18.02.2018, domingo - Grande Abeka!...
José Alves Sobral, entre nós o Abeka, é o quarto dos irmãos Sobral. Pouco mais de trinta quilos, num corpo de pele e osso. Mas nem por isso deixa de ser um verdadeiro Sobral, sendo pai de oito filhos vivos e de dez netos.
Como muitos outros tem a sua história de resistência cheia de interesse para ser contada. Em 1997 foi capturada à traição. Como ele fazia de correio (levava recados aos combatentes daresistência), houve algúem cujo nome ele bem lembra, que se infiltrou no seu mundo fingindo “comprar-lhe o serviço” e que de seguida o entregou para ser preso. Foi algemado e com um garruço na cabeça foi levado em carro de polécia indonésia porruas e lugares impossível de identificar. Sabia-se na altura que as autoridades indonésias carregavam pessoas em barcos para depois as fazer desaparecer no mar.
Também o Abeka foi embarcado, sempre de cabeça coberta, e segundo ele sempre a pensar que teria esse destino. Para seu bem, ele mais os outros tres prisioneiros tiveram sorte diferente, pois foram distribuídos por várias prisões.
O Abeka foi levado para Baucau, onde esteve dez meses preso. Conta episódios de arrepiar quanto às condições de vida: alimentação sempre a mesma <supermi”, sem banhos, saída das celas de quatro em quatro dias para fazer as necessidades maiores. Para as menores serviam-se de garrafas.
Sujeitos a interrogatórios sob pancada, conta o Abeka que quem o salvou das dores foi a oração à Senhora do Desterro que ele por sorte apanhou do chão, porque se tinha desprendido da bota de um dos guardas da prisão. Ainda hoje mostra o papelinho, que é guardado religiosamente na sua pequena carteira.
Conta também que sujeito a murros no estômago nada lhe doía,como se o agressor batesse em plástico ou outra matéria amortecedora.
Finalmente foi trazido para mais perto da sua morada em Ailok Laran, até que um dia o deixaram junto à ponte aqui perto. Ele sempre com receio de que fosse para lhe darem um tiro e acabassem com ele, quando verificou com surpresa que eramesmo para regressar a casa, onde ninguém sabia do seu paradeiro já havia mais de dez meses.
Com certeza que ele já contou esta peripécia da sua vida várias vezes. Mas eu notei que os irmãos que o ouviam (Gaspar, Mário e Eustáquio) lhe prestavam toda a atenção, e com ele reviviam, a seu modo, a história das suas vidas.
19.02.2018, segunda feira - Preparando a inauguração da escola
É urgente ir a Boebau para nos certificarmos do estado de construção da escola. Só no local nos daremos conta do que já está e do que faz falta para marcarmos o dia da inauguração. Vamos a ver se hoje conseguimos realizar o nosso desejo. Mas está a ser difícil. Os transportes são o problema principal. Não há disponibilidade de “motores” para fazer a viagem. O Eustáquio tem tudo tentado, através dos amigos, que devem ser para as ocasiões, mas que nem sempre é assim.
Será que as nossas esperanças vão ser também hoje defraudadas? Há dias em que tudo corre bem, mas há outros que nem vale a pena tentar. Já são onze da manhã e ainda nãoconseguimos resolver o problema.
Entretanto aguardamos, com impaciência, melhores notícias. E mais uma vez nos damos conta de que nada somos, ainda que às vezes pensemos que somos os maiores. Como diz o salmo “ se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham osseus construtores”. Estamos nas suas mãos...
Quem espera sempre alcança
E eis que chega o dia e a hora. De repente, aparece o Bartolomeo com a motorizada.
Até os olhos se me arregalaram! Num ápice, preparei o essencial para irmos à montanha. Era mais ou menos meio dia quando as motas arrancaram de Ailok Laran.
Depois de alguns recados aviados em Dili, lá vamos nós, cabelo ao vento, a caminho da “terra prometida”. Pelas 14.30 estávamos em Liquiçá, em casa do Fernando que é irmão do Bô Zé, nosso anfitrião em Boebau. Recebidos com toda a gentileza,podemos saborear os produtos da sua agricultura caseira: anona ata, bananas...tudo produtos de alta qualidade biológica.
Não posso deixar de referir a atitude corajosado senhor Fernando: tem nove filhos aos quais fez sempre questão de proporcionar o ensino escolar. Um já está licenciado e trabalha em Baucau. Diz-nos ele que ainda está com vontade de arranjar outra mulher para ter mais filhos. Grande Homem!
Prontos para recomeçar a aventura, eis o primeiro contratempo: a mota em que eu viajava, precisamente a roda que me suportava, estava vazia. Foi mais uma hora de espera até que o problema se resolvesse. É tudo por Deus! Olha se o furo acontecesse num dos lugares mais críticos do caminho?
Pelas 16.00h lá vamos nós cheios de pica. Eis então que a chuva aparece.
Francamente penseio no pior. Será que conseguiremos chegar ao destino? Mas graças à perícia dos condutores Eustáquio (pai) e Amali ou Zinígio (filho) os obstáculos foram sempre superados, ainda que por vezes tivéssemos de descer das motas para contornar as situações.
Molhados e cansados, chegamos finalmente ao local da escola. Até os olhos se nos arregalaram ao avistar o edifício! Não imaginam a emoção de, pela primeira vez, entrar nesta escola que é fruto de um projeto de solidariedade do qual todos nós fazemos parte.
Esta escola não é minha, nem do Gaspar, nem da Glória, nem do João Crisóstomo. Esta escola é nossa, de todos nós que acreditamos e colaboramos na sua edificação. Esta escola é dos timorenses, das pessoas de Boebau/Manati.
Ficamos impressionados como, em pouco tempo, a obrase ergueu, Demos um grande abraço ao Abílio que é o empreiteiro e ao João Moniz (Eustáquio) que é o nosso braço direito porque ele é tudo (chefe da obra, engenheiro, condutor, contabilista, repórter, etc, etc...) Eles tudo tem feito para que o nosso sonho se concretize.
À noite, em casa do Bô Zé, pusemos as conversas em dia, até que o cansaço e o sono nos permitiram. Amanhã será outro dia.
20.02.2018, terça feira - A montanha dos heróis
Bem cedo se começa o dia. Então eu que pouco ou nada dormi, não sei se pela emoção se por estranhar a cama e o ambiente natural sonoro (insetos, galos, galinhas, cães, porcos e eu sei lá quantos mais seres vivos ).
Quase de imediato fomos para a escola onde já estava a trabalhar o Abílio. Ideias e mais ideias para melhorar algumas coisas, preparação da inauguração, datas, entidades, e claro sem esquecer as crianças, que neste momento estão à nossa volta, e que são a razão de ser deste projeto solidário.
Tivemos ainda a oportunidade de nos deslocarmos na floresta, pelas veredas que nos levam ao túmulo onde estão sepultados os ascendentes (avós) do Gaspar. Como eu ia à frente feito herói, não deixava de ouvir o aviso do Gaspar: “ Rui, cuidado com a Samodo!”, uma cobra verde venenosa (há quem diga que é mortal) frequente e disfarçada na luxuriante vegetação por onde passamos.
Fomos acompanhados por Bô Zé e um guerrilheiro desde 1975, que já no local da campa nos explicava os combates de que ali, a 20 metros de distância, foi protogonista. Sempre de catana na mão, explica que numa noite, das três às seis da manhã, limparam quase todo o batalhão indonésio. Só se safaram uns quarenta.
Diz que ali, e desenhava no chão com o dedo indicador, era como se fosse o jogo do gato e do rato entre os resistentes e as tropas indonésias. Diz também que uma vez, o soldado Mauquinta foi lá cima à procura de alimentos e que, na volta, o comandante do seu grupo suspeitou que ele tivesse ido a levar informações aos indonésios. Quando o avistou disparou contra ele uma rajada de metralhadora da qual o Mauquinta se conseguiu livrar. O comandante pediu ao que estava a seu lado mais balas, que lhe forneceu então mais uma. Também desta Mauquinta se safou. Foi então que Mauquinta avançou para o comandante e com a catana lhe cortou a cabeça.
Este guerrilheiro, que também foi comandante, há semelhança de outros estão como que abandonados. Nada recebem do Estado, em contradição com aqueles que pouco ou nada fizeram pela independência do país. Dignamente afirma:
“Eu resigno-me porque sei que lutei pela independência do meu país”.
Este senhor tem muita coisa para nos contar, e prometeu que quando voltarmos ele e outros antigos guerrilheiros irão ter connosco para que nós saibamos mais pormenores.
Pois é! Estamos no local onde se travaram os grandes combates, muito perto da fronteira com Timor Oeste de domínio indonésio. A vista panorâmica é impressionante, e ouvir em primeira mão, relatos que apontam “ aqui...além...acolá...” deixam-nos sem palavras, com vontade de abraçar estes heróis.
E assim o fizemos e as fotografias documentam.
De volta a Dili...
Feitas as despedidas, estamos de volta a Ailok Laran. O tempo ajudou, não apanhamos chuva pelo caminho, embora as subidas e os caminhos lamacentos nos metessem em cuidados. Paramos em Liquiçá para falar com o César Bruno que tam bém faz parte da comissão de instalação da esola. Na Cruz Vermelha de Liquiçá, local onde ele trabalha, resolvemos alguns problemas em relação à inauguração da escola.
Depois seguimos para Tíbar a fim de dar um abraço aos irmão capuchinhos que aqui têm uma das suas fraternidades em Timor. Recebidos fraternalmente pelos irmão presentes, falamos de pessoas, locais, projetos, e claro está do grande abraço que trouxemos de Portugal, particularmente do Provincial dos Capuchinhos Frei
Fernando, que já tem dez ou onze anos de vida em Timor. Obrigado, manos!...
Chegamos a casa por volta das 18.00h, onde a alegria e a algazarra das crianças se fez logo ouvir: “Boa tardi, Ti Rui!...Confesso que nunca na minha vida tinha ouvidotanto a saudação “Boa tardi!..., pois a crianças que ao longo do caminho fomos encontrando de regresso das suas escolas foram tantas, que é impossível ficar indiferente. E eu a lembrar-me da frase que há tantos anos eu decorei “ Cada criança que nasce é sinal de que Deus ainda não está zangado com a humanidade”.
23.02.2018, sexta feira - O anúncio esperado...
Está tomada a decisão: a escola construída em Boebau será inaugurada o dia 19 de Março, e terá o nome “Escola de São Francisco de Assis - Paz e Bem ”.
O César Bruno ficou responsável por fazer os convites às entidades oficiais. Já assim foi na instalação da primeira pedra. O Laurindo, residente em Boebau e chefe da aldeia vai reunir e ensaiar as crianças. O Rui ensaiará as crianças de Ailok Laran. Vai ser uma grande festa com rituais e anções timorenses, com músicas e canções portuguesas, e quem sabe até algumas danças de Portugal. As crianças, em Ailok Laran, adoram cantar e dançar o malhão e o vira.
Possivelmente ainda hoje eu e o Eustáquio vamos a Dili encontrar um alfaiate que faça “as fardas” para os alunos, que a minha afilhada Adobe desenhou.
Estamos em pulgas, como soe dizer-se, com a preparação deste acontecimento, e queremos que seja marcante para a região e para as nossas vidas. Sabemos que uma inauguração não é o mais importante, mas é o primeiro passo. Depois virá o andarnormal de modo a podermos caminhar de cabeça erguida.
Claro que muitos desafios nos esperam, sobretudo a garantia de funcionamento, mais concretamente de professores que nos permitam continuar. Temos confiança em Deus e nos homensque este problema se irá resolver. Para já, e devido a este ano escolar já estar em andamento, a escola irá funcionar experimentalmente (ano zero se quiserem) com uma sala de mais ou menos trinta alunos, nas valências de Tetum, Português e Música. Diz-nos o Laurindo que, se houver ensino da Música vai haver muitos alunos, porque deve ser a primeira escola onde se ensina música. Muita gente toca e canta em Timor, mas poucos sabem ler e interpretar uma pauta.
Veremos o que podemos fazer. Mas se formos por aqui, talvez sejamos mesmo uma escola de referência.
Data da Inauguração da Escola
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A escola, em 2018: os últimos retoques... |
Está decidido: será no dia 19 de Março. Os convites estão a ser elaborados, as músicas e canções estão a ser ensaiadas, as “fardas” já foram encomendadas. Hoje também tivemos de comprar cadeiras (mais de 50), porque o equipamento escolarangariado em Portugal com destino à nossa escola está retido nos contentores do barco Hoksolok, que infelizmente nunca mais arranca dos estaleiros de Figueira da Foz. Será que ninguém tem solução para este problema? Valha-nos Deus!...
Entretanto, esperamos com alguma ansiedade a chegada do nosso amigo e colega do projeto de solidariedade João Crisóstomo e do seu amigo Ralph Niemeyer, que participarão na inauguração da escola e noutros atos de referência da sociedade timorense. A data da inauguração foi decidida tendo em conta as suas presenças em território timorense.
No próximo dia 7 de Março eu e o Gaspar iremos ser recebidos na Embaixada de Portugal, onde esperamos dar a conhecer o nosso projeto e angariar alguns apoios, particularmente no destacamento de professores. Sabemos que vai ser muito difícilencontrar professores disponíveis para lecionar em Boebau, devido às dificuldades de transporte e outras. Mas a Deus nada é impossível. E acreditamos que apareçaalguém que pode e quer entregar-se a esta nobre missão de servir os maisnecessitados. Que Deus nos ajude!...
Ida ao Hospital Guido Valadares
Já não foi a primeira vez que aqui me desloquei, não para tratar da minha saúde mas da saúde dos outros. Hoje vim com o Eustáquio que, devido à falta de prevenção, aocortar uma barra de zinco com a reverbadora, ficou com duas ou três limalhas noolho direito. Foi observado e tratado. Felizmente está tudo bem.
Desta vez, à luz do dia, dei-me conta do que da outra vez durante a noite não me apercebi. Guido Valadares é o hospital público de Dili, onde tudo e todos vêm parar.
Enquanto esperava pelo Eustáquio, chegou um pequeno grupo de quatro pessoas, creio que uma senhora doente acompanhada de família e uma senhora, médica comcerteza, que falava espanhol (cubano) e que tentava que alguém traduzisse o quedizia à doente. “No pudes comer fritos!...) Felizmente passou uma enfermeira que lhe fez a tradução. Não intervi porque, embora perceba e me expresse com facilidade em espanhol (estudei em Espanha), o meu tétum ainda não me permitefazer-me entender.
Mas este episódio fez-me pensar no que já me disseram: “Se não fizermos nada pela promoção da língua portuguesa, o espanhol vai passar-lhe à frente, porque há pessoas que, por necessidade de entenderem os médicoscubanos, desejam aprender o espanhol”.
Mais uma vez me dei conta da importância que o sorriso tem para esta gente. É compensador passares por uma multidão de pessoas e que, sem te conhecerem, esboçam sorrisos. Fazem-nos sentir bem...
24.022018, sábado - O concerto das cigarras...
Segundo consta, as cigarras levam a vida a cantar, que tem sido mais ou menos o meu lema, enquanto a formiga se mata a trabalhar. É assim em todo o mundo. Mashoje, ao ouvir cantar as cigarras do local, lembrei-me da viagem de regresso deBoebau, do percurso que por necessidade tive de fazer a pé. O barulho era ensurdecedor. Tanto que perguntei ao Eustáquio que ruído era aquele. Primeiro respondeu-me que eram as moto serras que ali perto trabalhavam. Depois, perante a minha incredulidade e fazendo-o ouvir os mesmos sons, decididamente me disse que eram as cigarras.
Podem crer, num cenário inimaginável, com as Madre-Cacau (árvores com mais de 50 metros) e os caféeiros a servirem de tapete, assisti a um dos concertos mais potentes da minha vida, tal era o volume do som.
Até nisto convém estar atentos, para não perdermos estas oportunidades únicas.
Falando de música e de sons, hoje foi dia de ensaio das crianças de Ailok Laran, em preparação da cerimónia de inauguração da escola São Francisco de Assis em Boebau. Também por coincidência, eu mais o Amali fomos comprar duas guitarraspara a nova escola, e que nos servirão desde já para os ensaios. Pois é! Viajar no “motor”duas pessoas e duas guitarras não é nada fácil. Passar rés vés nas ruas desta cidade que tanta movimentação tem, com medo de partir a cabeça ou o braço das novas guitarras meteu-me em cuidados.
Felizmente chegamos sem incidentes, e prontos para apresentar e cuidar destas lindas meninas...
25.02.2018, domingo - Um encontro desejado
Há muito tempo que o D. Basílio do Nascimento, bispo de Baucau [ 1950- 2021, foto à esquerda, cortesia da Agência Ecclesia] , e eu, que fomos colegas de trabalho no princípio da década de 80 na equipa pastoral da Comunidade de Gentilly nos arredores de Paris (França) não nos encontrávamos para jantar e conversarcomo hoje fizemos. Depois de muitos emails e telefonemas lá conseguimos dar o abraço do reencontro e pôr a conversa em dia. Recordações, projetos, atualizaçõestudo isto nos ocupou algumas horas. Connosco esteve também o amigo Gaspar que, como sempre, falou muito e muito bem. Não seja ele timorense de primeira linha,com capacidades cerebrais e emocionais incomuns.Claro que nos encontraremos mais vezes, porque há projetos comuns que a isso nos obrigam e porque, entre amigos, “os amigos são para as ocasiões”. Porque somossolidários, esperamos que a nossa ação se estenda também ao território (zonas mais carenciadas ) da sua jurisdição pastoral. É com prazer que verificamos, através de conversas cruzadas que nos chegam, que o amigo D. Basílio é neste momento uma das pessoas mais acreditadas e respeitadas em Timor Leste. E é uma honra que, depois de tantos anos em que estivemos “longe da vista”, o Basílio, como eu lhe chamo, ainda me tenha no grupo dos seus amigos.
Espero que a nossa amizade se mantenha e fortifique, aproveitando a ocasião da minha permanência em Timor Leste e a possibilidade de mais encontros que aí virão. Obrigado, Basílio!
26.02.2018, segunda feira - “Nobreza a quanto nos obrigas!...”
Vem isto a propósito da preparação do dia da inauguração da escola. O César Bruno, um dos elementos da comissão instaladora veio de Liquiçá até nós a fim deprepararmos o ato inaugural. Fiquei atónito com tanta minuciosidade. “Há queseguir o protocolo”; “Temos que convidar este e aquele”; “ Qual a hierarquia na utlização da palavra”; “Quem corta a fita”; etc,etc... Ou seja a complexidade em vez da simplicidade. Mas dizem eles que em Timor tem de ser assim, temos de respeitar e cumprir o protocolo. E quem sou para contestar este modo de ser? Bem me custa, mas terei de aceitar.
Vim assim a saber que a sequência da importância vai do mais pequeno ao maior. O mais importante é sempre o último a falar. “ Os primeiros serão os últimos e os últimos os primeiros”. E assim, por mais paradoxal que pareça, o representante da igreja católica falará em último.
Eu sei a importância, a consideração e a veneração que a Igreja Católica tem em Timor. Mas, para quem teve formação franciscana, não cai nada bem esta atitude. O Tau, que é um símbolo franciscano (S. Francisco subscrevia os seus escritos com o Tau por ser a última letra do alfabeto grego,indicando assim que cada irmão se devia considerar como o mais humilde e o mais pequenino de todos) e é também símbolo da escola, faz-nos lembrar que ser o primeiro ou ser o último é uma questão insignificante para o desenrolar da cerimónia.
Desculpem estas minhas considerações que mais parecem revestidas de falsa humildade. São um desabafo... O importante é que a escola está construída, vai ser inaugurada no dia 19 e estará ao serviço das crianças e da comunidade de Boebau/Manati.
Niki, a criatura amaldiçoada
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Pteropus vampyrus , "Niki" (em Timor). Cortesia de Wikimedia Commons |
Cada dia que passa em Ailok Laran, estando sentados na pequena esplanada da casa do Eustáquio, temos como horizonte um grande mangueira (árvore com mais de 5metros de altura). Desde há mais de uma semana que temos vindo a acompanhar a maturação de uma manga situada mesmo lá no cimo, e que agradavelmenta para o nosso paladar, já nos acenava como que a dizer “ daqui a pouco estou pronta para ser comida”.
Pois é! Hoje a olhar para ela demo-nos conta de que ela já não estva inteira. Uma criatura qualquer já a tinha provado. Foi então que o Eustáquio atalhou convencido: “Foi o Niki!...”
E eu sem saber quem era o Niki, pedi de imediato explicação. Então o Niki é o morcego, que em Timor é uma criatura maldita porque é a única que vira as costas (melhor, o rabo) a Deus, uma vez que dorme de cabeça para baixo.
E vamos lá entender todas estas crendices!... Mas que têm lógica, lá isso têm...
Nota de LG: Vd. Wikipedia > Pteropus vampyrus ou raposa voadora: A pteropus vampyrus ou raposa-voadora é uma espécie de morcego gigante do gênero Pteropus; é considerada o maior espécie de morcego: o corpo pode ter mais de 30 centímetros de comprimento; é duma espécie frugívora, natural do sudeste asiático (incluindo Timor Leste); pesa mais de 2 kg e tem cerca de 2 metros de envergadura.27.02.2018, terça feira - “A melhor papaia do mundo...”
Há momentos em que tudo nos sabe bem. Gostar de papaia é coisa comum, até porque anunciam que faz bem a isto e àquilo, ao intestino (dizem por aqui que as sementes nem á para mastigar mas sim para engolir inteiras), ao estômago e não seiquantas coisas mais. É uma fruta muito abundante por aqui, e qual é o quintal que, na sua variedade botânica, não inclui umas quantas papaieiras? Tudo se consome nesta bendita planta: folhas, flores, fruta verde, fruta madura. Mas a mim o que maisme deleita é o seu fruto bem maduro.
Hoje eu e o Gaspar (claro está os privilegiados dos presentes), num ápice devoramos uma papaia, com certeza bem perto de um quilo. Foi colhida agora mesmo e a sua apresentação enche-nos os olhos e aguça o palato. Tanta gula que até acho ser pecado. Mas pronto, já está nas nossas entranhas e nada mais há a fazer que agradecer a quem nos proporcionou tão agradável momento.
Mãe há só uma...
Logo cedo, o Gaspar recebeu uma chamada do Painô, eletricista da casa Ramos Horta, na Areia Branca, para lhe comunicar que a mãe do seu amigo (estudaram juntos) Ramos Horta tinha falecido, e que o seu corpo estava em velório em ....
O funeral serã no dia 27. Claro que a notícia correu já Timor, se não o mundo. E as conjunturas começam a aparecer: quem irá ao funeral; muitos grandes estrão lá; quem de nós quer ir; etc...etc...
Eu que já por duas vezes estive com este importante senhor (Prémio Nobel da Paz, Presidente da República, ministro dos Negócios Estrangeiros e muitas coisas mais) manifestei-me de imediato: “ eu não vou “. Sei que mãe há só uma, mas por toda a consideração que eu tenho pelo Ramos Horta e pela mulher que é sua mãe, não me apetece ir para ver... ver navios talvez. Que Deus a tenha no seu descanso e que rogue por nós enquanto por aqui andarmos. R.I.P.
28.02.2018, quarta feira - Expresso Boebau
Não. Não é autocarro, comboio ou avião. Hoje tivemos de alugar uma carreta para que nos leve alguns materiais necessários ao acabamento da escola. Ontem, eu e o Eustáquio andamos às compras, e hoje vão a caminho do seu destino. A pouco epouco a obra está erguida. Vamos esperar que até ao dia 19 do próximo mês tudo esteja pronto. Com certeza que mais viajens serão necessárias. Mas, qualquer que seja o meio de transporte para nós será sempre “expresso para Boebau”. Está tudo pronto, a carga está acondicionada e o motor já trabalha. É uma questão de arrancar, e boa viajem!...
Ramiro... Ramiro...
Ramiro é um jovem com 19 anos, natural de Ilurhau, uma aldeia na vertente montanhosa do outro lado da ribeira de Laoeli. Nada me levaria a escrever sobre ele se alguns acontecimentos a seu respeito não me despertassem a atenção.
A saber, Ramiro é irmão do empreiteiro da escola construida em Boebau que trabalhou na obra até que um dia, na fase da cobertura do telhado, deslizou pelas chapas molhadas e veio estatelar-se cá em baixo. Ficou inanimado, sem poder mexer-se durante algumas horas, até que a ambulância vinda de Dili o foi buscar rumo ao hospital Guido Valente.
Imaginem a nossa apreensão e preocupação quando fomos informados do acidente. A todo o momento esperávamos as informações do Eustáquio, e sempre a pensar no pior. Sei que o Gaspar, a Glória e eu pusemos a nossa confiança nas mãos de Deus e dos seus médicos, mas os momentos de afliçãoprevaleciam.
Dia após dia, íamos sendo informados do resultado dos exames. E, para nossa tranquilidade, ao fim de uma semana internado, foi dada alta do hospital porque o Ramiro não apresentava qualquer lesão corporal. Graças a Deus! Passou mais alguns dias na casa do Eustáquio, mas a sua vontade era sempre de voltar a trabalhar na obra da escola. Ramiro vai ser pai dentro de dois meses. No entanto,talvez porque ainda é muito jovem, tem a inocência e a simplicidade de uma criança.
Estes dias apareceu por aqui e por cá ficou. Muito serviçal e alegre, mas também muito ingénuo nas suas crenças. Vou relatar algumas, e em particular as que me dizem respeito.
Anteontem à noite, estando ele, o Gaspar e o Eustáquio em conversa, o Eustáquio trouxe à baila o assunto da crença nos antepassados, que é assunto sagrado aqui emTimor. E então disse que eles estão sempre vendo o que faz cada um dos viventes.
Que castigam os que fazem o mal, e que aqueles que roubaram os sacos de cimento e o ferro na obra da escola irão receber o seu castigo. (Conversa psicológica do Eustáquio ou, quem sabe, também crença sua!?).
Foi então que o Ramiro reagiu,todo atrapalhado, comentando: “Oh! Então qundo eu caí foi castigo...” E o Eustáquio perguntou: “Então tu também roubaste?” "Não!", retorquiu o Ramiro, "mas colaborei"... "Eu vi o roubo, e eles deram-me dinheiro para que não dissesse nada”.
Em conclusão, ali se soube, informalmente, quem roubou o quê.
Também é crença, sobretudo entre os timorenses da montanha, de que o “malai”, o branco estrangeiro, de noite se transforma em serpente para voltar à sua terra, neste caso a Portugal. O rapaz olhava para mim e estudava a minha reação. Quando eu me ria, ele desconfiava da conversa, mas quando eu me mantinha sério o Ramiro dizia: “Tenho medo”. Medo tenho eu que algum dia de tecem em mim a serpente e a tentem matar...
Já durante a outra estadia, na montanha em Boebau, me relataram algo parecido. Como eu me ausentei por alguns minutos, falavam entre eles que tinha ido a ter com a serpente, e que se transformaria na mesma para depois ir até à ribeira, encontrar um tronco e embarcar até Portugal. Boatos e crendices que nos vão ocupando o tempo e divertindo.
01.03.2018, quinta feira - Presença indonésia
“Não há males que não venham por bem”, ou então, “Deus escreve direito por linhas tortas”. Vem isto a propósito da forte influência indonésia que se faz sentir em Timor Leste. É a comunidade estrangeira mais numerosa, mas a sua presença não é só física. É sobretudo a nível da língua, do bahassa, que é a mais falada a seguir ao tetum. Nem o inglês, nem o português, nem o espanhol (cubano) lhe chegam aos pés. Basta frequentar casas comerciais, mercados, escolas e outros lugares mais comuns para nos darmos conta desta realidade. Tudo o mais poderá ser folclore.
E, se é certo que os anos de ocupação indonésia deixaram marcas indeléveis pela negativa nas vidas e mentes destas gentes ( morreram mais de 200 mil pessoas num universo de 700 mil), também não podemos ignorar as coisas positivas que fizeram e ainda perduram, a saber: uma considerável rede escolar, vias de acesso razoáveis, particularmente caminhos rurais, que hoje estão deteriorados (veja-se o caminhopara Boebau), estabelecimentos comerciais com abundância, uma língua de comunicação, e outras coisas mais.
Aqui fala-se bahassa em casa, na rua, no trabalho em todo o lado. A televisão que se vê são programas daos canais indonésios que atétêm boa cobertura.
Claro que a independência de Timor Leste foi a melhor coisa que aconteceu aos timorenses, porque por ela lutaram e tantos deram a vida. Claro que o governo timorense ter decidido adoptar a língua portuguesa como segunda língua oficial é muito prestigioso para Portugal, para os portugueses mas temos que ser realistas.
Neste momento, entender e falar o portugês é um privilégio: embora conste no currículo do ministério da educação timorense, os esforços que se têm feito por parte dos governos e entidades responsáveis pouco se têm feito notar.
Eu diria mais. Será necessário investir muito mais em prol desta segunda língua oficial, e de preferência do ministério de Educação de Portugal, se quisermos que a nossa língua seja utilizada pelos timorenses: sim, porque a prática de uma língua não se pode resumir à aprendizagem e utilização de umas quamtas palavras ensinadas por professores que têm diiculdades de se expressarem em português corrente.
É urgente haver mais escolas de referência; é urgente promover e realizar estágios e intercâmbios linguísticos; é urgente que as pessoas compreendam e falem oprotuguês. É a segunda língua oficial!...
O paradoxo é que os timorenses têm uma incrível afeição pelos portugueses ( e não é só por causa do futebol), talvez fruto dos longos anos de presença (entenda-se colonização). E daqui a justificação para empreender ações neste território ou emterritório lusófono que garantam e reforcem o ensino e a aprendizagem do nosso idioma.
02.03.2018, sexta feira - “Perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos...”
Hoje, à noite, ouvia-se chorar fortemente em casa. Nada mais nada menos que a
Adobe minha afilhada, num pranto de suor e lágrimas, agarrada ao braço da sua irmã Eza, solicitando-lhe perdão. E como a Eza, que é mais velha, se recusava a perdoar-lhe uma pequena ofensa, porque respondeu à irmã de uma forma nãoconveniente e fora da regulação familiar. Literalmente a Adobe mais parecia a Maria Madalena lavando com o seu choro os pés de Cristo. Mas como o tempo tudo resolve, ao fim de uma dezena de minutos a Eza anuiu e concedeu-lhe o perdão.
Acabaram as lamentações e a Adobe já ria e fazia a sua vida normal junto de nós. Relato esta episódio para dar a conhecer o valor do perdão neste povo. Disseram-me que este espírito se incute nas crianças desde muito pequenas. A Adobe já sabia quenão devia responder à irmã e que, o seu choro incessante de devia a que ela pensava que, quando for grande pode-lhe acontecer o mesmo (quase em jeito de castigo) emrelação aos seus filhos.
Já nas primeiras crónicas contei também um caso de perdão impressionante. Bartolomeo. Um senhor que vive aqui à nossa frente e que nestemomento até é o chefe da aldeia, foi agredido à catanada em diversas partes docorpo, com maior incidência na cabeça e nos braços, facto que e levou a estar emcoma ae a passar alguns meses no hospital. O agressor foi condenado a dois anos de prisão, mas o Bartolomeo, logo que lhe foi possível, foi à cadeia dar-lhe um abraço
de perdão. A justificação que ele nos dá para tal atitude é sempre a mesma: “Se Jesus perdoou a quem o matou e perdoa a todo a a gente porque é que eu não devo também perdoar?” Hoje são grandes amigos e até compadres.
Quem puder entender que entenda...
03.03.2018, sábado - Longe da vista,perto do coração
Hoje de manhã, durante um ato rotineiro - limpeza dos óculos - dou comigo a pensar, a 25 mil quilómetros de distância, no amigo Rui Coutinho, proprietário da Ótica Coutinho na Lourinhã de que sou cliente há muitos anos.
Bastante antes do regresso a Timor, passando por lá, e contando as aventuras da primeira estadia, pedi ao Rui que me desse algumas armações já sem venda comercial para serem trazidas e oferecer a estas gentes. Foi-me entregue um saco com umas quantas unidades doproduto solicitado, que religiosamente trouxe comigo.
Já em Ailok Laran, não se imaginam a alegria desta gente em experimentar estas novas armações, algumas mesmo sem lentes. Todos viam muito bem com ou sem graduação e sem receita médica. O novo visual era confirmado num pequeno espelho que, sem esforçonenhum esforço, refletia a imagem narcisíaca de cada um.
Ora aqui está. Pequenas coisas que fazem a diferença. Mesmo que o ditado “longe da vista, perto do coração” seja verdade, eu direi que mesmo vendo mal, pordeficiência visual ou por distância quilométrica, um pequeno objeto poderá desfazero ditado e levar-nos a dizer “longe da vista, perto do coração”.
“E Deus providenciará...”
Se há algum problema que nos preocupa neste momento, sobretudo a mim e ao Gaspar, relacionado com a escola é a constituição do corpo docente. E nem a nossa disponibilidade para exercer tal munus pelo menos durante os primeiros tempos nos deixa tranquilos.
Assim, têm-se multiplicado esforços no sentido de contactar entidades e pessoas que nos possam valer. Sobretudo o Gaspar, que é um grande conhecedor desta sociedade timorense e que é conhecido de todo o mundo (eu sou testemunha do que afirmo), tem tudo tentado na resolução deste problema; cartas,emails, telefonemas, encontros..., alguns de difícil concretização. Por exemplo ocontacto com o Ministério da Educação Timorense que depois de muitas tentativas nunca responderam a nada.
Hoje de tarde, em jeito de amizade, fomos ao aeroporto de Dili esperar dois casais portugueses que vêm passar alguns dias em Timor. Não sabendo nem o número de voo nem a hora de chegada, aproximamo-nos da porta de chegada e aí esperávamos impacientemente que eles aparecessem. Foi então que me dei conta do regozijo do Gaspar ao abraçar uma senhora, duas a três vezes mais forte que ele.
Ambos contentes, perguntando “há quanto tempo a gente não se encontra?!”
Chegou a minha vez, e o Gaspar apresentou-ma à sua amiga, dizem que ainda de família, nada mais nada menos que a senhora Lurdes Bessa, vice ministra da Educação no governo de Timor. Claro que logo a seguir aos cumprimentos o Gaspar pô-la ao corrente do nosso projeto e tentou envolvê-la em ajudar-nos a resolver o problema que nos aflige. Facilitou-nos os contactos e pensamos que Deus a colocou no nosso caminho para nos ajudar. Pelo menos assim desejamos.
“E Deus providenciará”...
04.03.2018, domingo - Chegada do amigo João Crisóstomo
A meio da tarde soou o meu telemóvel. Era o amigo João Crisóstomo dizendo: “Já estou em Timor. Acabo de chegar!” Fiquei perplexo e perguntei: “ mas então a tua chegada não estava marcada para amanhã?” Respondeu: “vindes a ter comigo que depois conto tudo”. Claro que a sua chegada era por nós esperada com ansiedade, pois o João é um elemento fundamental no projeto de solidariedade que temos em mãos. Ele dinamiza tudo e todos. E nem os anos que já tem lhe retiram essa capacidade de mobilização.
Homem de causas, com êxitos internacionalmente reconhecidos, concretamente no apoio aos timorenses durante a luta pela independência, encontrou no nosso projeto de construção de uma escola em Boebau um exemplo e um começo da sua visão sobre o problema da educação em Timor Leste: criação de escolas nas zonas de montanha mais carenciadas.
Por isso nos tem apoiado desde o primeiro momento; por isso integra a comissão de construção; por isso chegou hoje a Timor para, de entre outras coisas importantes que pretende fazer durante a sua estadia, estar presente na inauguração da escola que será no dia 19 de Março.
O João é um fisicamente um homem pequeno mas com um enorme coração. Para além da nossa amizade e cumplicidade ele merece onosso respeito e gratidão. Por isso estamos aqui, de braços abertos para o receber e conviver, embora que, por troca de horários, não tivéssemos estado no aeroporto à sua chegada.
À noite, eu, o Gaspar e o Eustáquio fomos ter com o João e partilhamos abraços, conversas, programas, e até o jantar. Foram momentos que, só quem está longe do seu país, sabe e pode apreciar. Obrigado, João. E que todas as tuas expetativas tenham o desenvolvimento desejado...
(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos: LG)
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Nota do editor:
Último poste da série > 8 de junho de 2024 > Guiné 61/74 - P25617: II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte I: "E as crianças, meu Deus, porque lhes dais tanta dor?!"
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