quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Guiné 61/74 - P21340: Historiografia da presença portuguesa em África (230): "Madeira, Cabo Verde e Guiné", de João Augusto Martins; edição da Livraria de António Maria Pereira, 1891 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Janeiro de 2020:

Queridos amigos,
Há que reconhecer que João Augusto Martins não andou só na Guiné para delimitar fronteiras, observou infraestruturas, modos de vida, higiene e saneamento, imaginou-se antropólogo, denunciou preconceitos sociais de modo veemente, caso dos médicos formados na Índia e discriminados pela administração colonial portuguesa e pela classe médica oriunda de Lisboa e de Coimbra, diz sem hesitação que estes médicos "sofrem desconsiderações pessoais que vexam e desconsiderações oficiais que depravam. Se aparece uma população assolada, um lazareto infeccionado, um destacamento trabalhoso e mal pago, então são utilizados, são médicos, servem!".
E, veremos mais adiante, as conclusões que nos deixa põem em causa, da base ao topo, o modelo colonial português.

Um abraço do
Mário


Impressões de viagem quando a Guiné já era província, com fronteiras definidas (2)

Mário Beja Santos

O livro de viagens intitula-se "Madeira, Cabo Verde e Guiné", o seu autor é João Augusto Martins, veremos mais adiante que foi alguém influente na definição das fronteiras da colónia, a edição foi da Livraria de António Maria Pereira, 1891. Chegou a Bissau, andou por Bolama, encantou-se com a beleza de uma jovem Fula, e vai agora dissertar, mesmo como antropólogo amador, sobre a condição feminina em África:
“Na África, a mulher não conhece o coquetismo, mas tem por natureza a sensualidade.
Como selvagem, obedece aos seus instintos e ao seu temperamento, e quando fita um homem, quando o afaga, quando o impregna das suas volúpias, não é com o fim de o tornar escravo, mas sim o instinto de se sentir feliz. Não pensa nunca em ser desejada, preocupa-se somente em satisfazer os seus desejos; e enquanto a mulher civilizada calcula artifícios para garantir o seu prestígio, a selvagem entrega-se sem condições nem vantagens, realizando no gozo a mais alta e a única aspiração do amor.
Dessa índole essencialmente naturalista, resultam para a sua vida social como para a sua vida religiosa, os estranhos e originalíssimos cambiantes que tão cómicos e ridículos se apresentam à primeira vista, mas que tão logicamente se relacionam com as condições étnicas e com os princípios da sua filosofia natural”.

Seguidamente, discreteia sobre cerimónias de casamentos e de funerais, e temos a seguir uma descrição de Bissau, que nos parece da maior utilidade reproduzir:
“A vila de Bissau, sede de concelho, compreende o presídio de Geba, Fá, S. Belchior e Geba; Bissau é uma pequena cidadela de população limitadíssima cercada a N. E. e W. por um fosso já semi-atulhado que acompanha paralelamente da banda de fora uma muralha de quatro metros de altura, a qual se liga ao centro à antiga Fortaleza de S. José e termina nos flancos por pequenos torreões de estilo gótico que fazem sentinela permanente ao rio.
Essa fortaleza, ampla, arejada e altiva de toda a imponência dos poilões gigantes que lhe marcam os ângulos, protegendo-a com as sombras benéficas da sua ramagem tufada, é guarnecida por peças velhíssimas de ferro, montadas sobre reparos do mesmo metal, que apenas servem hoje de armamento histórico e de espantalho aos gentios, não só porque a sua danificação é completa mas porque à pequena força militar aí destacada seria impossível manejar, sequer, monstruosidades daquele calibre.
A vila, pequena, acanhada, de construções raquíticas e vulgares, somada a todas as inalações do lodo, da catinga e do azeite de palma, adubada pelo paludismo, dizimada pelas febres, constitui ainda assim o último reduto da vitalidade da província, o centro mais importante do comércio da Senegâmbia Portuguesa.
Uma parte dos munícipes, baseados nas informações médicas, quer que se faça o arrasamento da muralha, que, segundo eles, obsta à ventilação da vila, e contribui para a densidade exagerada da população, constituindo o factor principal da insalubridade; outra parte, apaixonada pelas tradições, e pelo que é velho, receosa de tudo e mais do que tudo dos ataques do gentio, pondera os múltiplos factores perniciosos da higiene local, de que ninguém cuida, e guerreia esse projecto cuja importância merece um estudo consciencioso”.

Pronuncia-se seguidamente sobre a população colonial, os erros e equívocos em que está a viver a Guiné, é nu e cru, saem-lhe as verdades como punhais:
“Esta província tida e mantida na nossa elaboração nacional como um depósito para onde despreocupadamente se esvazia desde muito o lodo e as imundícies colhidas nas dragagens da nossa rotina legislativa, sob a forma militar de incorrigíveis e de devassos deportados civis, não sabemos se com o fim de lhe adubar a selvajaria, se com o fim de lhe administrar fermentos enérgicos à dissolução; a Guiné, constituindo-se em província independente, plagiou desde logo a toilette pretensiosa da sua vizinha (Cabo Verde), enfeitando-se de todas as complicações burocráticas possíveis e fazendo construir na sua capital por um risco único, destituído de toda a elegância e qualquer vislumbre artístico, desde a igreja onde exibe o seu Deus ao som dos clarins e das músicas marciais, até ao hospital onde agasalha os seus doentes à luz de uma parca economia, tíbia de conforto e de consolações. E sem pensar sequer nos preceitos mais rudimentares das construções dos climas quentes; sem se preocupar um instante das exigências mais banais para estabelecimentos daquela ordem, edificou a ferro e tijolo um edifício pesado, desprotegido de sombras, sem quartos de banhos, sem casa de autópsias, sem casa mortuária, sem meios de esgoto, nem canalização de águas, e continuou a sustentar ao mesmo título esse pardieiro a derrocar-se, onde se agasalham em Bissau os desgraçados doentes que preferem morrer à sombra, mesmo em risco de desabamentos prováveis.
É nesses depósitos que ela acumula promiscuamente os seus doentes! E é ali, nesse pavilhão e nesse estábulo da patologia, que se acotovelam indistintamente à temperatura média de 30º os exemplares mais curiosos do paludismo, da tísica, do alcoolismo, as chagas mais asquerosas, a doença do sono, a elefantíase, as ulcerações do pulex, as dermatoses mais exóticas e tantas outras variedades privativas dos climas quentes, que têm merecido aos demais países coloniais as preocupações legislativas mais sérias e os estudos científicos mais preciosos e que em toda a parte são sequestrados rigorosamente pelas prevenções do contágio e pelos preceitos da epidemiologia.
Para todo esse avultado número de atacados, que nada deixam à clínica por serem indigentes, militares ou empregados públicos, para todo esse serviço, agravado pelo expediente da secretaria e pelos destacamentos frequentes a Buba, a Cacheu, a Farim e a qualquer dos mais distanciados pontos da província onde a suspeita de uma epidemia ou o pretexto de uma batalha determina a nomeação de um ou mais facultativos, existem na Guiné, tão mal pagos que ninguém lhes inveja os lucros nem lhes disputa as vantagens, um chefe de serviço de saúde, distinto filho da escola de Lisboa, e mais três médicos da Índia, que na Guiné, como em toda a parte, arrastam desprestígio da sua maternidade, sofrendo as injustiças e as mil ingratidões com que os governos do Ultramar ultrajam a cada passo esses filhos espúrios da nossa instrução pública, coartando-lhes despoticamente os privilégios que lhes são conferidos pelo seu diploma e pela lei, e fazendo desses homens, que têm servido sempre de instrumento aos poderes públicos para sofismar as distinções revoltantes estabelecidas entre a dignidade dos povos da metrópole e das populações ultramarinas, fazendo deles um motivo de irrisão, que repercutindo-se sobre uma classe inteira, desperta em todo o médico digno o sentimento da protecção e a necessidade imperiosa do protesto”.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21315: Historiografia da presença portuguesa em África (229): "Madeira, Cabo Verde e Guiné", de João Augusto Martins; edição da Livraria de António Maria Pereira, 1891 (1) (Mário Beja Santos)

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