quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Guiné 61/74 - P21339: Notas de leitura (1304): "O Cântico das Costureiras", de Gonçalo Inocentes (Matheos) - Parte I (Luís Graça): voltar a ouvir a máquina "Singer" da mamã nas matas e bolanas de Quínara,,,


Capa do livro de Gonçalo Inocentes (Matheos), "O Cântico das Costureiras: crónicas de uma vida adiada, Guiné, 1964/65" (Vila Franca de Xira, ModoCromia, 2020, 126 pp, ilustrado).


1. Já aqui apresentámos, ainda recentemente, o autor, o Gonçalo Inocentes (Matheos), membro nº 810 da nossa Tabanca Grande (*): foi fur mil, CCAÇ 423 e CCAV 488 / BCAV 490, de rendição individual (1964/65), tendo passado por Bissau, Bolama, S.João, Jabadá e Jumbembem...


Regressou depois a Angola, onde nascera,  em 1940,  em Nova Lisboa (hoje, Huambo), para exercer a profissão de Regente Agrícola na  Sociedade Agrícola do Cassequel, tão profundamente ligada à colonização de Angola ... "Quatro anos depois fiz a agulha e passei-me para a aviação. O meu primeiro trabalho foi voar para os quarteis do norte para fazer reabastecimentos. Acabei na linha aérea (TAAG) e, com a descolonização, acabei na TAP onde permaneci até ser apanhado por um enfarte cardíaco o que me levou para a reforma"... E no "estaleiro" descobriu a sua vocação de escritor...  Vive atualmente em Faro.

O livro que acaba de editar tem um título, "O Cãntico das Costureiras", que o autor justifica, recorrendo à sua "memória auditiva": no seu ouvido ficou para sempre a máquina Singer da sua mãe, esposa do secretário da Câmara Municipal de Nova Lisboa, "a cozer dezenas de bandeiras para as festas de recepção a um qualquer figurão" de visita à cidade e à região...ou a fazer os vestidinhos das manas (pp. 15-16)... 

Vinte anos mais tarde, "nas matas e bolanhas da Guiné", em 1964/65, irá ouvir outra música, outras "costureiras", as PPSH-41 Shpagin, a famigerada pistola-metralhadora russa, a irritante "costureirinha" que ficará, para sempre, nos ouvidos da maior parte dos  combatentes da guerra colonial.

Julgo que a alcunha por que era mais conhecida a PPSH-41, pelas NT, no CTIG, era "costureirinha", e talvez o título  do livro ficasse melhor, ou mais intelegível,  com a subtil alteração para "O Cântico das Costureirinhas"... 


Guiné > PAIGC > Novembro de 1970 > Um guerrilheiro empunhando uma PPSH (a irritante costureirinha, uma arma temível sobretudo em emboscadas a curta distância)...

Segundo o nosso especialista de armamento, o Luís Dias, "a pistola-metralhadora PPSH-41, concebida por Georgii Shpagin, conhecida pelas nossas forças como a Costureirinha, e pelo PAIGC como a Pachanga, foi uma das pistolas metralhadoras mais fabricadas no mundo (mais 6 milhões de exemplares), e largamente utilizada pelo exército soviético na II Guerra Mundial. No pós-guerra foi usada nos países satélites, na China, Vietname e nos movimentos de libertação africanos".


Fonte: © Nordic Africa Institute (NAI) / Foto: Knut Andreasson (com a devida vénia... e a autorização do NAI)



O autor define o seu livro  como "um conjunto de crónicas contando um história": com 126 páginas, é profusamente ilustrado (mais de 140 fotos, em formato pequeno ou médio), com textos em prosa e em verso. O autor segue uma ordem mais ou menos cronológica, desde a tropa, a mobilização para a Guiné, a comissão de serviço e o regresso a Lisboa. Partiu, de avião, num DC6, em 8 de abril de 1964. E voltou no T/T Niassa em 14 de agosto de 1965. Dois anos de tropa, 16 meses de Guiné. Foram quase três anos e meio de uma "vida adiada".  (**)

O autor viveu três guerras (e isso quer dizer três perdas), a da sua terra, Angola (1961-1974), a da Guiné (1964/65) e depois  a  guerra civil que deflagrou, de novo em Angola, com o 25 de Abril, na sequência da luta pelo poder entre os três movimentos nacionalistas. 

"As cheias do rio Catumbela" é um dos livros que escreveu com as suas marcantes experiências de Angola, mas que ainda não lemos (Lisboa, Chiado Books,  2015, 258 pp.).

O livro agora em apreço,  e de que o autor nos mandou pelo correio um exemplar, com dedicatória ("Como um reconhecimento pelo teu notável trabalho. 27-08-20", querendo por certo referir-se ao nosso trabalho como fundador e editor do blogue coletivo, Luís Graça & Camaradas da Guiné), é também fruto da pandemia de Covid-19, ou seja, é também ele marcado pela memória do confinamento e do "arame farpado" da guerra da Guiné.

Para além de Nova Lisboa (e possivelmente Luanda), há outra terra que o terá marcado, Santarém, em cuja Escola Agrícola estudou e onde também fez a tropa,  a recruta e o CSM, na Escola Prática de Cavalaria (EPC) (pp. 17-19). 

"Em Santarém conheci ali homens extraordinários como o tenente miliciano Joaquim Peixinho, formado em direito, mas que fez um período militar prolongado e que foi o meu primeiro comandante de pelotão. Aceitou com entusiasmo que o meu colega Carlos Alcântara e eu introduzíssemos cânticos da tropa indígena de Angola nas marchas do pelotão. Era uma alegria" (p. 19).

Conheceu ali também "o alferes da academia Duarte M. Rocha Pamplona" com quem trabalhou como instrutor na recruta: "um militar de corpo inteiro", que no TO da Moçambique irá perder, em combate,  as duas pernas, sendo agraciado com a Torre e Espada. (p. 19). Já a meio da comissão, em 1 de maio de 1975, o Gonçalo Inocentes irá parar à CCAV 488, comandada por outro militar do seu tempo de Santarém, o capitão Lourenço Fernandes Tomaz (p.  106). 

O Ribatejo e a sua idiossincrasia igualmente afloram nas páginas deste livrinho:

"Eu tive uma cruz muito especial. A Potenteia [termo da heráldica: cruz vazada, cujas hastes são rematadas por figura quadrilonga]. (. ..). Em bronze martelado. Antes de embarcar para a Guiné fui à Chamusca despedir-me dos amigos e Maria Helena Fragoso, uma senhora da família Núncio, colocou-ma no pescoço com um cordão de cabedal. Deu-me dois beijos e disse_ leva-a que ela te trás de volta" (p. 122).  

Esta senhora, já falecida em 1987,  foi a primeira madrinha do Grupo de Forcados de Santarém, conforme foto que o autor publica (p. 123).

A verdade é que a cruz foi e voltou e foi devolvido, como talimã, à Maria Helena Fragoso: quando o nosso camarada desembarcou do T/T Niassa, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, foi ela a primeira pessoa que ele foi visitar antes de ser desmobilizado. 

Outra cidade do seu imaginário é a Lisboa da noite e do fado: durante um mês, aboleadi no Quartel Geral de Adidos, na Calçada Ajuda, aguardou ali o transporte aéreo que o levaria até Bissalanca (pp. 10-15). Pelo que ele nos conta tinha "via verde" para sair e entrar, tendo apenas que se apresentar no quartel, em determinados dias...

O fado, as fadistas Beatriz Ferreira, Gina Guerra (Lisboa, 1938 - Lisboa, 2008) e Beatriz da Conceição (Porto, 1939 - Lisboa, 2015), a mítica casa de fados "Viela", na rua das Taipas,  fazem parte das suas da sua "inesquecíveis mão cheia de boas recordações" desse tempo de espera (p. 16). Também há uma referência, menos elegante, ao Carlos do Carmo, que ele conheceu, com a namorada, num noitada. Na sua despedida, na Portela de Sacavém, teve a presença das fadistas que trabalhavam na "Viela", além do seu cunhado, Rui Barroso. E ficou para sempre grato  ao fado: 

"Tinha lá andado um mês a despedir-me da vida. Todas as noites. Viela, onde encontrei todo o amor que precisava" (p. 15).

Enfim, sem ser um poeta maior, deixa escrito uma homenagem à Beatriz Ferreira (, artista hoje injustamente esquecida), que poderia ter origem a um fado, a figurar no nosso Cancioneiro de Gerra: 

"Os fados que me cantaste, /Cartas de amor ao ouvido. / Os fados que me cantaste, mensagens ao coração,/ que levei no meu bornal, / onde pousei a cabeça, / naqueles matos distantes, / em noites intermináveis, / em noites tão escaldantes. / Foste a minha travesseira, / Foste a minha companheira." (p. 13).

(Continua)


1 comentário:

Pépe disse...

A não perder, fantástico.
Sou filho de um combatente, não podemos silenciar.
Nuno Filipe da Silva de Jesus Ribeiro