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segunda-feira, 17 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25649: II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte III: O Eustáquio, que tinha 14 anos, andou fugido nas montanhas de Liquiçá e Ermera, com a mãe e a irmã mais nova, mais duas pessoas amigas da família Sobral, durante três anos e meio


Timor > Liquiçá > Manati > Boebau > 2018 > Escola de São Francisco de Assis > Uma luz ao fundo do túnel... Aproxima-se a data da inauguração: 19 de março de 2018.


Texto e fotos: © Rui Chamusco  (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Lourinhã > 2017 > Rui Chamusco e Gaspar Sobral.  A família Sobral tem um antepassado
comum que foi lurai, régulo, no tempo dos portugueses. As insígnias do poder (incluindo a espada) estão na posse do Gaspar, que vive em Coimbra.  A família Sobral andou vários anos pelas montanhas de Luiquiçá e de Ermera, tentando escapar à tirania dos ocupantes indonésios. O Gaspar esteve 38 anos fora da sua terra, só lá voltando em 2016, com o Rui.

Foto: Luís Graça  (2017).


1. Esta é a segunda viagem e estadia do Rui Chamusco (de 27 de janeiro a 14 de junho de 2018) (*), em Timor Leste, uma missão solidária que culminou com a inauguração da Escola de São Francisco de Assis (ESFA), em 19 de março de 2018, em Boebau, Manati, Liquiçá.

O Rui Chamusco, nosso grão- tabanqueiro nº 886, é professor de música, do ensino secundário, reformado (e homem de sete instrumentos), natural da Malcata, Sabugal, a viver na Lourinhã.

O Rui tem-se dedicado de alma e coração a um projeto de solidariedade no longínquo território de Timor-Leste (a 3 dias de viagem, por avião, a cerca de 15 km de distância em linha reta).

É cofundador e líder da ASTIL - Associação dos Amigos Solidários com Timor-Leste, com sede em Coimbra. Juntamente com outros destacadas figuras, como o Gaspar Sobral (nascido em Timor) e a Glória Sobral (natural da Malpaca, Sabugal).

Através da família Sobral, um exemplo de "resistência e resiliência", e das crónicas do Rui, vemos seguramente melhor Timor-Leste, de ontem e de hoje: uma visão macro e micro. Enfim, um privilégio, para os nossos leitores. E um obrigado ao nosso cronista, extensivo ao Gaspar, ao Eustáquio,à Aurora, à Adobe e outros protagonistas destas histórias luso-timorenses.

Estas crónicas tem um enorme interessante para se conhecer o que é hoje a República Democrática de Timor Leste,  país membro da CPLP, com o qual mantemos laços históricos, e sobretudo afetivos, tal como mantemos  com a Guiné-Bissau e outras antigos territórios que estiveram sob a administração portuguesa em África e na Ásia (LG).



II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL)
 
Parte III - O Eustáquio, que tinha 14 anos, andou fugido nas montanhas de Liquiçá e Ermera, com a mãe e a  irmã mais nova, mais duas pessoas amigas da família Sobral, durante três anos e meio 


06.03.2018, terça feira  - Dia de anos da Aurora

A Aurora, que é a mãe da casa, a esposa do Eustáquio e mãe dos quatro filhos que gerou, faz hoje 49 anos. Só isto seria mais do que suficiente para lhe fazermos a festa. Mas a Aurora, para além de mãe e esposa, é muito mais. 

Apesar das dificuldades físicas pois há sete anos teve um AVC que afetou os movimentos do seu lado esquerdo, a Aurora nunca para. Sempre solícita às necessidades da casa, sempre disponível a qualquer apelo, sempre com o seu sorriso de encantar. Claro que lhe fizemos a festa e lhe cantamos os parabéns!...

Para surpresa de todos e já ao fim da tarde, telefona o João Crisóstomo para nos dizer que faz questão de aparecer aqui para dar os parabéns à senhora Aurora. E apareceu mesmo! Esta gente, que tanto tem ouvido falar no João pelas melhores razões, ficou atónita e comentando: “ O quê? O senhor João Crisóstomo vem aqui?”... E desfaziam-se em cuidados para o receber. 

Mal sabiam eles que o João, apesar de toda a importância que lhe é dada e que bem merece, é uma pessoa simples e humilde. Adaptou-se ao local e passou de imediato a ser um dos habitantes da casa.

Teve vários gestos que a todos cativou, mas realço o apadrinhamento “in loco”do Alaka, um dos filhos do Anô. È a primeira vez que acontece um apadrinhamento em direto. Via-se a satisfação do Alaka que dizia “gosta”, mas também do João. Eu diria duas crianças. E lembrei-me então de ditados e canções que ilustram o que escrevo: “de velhinho se volta a menino”; “faz-me ser criança junto dos irmãos”.

Desculpa, João! E obrigado pelo teu exemplo. Este apadrinhamento alargou o campo de ação do nosso programa, levando-o até aos Estados Unidos da América.


07.03.2018, quarta feira  - Encontros com o embaixador de Portugal e o bispo Dom Basílio

Dia 7 de Março é o dia que nos foi marcado para sermos recebidos pelo senhor embaixador de Portugal. Às dez horas em ponto, lá estávamos nós à frente da
embaixada, um edifício novo inaugurado há pouco tempo, e depois de alguns
minutos de espera por questões de segurança interna, alguém nos veio buscar e
conduzir à sala de audiências do senhor embaixador.

Recebidos cordialmente pelo novo embaixador (tudo é novo aqui), que tomou posse há três meses , e pela sua secretária doutora Daniela Pereira, de pronto começamos o colóquio sobre as intenções porque solicitamos esta audiência. Durante mais ou menos uma hora todos fomos intervindo com perguntas e respostas que enriqueceram o diálogo. A embaixada conheceu o nosso projeto e nós ficamos a conhecer a posição e a ação da embaixada a este respeito. Ficou a promessa do senhor embaixador de que daria a devida atenção às nossas pretensões, depois de lhe enviarmos por escrito a fundamentação do que estamos a fazer. Para já ficamos muito satisfeitos e agradecidos por o senhor embaixador aceitou o convite de estar presente no ato da inauguração da escola em Boebau no próximo dia 19. esperamos que a promessa seja cumprida.

Outro encontro de não menos importância aconteceu na parte da tarde, das 16.00 às 23.00 horas, com o senhor bispo D.Basílio, que faz questão de ser meu amigo desde 1980, porque trabalhamos e estudamos durante dois anos, em Paris. É segunda vez que, durante a nossa segunda estadia em Timor, nos encontramos, e com certeza que muitas mais vezes assim o faremos.

À hora marcada, no Hotel Plaza onde o João Crisóstomo está instalado, lá está já o D. Basílio à nossa espera. Deu-nos o exemplo da pontualidade que nós (eu, o Gaspar, o João e o Eustáquio) não conseguimos cumprir. E ainda dizem que as pessoas importantes chegam sempre atrasadas!... Este longo tempo de encontro trouxe-nos tudo: partilha de ideias, recordações, boa disposição, projetos de vida e ação, etc.

De minha parte compete-me agradecer a facilidade e a disponibilidade de tempo e contactos que o nosso amigo nos dispensou, e particularmente as orientações
preciosas que nos prestou quanto ao estatuto e à funcionalidade da escola em
Boebau. Vamos continuar a precisar da sua ajuda, e sei de antemão que nunca nos será negada. Obrigado Basílio!



09.03.2018, sexta feira - Relatos impressionantes 
de cenários de guerra

Enquanto se fazem os preparativos para a inauguração da escola e aproveitando
algum tempo de lazer ainda cá em baixo, em Ailok Laran, vamos ouvindo em primeira mão relatos impressionantes que aconteceram nas zonas montanhosas de Liquiçá e Ermera, particularmente as que aconteceram em terras de Boebau e arredores. 

O Eustáquio tinha na altura da invasão indonésia 14 anos e, como já referi anteriormente, andou fugido três anos e meio pelas montanhas, juntamente com a mãe, a irmã mais nova e mais duas pessoas amigas da família Sobral. Cada vez que fala, sem complexos mas com alguma revolta, do que viu e do que lhes aconteceu, impressiona-nos com o seu realismo. Passo a contar os relatos que hoje lhe ouvi pela primeira vez.

  • Quando os tentaras (tropas armadas indonésias) apareciam, todos procuravam esconderijos. Conta o Eustáquio que uma vez estava um grupo escondido, nele incluído um bebé, enquanto os tentaras passavam. Como a criança começou a chorar, e para que não fossem descobertos, alguém lhe tapou a boca com a mão... Quando se deram conta a criança estava morta.
  • Uma senhora na plena força da vida (mais ou menos 40 anos) foi enterrada viva de cabeça para baixo, de tal modo que viam os pés da senhora a mexer enquanto ali ficava morta.
  • A outra senhora prenderam-na a uma árvore e foram-se embora na esperança de que ela ali morresse e apodrecesse.
  • Uma outra senhora, da família do Eustáquio cujas filhas sobreviveram e habitam uma localidade próxima de Boebau, foi deixada também no local apenas com um pouco de milho moído e um cassapo, feito de bambu com alguma água. Ainda hoje ninguém sabe o que lhe aconteceu: se morreu, se foi levada pelos indonésios, se sobrevive nalgum sítio.

Diz o Eustáquio que este povo sofreu muito e continua a sofrer porque se sente
esquecido do poder central. Os guerrilheiros tinham sempre de comer porque os
populares lhes levavam comida, e tinham com que se defender, pois utilizavam
armas. 

Mas esta gente indefesa era quem mais sofria e continua a sofrer. Chegará algum dia em que se faça justiça? Este povo bem merece. As eleições antecipadas estão à porta, e é urgente que os poderes delas resultantes tenham em consideração os necessidades e anseios das pessoas mais carenciadas.

Quanto a mim, quanto a nós, sinto-me cada vez mais motivado a lutar com as
minhas possibilidades pelo bem estar desta gente, e particularmente por estas
crianças que não vão à escola devido às dificuldades de acesso e às situações de
pobreza extrema. Havemos de fazer a diferença. Que Deus nos ajude!

Talentos perdidos...

Sei que em todo o mundo é assim, e todos conhecemos casos semelhantes ao que
vou contar. A Delfina Tavares é uma jovem que acabou este ano (em Dezembro
passado) os estudos do Secundário (12º ano de escolaridade). Estivemos a ver a sua caderneta escolar que prova ela ser a segunda melhor aluna da turma. 

A Delfina, devido à doença da mãe e a ter perdido o pai teve de deixar a sua casa e está a viver numa família de acolhimento cujo aglomerado familiar soma 15 pessoas, em situação de muitas dificuldades financeiras. Claro que todos vão à escola, exceto a Delfina que, por falta de verbas para pagar a matrícula e a frequência tem de ficar em casa em trabalhos caseiros. 

Infelizmente também aqui em Timor, as universidades públicas, pagas pelo Estado, são ocupados por alunos vindos das classes mais altas. Os outros têm de recorrer ao ensino privado, que tem de ser pago, e ao qual muitos alunos não têm acesso por falta de possibilidades das suas famílias que são pobres.

Estamos a tentar resolver o problema da Delfina, e temos esperança que ainda se
possa matricular e frequentar o curso de economia na faculdade que o administra.

Este caso leva-me a refletir sobre o ditado “Deus dá nozes a quem não tem dentes”. E vêm me à memória uns quantos casos que em Portugal eu conheço de talentos perdidos por falta de condições e de oportunidades em prosseguir os estudos.

É pena que assim seja. Quem sabe se com a contribuição de cada um de nós a situação não se altere, pelo menos para alguns, e esses talentos perdidos ou escondidos possam desenvolver-se e dar frutos. Assim o desejo profundamente...

Dia 11.03.2018, domingo - Hoje é Domingo...

“ Dies Domini...” Hoje é domingo, dia do Senhor. Por isso e por outras coisas mais fomos à missa das 8.00horas, na igreja de Motael.

Ao chegar encontramos um largo cheio de gente que assistia à missa das 7h. Como há sempre muita gente a esta hora, optou-se por a missa desta hora ser cá fora, tipo missa campal.  

Foi-nos então explicado pelo sr. Ascenso, uma enciclopédia de conhecimentos, que nesta igreja de Motael, a primeira missa é celebrada em bahassa (língua indonésia), a segunda em português, a terceira em tetum,e a quarta em inglês. È assim mesmo, missa para todos os gostos... 

É escusado dizer que a religião católica tem uma grande implantação em Timor Leste. E por isso as cerimónias religiosas têm uma participação muito relevante e muito expressiva. Os cânticos e as orações coletivas fazem-nos crer que esta gente é sincera e as suas devoções, aceitemos ou não, têm razão de ser e dão significado às suas vidas.

A razão mais forte que aqui nos trouxe, (eu, o Gaspar e o João Crisóstomo) foi de nos encontrarmos com o sr. Padre Mário Godamo, que ´é o represente do Vaticano neste país, a fim de combinarmos a cerimónia da benção da escola de Boebau.

Depois de uma larga conversa partilhada, chegamos à conclusão que será celebrada a missa, seguindo-se o programa já delineado. Precisamos de todos os apoios  possíveis, mas particularmente do apoio divino. Deus está connosco. Ele vai ajudar!...

Esteve também connosco o Levy, já meu conhecido e grande amigo do Gaspar, que a nosso pedido se iria encontrar com o João Crisóstomo. O João ficou emocionado ao abraçar este herói da resistência. Ele mais um colega, felizmente também sobreviveu, são os dois heróis que personificam o monumento existente em frente da igreja de Motael, mesmo à beirinha do mar. Aparecem, como imagens fortes de sangue e suor, no filme que percorreu o mundo e ajudou a fortalecer o movimento da luta pela independência nacional. Por isso é compreensível o estado emocional do João, ele que tanto lutou por ajudar este país sofredor. Com certeza que mais emoções hão-de vir ao de cima. Força João!...

12.03.2018, segunda feira  - Nem tudo são rosas...

Quando as promessas não são cumpridas a frustração, a ansiedade, o desânimo
instalam-se na gente. Hoje era o dia anunciado para a chegada do Ralph e de Lucila, os dois jornalistas esperados para fazer o documentário sobre a educação em Timor Leste, e também para fazerem a reportagem da inauguração da escola em Boebau. 

amigo João Crisóstomo, que tudo tem feito para que esta equipa possa realizar o seu trabalho em boas condições, é quem mais sofre com estes incumprimentos. Não sabemos se ainda vêm ou não, mas decidimos não nos deixarmos influenciar pela sua ausência. Todos juntos somos fortes e iremos com certeza levar a cabo esta missão. A escola será inaugurada no dia 19, esteja quem estiver, porque as crianças e todos nós estaremos lá.

13.03.2018, terça feira - A prenda que desejávamos...

Já relatei o caso de “talentos perdidos” que descreve a Delfina, uma aluna que
acabou o secundário como a segunda melhor da turma. Hoje, a Delfina, o Gaspar e eu fomos a Universidade da Paz, falar com o Dr. Lucas que é o reitor, sobre esta
situação. Recebidos num clima de simplicidade e amizade, o Dr.Lucas pôs tudo em movimento e, depois de ter as informações adequadas, decidiu ali mesmo, de
imediato, que a Delfina começará amanhã a frequentar as aulas no curso que ela
escolheu (Relações Internacionais), isenta do pagamento de propinas.

Ainda mais. Sob proposta nossa o Dr. Lucas aceitou com muito agrado ser sócio da Astil, pronto a colaborar connosco em tudo o que seja possível. Estiveram também connosco o Dr. Apolinário e o Dr. Domingos que nos guiaram na visita às instalações desta grande e credível universidade.

Há dias assim, em que tudo corre bem. Obrigado, Dr.Lucas!...



Fonte: João Crisóstomo - LAMETA - Movimento Luso-Americano para a Autodeterminação de Timor-Leste, edição de autor, Nova Iorque, 2017, p. 157 (com a devida autorização do autor, conhecido ativista de causuas sociais, nosso camarada da dáspora lusitana, a viver nos EUA desde 1975, e ex-alf mil da CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67)


Da esquerda para a direita: o professor Berbedo de Magalhães, da Universidade do Porto, João Crisóstomo e Xanana Gusmão, num encontro em Lisboa [em 22 de dezembro de 2001] 
(Fonte:  LAMETA, 2017, pág. 22)

 

Capa da brochura
LAMETA (2017)
14.03.2018, quarta feira  - Exposição Lameta

À hora combinada, 9.30h, lá estávamos na Escola Rui Cinati, em Balide, uma escola de referência em Dili, onde o ensino e a língua portuguesa estão em destaque. Foi o local combinado para que o amigo João pudesse expor os seus trabalhos relacionados com o livro que publicou LAMETA ( Movimento Luso Americano para a Autodeterminação de Timor Leste). 

Acompanhando eu o João na preparação desta exposição sou testemunha de quanto investimento em dinheiro, esforço, contactos, entusiasmo, esperança foi depositado neste evento. Mas confirmo também o apoio inexcedível prestado pela direção desta escola, nomeadamente do Dr. Acácio,  seu presidente, para que esta exposição tenha o êxito esperado. 

O ato da inauguração foi um momento alto que nos catapultou a todos. Vi o João como ele é:  grande e humilde; fervoroso e contagiante; alegre e bem disposto. Para tal muito contribuiu a presença de figuras convidadas, nomeadamente a presença do Sr. Embaixador de Portugal.

De nossa parte fica também o nosso agradecimento à “publicidade” que nos fizeram e que nos permitiu alguns contactos importantes para o futuro da nossa escola em 
Boebau.

(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos: LG)
_______________

Nota do editor:

domingo, 16 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25645: Timor-Leste, passado e presente (6): O tenente Manuel de Jesus Pires (1885-1944), herói em Timor, desertor e traidor no seu país ?

 




Nome: Manuel de Jesus Pires
Naturalidade: concelho do Porto
Idade: 20 anos
Posto à data da 1ª matrícula: 2º sargento
Ano da 1ª matrícula: 1915
Curso em que se matriculou: Infantaria
Nº de ordem no Corpo de Alunos: 61
Nº de ordem na classificação final dos alunos que concluíram o curso: 1/18
Cota de mérito final: 128
Escola que frequentou: Escola de Guerra
Registo: 
Nº do livro: 27
Nº de folhas: 413
Processos:
Nº do maço: 166
Nº do processo: 6511
Escolas Preparatórias Superiores: Universidade do Port
o



Cor ar ref, António Carlos Morais da Silva 
 
1. Este é o registo do tenente Manuel de Jesus Pires que consta no tombo da Escola de Guerra, enquanto aluno inscrito no curso de infantaria, em 1915. Tinha então 20 anos, tendo nascido em 1885, na cidade do Porto. Foi o primeiro aluno do seu curso.  

Estes elementos foram-nos gentilmente fornecidos, a nosso pedido,  pelo nosso grão-tabanqueiro Morais Silva (cadete-aluno nº 45/63 do Corpo de Alunos da Academia Militar e depois professor de investigação operacional na AM, durante cerca de 2 décadas; no CTIG, foi  instrutor da 1ª CCmds Africanos, em Fá Mandinga, adjunto do COP 6, em Mansabá, e comandante da CCAÇ 2796, em Gadamael, entre 1970 e 1972; fez parte do Grupo L34, na Op Viragem Histórica, no 25 de Abril de 1974). 

Não se sabe ainda, com exatidão, as circunstâncias da morte do então tenente Pires, em Timor, durante a II Guerra Mundial (*). Sabe-se, isso, sim que foi um dos heróis da resistência luso-timorense durante a  ocupação japonesa do território, em articulação com os australianos e holandeses, tendo salvo bastantes vidas humanas, de portugueses europeus e timorenses. 

Terá morrido, no cativeiro, às mãos dos japoneses, c. 1944. 

O actor Marco Delgado no papel de Tenente Pires,
na série "Abandonados" (realização de Francisco
Manso, produção RTP, 2022). Imagem: cortesia de RTP e 
Time Out (20 de dezembro de 2022)


2. O seu diário de guerra chegou a Portugal, salvo por Carlos Cal Brandão, um advogado português deportado em Timor desde 1931, e seu companheiro de resistência.

Foi com base nesse diário (e outras fontes arquivísticas) , que o historiador António Monteiro Cardoso (1950-2016) escreveu o livro "Timor na 2.ª Guerra Mundial — O Diário do Tenente Pires" (Lisboa: Centro de Estudos de História Contemporânea, ISCTE, 2007), livro que por sua vez inspirou o realizador da série televisiva "Abandonados", Francisco  Manso (também autor do filme "O Cônsul de Bordéus", 2011). (A série "Abandonados", em 7 episódios, passou na RTP entre 21 de dezembro de 2022 e 15 de fevereiro de 2023, podendo ser vista ou revista, aqui, na RTP Play).

O tenente Pires começou a escrever um  diário, a partir do natal de 1942, em plena fuga pelo interior de Timor, e depois na Austrália, terminando antes de ele desembarcar de novo em Timor, a partir de um submarino americano, com uma missão arriscada, em meados de 1943. O comando que ele chefiava, regressou a Timor para lançar uma operação de guerrilha, a Op Lagarto (de 1 de julho a 29 de setembro de 1943). Acabou por ser ferido e capturado pelos japoneses (juntamente com um sargento australiano e vários timorenses).

Mas há um outro militar português, o tenente António Oliveira Liberato, e outros portugueses, civis e militares, que se empenharam na resistência aos japoneses, contrariando as orientações de Lisboa. Tudo indica que, no caso do tenente Manuel de Jesus Pires, se fosse vivo e regressasse à Pátria, seria julgado por traição e deserção. 

sábado, 15 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25641: Timor-Leste, passado e presente (5): a resistência luso-timorense e australiana na II Guerra Mundial



Mapa de Timor-Leste > Posição relativa de Bacau, a leste de Dili, a capital. Fonte: WikipediaWikipedia (com a devida vénia).


1. Não acompanhei na devida altura a série "Abandonados", que passou na RTP1,  de 21 de dezembro de 2022 (1º episódio) a 15 de fevereiro de 2023 (7º e último episódio). Mas conto poder vê-la na RTP Play.



Vejamos aqui a sinopse da série:

"Uma história de coragem e de sacrifício sobre-humano, ocorrida em Timor durante a II Guerra Mundial, com a invasão do Japão. Uma série de Francisco Manso com Marco Delgado, António Pedro Cerdeira, Chico Diaz, Elmano Sancho, Francisco Froes, Joaquim Nicolau, entre outros

"Baseada em factos reais, 'Abandonados' recorda a aliança inédita entre portugueses, timorenses e australianos unindo-se contra um inimigo comum que não hesitava em cometer as maiores atrocidades contra as populações locais e contra todos os que se lhe opunham.

"A série narra a situação dramática em que ficaram muitos desses homens e mulheres, esquecidos e abandonados em Timor e a luta persistente de um militar - o Tenente Pires, que contra todos os obstáculos e dificuldades, criados aliás pelo próprio governo de Salazar, tudo fez para salvar os seus companheiros, até ao seu sacrifício final. Esta série mostra-nos os caminhos tortuosos da política e dos interesses dos estados sobrepondo-se aos interesses individuais, com toda a carga de injustiça e de desumanidade que muitas vezes isso acarreta, conferindo a 'Abandonados' um significado universal".

Fonte: RTP > Programas > Abandonados
https://www.rtp.pt/programa/tv/p43285


2. Li,  entretanto, uma peça da agência Lusa sobre o livro que inspirou o realizador Francisco Manso, "O diário do tenente Pires", do historiador António Monteiro Cardoso (1950-2016). Faço a seguir um resumo dessa peça jornalística, servindo como introdução a um futura nota de leitura. 

O então jornalista da Lusa em Dili (2006-2008), o premiado escritor Pedro Rosa Mendes (autor, entre outros, da "Baía dos Tigres", 1999) aponta "a 'violência' da colonização de Timor, a 'brutalidade' da I República e o 'cinismo' da política de Salazar face à invasão japonesa" (sic) como  "as linhas que se cruzam na vida do tenente português Manuel de Jesus Pires" e que podem resumir o teor do livro "Timor na 2ª Guerra Mundial, O Diário do Tenente Pires", da autoria do historiador António Monteiro Cardoso (nascido em 1950 e prematuramente falecido em 2016, e que foi casado com a diplomata Ana Gomes),  

 A obra foi lançada em outubro de 2007,  em Díli, na Feira do Livro em Português. O autor conheceu Timor pela primeira vez, tendo aproveitado para visitar alguns dos locais onde se desenrolou a história heróica do tenente Pires, no leste do país, no município de Baucau (hoje a segunda maior cidade, a seguir à capital, da qual dista cerca de 120 km).
 
"O tenente Pires foi administrador da vila de Baucau, que entre 1936 e 1975 se chamou Vila Salazar, capital da circunscrição de São Domingos, e morreu em data e local desconhecidos, talvez no final de 1944, assassinado no cativeiro japonês."


"O pano de fundo do 'Diário do Tenente Pires'  a resistência à ocupação japonesa de Timor, a guerra de guerrilhas movida por forças australianas ajudadas por timorenses e portugueses, a saída de Pires para a Austrália e o seu regresso à ilha, numa missão suicida, para salvar os portugueses que tinham ficado e corriam perigo."

Baseado em abundantes fontes de arquivo, António Monteiro Cardoso procurou analisar e refutar neste livro "dois mitos persistentes", por um lado, "a bondade da colonização de Timor", e por outro, "o sucesso da política de Salazar na colónia mais distante da metrópole."
 
Para ele os livros sobre a História de Timor seriam "livros de exaltação do culto da bandeira e outras fantasias" (sic), disse na  entrevista que deu à Lusa.

Citando o autor do livro:

"A verdade é o que Pélissier contou: a colonização foi violenta e usou os métodos de guerra, guerra de timorenses contra timorenses, como na Guiné pelo Teixeira Pinto" (...). 

"Mantém-se a ilusão mitológica de que o colonialismo português não fazia mal a ninguém. Todos são maus a colonizar menos os portugueses". (...)

"O caso de Timor é o que melhor ajuda a criar este mito, devido à invasão indonésia. Há o mito da cristianização, da conquista das almas e não pela espada", explicou o historiador. "O timorense por definição era católico, falava português e adorava Portugal", recorda.

 (....) "Os indígenas são tão simpáticos, tão portugueses, dóceis, um pouco mandriões é certo. Conhecem as crianças? Assim são os indígenas", ironiza o historiador sobre a visão colonial do timorense.

Para além da história (trágica) do tenente  Pires, desconhecida dos portugueses,  o livro  procura 
 recuperar também "parte da história dos deportados portugueses em Timor", donde descendem  "clãs" importantes, como a família Carrascalão ou a família Ramos-Horta.

Conta António Monteiro Cardoso:

"A novidade é que os principais deportados não foram enviados pelo regime de Salazar. Os primeiros, o núcleo-duro, eram anarco-sindicalistas, enviados pela I República para a Guiné e Cabo Verde e que depois a ditadura militar aproveitou para mandar para mais longe".
 
Foi o caso dos alegados militantes da Legião Vermelha, "uma organização terrorista de contornos ocultos, de acção directa, destinada a atacar patrões, polícias e outros serventuários menores do capital". 

Um das vítimas desta organização  o comandante da polícia cívica de Lisboa, o capitão João Maria Ferreira do Amaral, originando uma brutal  vaga de repressão em  1925.

Em 1931, os deportados "sociais" e "políticos" portugueses em Timor atingia o meio milhar,  mais o que o total do funcionalismo público no território.

Sobre a política do Estado Novo em Timor, o historiador defende a tese de que Salazar "demonstrou um desprezo absoluto pela vida humana e um cinismo completo".  Na realidade, teria pedido aos portugueses, perseguidos pelos japoneses, "um 'massacre inútil', uma decisão que antecipa o que aconteceu em 1961 com a invasão de Goa", quando ordenou ao governador, gen Vassalo e Silva, que queria soldados e marinheiros "vitoriosos ou mortos".

Descurando a proteção (militar) do território, antes do início da guerra no Pacífico (fnais de 1941) , Portugal acabou por não dar quaisquer "garantias de efectiva neutralidade nem ao Japão nem à Austrália e às potências Aliadas".

Eis mais alguns excertos da entrevista:

"O tenente Pires e outros portugueses em Timor foram usados e sacrificados por Salazar para 'garantir' a soberania sobre a colónia. 

"Os mortos foram esquecidos e os sobreviventes perseguidos".

"Do tenente Pires, fica a história de um oficial que conseguiu salvar centenas de vidas " e que depois fica para a morte, acossado por todos os lados". (...)

"É um exemplo de dignidade, coragem e abnegação até à morte, para cumprir um compromisso"  (António Monteiro Cardoso).


O livro "Timor na 2º guerra mundial : o diário do Tenente Pires", de António Monteiro Cardoso, foi publicado de Centro de Estudos da História Contemporânea Portuguesa, Lisboa, 2007, 271 pp.

Fonte: Adapt., com a devida vénia, de RTP Notícias > Mundo > 26 Abril 2008, 14:59 > Histórias de Portugal e da II Guerra Mundial no "Diário do Tenente Pires" (*)


(*) Histórias de Portugal e da II Guerra Mundial no "Diário do Tenente Pires"
por © 2008 LUSA - Agência de Notícias de Portugal, S.A.
Pedro Rosa Mendes, da agência Lusa, em Díli (26 de abril de 2008)

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Nota do editor:

Último poste da série > 2 de junho de 2024 > Guiné 61/74 - P25594: Timor-Leste, passado e presente (4): Antes da invasão e ocupação do Japão (19 de fevereiro de 1942): imagens da "Vida Mundial Ilustrada" (Ano I, nº 41, 26 de fevereiro de 1942)


 

terça-feira, 11 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25632: II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte II: Heróis da montanha!


Timor Leste > s/l > 2016 > O Rui e o seu acordeão, levando às montanhas de Liquiçá a alegria, a esperança e a solidariedade das gentes da Malcata/Sabugal,  e de outros lados de Portugal, de Coimbra à Lourinhã. A foto não traz legenda, mas parece-nos o Rui com a família Sobral, em Dili, no bairro 
Ailok Laran.


Uma Escola em Timor

Rui Chamusco, nascido em Malcata, pessoa bem conhecida na nossa aldeia e em todo o concelho do Sabugal e outras terras, juntamente com Gaspar Sobral, este nascido em Timor, quis o destino que constituísse família com Glória, nascida em Malcata. "Uma Escola em Timor" levou-os até Boidau, em Timor Leste, com a missão de construir uma escola para as crianças dessa zona timorense.
De Timor, Rui Chamusco, através da internet, tem-nos enviado notícias a contar como está a desenvolver-se o projecto.
 
Do Jornal Cinco Quinas retirei estas palavras:

"A nossa obrigação como cidadãos do mundo é sermos úteis a quem e aonde precisarem de nós. O projeto 'Uma Escola em Timor' é uma iniciativa de amigos que pretendem contribuir para o progresso e o bem estar do povo de Boidau.

(...) "Enquanto entre nós, em Portugal, se fecham escolas, noutros países como Timor Leste há necessidade de se construírem e abrirem. A nossa obrigação como cidadãos do mundo é sermos úteis a quem e aonde precisarem de nós, fazer o que pudermos para melhorar o mundo. Instruir e educar é um dever de todos, dos estados e de cada um de nós. Poder participar num projeto de solidariedade é uma honra.

"O projeto de solidariedade 'Uma Escola em Timor'  é uma iniciativa de amigos que, motivados por uma grande afeição a Timor, pretendem contribuir para o progresso e o bem estar do povo de Boidau, através da construção e funcionamento dum complexo escolar que inclui duas salas de aula (pré escolar e escolar, 1º ciclo), uma cantina, uma biblioteca e uma capela. 

"Boidau é uma região do interior de Timor Leste que, à semelhança de outras aldeias do interior de qualquer parte do mundo, carece de estruturas e apoios para o seu desenvolvimento. Todas as ações humanitárias com este fim serão sempre uma mais valia no caminho do progresso. Este projeto pretende ser uma resposta a este apelo". (Fonte: http://www.cincoquinas.net/...)

Foto: © Rui Chamusco  (2016). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Fundadores: Rui Chamusco,
Glória Sobral e Gaspar Sobral


1. Esta é a segunda viagem e estadia do Rui Chamusco (de 27 de janeiro a 14 de junho de 2018) (*), em Timor Leste, uma missão solidária que culminou com a inauguração da Escola de São Francisco de Assis (ESFA), em 19 de março de 2018, em Boebau, Manati, Liquiçá.


O Rui Chamusco, nosso grão- tabanqueiro nº 886, é professor de música, do ensino secundário, reformado (e homem de sete instrumentos), natural da Malcata, Sabugal, a viver na Lourinhã. 



Rui Chamusco e Gaspar Sobral (2017).
A família Sobral tem um antepassado
comum que foi lurai, régulo,
no tempo dos portugueses.
As insígnias do poder (incluindo a espada)
estão na posse do Gaspar,
que vive em Coimbra. A família Sobral andou 
vários anos pelas montanhas de Luiquiçá, tentando
escapar à tirania dos ocupantes indonésios
Foto: LG (2017).


Tem-se dedicado de alma e coração a um projeto de solidariedade no longínquo território de Timor-Leste (a 3 dias de viagem, por avião, a cerca de 15 km de distância em linha reta). 

É cofundador e líder da ASTIL - Associação dos Amigos Solidários com Timor-Leste, com sede em Coimbra. Juntamente com outros destacadas figuras, como o Gaspar Sobral (nascido em Timor) e a Glória Sobral (natural da Malpaca, Sabugal).

Através da família Sobral, um exemplo de "resistência e resiliência", e das crónicas do Rui, vemos seguramente melhor Timor-Leste, de ontem e de hoje: uma visão macro e micro. Enfim, um privilégio, para os nossos leitores.  E um obrigado ao nosso cronista, 
extensivo ao Gaspar, ao Eustáquio,
 à Aurora, à Adobe e outros protagonistas 
destas histórias luso-timorenses (LG).


II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte II: Os heróis da montanha


18.02.2018, domingo - Grande Abeka!...

José Alves Sobral, entre nós o Abeka, é o quarto dos irmãos Sobral. Pouco mais de trinta quilos, num corpo de pele e osso. Mas nem por isso deixa de ser um verdadeiro Sobral, sendo pai de oito filhos vivos e de dez netos. 

Como muitos outros tem a sua história de resistência cheia de interesse para ser contada. Em 1997 foi capturada à traição. Como ele fazia de correio (levava recados aos combatentes daresistência), houve algúem cujo nome ele bem lembra, que se infiltrou no seu mundo fingindo “comprar-lhe o serviço” e que de seguida o entregou para ser preso. Foi algemado e com um garruço na cabeça foi levado em carro de polécia indonésia porruas e lugares impossível de identificar. Sabia-se na altura que as autoridades indonésias carregavam pessoas em barcos para depois as fazer desaparecer no mar.

Também o Abeka foi embarcado, sempre de cabeça coberta, e segundo ele sempre a pensar que teria esse destino. Para seu bem, ele mais os outros tres prisioneiros tiveram sorte diferente, pois foram distribuídos por várias prisões. 

O Abeka foi levado para Baucau, onde esteve dez meses preso. Conta episódios de arrepiar quanto às condições de vida: alimentação sempre a mesma <supermi”, sem banhos, saída das celas de quatro em quatro dias para fazer as necessidades maiores. Para as menores serviam-se de garrafas. 

Sujeitos a interrogatórios sob pancada, conta o Abeka que quem o salvou das dores foi a oração à Senhora do Desterro que ele por sorte apanhou do chão, porque se tinha desprendido da bota de um dos guardas da prisão. Ainda hoje mostra o papelinho, que é guardado religiosamente na sua pequena carteira. 

Conta também que sujeito a murros no estômago nada lhe doía,como se o agressor batesse em plástico ou outra matéria amortecedora.

Finalmente foi trazido para mais perto da sua morada em Ailok Laran, até que um dia o deixaram junto à ponte aqui perto. Ele sempre com receio de que fosse para lhe darem um tiro e acabassem com ele, quando verificou com surpresa que eramesmo para regressar a casa, onde ninguém sabia do seu paradeiro já havia mais de dez meses.

Com certeza que ele já contou esta peripécia da sua vida várias vezes. Mas eu notei que os irmãos que o ouviam (Gaspar, Mário e Eustáquio) lhe prestavam toda a atenção, e com ele reviviam, a seu modo, a história das suas vidas.

19.02.2018, segunda feira - Preparando  a inauguração da escola

É urgente ir a Boebau para nos certificarmos do estado de construção da escola. Só no local nos daremos conta do que já está e do que faz falta para marcarmos o dia da inauguração. Vamos a ver se hoje conseguimos realizar o nosso desejo. Mas está a ser difícil. Os transportes são o problema principal. Não há disponibilidade de “motores” para fazer a viagem. O Eustáquio tem tudo tentado, através dos amigos, que devem ser para as ocasiões, mas que nem sempre é assim. 

Será que as nossas esperanças vão ser também hoje defraudadas? Há dias em que tudo corre bem, mas há outros que nem vale a pena tentar. Já são onze da manhã e ainda nãoconseguimos resolver o problema.

Entretanto aguardamos, com impaciência, melhores notícias. E mais uma vez nos damos conta de que nada somos, ainda que às vezes pensemos que somos os maiores. Como diz o salmo “ se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham osseus construtores”. Estamos nas suas mãos...


Quem espera sempre alcança


E eis que chega o dia e a hora. De repente, aparece o Bartolomeo com a motorizada.

Até os olhos se me arregalaram! Num ápice, preparei o essencial para irmos à montanha. Era mais ou menos meio dia quando as motas arrancaram de Ailok Laran.

Depois de alguns recados aviados em Dili, lá vamos nós, cabelo ao vento, a caminho da “terra prometida”. Pelas 14.30 estávamos em Liquiçá, em casa do Fernando que é irmão do Bô Zé,  nosso anfitrião em Boebau. Recebidos com toda a gentileza,podemos saborear os produtos da sua agricultura caseira: anona ata, bananas...tudo produtos de alta qualidade biológica. 

Não posso deixar de referir a atitude corajosado senhor Fernando: tem nove filhos aos quais fez sempre questão de proporcionar o ensino escolar. Um já está licenciado e trabalha em Baucau. Diz-nos ele que ainda está com vontade de arranjar outra mulher para ter mais filhos. Grande Homem!

Prontos para recomeçar a aventura, eis o primeiro contratempo: a mota em que eu viajava, precisamente a roda que me suportava, estava vazia. Foi mais uma hora de espera até que o problema se resolvesse. É tudo por Deus! Olha se o furo acontecesse num dos lugares mais críticos do caminho?

Pelas 16.00h lá vamos nós cheios de pica. Eis então que a chuva aparece.

Francamente penseio no pior. Será que conseguiremos chegar ao destino? Mas graças à perícia dos condutores Eustáquio (pai) e Amali ou Zinígio (filho) os obstáculos foram sempre superados, ainda que por vezes tivéssemos de descer das motas para contornar as situações. 

Molhados e cansados, chegamos finalmente ao local da escola. Até os olhos se nos arregalaram ao avistar o edifício! Não imaginam a emoção de, pela primeira vez, entrar nesta escola que é fruto de um projeto de solidariedade do qual todos nós fazemos parte. 

Esta escola não é minha, nem do Gaspar, nem da Glória, nem do João Crisóstomo. Esta escola é nossa, de todos nós que acreditamos e colaboramos na sua edificação. Esta escola é dos timorenses, das pessoas de Boebau/Manati. 

Ficamos impressionados como, em pouco tempo, a obrase ergueu, Demos um grande abraço ao Abílio que é o empreiteiro e ao João Moniz (Eustáquio) que é o nosso braço direito porque ele é tudo (chefe da obra, engenheiro, condutor, contabilista, repórter, etc, etc...) Eles tudo tem feito para que o nosso sonho se concretize.

À noite, em casa do Bô Zé, pusemos as conversas em dia, até que o cansaço e o sono nos permitiram. Amanhã será outro dia.


20.02.2018, terça feira  - A montanha dos heróis

Bem cedo se começa o dia. Então eu que pouco ou nada dormi, não sei se pela emoção se por estranhar a cama e o ambiente natural sonoro (insetos, galos, galinhas, cães, porcos e eu sei lá quantos mais seres vivos ). 

Quase de imediato fomos para a escola onde já estava a trabalhar o Abílio. Ideias e mais ideias para melhorar algumas coisas, preparação da inauguração, datas, entidades, e claro sem esquecer as crianças, que neste momento estão à nossa volta, e que são a razão de ser deste projeto solidário.

Tivemos ainda a oportunidade de nos deslocarmos na floresta, pelas veredas que nos levam ao túmulo onde estão sepultados os ascendentes (avós) do Gaspar. Como eu ia à frente feito herói, não deixava de ouvir o aviso do Gaspar: “ Rui, cuidado com a Samodo!”, uma cobra verde venenosa (há quem diga que é mortal) frequente e disfarçada na luxuriante vegetação por onde passamos. 

Fomos acompanhados por Bô Zé e um guerrilheiro desde 1975, que já no local da campa nos explicava os combates de que ali, a 20 metros de distância, foi protogonista. Sempre de catana na mão, explica que numa noite, das três às seis da manhã, limparam quase todo o batalhão indonésio. Só se safaram uns quarenta. 

Diz que ali, e desenhava no chão com o dedo indicador, era como se fosse o jogo do gato e do rato entre os resistentes e as tropas indonésias. Diz também que uma vez, o soldado Mauquinta foi lá cima à procura de alimentos e que, na volta, o comandante do seu grupo suspeitou que ele tivesse ido a levar informações aos indonésios. Quando o avistou disparou contra ele uma rajada de metralhadora da qual o Mauquinta se conseguiu livrar. O comandante pediu ao que estava a seu lado mais balas, que lhe forneceu então mais uma. Também desta Mauquinta se safou. Foi então que Mauquinta avançou para o comandante e com a catana lhe cortou a cabeça.

Este guerrilheiro, que também foi comandante, há semelhança de outros estão como que abandonados. Nada recebem do Estado, em contradição com aqueles que pouco ou nada fizeram pela independência do país. Dignamente afirma: 

“Eu resigno-me porque sei que lutei pela independência do meu país”. 

Este senhor tem muita coisa para nos contar, e prometeu que quando voltarmos ele e outros antigos guerrilheiros irão ter connosco para que nós saibamos mais pormenores.

Pois é! Estamos no local onde se travaram os grandes combates, muito perto da fronteira com Timor Oeste de domínio indonésio. A vista panorâmica é impressionante, e ouvir em primeira mão, relatos que apontam “ aqui...além...acolá...” deixam-nos sem palavras, com vontade de abraçar estes heróis. 

E assim o fizemos e as fotografias documentam.


De volta a Dili...

Feitas as despedidas, estamos de volta a Ailok Laran. O tempo ajudou, não apanhamos chuva pelo caminho, embora as subidas e os caminhos lamacentos nos metessem em cuidados. Paramos em Liquiçá para falar com o César Bruno que tam bém faz parte da comissão de instalação da esola. Na Cruz Vermelha de Liquiçá, local onde ele trabalha, resolvemos alguns problemas em relação à inauguração da escola. 

Depois seguimos para Tíbar a fim de dar um abraço aos irmão capuchinhos que aqui têm uma das suas fraternidades em Timor. Recebidos fraternalmente pelos irmão presentes, falamos de pessoas, locais, projetos, e claro está do grande abraço que trouxemos de Portugal, particularmente do Provincial dos Capuchinhos Frei

Fernando, que já tem dez ou onze anos de vida em Timor. Obrigado, manos!...

Chegamos a casa por volta das 18.00h, onde a alegria e a algazarra das crianças se fez logo ouvir: “Boa tardi, Ti Rui!...Confesso que nunca na minha vida tinha ouvidotanto a saudação “Boa tardi!..., pois a crianças que ao longo do caminho fomos encontrando de regresso das suas escolas foram tantas, que é impossível ficar indiferente. E eu a lembrar-me da frase que há tantos anos eu decorei “ Cada criança que nasce é sinal de que Deus ainda não está zangado com a humanidade”.


23.02.2018, sexta feira  - O anúncio esperado...

Está tomada a decisão: a escola construída em Boebau será inaugurada o dia 19 de Março, e terá o nome “Escola de São Francisco de Assis - Paz e Bem ”. 

O César Bruno ficou responsável por fazer os convites às entidades oficiais. Já assim foi na instalação da primeira pedra. O Laurindo, residente em Boebau e chefe da aldeia vai reunir e ensaiar as crianças. O Rui ensaiará as crianças de Ailok Laran. Vai ser uma grande festa com rituais e anções timorenses, com músicas e canções portuguesas, e quem sabe até algumas danças de Portugal. As crianças, em Ailok Laran, adoram cantar e dançar o malhão e o vira.

Possivelmente ainda hoje eu e o Eustáquio vamos a Dili encontrar um alfaiate que faça “as fardas” para os alunos, que a minha afilhada Adobe desenhou.

Estamos em pulgas, como soe dizer-se, com a preparação deste acontecimento, e queremos que seja marcante para a região e para as nossas vidas. Sabemos que uma inauguração não é o mais importante, mas é o primeiro passo. Depois virá o andarnormal de modo a podermos caminhar de cabeça erguida. 

Claro que muitos desafios nos esperam, sobretudo a garantia de funcionamento, mais concretamente de professores que nos permitam continuar. Temos confiança em Deus e nos homensque este problema se irá resolver. Para já, e devido a este ano escolar já estar em andamento, a escola irá funcionar experimentalmente (ano zero se quiserem) com uma sala de mais ou menos trinta alunos, nas valências de Tetum, Português e Música. Diz-nos o Laurindo que, se houver ensino da Música vai haver muitos alunos, porque deve ser a primeira escola onde se ensina música. Muita gente toca e canta em Timor, mas poucos sabem ler e interpretar uma pauta. 

Veremos o que podemos fazer. Mas se formos por aqui, talvez sejamos mesmo uma escola de referência.


Data da Inauguração da Escola



A escola, em 2018:
os últimos retoques...
Está decidido: será no dia 19 de Março. Os convites estão a ser elaborados, as músicas e canções estão a ser ensaiadas, as “fardas” já foram encomendadas. Hoje também tivemos de comprar cadeiras (mais de 50), porque o equipamento escolarangariado em Portugal com destino à nossa escola está retido nos contentores do barco Hoksolok, que infelizmente nunca mais arranca dos estaleiros de Figueira da Foz. Será que ninguém tem solução para este problema? Valha-nos Deus!...

Entretanto, esperamos com alguma ansiedade a chegada do nosso amigo                                                                                          e colega do projeto de solidariedade João Crisóstomo e do seu amigo Ralph Niemeyer, que participarão na inauguração da escola e noutros atos de referência da sociedade timorense. A data da inauguração foi decidida tendo em conta as suas presenças em território timorense.

No próximo dia 7 de Março eu e o Gaspar iremos ser recebidos na Embaixada de Portugal, onde esperamos dar a conhecer o nosso projeto e angariar alguns apoios, particularmente no destacamento de professores. Sabemos que vai ser muito difícilencontrar professores disponíveis para lecionar em Boebau, devido às dificuldades de transporte e outras. Mas a Deus nada é impossível. E acreditamos que apareçaalguém que pode e quer entregar-se a esta nobre missão de servir os maisnecessitados. Que Deus nos ajude!...


Ida ao Hospital Guido Valadares

Já não foi a primeira vez que aqui me desloquei, não para tratar da minha saúde mas da saúde dos outros. Hoje vim com o Eustáquio que, devido à falta de prevenção, aocortar uma barra de zinco com a reverbadora, ficou com duas ou três limalhas noolho direito. Foi observado e tratado. Felizmente está tudo bem.

Desta vez, à luz do dia, dei-me conta do que da outra vez durante a noite não me apercebi. Guido Valadares é o hospital público de Dili, onde tudo e todos vêm parar.

Enquanto esperava pelo Eustáquio, chegou um pequeno grupo de quatro pessoas, creio que uma senhora doente acompanhada de família e uma senhora, médica comcerteza, que falava espanhol (cubano) e que tentava que alguém traduzisse o quedizia à doente. “No pudes comer fritos!...) Felizmente passou uma enfermeira que lhe fez a tradução. Não intervi porque, embora perceba e me expresse com facilidade em espanhol (estudei em Espanha), o meu tétum ainda não me permitefazer-me entender. 

Mas este episódio fez-me pensar no que já me disseram: “Se não fizermos nada pela promoção da língua portuguesa, o espanhol vai passar-lhe à frente, porque há pessoas que, por necessidade de entenderem os médicoscubanos, desejam aprender o espanhol”.

Mais uma vez me dei conta da importância que o sorriso tem para esta gente. É compensador passares por uma multidão de pessoas e que, sem te conhecerem, esboçam sorrisos. Fazem-nos sentir bem...


24.022018, sábado - O concerto das cigarras...

Segundo consta, as cigarras levam a vida a cantar, que tem sido mais ou menos o meu lema, enquanto a formiga se mata a trabalhar. É assim em todo o mundo. Mashoje, ao ouvir cantar as cigarras do local, lembrei-me da viagem de regresso deBoebau, do percurso que por necessidade tive de fazer a pé. O barulho era ensurdecedor. Tanto que perguntei ao Eustáquio que ruído era aquele. Primeiro respondeu-me que eram as moto serras que ali perto trabalhavam. Depois, perante a minha incredulidade e fazendo-o ouvir os mesmos sons, decididamente me disse que eram as cigarras. 

Podem crer, num cenário inimaginável, com as Madre-Cacau (árvores com mais de 50 metros) e os caféeiros a servirem de tapete, assisti a um dos concertos mais potentes da minha vida, tal era o volume do som.

Até nisto convém estar atentos, para não perdermos estas oportunidades únicas.

Falando de música e de sons, hoje foi dia de ensaio das crianças de Ailok Laran, em preparação da cerimónia de inauguração da escola São Francisco de Assis em Boebau. Também por coincidência, eu mais o Amali fomos comprar duas guitarraspara a nova escola, e que nos servirão desde já para os ensaios. Pois é! Viajar no “motor”duas pessoas e duas guitarras não é nada fácil. Passar rés vés nas ruas desta cidade que tanta movimentação tem, com medo de partir a cabeça ou o braço das novas guitarras meteu-me em cuidados. 

Felizmente chegamos sem incidentes, e prontos para apresentar e cuidar destas lindas meninas...


25.02.2018, domingo  - Um encontro desejado

Há muito tempo que o D. Basílio do Nascimento, bispo de Baucau [ 1950- 2021, foto à esquerda, cortesia da Agência Ecclesia] , e eu, que fomos colegas de trabalho no princípio da década de 80 na equipa pastoral da Comunidade de Gentilly nos arredores de Paris (França) não nos encontrávamos para jantar e conversarcomo hoje fizemos. Depois de muitos emails e telefonemas lá conseguimos dar o abraço do reencontro e pôr a conversa em dia. Recordações, projetos, atualizaçõestudo isto nos ocupou algumas horas. Connosco esteve também o amigo Gaspar que, como sempre, falou muito e muito bem. Não seja ele timorense de primeira linha,com capacidades cerebrais e emocionais incomuns.

Claro que nos encontraremos mais vezes, porque há projetos comuns que a isso nos obrigam e porque, entre amigos, “os amigos são para as ocasiões”. Porque somossolidários, esperamos que a nossa ação se estenda também ao território  (zonas mais carenciadas ) da sua jurisdição pastoral. É com prazer que verificamos, através de conversas cruzadas que nos chegam, que o amigo D. Basílio é neste momento uma das pessoas mais acreditadas e respeitadas em Timor Leste. E é uma honra que, depois de tantos anos em que estivemos “longe da vista”, o Basílio,  como eu lhe chamo, ainda me tenha no grupo dos seus amigos. 

Espero que a nossa amizade se mantenha e fortifique, aproveitando a ocasião da minha permanência em Timor Leste e a possibilidade de mais encontros que aí virão. Obrigado, Basílio!


26.02.2018, segunda feira  - “Nobreza a quanto nos obrigas!...”

Vem isto a propósito da preparação do dia da inauguração da escola. O César Bruno, um dos elementos da comissão instaladora veio de Liquiçá até nós a fim deprepararmos o ato inaugural. Fiquei atónito com tanta minuciosidade. “Há queseguir o protocolo”; “Temos que convidar este e aquele”; “ Qual a hierarquia na utlização da palavra”; “Quem corta a fita”; etc,etc... Ou seja a complexidade em vez da simplicidade. Mas dizem eles que em Timor tem de ser assim, temos de respeitar e cumprir o protocolo. E quem sou para contestar este modo de ser? Bem me custa, mas terei de aceitar.

Vim assim a saber que a sequência da importância vai do mais pequeno ao maior. O mais importante é sempre o último a falar. “ Os primeiros serão os últimos e os últimos os primeiros”. E assim, por mais paradoxal que pareça, o representante da igreja católica falará em último. 

Eu sei a importância, a consideração e a veneração que a Igreja Católica tem em Timor. Mas, para quem teve formação franciscana, não cai nada bem esta atitude. O Tau, que é um símbolo franciscano (S. Francisco subscrevia os seus escritos com o Tau por ser a última letra do alfabeto grego,indicando assim que cada irmão se devia considerar como o mais humilde e o mais pequenino de todos) e é também símbolo da escola, faz-nos lembrar que ser o primeiro ou ser o último é uma questão insignificante para o desenrolar da cerimónia.

Desculpem estas minhas considerações que mais parecem revestidas de falsa humildade. São um desabafo... O importante é que a escola está construída, vai ser inaugurada no dia 19 e estará ao serviço das crianças e da comunidade de Boebau/Manati.


Niki, a criatura amaldiçoada

Pteropus vampyrus , "Niki" (em Timor).
Cortesia de Wikimedia Commons

Cada dia que passa em Ailok Laran, estando sentados na pequena esplanada da casa do Eustáquio, temos como horizonte um grande mangueira (árvore com mais de 5metros de altura). Desde há mais de uma semana que temos vindo a acompanhar a maturação de uma manga situada mesmo lá no cimo, e que agradavelmenta para o nosso paladar, já nos acenava como que a dizer “ daqui a pouco estou pronta para ser comida”. 

Pois é! Hoje a olhar para ela demo-nos conta de que ela já não estva inteira. Uma criatura qualquer já a tinha provado. Foi então que o Eustáquio atalhou convencido: “Foi o Niki!...”

E eu sem saber quem era o Niki, pedi de imediato explicação. Então o Niki é o morcego, que em Timor é uma criatura maldita porque é a única que vira as costas (melhor, o rabo) a Deus, uma vez que dorme de cabeça para baixo.

E vamos lá entender todas estas crendices!... Mas que têm lógica, lá isso têm...

Nota de LG: Vd. Wikipedia > Pteropus vampyrus ou raposa voadora: A pteropus vampyrus ou raposa-voadora é uma espécie de morcego gigante do gênero Pteropus; é considerada o maior espécie de morcego: o  corpo pode ter  mais de 30 centímetros de comprimento;  é duma espécie frugívora, natural do sudeste asiático (incluindo Timor Leste); pesa mais de 2 kg e tem cerca de 2 metros de envergadura.


27.02.2018, terça feira  - “A melhor papaia do mundo...”

Há momentos em que tudo nos sabe bem. Gostar de papaia é coisa comum, até porque anunciam que faz bem a isto e àquilo, ao intestino (dizem por aqui que as sementes nem á para mastigar mas sim para engolir inteiras), ao estômago e não seiquantas coisas mais. É uma fruta muito abundante por aqui, e qual é o quintal que, na sua variedade botânica, não inclui umas quantas papaieiras? Tudo se consome nesta bendita planta: folhas, flores, fruta verde, fruta madura. Mas a mim o que maisme deleita é o seu fruto bem maduro. 

Hoje eu e o Gaspar (claro está os privilegiados dos presentes), num ápice devoramos uma papaia, com certeza bem perto de um quilo. Foi colhida agora mesmo e a sua apresentação enche-nos os olhos e aguça o palato. Tanta gula que até acho ser pecado. Mas pronto, já está nas nossas entranhas e nada mais há a fazer que agradecer a quem nos proporcionou tão agradável momento.

Mãe há só uma...

Logo cedo, o Gaspar recebeu uma chamada do Painô, eletricista da casa Ramos Horta, na Areia Branca, para lhe comunicar que a mãe do seu amigo (estudaram juntos) Ramos Horta tinha falecido, e que o seu corpo estava em velório em ....

O funeral serã no dia 27. Claro que a notícia correu já Timor, se não o mundo. E as conjunturas começam a aparecer: quem irá ao funeral; muitos grandes estrão lá; quem de nós quer ir; etc...etc... 

Eu que já por duas vezes estive com este importante senhor (Prémio Nobel da Paz, Presidente da República, ministro dos Negócios Estrangeiros e muitas coisas mais) manifestei-me de imediato: “ eu não vou “. Sei que mãe há só uma, mas por toda a consideração que eu tenho pelo Ramos Horta e pela mulher que é sua mãe, não me apetece ir para ver... ver navios talvez. Que Deus a tenha no seu descanso e que rogue por nós enquanto por aqui andarmos. R.I.P.


28.02.2018, quarta feira  - Expresso Boebau

Não. Não é autocarro, comboio ou avião. Hoje tivemos de alugar uma carreta para que nos leve alguns materiais necessários ao acabamento da escola. Ontem, eu e o Eustáquio andamos às compras, e hoje vão a caminho do seu destino. A pouco epouco a obra está erguida. Vamos esperar que até ao dia 19 do próximo mês tudo esteja pronto. Com certeza que mais viajens serão necessárias. Mas, qualquer que seja o meio de transporte para nós será sempre “expresso para Boebau”. Está tudo pronto, a carga está acondicionada e o motor já trabalha. É uma questão de arrancar, e boa viajem!...

Ramiro... Ramiro...

Ramiro é um jovem com 19 anos, natural de Ilurhau, uma aldeia na vertente montanhosa do outro lado da ribeira de Laoeli. Nada me levaria a escrever sobre ele se alguns acontecimentos a seu respeito não me despertassem a atenção.

 A saber, Ramiro é irmão do empreiteiro da escola construida em Boebau que trabalhou na obra até que um dia, na fase da cobertura do telhado, deslizou pelas chapas molhadas e veio estatelar-se cá em baixo. Ficou inanimado, sem poder mexer-se durante algumas horas, até que a ambulância vinda de Dili o foi buscar rumo ao hospital Guido Valente. 

Imaginem a nossa apreensão e preocupação quando fomos informados do acidente. A todo o momento esperávamos as informações do Eustáquio, e sempre a pensar no pior. Sei que o Gaspar, a Glória e eu pusemos a nossa confiança nas mãos de Deus e dos seus médicos, mas os momentos de afliçãoprevaleciam. 

Dia após dia, íamos sendo informados do resultado dos exames. E, para nossa tranquilidade, ao fim de uma semana internado, foi dada alta do hospital porque o Ramiro não apresentava qualquer lesão corporal. Graças a Deus! Passou mais alguns dias na casa do Eustáquio, mas a sua vontade era sempre de voltar a trabalhar na obra da escola. Ramiro vai ser pai dentro de dois meses. No entanto,talvez porque ainda é muito jovem, tem a inocência e a simplicidade de uma criança.

Estes dias apareceu por aqui e por cá ficou. Muito serviçal e alegre, mas também muito ingénuo nas suas crenças. Vou relatar algumas, e em particular as que me dizem respeito.

Anteontem à noite, estando ele, o Gaspar e o Eustáquio em conversa, o Eustáquio trouxe à baila o assunto da crença nos antepassados, que é assunto sagrado aqui emTimor. E então disse que eles estão sempre vendo o que faz cada um dos viventes.

Que castigam os que fazem o mal, e que aqueles que roubaram os sacos de cimento e o ferro na obra da escola irão receber o seu castigo. (Conversa psicológica do Eustáquio ou, quem sabe, também crença sua!?). 

Foi então que o Ramiro reagiu,todo atrapalhado, comentando: “Oh! Então qundo eu caí foi castigo...” E o Eustáquio perguntou: “Então tu também roubaste?” "Não!", retorquiu o Ramiro, "mas colaborei"... "Eu vi o roubo, e eles deram-me dinheiro para que não dissesse nada”. 

Em conclusão, ali se soube, informalmente, quem roubou o quê.

Também é crença, sobretudo entre os timorenses da montanha, de que o “malai”, o branco estrangeiro, de noite se transforma em serpente para voltar à sua terra, neste caso a Portugal. O rapaz olhava para mim e estudava a minha reação. Quando eu me ria,  ele desconfiava da conversa, mas quando eu me mantinha sério o Ramiro dizia: “Tenho medo”. Medo tenho eu que algum dia de tecem em mim a serpente e a tentem matar... 

Já durante a outra estadia, na montanha em Boebau, me relataram algo parecido. Como eu me ausentei por alguns minutos, falavam entre eles que tinha ido a ter com a serpente, e que se transformaria na mesma para depois ir até à ribeira, encontrar um tronco e embarcar até Portugal. Boatos e crendices que nos vão ocupando o tempo e divertindo.


01.03.2018, quinta feira  - Presença indonésia

“Não há males que não venham por bem”, ou então, “Deus escreve direito por linhas tortas”. Vem isto a propósito da forte influência indonésia que se faz sentir em Timor Leste. É a comunidade estrangeira mais numerosa, mas a sua presença não é só física. É sobretudo a nível da língua, do bahassa, que é a mais falada a seguir ao tetum. Nem o inglês, nem o português, nem o espanhol (cubano) lhe chegam aos pés. Basta frequentar casas comerciais, mercados, escolas e outros lugares mais comuns para nos darmos conta desta realidade. Tudo o mais poderá ser folclore. 

E, se é certo que os anos de ocupação indonésia deixaram marcas indeléveis pela negativa nas vidas e mentes destas gentes ( morreram mais de 200 mil pessoas num universo de 700 mil), também não podemos ignorar as coisas positivas que fizeram e ainda perduram, a saber: uma considerável rede escolar, vias de acesso razoáveis, particularmente caminhos rurais, que hoje estão deteriorados (veja-se o caminhopara Boebau), estabelecimentos comerciais com abundância, uma língua de comunicação, e outras coisas mais. 

Aqui fala-se bahassa em casa, na rua, no trabalho em todo o lado. A televisão que se vê são programas daos canais indonésios que atétêm boa cobertura.

Claro que a independência de Timor Leste foi a melhor coisa que aconteceu aos timorenses, porque por ela lutaram e tantos deram a vida. Claro que o governo timorense ter decidido adoptar a língua portuguesa como segunda língua oficial é muito prestigioso para Portugal, para os portugueses mas temos que ser realistas.

Neste momento, entender e falar o portugês é um privilégio: embora conste no currículo do ministério da educação timorense, os esforços que se têm feito por parte dos governos e entidades responsáveis pouco se têm feito notar. 

Eu diria mais. Será necessário investir muito mais em prol desta segunda língua oficial, e de preferência do ministério de Educação de Portugal, se quisermos que a nossa língua seja utilizada pelos timorenses: sim, porque a prática de uma língua não se pode resumir à aprendizagem e utilização de umas quamtas palavras ensinadas por professores que têm diiculdades de se expressarem em português corrente. 

É urgente haver mais escolas de referência; é urgente promover e realizar estágios e intercâmbios linguísticos; é urgente que as pessoas compreendam e falem oprotuguês. É a segunda língua oficial!...

O paradoxo é que os timorenses têm uma incrível afeição pelos portugueses ( e não é só por causa do futebol), talvez fruto dos longos anos de presença (entenda-se colonização). E daqui a justificação para empreender ações neste território ou emterritório lusófono que garantam e reforcem o ensino e a aprendizagem do nosso idioma.


02.03.2018, sexta feira  - “Perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos...”

Hoje, à noite, ouvia-se chorar fortemente em casa. Nada mais nada menos que a

Adobe minha afilhada, num pranto de suor e lágrimas, agarrada ao braço da sua irmã Eza, solicitando-lhe perdão. E como a Eza, que é mais velha, se recusava a perdoar-lhe uma pequena ofensa, porque respondeu à irmã de uma forma nãoconveniente e fora da regulação familiar. Literalmente a Adobe mais parecia a Maria Madalena lavando com o seu choro os pés de Cristo. Mas como o tempo tudo resolve, ao fim de uma dezena de minutos a Eza anuiu e concedeu-lhe o perdão.

Acabaram as lamentações e a Adobe já ria e fazia a sua vida normal junto de nós. Relato esta episódio para dar a conhecer o valor do perdão neste povo. Disseram-me que este espírito se incute nas crianças desde muito pequenas. A Adobe já sabia quenão devia responder à irmã e que, o seu choro incessante de devia a que ela pensava que, quando for grande pode-lhe acontecer o mesmo (quase em jeito de castigo) emrelação aos seus filhos. 

Já nas primeiras crónicas contei também um caso de perdão impressionante. Bartolomeo. Um senhor que vive aqui à nossa frente e que nestemomento até é o chefe da aldeia, foi agredido à catanada em diversas partes docorpo, com maior incidência na cabeça e nos braços, facto que e levou a estar emcoma ae a passar alguns meses no hospital. O agressor foi condenado a dois anos de prisão, mas o Bartolomeo, logo que lhe foi possível, foi à cadeia dar-lhe um abraço

de perdão. A justificação que ele nos dá para tal atitude é sempre a mesma: “Se Jesus perdoou a quem o matou e perdoa a todo a a gente porque é que eu não devo também perdoar?” Hoje são grandes amigos e até compadres.

Quem puder entender que entenda...


03.03.2018, sábado - Longe da vista,perto do coração


Hoje de manhã, durante um ato rotineiro - limpeza dos óculos - dou comigo a pensar, a 25 mil quilómetros de distância, no amigo Rui Coutinho, proprietário da Ótica Coutinho na Lourinhã de que sou cliente há muitos anos. 

Bastante antes do regresso a Timor,  passando por lá, e contando as aventuras da primeira estadia, pedi ao Rui que me desse algumas armações já sem venda comercial para serem trazidas e oferecer a estas gentes. Foi-me entregue um saco com umas quantas unidades doproduto solicitado, que religiosamente trouxe comigo. 

Já em Ailok Laran, não se imaginam a alegria desta gente em experimentar estas novas armações, algumas mesmo sem lentes. Todos viam muito bem com ou sem graduação e sem receita médica. O novo visual era confirmado num pequeno espelho que, sem esforçonenhum esforço, refletia a imagem narcisíaca de cada um.

Ora aqui está. Pequenas coisas que fazem a diferença. Mesmo que o ditado “longe da vista, perto do coração” seja verdade, eu direi que mesmo vendo mal, pordeficiência visual ou por distância quilométrica, um pequeno objeto poderá desfazero ditado e levar-nos a dizer “longe da vista, perto do coração”.

 “E Deus providenciará...”

Se há algum problema que nos preocupa neste momento, sobretudo a mim e ao Gaspar, relacionado com a escola é a constituição do corpo docente. E nem a nossa disponibilidade para exercer tal munus pelo menos durante os primeiros tempos nos deixa tranquilos. 

Assim, têm-se multiplicado esforços no sentido de contactar entidades e pessoas que nos possam valer. Sobretudo o Gaspar, que é um grande conhecedor desta sociedade timorense e que é conhecido de todo o mundo (eu sou testemunha do que afirmo), tem tudo tentado na resolução deste problema; cartas,emails, telefonemas, encontros..., alguns de difícil concretização. Por exemplo ocontacto com o Ministério da Educação Timorense que depois de muitas tentativas nunca responderam a nada.

Hoje de tarde, em jeito de amizade, fomos ao aeroporto de Dili esperar dois casais portugueses que vêm passar alguns dias em Timor. Não sabendo nem o número de voo nem a hora de chegada, aproximamo-nos da porta de chegada e aí esperávamos impacientemente que eles aparecessem. Foi então que me dei conta do regozijo do Gaspar ao abraçar uma senhora, duas a três vezes mais forte que ele.

Ambos contentes, perguntando “há quanto tempo a gente não se encontra?!”

Chegou a minha vez, e o Gaspar apresentou-ma à sua amiga, dizem que ainda de família, nada mais nada menos que a senhora Lurdes Bessa, vice ministra da Educação no governo de Timor. Claro que logo a seguir aos cumprimentos o Gaspar pô-la ao corrente do nosso projeto e tentou envolvê-la em ajudar-nos a resolver o problema que nos aflige. Facilitou-nos os contactos e pensamos que Deus a colocou no nosso caminho para nos ajudar. Pelo menos assim desejamos.

“E Deus providenciará”...


04.03.2018, domingo  - Chegada do amigo João Crisóstomo

A meio da tarde soou o meu telemóvel. Era o amigo João Crisóstomo dizendo: “Já estou em Timor. Acabo de chegar!” Fiquei perplexo e perguntei: “ mas então a tua chegada não estava marcada para amanhã?” Respondeu: “vindes a ter comigo que depois conto tudo”. Claro que a sua chegada era por nós esperada com ansiedade, pois o João é um elemento fundamental no projeto de solidariedade que temos em mãos. Ele dinamiza tudo e todos. E nem os anos que já tem lhe retiram essa capacidade de mobilização. 

Homem de causas, com êxitos internacionalmente reconhecidos, concretamente no apoio aos timorenses durante a luta pela independência, encontrou no nosso projeto de construção de uma escola em Boebau um exemplo e um começo da sua visão sobre o problema da educação em Timor Leste: criação de escolas nas zonas de montanha mais carenciadas. 

Por isso nos tem apoiado desde o primeiro momento; por isso integra a comissão de construção; por isso chegou hoje a Timor para, de entre outras coisas importantes que pretende fazer durante a sua estadia, estar presente na inauguração da escola que será no dia 19 de Março. 

O João é um fisicamente um homem pequeno mas com um enorme coração. Para além da nossa amizade e cumplicidade ele merece onosso respeito e gratidão. Por isso estamos aqui, de braços abertos para o receber e conviver, embora que, por troca de horários, não tivéssemos estado no aeroporto à sua chegada.

À noite, eu, o Gaspar e o Eustáquio fomos ter com o João e partilhamos abraços, conversas, programas, e até o jantar. Foram momentos que, só quem está longe do seu país, sabe e pode apreciar. Obrigado, João. E que todas as tuas expetativas tenham o desenvolvimento desejado...

(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos: LG)

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Nota do editor:

Último poste da série > 8 de junho de 2024 > Guiné 61/74 - P25617: II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte I: "E as crianças, meu Deus, porque lhes dais tanta dor?!"

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2024/06/guine-6174-p25617-ii-viagem-timor.html