quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Guiné 61/74 - P21344: Notas de leitura (1305): "O Cântico das Costureiras", de Gonçalo Inocentes (Matheos) - Parte II (Luís Graça): a importância de se ter uma máquina fotográfica e um bloco de notas...


Guiné > Região de Quínara > Mapa de Tite (1955) > Escala 1/50 mil >  Posição relativa da Ponta de Jabadá,  na margem esquerda do Rio Geba.  Da ponta de Jabadá, o PAIGC flagelava a navegação do Geba. Até que esta posição foi conquistada pelas NT, em 1965,  e montado lá um destacamento. O Gonçalo Inocentes conta como foi (pp. 76-79). Pertence à região de Quínara (ou Quinará, mas não Quinhará...)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2020)



Capa do livro de Gonçalo Inocentes (Matheos), "O Cântico das Costureiras: crónicas de uma vida adiada, Guiné, 1964/65" (Vila Franca de Xira, ModoCromia, 2020, 126 pp, ilustrado).



Guiné > Bissau > Brá > c. 1964/65 > Fur mil at cav Gonçalo Inocentes, de rendição individual, tendo passado pela CCAÇ 423 e pela CCAV 488, entre 1964 e 1965.

Foto (e legenda): © Gonçalo Inocentes (20w0) Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da apresentação do último livro do Gonçalo Inocentes (Matheos), membro nº 810 da nossa Tabanca Grande: foi fur mil at cav, CCAÇ 423 e CCAV 488 / BCAV 490, de rendição individual (1964/65), tendo passado por Bissau, Bolama, S. João, Ponta de Jabadá,  e Jumbembem... Nasceu em 1940, em Nova Lisboa (hoje, Huambo, Angola). Está reformado da TAP e vive em Faro. 

Este é o tipo de livrinho de memórias que todos gostaríamos de poder escrever e publicar em papel, reportando-nos à nossa experiência como militares na Guiné, entre 1961 e 1974. O que o nosso camarada Gonçalo Inocentes fez foi fazer uma seleção das fotos do seu álbum, tendo em conta o conteúdo temático e a qualidade da imagem... Ele é dos que acham que uma imagem vale muito, mas só por si não chega: é preciso uma legenda, uma data, um local, uma pequena história... 

Damos alguns exemplos das suas pequenas crónicas, ilustradas por um grupo de imagens com valor documental... A ordem, sequencial, é meramente exemplificativa. De resto, o autor não apresenta nenhum índice:

(i)  Quartel da CCAÇ 423, em São João , região de Quínara]  (p. 21);

(ii) O batptismo de fogo (pp. 32.34);

(iii) Rendição (ao cansaço) (pp. 38-39);

(iv) Aerograma (pp. 42-43);

(v) Os tornados (pp. 56-57);

(vi) Minas e fornilhos (pp. 60-61);

(vii) Os guias (pp, 66-67);

(viii) Nova Sintra- Serra Leoa (pp, 71-73);

(ix) Ponta de Jabadá: os dias difíceis (pp. 76-77);

(x) Os chefes dos residentes, Malan Cassamá e Secu Camará (pp. 78-79);

(xi) Capitão Monroy (pp. 81-82);

(xii) O médico [, dr. Torcato Adriano Serpa Pinto, natural do Porto] (pp. 86-88);

(xiii) Dia negro (pp. 89-90);

(xiv) A grande bolanha (pp. 92-93);

(xv) Alegria de viver (pp. 95-96);

(xvi) A despedida (da CCAÇ 423) (pp. 99-100);

(xvii) Com a marinha (pp. 103-105);

(xviii) CCAV 488 (pp. 106-107);

(xix) João Landim (pp. 108-109);

(xx) São Vicente (p. 110);

(xxi) Eu vi um banho na Guiné (pp  111-113);

(xxii) The end (pp. 115-118);

(xxiii) Cruz Potenteia (pp. 122-123).


A técnica é simples e está ao alcance de todos: basta pegar em lápis e papel (ou no teclado do computador) e passar à escrita o turbilhão de memórias que ainda temos na cabeça: memórias dos lugares, das pessoas, da geografia, da a fauna e da flora, das peripécias da tropa e da guerra, etc., à mistura com os sentimentos (, de alegria, de tristeza, de medo, de euforia, de descoberta, de revolta, de esperança, de amizade, de camaradagem, etc.) que todos experimentámos, ao longo de quase três anos, envergando a farda do exército português naquela "terra verde-rubra"... Depois, todos temos algumas notas escritas, nas fotos, nos aerogramas, em cadernos, em diários, etc.

O título do livro pode (e deve) basear-se numa imagem ou ideia fortes: por exemplo, o som das "costureirinhas", servindo de fio condutor à narrativa...

No caso do Gonçalo Inocentes, julgo que ele aproveitou bem o confinamento imposto pela pandemia de covid-19, e teve também o nosso blogue como auxiliar de memória, recorrendo por exemplo aos mapas do território, que disponibilizamos "on line". As suas memórias são muito importantes, até por que se trata de um camarada, nascido em 1940, e que ainda é  do tempo da farda amarela (o camuflado veio depois) e do início da G3... Chegou à Guiné em abril de 1964, num altura em que os "periquitos" ainda eram "maçaricos"...


2. Mas retomando o fio à meada (*), vemos o nosso camarada, com dois anos de tropa passados em Santarém, na Escola Prática de Cavalaria,  e um 12 de nota final do CSM, o curso de sargentos milicianos, ser mobilizado para o TO  da Guiné, em rendição individual, ser metido num DC6, aterrar em Bissalanca, ficar uma noite em Brá, e partir, no dia seguinte, de barco, para Bolama e, depois, para São João, seu destino final  (pp. 16-21).

Pormenor delicioso: durante a viagem, no DC6 (,carregando "carne para canhão",  homens para a guerra no mato, mas também senhoras de graduados que iam para as "intermináveis sessões de canasta" de Bissau), o Gonçalo Inocentes conhece um outro angolano, o capitão 'comando' [Maurício] Saraiva, que não está com meias tintas, quando sabe o seu destino, e lhe dispara: "Estás fodido, pá. Tem um capitão que é uma merda e já tem uma mão cheia de mortos"... Referia-se à CCAÇ 423, que estava em São João...

Não sei se o autor confirmou esta impressão à chegada à sua nova unidade, "sua nova morada e nova família" (p. 19)... Mas as fotografias que publica na pág. 21 são elucidativas; aquilo não era um quartel, era um "bidonville tropical"... E a sua receção está de acordo com as NEP: 

"Na varanda da única casa existente. estava o capitão Nuno Basto Gonçalves, sentado, com uma toalha ao pescoço e era barbeado por um soldado. Tinha a seu lado sentada uma mulher chinesa. À volta era um quartel de lata (...). Apresentei-me, como é norma no exército. O capitão com aquela secura que é própria dos capitães, apenas me disse: 'Está apresentado'. Nem mais uma palavra" (p. 20).

E mais à frente uma estendal improvisado, com roupa ímtima feminina estendida... E havia uma impedido para tratar da roupa da senhora...

Não menos  calorosa foi, num outro dia, a saudação que veio do ar, do na altura furril mil pil Honório Brito da Costa. Eram já amigos um do outro, do tempo da Escola de Regentes Agrícolas de Santarém. Um angolano, outro cabo-verdiano. Nas férias, em Lisboa, encontravam-se no Café Palladium, nos Restauradores, ou na Suíça, no Rossio. E tinham por hábito, ir a pé até à Portela de Sacavém, tomar uma bica na varanda do 1.º andar do aeroporto, só para "ver... os aviões".

Quis o destino que se encontrassem na Guiné, na mesma altura... mas sem o Honório saber onde estava o amigo... Até que o descobriu e fez-lhe uma surpresa... Numa manhã, o aquartelamento de São João foi sobrevoado, em voo rasante, por um T6 Harvard, pondo a tropa em sobressalto.  Pela rádio, ouviu-se o piloto  a pedir para chamar o furriel Inocentes. Finalmente, em contacto via rádio, o Honório em fúria desanca no Inocentes: "Cabrão, cabrão, cabrão! Ando doido à tua procura! Não sabias dizer onde estavas ?"... E deu-lhe um abraço "by air" que se ouviu em toda a Guiné... e em Bissalanca. 

Claro que o Honório deve ter levado uma porrada... Mas esta é uma das histórias deliciosas que o Inocentes nos conta, e que eu resumo aqui para os nossos leitores. 

Mas há mais (p. 24):  meses depois, com o Inocentes de férias, em Bissau, ele e o Honório foram ao baile dos finalistas  do Liceu Honório Barreto [, lapso: eram da Escola Técnica de Bissau...], na "inesquecível noite de sábado do dia 5 de junho de 1965"... Ambos entram sem convite porque o Honório era... um senhor e era cabo-verdiano!... Mas ao Virgínio Briote e outros comandos foi-lhes barrada a entrada!... Acabou tudo à pancadaria, como sabemos (**).

Falando do Honório (***) "como senhor", o seu amigo acrescenta: 

"(...) O Honório ficou conhecido por toda a Guiné. Era o único furriel que tinha entrada na messe de oficiais  da marinha, onde a discriminação  de 'ranks' era pior que racismo"(p. 24).



Guiné > Bissau > Associação Comercial, Industrial e Agrícola > 5 de junho de 1965 >O baile dos alunos finalistas da Escola Técnica de Bissau. Imagem da revista "Plateia", de julho de 1965, digitalizada e gentilmente cedida pelo Virgínio Briote. 

(Continua)
_________


(**) Vd. postes de:


7 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Já aqui em tempos deixei o seguinte comentário sobre o Honório:

Que descanse em paz, o nosso camarada Honório!...

Eu sei que ele deixou muitos amigos e até fãs entre os nossos camaradas da Guiné... Mas há uma parte de mito e lenda que temos de separar do resto…

E o resto é o que importa para a história: é a sua história de vida real, as suas origens (sociais, familiares…), a sua terra, Praia, Santiago, Cabo Verde, a sua dedicação á FAP e à Guiné (e depois à aviação comercial do seu país tendo inclusive chegado a comandante dos TACV)…

Já aqui, e há muito, com o seu amigo Jorge Félix, começámos por desmontar alguns "mitos" ou "falsidades" ou "erros factuais". Por exemplo:

- o Honório nunca pliotou helis nem Fiats no TO da Guiné;
- nunca foi o piloto preferido de Spínola;
- passou bastante tempo no destacamento de Nova Lamego, fora portanto da BA12 em Bissalanca;
- infringia, deliberadamente ou não, normas elementares de segurança da FAP;
- não era bem visto entre certos oficiais pilotos aviadores, oriundos da Academia…

Fica aqui o apelo para a produção e publicação de novos testemunhos sobre um camarada nosso que já morreu, que muito estimávamos, que ficou na nossa memória e no nosso imaginário, que era uma personalidade fascinante mas também polémica, sobre o qual ainda sabemos muito pouco… Inclusive não temos fotos dele no TO da Guiné!... (As poucas que existem são de fraca resolução).

Luis Graça

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Talvez o Gonçalo Inocentes tenham fotos com o Honório! ?...

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Quem tem imensas histórias com o Honório, é o Victor Oliveira... Dava um livro!

O Victor Oliveira, o "Caneças", foi Esp.Melec./Inst./Av. 1ª/66 Guiné, e é também membro da nossa Tabanca Grande.

Ver aqui:

https://especialistasdaba12.blogspot.com/search?q=Hon%C3%B3rio

Algumas dessas histórias já as publicamos também no nosso blogue:

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/search/label/Vitor%20Oliveira%20%281%C2%BA%20cabo%20melec%29

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Um "ciberdúvida" para o nosso especialista em questões etnolingu+isticas, o nosso irmãozinho Cherno Baldé, que mora em Bissau:

A palavra "Quinara" é esdrúxula (Quínara), é grave (Quinara) ou aguda (Quinará) ? Eu pronuncio-a sempre como se tivesse o acento tónico na antepenúltima sílaba... QUÍ-NA-RA.

Mas se calhar está errado... O Gonçako Inocentes escreve QUI_NHA_RÁ que, suponho, não existe... Na nossa cartografia, foi grfado o vocábulo QUI-NA-RA (palavra grave, acento tónico, na penúltima sílaba).

Mantenhas. Luís Graça

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Um outro pormenor interessante: nesta altura (1964/65), cada companhia (por exemplo, a CCAÇ 423) tinha um médico!... No meu tempo (1969/71), apenas havia um médico (quando o havia...) por batalhão!...

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Oh Gonçalo, de facto há "torturas" que não lembram ao próprio diabo!... Como essa de estender a roupa íntima feminina mesmo frente à "caserna dos soldados" lá no teu "bidonville" tropical!...

É mais um apontamento, delicioso, que adorei no teu livro!...Luís

Hélder Valério disse...

Já agora, e só por curiosidade, já se deram ao trabalho de tentar perceber o que é aquela série de "pontinhos e tracinhos" que está na capa do livro, mais abaixo?

Código "morse" e diz " GRANDE PORRA".

Só não se sabe a que se referirá.

Hélder Sousa