Queridos amigos,
O episódio já tem barbas, apareceu, mais desenvolvidamente, no primeiro volume do meu Diário. Mas fazia todo o sentido fazer-se a revisitação, Paulo Guilherme vai enviando cronologicamente alguns dos episódios para ele mais salientes da guerra que ele viveu. Dentro de uma trama que funciona como as bonecas russas, abre-se um episódio e encontra-se nova porta, emerge desta pseudo correspondência uma relação cada vez mais estreita, pesa a intimidade dos episódios, um tanto caleidoscópicos, que organizam a imagem afetuosa destes dois cinquentões que vivem em pleno deslumbramento, onde o passado de ambos adquire uma nova imagem, um quase cabedal de sabedoria que os prepara para enfrentar o futuro em radiante felicidade.
Um abraço do
Mário
Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (18): A funda que arremessa para o fundo da memória
Mário Beja Santos
Mon amoureux Paulo, a reunião no Parlamento terminou cedo, vim rapidamente para casa, limitei-me a fazer umas compras imperativas no Delhaize, tinha uma volumosa carta tua no correio, és sempre mais importante que as artes da culinária, sentei-me na sala, estava imenso calor, servi-me de uma cerveja Orval, em tua homenagem, sei muito bem que é a tua cerveja predileta. Davas-me conta do primeiro grande drama, um patrulhamento perto de uma antiga povoação chamada Chicri, será a primeira que tu matarás um ser humano, num recontro com população rebelde, e virá então um episódio do maior dos sofrimentos que tu intitulas “O Presépio de Chicri”, observando que se acaso o romance for por diante tudo aquilo que aqui se escreve será dele parte integrante. Começas por referir o encontro com Paulo Ribeiro Semedo, vocês não se viam há mais de 31 anos, e impressiona-me muito os elementos que tu pões na escrita, tudo numa toada de conversa, tu vais reviver o que foi o sofrimento do Paulo:
“A 19 de dezembro de 1968, tomei a decisão de partirmos a 22 para patrulhar Chicri, aproveitando a missão de vigilância em Mato de Cão, fora anunciado que passaria um comboio de embarcações civis ao amanhecer, saí de Bambadinca para Bissau.
Precisei de meses para me aperceber da importância estratégica de Missirá e Finete, e bem patrulhei a região até aos limites da sensatez, nunca procurei o contato direto indo com um grupo que não excedia 30 homens. Mas as provas da presença dos rebeldes no Cuor eram por demais evidentes. Os guerrilheiros de Madina do Cuor abasteciam-se atravessando o Geba em dois pontos: perto de Samba Silate, que fora até ao princípio da guerra a mais populosa tabanca de todo o Leste; ou em Mero, a Oeste, atravessando o Geba estreito, em região habitada por Balantas. Dizia-se, mas eu não o podia comprovar, que na região de Ponta Varela o PAIGC atravessava o Geba com a sua artilharia pesada e munições.
Visitei várias vezes esta região de Chicri, possuía um esplendoroso palmar, antes da guerra pôr a terra próspera, agora restavam umas estacas ainda espetadas no ar e subindo um pouco um declive pedregoso a vista era bafejada por um Geba refulgente, serpenteando entre o Xime e Bambadinca. E na última visita detetámos um trilho, houve o cuidado de o flanquear, para não deixar marcas. A 22 seria o patrulhamento para reconhecer o itinerário rebelde.
Paulo, provavelmente estará esquecido, mas a 19 de dezembro, contemplando aquele anfiteatro, tu disseste-me: ‘Chicri não parece um presépio?’. E pediste-me para ir a Bafatá comprar figurinhas de barro, querias fazer um presépio em Missirá, não me surpreendeu, tu eras cristão de Geba, usavas o fio ao pescoço com a Cruz de Cristo. Nessa madrugada do dia 22, tu já tinhas deixado armado na messe o presépio com as figuras principais, ornado de uma bela vegetação. Percorremos lamaçais, atravessámos, um tanto tolhidos pelo cacimbo, as pernas encharcadas pelo capim orvalhado, eram cerca de sete horas com muita humidade naquele dia a despertar. Avistado o trilho, confirmada a presença recente pelos vestígios de uma fogueira, restos de caju e peixe e uma patorra bem desenhada na areia, desta vez sem qualquer hesitação internamos a floresta fechada, à frente Quebá Soncó, Cibo Indjai, eu e o José Jamanca, íamos dentro do trilho, o importante era detetar se havia uma base rebelde entre Madina e Chicri. Quebá, sempre com aquele seu ar assustado e receoso, a rogar uma marcha mais lenta, um sol brutal escoava-se entre a ramaria e assim progrediu aquele caminhar quase sonâmbulo, sem se ouvir o piar das aves. Como se fosse hoje, tu vieste de mim pedir um cigarro, desaconselhei, não se fuma em terra de combate.
E de repente, na curva da picada, Quebá Sonco e Cibo Indjai atiram-se para o chão, tenho a pouco mais de cinco metros de mim um homem fardado de caqui amarelo, um estranho cofió, olhamo-nos estuporados e confusos. Levantámos as armas, foram dois tiros num só eco. Aquele homem que eu nunca vira levou a mão ao ombro direito, revolteou e quem seguia atrás dele tomou conta de um corpo ferido. Seguiu-se o tiroteio caótico, o estoiro das granadas, tu estrondeavas o temível dilagrama, os guerrilheiros abandonaram o terreno que ficou juncado de despojos. Cibo Indjai exibia triunfante uma Simonov, arma que nunca me passara pelas mãos. E nisto ouviu-se um urro medonho, e eu só me lembro de ver numa rodilha de carne dilacerada, feridas de onde saíam golfadas de sangue. Logo que se percebeu o que tinha acontecido, tinhas misturado os cartuchos especiais para dilagrama com balas reais, preparavas a tua condenação. Pressentiste um fim doloroso, estava ajoelhado diante de ti, impotente tu a pedires para te dar um tiro de misericórdia. Tu estavas muito mal, o braço esquerdo todo rasgado, buracos no peito, estilhaços nas pernas, pensei mesmo que tinhas perdido os dois olhos.
Havia que retirar prontamente, tentar um helicóptero para a tua salvação. Vieste nas minhas cavalitas, pernas e pés presos com cordões, resvalavas como um peso morto, ajudava-me Mamadu Djau que te elevava pela rabada. Paulo, encurtemos estes pormenores dolorosos, chegámos a Bambadinca e uma Dornier levou-te para Bissau. Ficaste muito sinistrado, mas para mim era muito importante que resistisses a tanto sofrimento, bem digo a tua sobrevivência.
Regressámos a Missirá, entreguei no comando de Bambadinca os principais despojos, confirmei o que todos suspeitavam quanto a corredores de abastecimento.
E assim chegou a noite de Natal, organizou-se uma festa para a população, mas tu não podes imaginar a frialdade no meu coração. Perto da meia-noite, o Teixeira das Transmissões foi chamar-me. No nosso refeitório, tal como tu o deixaste enfeitado, iluminava-se o presépio. Estávamos todos com um nó na garganta, brindámos às tuas melhoras.
Estou a falar-te pausadamente, Paulo, é só para calar a emoção, são memórias de quem assistiu ao teu corpo a estropiar-se. Estamos no Natal, e ter-te aqui, à minha frente, 31 anos depois, é uma incomensurável alegria. Perdi o teu paradeiro, não me comportei bem contigo, quando a guerra acabou dei primazia aos estudos, à vida familiar, ao trabalho. Sabia que os meus sinistrados viviam em Portugal, concentrei-me em Fodé Dahaba, ele era a minha fonte de informações. Os anos passaram, eu sentia-me intimidado em rever-vos, então ganhei coragem, obtive moradas e números de telefone, e aqui estou hoje a pedir perdão, tenho uma declaração muito importante: tu sobreviveste para lembrar aos homens da tua pátria e da minha que há muitos presépios de Chicri perdidos ou esquecidos. E muito importante para mim trago-te as figuras de barro que compraste em Bafatá e que resistiram a todas as inclemências do tempo. Não seja esta noite igual às outras noites, vamos hoje celebrar um Natal há tanto tempo adiado”.
Mon amoureux, que ternura, que texto tão íntimo e convincente! Às vezes penso que há dimensões da realidade que extravasam a ficção. E quando rememoro que estávamos nós sentados à mesa numa cantina de uma instituição da Comissão Europeia e me pediste ajuda para forjares um romance em que era preciso haver uma relação poderosamente afetiva que justificasse estas memórias, ainda mais feliz me sinto por ser a zeladora de medonhos acontecimentos que fizeram de ti o homem em que eu revejo o meu futuro. Vou agora preparar o meu jantar e pode até dar-se o caso de o telefone tocar e a boa notícia que me breve estarei dentro dos teus braços...
(continua)
Pôr-do-sol na ilha de Bubaque, bilhete-postal enviado de Bissau para Lisboa, 1991
A equipa de futebol de Missirá veio a Bambadinca perder 1-11
A despedida de Bambadinca, a guerra acabou. Ao fundo, à esquerda, o major Anjos de Carvalho, ao centro, o meu sucessor, Nelson Wahnon Reis, o tenente-coronel Domingos Magalhães Filipe, e de sorriso bem largo o Abel Maria Rodrigues, agosto de 1970
Paulo Ribeiro Semedo, o grande sinistrado e principal personagem dos acontecimentos de Chicri, Natal de 1968
Os CTT de Bambadinca, imagem de 1997, pertence ao blogue
O rio Geba junto a Porto Gole, imagem que pertence ao nosso blogue
____________Nota do editor
Último poste da série de 4 de Setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21323: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (17): A funda que arremessa para o fundo da memória
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