segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Guiné 671/74 - P21334: Notas de leitura (1303): “Escravos em Portugal, Das origens ao século XIX”, por Arlindo Manuel Caldeira; A Esfera dos Livros, 2017 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Junho de 2017:

Queridos amigos,

“Escravos em Portugal, Das origens ao século XIX”, do historiador Arlindo Manuel Caldeira, é um livro importantíssimo, uma leitura irrecusável para quem queira conhecer as histórias dos escravos em Portugal. Estima-se que dos séculos XV a XVIII tenha havido, no continente e ilhas, um milhão de pessoas sujeitas a cativeiro. O autor explica a essência do seu trabalho: "Não é uma história da escravatura em Portugal, mas uma história de escravos".

Os protagonistas involuntários de um regime social injusto, excluídos entre os excluídos são, enquanto pessoas, os protagonistas deste livro. Como era feita a compra e venda de escravos, qual era a relação entre o senhor e o escravo, como era utilizada a mão-de-obra cativa? E depois da abolição legal, como se transformou a vida destas pessoas? Obviamente que aqui se centram as observações na Guiné e guineenses.

Um abraço do
Mário


Histórias de escravos guineenses em Portugal

Beja Santos

“Escravos em Portugal, Das origens ao século XIX”, por Arlindo Manuel Caldeira, A Esfera dos Livros, 2017, é um documento notável, uma investigação de altíssima qualidade que em sequência cronológica e graças a uma comunicação arrebatadora que prende o leitor do princípio ao fim nos dá um retrato rigoroso e fiel do que foi a escravatura antes do século XV, a proveniência dos escravos a partir da Expansão, onde e de que modo se processava a compra e venda de escravos, a geografia da sua presença no continente e ilhas, o que faziam, qual a relação entre o senhor e o escravo, mentalidades, família, sexualidade e final de vida em escravidão e, por fim, as etapas que levaram à liberdade e todo o processo sinuoso e contraditório do depois da abolição legal da escravatura.

Confinam-se as notas seguintes ao que o autor refere sobre escravos provenientes dessa costa africana que dava pelo nome de Senegâmbia. Partindo da exploração da costa africana, menciona o contrato celebrado por Fernão Gomes com o rei D. Afonso V que se traduziu no arrendamento do monopólio do comércio da Guiné, com exceção de Arguim e do litoral fronteiro ao arquipélago de Cabo Verde, que estava reservado ao resgate dos moradores. 

Detém-se sobre a feitoria de Arguim e lança um olhar às ilhas de Cabo Verde. D. João II planeou a instalação, em 1488, de uma feitoria-fortaleza na embocadura do rio Senegal, da mesma forma que, anos antes, mandara levantar a fortaleza da mina. Este projeto da feitoria da Senegâmbia falhou rotundamente. O povoamento das dez ilhas do arquipélago de Cabo Verde irá contar maciçamente com escravos oriundos do vasto litoral africano. 

Como forma de atrair povoadores, D. Afonso V concedeu aos moradores de Santiago vários privilégios, entre os quais o livre comércio com a costa da Guiné (com exceção de Arguim), prerrogativa que foi, alguns anos depois, definida com maior rigor e restringida à região entre o rio Senegal e a Serra Leoa. 

Importa dizer que entre os pontos onde o resgate se tornou mais intenso destacava-se a que é hoje a baía de Dakar, as bacias dos rios Gâmbia, Casamansa, S. Domingos, Geba e rio Grande de Buba (o rio Grande das crónicas seiscentistas), além do arquipélago dos Bijagós. Já mais ao Sul, traficava-se na embocadura do rio de Nuno (ou Nunes) e em vários pequenos portos junto da Serra Leoa. Trata-se de uma extensão de mais de mil quilómetros, que corresponde hoje à fachada atlântica de cinco países: Senegal, Gâmbia, Guiné-Bissau, Guiné Conacri e Serra Leoa, essa ampla facha era designada pelos portugueses pelo nome de rios de Guiné ou rios de Guiné do Cabo Verde.

Falando do transporte dos escravos, o historiador refere que desconhecemos as condições em que, por exemplo, navios ingleses traziam escravos para Lisboa; mas sabe-se que as embarcações portuguesas saídas de Cacheu ou de Cabo Verde, pelo menos uma parte dos cativos acompanhavam os seus proprietários, funcionários de regresso à metrópole ou moradores de Cabo Verde ou da Guiné em trânsito para Portugal.

Para entender a compra e venda de escravos é preciso falar da Casa da Guiné. O autor pormenoriza a localização da Casa da Guiné ou Casa da Mina e Tratos da Guiné que se irá começar a diluir na Casa da Índia, a partir dos fins do século XVI. 

Quando começaram as chegar as primeiras levas de “negros da Guiné”, os procuradores do povo às cortes de Coimbra / Évora requeriam ao rei que não permitisse a exportação de escravos. Entendia-se que o reino se estava a despovoar e que era preciso aumentar a mão-de-obra e conter com a escravatura os salários dos jornaleiros. 

São inúmeras as histórias que Arlindo Caldeira nos conta acerca das peripécias dos escravos. Vejamos a de José Menezes que nasceu na Guiné em meados do século XVII, ainda na sua terra passou a servir um senhor português, batizaram-no quando tinha 10 ou 11 anos, veio com 14 ou 15 anos para Lisboa, o navio em que viajava foi capturado por corsários argelinos, acabou escravo na cidade de Argel. Foi persuadido a que se fizesse mouro e deixasse a fé católica, passou a ser tido e havido por mouro. Depois de estar cativo em Argel há 9 ou 10 anos, falando um dia com católicos que lá estavam, contou-lhes que era cristão. 

O que interessa é que em 1682, andando no mar no navio do seu senhor, a embarcação foi capturada pelos ingleses e trouxeram-no para Lisboa onde o puseram à venda. Teve sorte, pois foi parar “ao serviço de Sua Majestade”. A Inquisição quis saber pormenores do seu passado, fez abjuração de leve suspeito na fé e absolvido na excomunhão em que podia ter incorrido. Enfim, um final feliz. A língua da Guiné atraiu escritores, caso de Gil Vicente que a refere em Frágua do Amor, 1524.

Referência importante quanto a práticas mágicas, envolvendo guineenses é dada quando se fala de bolsas de Mandinga, amuleto protetor. Escreve a tal título o autor:  

“Bolsas de Mandinga, também chamadas no Brasil patuás, pequenas bolsas de pano ou couro, contendo orações a santos e uma série de outros componentes, destinadas a ser penduradas ao pescoço, ou cozidas na roupa, era suposto impedirem os ferimentos provocados por arma branca e tornaram o portador insensível às pauladas. A origem das bolsas de Mandinga parece ser o território Mandinga da Alta Guiné, islamizada no século XVIII. A islamização, com a consequente valorização da palavra escrita, está na origem da introdução de pequenos textos de carácter sagrado escritos em árabe, num tipo de bolsa já antes utilizado como talismã pelas populações locais”. 

O autor conta histórias sugestivas acerca de alguns mandingueiros.

Para quem pretenda conhecer uma narrativa erudita redigida numa comunicação muito acessível, este livro do historiador Armindo Manuel Caldeira está na primeira linha, pela quantidade de investigação e pela qualidade da análise, o leitor depois de poder apreciar o que foi a vida dos escravos acompanhará as peripécias do que foram as promessas da liberdade e as dificuldades em fazer cumprir a abolição legal. 

Importa não esquecer que a escravatura continua a existir, foram os escravos um dos pilares da civilização portuguesa, basta ler o que escreveu Mouzinho da Silveira, um dos vultos incontornáveis do liberalismo português: 

“Os Portugueses se atormentam, se perseguem e se matam uns aos outros por não terem entendido que o Reino, tendo feito grandes conquistas, viveu por mais de três séculos do trabalho dos escravos e que, perdidos os escravos, era preciso criar uma nova maneira de existência, multiplicando os valores pelo trabalho próprio”.
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de setembro de 2020 > Guiné 671/74 - P21314: Notas de leitura (1302): entrevista de José Matos ao "Diário de Aveiro", de 1 do corrente, sobre o seu último livro “O Estado Novo e a África do Sul na Defesa da Guiné - Nos meandros da guerra"

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