1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.
Memórias
de Gabu
Camaradas,
Deixo-vos mais um pequeno texto do meu
último livro, nono, editado pela Editora Colibri – “Um Ranger na Guerra Colonial
Guiné-Bissau 1973/74”
Deus, virtualmente presente
A fé na guerra
Tempo de leitura
A inabalável fé que cada um de nós -
cidadãos comuns de um cosmos desigual - suporta ao longo da vida, afigura-se
como uma junção espiritual que nos transporta a um mundo virtual onde as
barreiras do imaculado não ousam ferir princípios que catapultam o ser humano
para uma bênção divina. O conceito de fé não deve de forma alguma ser
suscetível de hediondas conceções que tornam o homem uma criatura mártir de preconceitos
falsamente concebidos.
A guerra, melhor, viver no terreno as
agruras que o conflito teimava em não dar tréguas a um soldado sem medo, tinha
também uma outra vertente que conduzia o combatente a venerar algo oculto que
permitisse sentir um melhor estado emocional. Afinal, ninguém foge às escarpas
que a vida nos contempla. O destino dita o confronto com realidades que jamais
ousámos desenhar.
Assim, partindo do princípio que a fé,
embora na conceção dos laicos a convicção seja irreal, remete-nos ao sentimento
nobre de um persuadido que olvidou por completo o parecer do mundo pagão e
assumiu convictamente penetrar num universo onde a fé sempre pernoitou.
Penso que cada um de nós perfilha uma
ideologia religiosa, ou não, que nos transporta para infindáveis presenças
espirituais que em momentos de extremas aflições nos conduz a evocar a palavra
Deus. O ateu, que se afirma completamente adverso ao catolicismo, ou a uma
outra religião, tem, a espaços, particulares momentos na vida que
inadvertidamente o leva a momentos de reflexão, sendo comum vociferar o nome de
Deus. Esta a minha conceção. Respeito, todavia, outras opiniões. Porém, existe
em cada ser humano uma certeza: em ápices dolorosos lá vem a mítica frase “Deus
me valha”.
A minha experiência no conflito da
guerrilha na Guiné, teve como singularidade testar o meu mundo espiritual.
Sabia que em casa dos meus pais, Aldeia Nova de São Bento, uma urbe situada num
Alentejo sempre desperto, e astuto, a minha saudosa mãe convivia no dia a dia
com uma promessa feita a partir do momento em que embarquei para a Guiné que
a acomodava em manter as suas “santinhas” velinhas interruptamente
acesas, deixando a sua jura antever que a fé superava um sofrimento superior
com o qual o seu querido filho se deparava numa guerra que não dava folgas.
Com a distância do tempo a prevalecer,
afirmo que essa candeia incandescente que a fé justamente ditou, elevou a minha
autoestima, assumindo em momentos considerados chaves, de delicado apuro,
atitudes que me catapultaram para latentes sinais de esperança.
Aliás, esta iniciativa da minha querida
mãe expandia-se certamente por uma imensa diversidade de lares situados algures
no mais discreto lar deste cantinho à beira-mar plantado. A família, no seu
todo, convivia com a barbaridade que a guerra no Ultramar impunha ao mais
modesto cidadão português. A fé incutia na família um estado de espírito que
gerava díspares situações que conduziam as mães, em particular, a orar a Deus e
depararem-se com pagamentos de promessas.
Naquela tarde o silêncio protelava-se com
o avançar dos ponteiros do relógio. O calor apertava, era normal. Não havia
ordens de saída, nem tão-pouco conhecimento de eventuais investidas ao mato.
Prevalecia a serenidade. O pessoal dispersava-se no interior do arame farpado e
passava o tempo a emborcar cervejas para contemplar os seus bebíveis desejos.
Outros divertiam-se a jogar às cartas e havia também quem aproveitasse a ocasião
para colocar a escrita em dia, enviando notícias para a metrópole, boas como
era da praxe. Nada de insinuar potenciais desgraças entretanto conhecidas.
A policia do Estado – antiga PIDE – era
uma organização que se mantinha sempre atenta. Uma pequena frase a denunciar o
flagelo era fatídica. Nada de riscos. O cuidado atempado recomendava-se.
Pintava-se a prosa em tons líricos. O sítio onde nos depositaram era esplêndido
e tiros, ou desgraças, estavam completamente alheios ao nosso bem estar.
Mortos? Estropiados? Nem pensar, estávamos no paraíso. A mãe, o pai, os
familiares e os amigos rejubilavam com as boas notícias recebidas do
combatente.
As leituras de livros em tempos de pausa,
favoreciam os nossos laboriosos espíritos. Com uma pequena foto da namorada
sobre a mesa de cabeceira, estiraçado numa cama onde os ferros apresentavam
resquícios de uma ferrugem atroz que se sobrepunha a uma ténue cor de café com
leite, e uma ventoinha que me deliciava o corpo, lia atentamente um livro
intitulado “UM DEUS NA PALMA DA MÃO”. Um Deus, algures em alguma parte de um
universo imaginado, que copiosamente teimava proteger a minha aureola humana e
adornava os meus intuitos de uma luta constante pela sobrevivência.
A briga, não titânica, travava-se, agora,
entre as quatro paredes do meu afrodisíaco quarto. Esquecia-me, por momentos,
do horrível som emitido pelas armas, dos rebentamentos das minas nas picadas,
dos famigerados ataques noturnos aos quartéis, da imprevisibilidade do trilho
no mato, ou da ansiedade extrema que a guerra impunha.
Ao lado, um camarada entretinha-se numa
leitura sobre os heróis da banda desenhada. O ator principal era, no final, o
vencedor. A personagem, obviamente mítica, ultrapassava barreiras
inimagináveis. Vencia obstáculos. Nada temia. Era virtualmente o autêntico
vencedor do chamado conto de fadas. Nós, recatados ao infinito do conflito,
mergulhávamos num universo onde a prudência ditava ordens.
Neste eloquente vaguear pelo mundo do
ilusório, nós, jovens forçados a integrar esquadrões enviados para os campos de
batalha, concluíamos: a guerra é um cosmos devastado por múltiplos interesses e
assumidos por gentes que jamais conheceram os contornos de uma peleja onde a
dignidade humana acaba por resvalar para conflitos incontornáveis!
Revia-me, como uma pequena peça que
integrava a plenitude de um xadrez onde um simples peão se limitava a evocar a
palavra de Deus. Avocava, fielmente, uma fé literalmente inacabada. Lembrava-me
das orações da minha saudosa mãe; as suas idas constantes à igreja; às missas
domingueiras; as suas devoções e da sua entrega ao Pai Todo Poderoso.
Crenças que se estendiam aos ilustres
soldados enviados para o Ultramar a fim de combaterem um inimigo com rosto e de
ideais seguros. Homens joviais que deixavam no seu torrão sagrado um vínculo
real para o seu chamamento a terras de além-mar. “Carne para canhão”, falava-se
nas velhinhas ruas de uma recôndita urbe portuguesa, ou em redor de um balcão
de uma velha taberna. “Deus o proteja”, asseverava uma venturosa senhora que
conhecia a preceito o rapaz, agora feito militar, numa das lojas da aldeia.
Restava a inequívoca verdade que a fé na
guerra do ex-ultramar prevaleceu entre os homens que combateram no terreno com
o IN. Por outro lado, ficará a inquestionável dúvida: será que a Pátria
agradeceu a nossa entrega? Será que os nossos companheiros que fazem parte do
rol dos falecidos, desaparecidos, estropiados bem como todos aqueles que ainda
hoje se deparam com exequíveis sequelas de uma guerra que teimam em
persegui-nos, são reconhecidos? O que resta de uma guerra atroz que implicou no
rumo das nossas vidas? Responda quem de direito.
Nós, piamente esperamos, como sempre. Que
Deus os oiça e que ilumine as suas mentes.
Um
abraço, camaradas,
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
___________
Nota de M.R.:
Vd. também o poste anterior desta série em:
2 comentários:
Caro Zé Saúde.
Sempre como se tratassem de descrições das filigranas Minhotas, estas tuas "Memórias de Gabú" são muito interessantes.
Esta da 'ideologia religiosa' não lembraria a ninguém, mas se considerarmos a ideologia como uma definição de determinada visão do mundo de um grupo social, pode muito bem ser de um grupo religioso. Agora quanto a cristãos, muçulmanos e judeus, só para referir os monoteístas, já não se trata de um grupo de religiosos mais sim de religiões e cada uma com a sua fé.
Realmente, as nossas mães rezavam a todos os santinhos, acendiam velinhas e faziam várias promessas para que nada de mal nos acontece-se e '... fé ...guerra no ex-ultramar ...entre os homens que combateram no terreno com o IN...' era o mais importante.
Aqui coloca-se um problema de fé ao 'nível do divino', como diria o outro. Então as mães e os combatentes IN também não teriam fé? E como é que 'o divino' resolveria este assunto p.ex. em pleno combate? O D. Afonso Henriques em Ourique e o D. Nuno Álvares Pereira em Aljubarrota resolveram o problema rezando, mas isso foi no tempo em que os mouros eram infiéis e os espanhóis queriam ser ddts.
Foi pena a nossas queridas mães não terem resolvida ir a Fátima pedir a Nossa Senhora para a guerra acabar, mas eram obrigadas a ficar satisfeitas dos filhos não morrerem ou ficarem estropiados que acabar com a guerra nas nossas províncias ultramarinas era pecado.
As coisas da fé são tramadas.
Ab., saúde da boa e cuidado com o bicho que não se assusta com gritos de Ranger.
Valdemar Queiroz
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