia de Comandos do CTIG (CCmds / CTIG) sendo nomeado seu comandante o Cap Art "Cmd"  Nuno Varela Rubim. Em 20 de Fevereiro de 1966 é nomeado comandante da CCmds / CTIG o Cap Art.«Cmd» José Eduardo Garcia Leandro.

O 2º.Curso de Comandos tem início em 7 de Julho de 1965, terminando em 4 de Setembro do mesmo ano, com a formação de 4 Grupos de Comandos designados por:

«Diabólicos» Alf. Mil. «Cmd» Virgínio Silva Briote
«Centuriões» Alf. Mil. «Cmd» Luís Almeida Rainha
«Apaches» Alf. Mil. «Cmd»  Neves da Silva
«Vampiros» Alf. Mil. «Cmd» Pereira Vilaça

O 3º. Curso de Comandos, realizado pela CCmds / CTIG aquartela da em Brá, tem início em 9 de Março de 1966 terminando a 28 de Abril de 1966, constituído por militares voluntários pertencentes a Unidades sediadas na Guiné e que se destinavam a recompletamento de Grupos de Comandos.

(...) Com a chegada a Bissau da 3ª.Companhia de Comandos, vindos do CIOE - Lamego, é extinta em 30 de Junho de 1966, a CCmds / CTIG, ficando, somente em actividade, até finais de Setembro de 1966 o Grupo de Comandos «Diabólicos»,  data em que a maioria dos militares que o integravam terminava a sua comissão de serviço.

Fonte:  Regimento de Comandos > História dos Comandos > CCmds / CTIG,  Brá, Guiné

(******) Vd. poste de 2 de janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5580: FAP (44): A verdade sobre os incidentes, em Bissau, em 3 de Junho de 1967, entre páras e fuzos... (Nuno Vaz Mira, BCP 12)

(...) Na noite de 3 de Junho de 1967, no final dum jogo que parecia ter decorrido de forma idêntica a tantos outros, entre o ASA – acrónimo de Atlético Sport Aviação, o clube dos militares da Força Aérea – e a equipa onde alinhavam os marinheiros, sucedeu o inesperado: estes, depois de trocarem insultos e provocações com os pára-quedistas, como era hábito, abandonaram o recinto desportivo, numa atitude pouco consentânea com os seus comportamentos recentes.

Os páras correram atrás deles pelas ruas da cidade, não imaginando que, algumas centenas de metros à frente, emboscado num prédio em construção, um grupo de fuzileiros armados com G-3 se preparava para os atacar a tiro. Custa a entender onde aqueles homens foram buscar ânimo para levar a cabo semelhante acto, mas a verdade é que foram capazes de abrir fogo à queima-roupa sobre camaradas de armas desarmados, matando de imediato o 1.º cabo Ismael Santos e o sold. Fernando Marques, para além de terem provocado ferimentos noutros soldados. (...)