sábado, 13 de agosto de 2011

Guiné 63/74 - P8666: O Regresso dos Heróis (Domingos Gonçalves) (3): O último susto


O Regresso dos Heróis*

Por

Domingos Gonçalves
(Ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887)


DEDICATÓRIA
A todos os colegas da CCAÇ 1546 do BCaç 1887



III - O ÚLTIMO SUSTO

Dia 13
Pelas doze horas o Alfange atracou em Binta. De imediato, desembarcou a Companhia de “Periquitos” e as respectivas bagagens. Depois, a minha Companhia embarcou. Pouco depois das duas horas, acenando um adeus às terras de Binta, subíamos o Cacheu até Farim. Nunca percebi muito bem esta programação da viagem. Com efeito, a lógica que na tropa não tem lugar, apontaria para que embarcássemos apenas quando o barco descesse o rio. Mas, como gostam muito de nós e estão satisfeitos com o nosso trabalho e com a guerra que fizemos ao longo de todos estes meses, os que mandam em nós quiseram que fizéssemos turismo, durante mais umas horas, viajando por este rio maravilhoso, em condições de excepcional conforto.

 LDG Alfange - Foto de autor desconhecido. Com a devida vénia

Em Farim entraram no Barco a Companhia N.º 1548 e a Companhia de Comando e Serviços e, já de noite, iniciou-se a viagem para Bissau, com uma ligeira paragem de novo em Binta, donde se partiu quando a noite já ia bastante alta.

A partir de Binta, a barcaça que nos transportava seguiu viagem, escoltada por um barco de Guerra, que navegava à nossa frente escassas dezenas de metros.

Pouco passava das 21 horas. Rio abaixo tudo parecia normal. Na penumbra da noite apenas se escutava o ligeiro ruído provocado pelo deslizar sereno do barco sobre as águas do Cacheu, e o barulho surdo dos motores da embarcação que nos transportava.

A escuridão da noite, o céu sem estrelas e um horizonte que morria ali muito perto, na penumbra das margens, emprestavam à viagem um ambiente sinistro feito de mistério e receio. Fora da barcaça, que navegava com as luzes apagadas, apenas se vislumbrava a sombra da floresta que, nas margens, se casa com o rio, e um pouco à frente, embora pouco perceptível, a sombra do barco que nos escoltava. Aquele era um ambiente de mistério, sinistro e tristonho, a que, aliás, durante outras viagens pelo rio já nos tínhamos habituado.

Não muito longe de Binta, a escassas centenas de metros, numa curva do rio, começámos a ser alvejados por tiros de bazooka, ou de canhão sem recuo. E um calafrio enorme apossou-se de mim, e também, por certo, de todos os que viajavam a meu lado. Eram eles, os turras, que nos estavam a atacar ali, no meio do rio, quando pensávamos que a guerra para nós já não existia, e já nem tínhamos uma reles G3 para varrer com algumas rajadas as margens do rio. Era efectivamente a guerra que continuava a perseguir-nos!

E o barco de guerra que seguia à nossa frente, e nos escoltava, foi atingido lateralmente por algumas granadas, que lhe causaram bastantes estragos, tendo a tripulação sofrido um morto e alguns feridos. Viveram-se momentos de pavor, mas não houve pânico.**

Guiné > Bissau > A LFG Lira, já atracada em Bissau, ao lado da Orion, sendo bem visíveis, na ponte, os estragos provocados pelo rebentamento da granada de RPG, em chapa balística de 0.25.

Guiné > Bissau > A LGF Lira > Os danos no convés, no rufo da casa das máquinas e nos botes de borracha dos FZ .
Fotos: © Manuel Lema Santos (2007). Direitos reservados.

Entretanto, um grupo de fuzileiros que seguia na nossa barcaça, em missão de segurança, abriu fogo sobre as margens do rio, para a zona donde teria partido o ataque. Ao mesmo tempo, o barco de guerra que nos escoltava seguia, a grande velocidade, para Bissau. E a barcaça que nos transportava recebeu ordens para regressar a Binta, onde chegou pelas vinte e duas horas.

E todos nós, cerca de 500 homens, passámos a noite em frente a Binta, a bordo da embarcação.

Foi uma noite difícil de passar. A barcaça não tinha espaço para transportar, com o mínimo de condições, uma centena de pessoas, e estávamos lá dento três Companhias com as respectivas bagagens.
Os soldados quase não tinham espaço para se mexer.

Mais uma vez, tivemos muita sorte. Se os gajos em vez de acertar no barco de guerra que nos dava escolta, tivessem disparado e acertado no nosso, com tanta gente dentro, poderia ter acontecido mais um grande desastre. Bastaria apenas a confusão gerada por uma granada que acertasse em cheio no barco, aliada à escuridão da noite, para que houvesse uma tragédia de consequências imprevisíveis.

Apesar de tudo, o azar quase que não o foi. Os nossos homens, para além do incómodo do atraso da viagem e da noite passada no meio do rio, sem um agasalho que os protegesse da humidade, nada mais sofreram.

Mas não deixou de ser para todos nós mais um grande susto com o qual já ninguém estava a contar. E ali tão perto de Binta não havia memória de que os barcos de guerra tivessem sido alguma vez atacados.

(Continua)
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Notas de CV:

(*) O Regresso dos Heróis é um livro do nosso camarada Domingos Gonçalves (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68), edição de autor.

(**) Vd. poste de 16 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1665: Operação Larga Agora, Tancroal, Cacheu, local maldito para a Marinha (Parte I) (Lema Santos)

Em 13 de Janeiro de 1968, a LFG Lira que escoltava a LDG Alfange, depois de ter transportado 3 companhias de FT de S. Vicente para Binta, foi violentamente atacada no Tancroal com RPG, sendo atindida na ponte e no rufo (cobertura) da casa das máquinas. O resultado, além dos estragos materiais, foi dramático: 1 morto e 8 feridos, alguns deles em estado grave, sendo 2 evacuados de helicóptero e 3 de Dornier.

Vd. último poste da série de 10 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8657: O Regresso dos Heróis (Domingos Gonçalves) (2): Guiné, 1968

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Guiné 63/74 - P8665: (Ex)citações (148): Licenciamento e desmobilização dos Comandos Africanos (Joaquim Sabido)

1. Mensagem de Joaquim Sabido (ex-Alf Mil Art, 3.ª Cart/Bart 6520/73 e CCaç 4641/73, Jemberém, Mansoa e Bissau, 1974), com data de 11 de Agosto de 2010:

Caríssimo Camarigo Carlos Vinhal;
Em anexo envio um relato de duas situações vividas já no pós 25 de Abril.
Se o meu Camarigo vir que este escrito pode conter algum interesse para conhecimento e informação aos demais Camarigos, podes "postá-lo".

Porque não juntei fotografia com a farda militar quando me apresentei à Tabanca, e porque, posteriormente, por ti tal me foi solicitado, seguem duas fotografias do tempo da vida militar, uma tirada cá e outra na Guiné, que foi batida após o regresso de uma patrulha, talvez em Jemberém, ou em qualquer outro local, sinceramente não me recordo.

Com um Abraço Camarigo, do
Joaquim Sabido
Évora


Licenciamento/desmobilização dos Comandos Africanos

Meus Caros Camaradas e Amigos;
Recebemos, há dias, remetido pelo nosso sensato e ponderado Camarigo Carlos Vinhal, um e-mail com a entrevista que o Senhor Coronel Fabião deu, há alguns anos atrás, à Senhora jornalista Maria João Avilez.

Confesso que nunca tinha lido esta entrevista, mas nela verifico a existência de, pelo menos, algumas omissões, designadamente, quanto à questão do licenciamento da Tropa Africana e do consequente assassínio de alguns desses militares que foram nossos Camaradas de armas. Assim, por ter tido conhecimento directo dessa fase, em virtude de me encontrar de serviço dia sim, dia não, tendo como incumbência a guarda ao Palácio, vi, ouvi e vivi algumas coisas. Para conhecimento e eventuais reflexões dos meus Camarigos, nomeadamente, para a “velhice” que já regressara com a missão cumprida, relato sucintamente o seguinte:

1 – Relativamente ao licenciamento/desmobilização dos Comandos Africanos, que então foi levada a efeito, omitiu o então Sr. Governador:

Quando da primeira vez que o Senhor Governador se deslocou ao quartel dos Comandos Africanos das NT, com a proposta para que eles voluntariamente e sem qualquer contrapartida, entregassem as armas e as munições que tinham em seu poder – era essa a questão fundamental para o alegado licenciamento – tal foi peremptoriamente negado pelos elementos dos Comandos Africanos. Como o Senhor Governador insistia na necessidade da entrega das armas, nesse dia, teve que de lá “fugir” – é esta a palavra correcta – entrando no carro à pressa, sob vaias, tendo, inclusivamente, apanhado alguns “calduços” e umas quantas “palmadas”, tendo outros sido distribuídos, democraticamente, pelo seu ajudante de campo o então Senhor Capitão da Força Aérea, Faria Paulino.

Então, regressaram ao Palácio em marcha acelerada, tendo eu, de imediato, sido chamado ao gabinete do Senhor Ajudante de Campo, de quem recebi instruções no sentido de reforçar a guarda para essa noite, já que o Senhor Governador esperava um eventual ataque ao Palácio. Mais me tendo sido ordenado que, batesse e arrasasse, com o armamento que havia disponível no Palácio, o Bairro do Pilão, porque era de lá que o esperado ataque partiria.

Na verdade, aqui fiquei com muitas e sérias dúvidas quanto à disponibilidade que, quer eu, quer o restante pessoal que integrava a guarda ao Palácio - que era composto por dois pelotões da CCaç 4641 -, teríamos para começar a fazer fogo sobre um Bairro onde residia inúmera população civil: crianças, mulheres e homens. Mas a ordem era mesmo essa e todos nós ficámos inquietos (por outro lado, pensávamos: - Não nos “lixámos” na mata, “lixamo-nos” em Bissau?) é a verdade. Conversei então com o nosso Capitão Miliciano Amâncio Fernandes, Comandante da 4641, que estivera em Mansoa, tendo-me ele aconselhado calma e ponderação e que aguardássemos pelo evoluir da situação durante o decurso da noite.

Chegou o novo dia e, felizmente, nada de grave aconteceu, para além dos habituais “tirinhos” que sempre se faziam ouvir naquele emblemático Bairro de Bissau.

Certo é que, ainda hoje me questiono e até agora não encontrei resposta, como é que teríamos respondido perante uma situação em que evoluísse um possível e então pelo Senhor Governador esperado ataque ao Palácio, provindo e com “pavio” naquele Bairro? Certamente que nos teríamos que proteger e defender, mas daí até dar cumprimento à ordem que verbalmente me fora transmitida, para arrasar com o Bairro, ia e vai uma grande distância.

Então como é que o Senhor Governador conseguiu serenar o pessoal e proceder ao almejado licenciamento/desarmamento? De uma forma simples, levou uma mala com notas de “peso” e pagou uma determinada verba por cada uma das armas entregue pelos elementos dos Comandos Africanos, a verba a que cada um deles teria direito foi encontrada em função do posto que os militares ocupavam na hierarquia militar e dos anos de serviço prestado. Se a memória não me falha, os menos graduados, os soldados com menos tempo de serviço receberam mil pesos cada um para entregarem as armas, inicialmente, fora ponderado o pagamento da quantia de 500 pesos, como valor base. Tal não aconteceu com as milícias nem com outros elementos que estiveram entre e com as NT, conforme o Camarigo C. Martins já aqui referiu, já que quando saíram de Gadamael, tiveram que ser elementos do PAIGC a dar-lhes protecção, devido ao nosso abandono à sua sorte dos elementos que integraram a Milícia.

E foi desta forma, que se processou o tão propalado desarmamento/licenciamento dos militares dos Comandos Africanos. Sendo certo que eles não pretendiam entregar as armas nem as respectivas munições, porque estavam certos do desígnio que os esperava.


2 – Conforme decorre da entrevista, ao Senhor Governador Carlos Fabião foi, pelos elementos do PAIGC que vieram para Bissau, garantido que nenhuma retaliação sob qualquer forma ou pretexto seria exercida sobre os nossos Camaradas. Mas, afinal, conforme consta e do que se tem conhecimento, tal “promessa” não foi cumprida pelo PAIGC.

O que mais me espanta na entrevista, é que o triste final destinado aos nossos Camaradas, já estava anunciado e era do conhecimento de todos em Bissau, pelo menos, sabia-se, isto é, era voz corrente na Cidade, entre os Militares Africanos do Exército Português que nos afirmavam: - Vocês vão embora e nós vamos no Morés e corta cabeça.

Parece que o Senhor Governador apenas ouviu uma parte e satisfez-se com a palavra dessa parte. Será que nunca procurou, ou não quis ouvir aquilo de que todos falavam?

Por outro lado, na entrevista, disse o Senhor Coronel Carlos Fabião que os Militares Africanos do Exército Português lhe terão dito que não pretendiam vir para Portugal, pois ficavam lá, na sua terra porque ali ninguém lhes faria mal. Não referindo, no entanto, quem lhe terá dito tal, pois todos, mas todos os Militares com quem tive oportunidade de conversar, me manifestavam a sua pretensão em vir para Portugal, atendendo ao que os esperava, ou seja, a morte já anunciada e por isso de todos era conhecida.


A este pretexto, e para confirmar o que digo, posso referir pelo menos duas situações:

i) - A primeira ocorreu no final de um dia, já ao anoitecer, em que fui chamado pelo meu Camarada que se encontrava no posto de sentinela junto à porta principal do Palácio, ao cimo da escadaria, devido ao facto de cá em baixo se encontrar um indivíduo que se locomovia em cadeira de rodas e que dizia estar armado e que iria rebentar com a frontaria do Palácio.

Ali acorri, abordei o indivíduo e, após algum tempo de conversa, ele mostrou-me o que trazia sob a manta que lhe cobria as pernas e que eram, umas quatro ou cinco granadas de mão, para além da pistola e mais não me disse, pois era sua pretensão falar com o Senhor Governador. Então, fui ter com o Cap. Faria Paulino, que comigo se dirigiu para junto do indivíduo e foi apenas perante o Capitão é que o indivíduo se apresentou: - era 1.º Sargento Comando, encontrava-se paraplégico devido a ferimentos que sofrera em combate e, já que ninguém queria saber da sorte dele(s), pretendia, pelo menos, que o Senhor Governador lhe garantisse por escrito, que a mulher e os filhos, após ele ser levado para o Morés e lhe cortarem a cabeça, continuariam a receber do Estado Português uma verba a título de pensão. Se assim não fosse, ele morreria já ali, mas pelo menos rebentaria com a fachada principal do Palácio. Após cerca de duas intermináveis horas de conversa com o nosso Primeiro, o Cap. Faria Paulino conseguiu convencê-lo de que lhe agendaria uma reunião, num outro dia, com o Senhor Governador porque nesse dia e a essa hora, ele não se encontrava no Palácio, tinha saído de helicóptero e como já era quase noite não iria regressar.

ii) - Num outro dia, em que não me encontrava de serviço, passeava em Bissau com o então Capitão Pára Valente dos Santos, mais conhecido na “guerra” como o “Astérix”, e encontrámos um grupo de cinco elementos, trajando já civilmente e que ao encontro dele/nós vieram. Eram Militares que pertenciam ao Grupo de Combate do então Capitão Marcelino da Mata - que então já se encontrava em Portugal. Todos eles, sem excepção, manifestaram ao Cap. Valente dos Santos, que com eles estivera e combatera em muitas Operações, o perfeito conhecimento que tinham do que lhes iria acontecer. Rogaram o favor de que o Capitão intercedesse junto de quem tivesse competência para lhes conceder a necessária autorização no sentido de conseguirem vir para Portugal.

A resposta que o Capitão Valente dos Santos lhes deu, foi a seguinte: Estivera presente em reuniões com o Senhor Governador, com o Comandante-Chefe (o então Senhor Brigadeiro Figueiredo) e com os representantes do MFA na Guiné, e as instruções que havia eram no sentido de que, apenas beneficiavam de autorização de transporte para Portugal, os Oficiais das Tropas Africanas.

Tive oportunidade de, logo após o encontro supra descrito, conversar com o “Astérix” e questionei-o do porquê de não se possibilitar a ida dos Camaradas que quisessem ir para Portugal, independentemente do posto que tinham na hierarquia militar, tendo-me ele respondido, que eram ordens recebidas dos Comandantes do MFA, no Continente, com as quais, fiquei certo, ele próprio não concordava, devido ao facto de ser, também ele, conhecedor do que o futuro reservava a esses nossos Dignos Camaradas.

Não posso deixar de dizer que, com estes relatos, não é minha intenção desprestigiar a boa imagem que o Senhor Coronel Fabião tenha deixado, nem, muito menos, beliscar sequer, a memória do último Governador da Guiné, pois aprendi a respeitá-lo quer como Militar, quer como Homem, durante aquele período de tempo em que desempenhei funções na guarda ao Palácio e, depois, já em Portugal, devido a algumas posições que ele assumiu no desempenho das altas funções que lhe foram cometidas. Quanto refiro, faço-o sempre com o devido respeito.

Com a Camariga saudação e um fraterno Abraço, do
Joaquim Sabido
Évora
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 20 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8574: Os nossos médicos (41): Por fim, e não menos importantes, os nossos anestesistas (C. Martins / Joaquim Sabido / J. Pardete Ferreira)

Vd. último poste da série de 12 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8663: (Ex)citações (147): Guidaje – 1973. Esclarecimentos (José Manuel Pechorro)

Guiné 63/74 - P8664: Notas de leitura (264): A Guerra de África 1961 - 1964, por José Freire Antunes (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Julho de 2011:

Queridos amigos,
Aqui vai o que parece de mais relevante deste terceiro volume do livro publicado em 1994 e 1995, e agora reeditado pelo Círculo de Leitores, ocorre perguntar se o blogue não se podia lançar na empreitada de dar voz e escrita aos protagonistas da Guiné, nos mesmos moldes em que José Freire Antunes trabalhou com a sua equipa. Seria tudo uma questão de esquematização, atendendo à cronologia dos acontecimentos, incitando os protagonistas disponíveis a reflectirem em função da documentação conhecida, do que experimentaram e da leitura que esta distância permite.
Aqui fica a sugestão para um volumoso mas exaltante trabalho de casa.

Um abraço do
Mário


A Guerra de África, 1961-1974, III volume, por José Freire Antunes

Beja Santos

A reedição de uma das mais impressionantes e abrangentes recolhas de testemunhos de personalidades ligadas à guerra colonial merece ser saudada pela sua incontestável importância para quem quer aprofundar conhecimentos acerca dos três teatros de operações, motivações, evolução e desfecho de todo o processo político-militar (A Guerra de África, 1961-1974 III volume, Círculo de Leitores, 2011).

Compreensivelmente, aqui, o destaque vai para aqueles que têm uma ligação inquestionável com a Guiné.

O primeiro testemunho vem de Lemos Ferreira, general da Força Aérea que serviu na Guiné entre 1971 e 1974. Diz ele: “Quando fui para a Guiné os meios aéreos que lá existiam eram extremamente limitados. Havia uma desproporção do dispositivo militar terrestre: cerca de 40 mil homens, entre milícias locais, forças locais e forças metropolitanas. E, para um território com a dimensão do Alentejo, 40 mil homens era muita gente. A parte aérea envolvia 50 a 60 pilotos. Tínhamos assim, por um lado, 40 mil homens que suportavam as agruras que tinham que suportar. Por outro lado, os 50 ou 60 pilotos, 70 pilotos no máximo. Eles tinham o chamado risco diário e a todas as horas, porque tudo estava pendurado neles, de uma maneira ou de outra.

Era preciso transportar pessoas, ia o DO. Era preciso levar o correio ia o DO. Era preciso fazer uma evacuação sanitária, ia o Allouette-3. Era preciso fazer uma evacuação e iam uns quantos helicópteros, um DO, dois DO, mais um Nordatlas ou dois, um Dakota, e mais não sei quê, e mais não sei quantos Fiat (…) Havia já uma desagregação pela repentina alteração das ideias. No consulado de Salazar, bem ou mal, sabia-se o que queria. Mas depois já não era assim. Éramos nós, os responsáveis directos, que estávamos nos locais, que íamos explicar às pessoas a situação. E acontece que tão depressa me diziam que eu estava numa operação de guerrilha como diziam que o país está em guerra, como diziam que se estava numa operação de polícia. Eu via-me na contingência de ter que explicar às pessoas qual era exactamente o meu papel – era eu polícia, antiguerrilheiro, militar, o que é que eu era. Tudo se passa muito rapidamente quando as coisas entram em desagregação. Nessa altura, a convicção do PAIGC era a de que seria possível uma vitória militar e então arriscou e fez o contrário da guerrilha, que era aparecer no terreno com forças relativamente vultosas. Eles consideravam que o que faria a diferença seria a parte aérea. Isto foi perfeitamente claro e apareceram os mísseis Strella (…) Tivemos que ser inventivos: se a ideia do adversário era de que a Força Aérea estava de gatas, havia que provar o contrário. E provar o contrário como? Com a utilização muito mais intensa da arma aérea. Eu nunca fiz tantos bombardeamentos na vida, nunca fiz tantos disparos, como nessa altura”.

O segundo testemunho vem do brigadeiro Martins Marquilhas que serviu na Guiné entre 1966 e 1968.

Depois de expor a situação de Angola, que ele considera que em 25 de Abril estava 90% controlada, tece o seguinte comentário: “O mesmo não acontecia na Guiné. Eu só me senti na guiné um bocado em balso quando estive a fazer uma operação de 5 dias, a armadilhagem das passagens do rio Corubal, porque havia infiltrações através daqueles sítios onde a vegetação não permitiam a ninguém entrar, mas onde havia locais por onde uma canoa entrava. Eu estava a 20 dias de me vir embora. Só levei para lá parte da minha tropa e depois deram-me de reforço uma série de companhias e tive de fazer esta operação de 5 dias em terreno sob controlo deles, em Madina do Boé, era zona nitidamente controlada por eles. Nós só íamos a Madina do Boé, onde tínhamos tropas, ou a Béli, para reabastecimento, e eu fiquei 5 dias sem qualquer ligação, a sentir que à medida íamos avançando, eles iam na nossa peugada. Tivemos confrontos violentos. Houve tiroteio, tive três feridos sem gravidade. Fomos evacuados, não tínhamos ligação. Deixámos armadilhas lá postas, mas a maior parte delas funcionava era com caça. Eles para o fim, na Guiné, tinham armamento mais sofisticado do que nós. O inimigo da Guiné era mais aguerrido. Não estou a falar das elites, as elites da Guiné eram iguais às de Angola ou às de Moçambique. O magala da Guiné, que era dos fulas, era mais evoluído”.

O terceiro testemunho compete a Almeida Bruno, um colaborador dedicado de Spínola e depois comandante do batalhão de Comandos Africanos. Falando de 1968, Bruno considera que a situação militar se caracterizava assim: “as forças portuguesas tinham perdido iniciativa, estavam remetidas a uma situação meramente defensiva e a liberdade dos movimentos no teatro de operações era exclusivamente das forças especiais. Havia a ideia de se garantir a soberania com a ocupação e cobertura de área, o que implicou a disseminação da tropa ao longo de todo o teatro de operações, perdendo-se capacidade de intervenção e iniciativa na acção… A noção que tenho é que as nossas unidades não saiam dos quartéis. Estávamos empatados com o PAIGC. Spínola renovou o dispositivo, não se podia jogar à defesa, impôs a concentração de meios, reformaram-se as forças especiais que passaram para o comando directo do comandante-chefe. Passou-se à ofensiva porque, dizia Spínola não se negoceia em situação de inferioridade. Bruno cola-se às doutrinas de Spínola: “Aquele tipo de guerra só se resolvia politicamente. Por isso é que eu sempre defendi o marechal dizendo que o conceito da “Guiné melhor” é dele. Salazar viu em Spínola um tenente-coronel em tronco nu, de monóculo e pingalim. Mas enganou-se, porque quando o chamou ele era outro homem (…) O desaparecimento de Salazar abriu perspectivas a Spínola. Nós estávamos em boas condições operacionais em 1969-1970. Tínhamos retomado a iniciativa, estava a avançar o plano de reordenamento, o Carlos Fabião dominava a grande força político-militar da Guiné que eram as milícias (…) Nós tínhamos a ideia da independência dos territórios não como foi feita mas por fases. E o nosso projecto foi escrito e entregue a Marcello Caetano (…) Acho que foi uma pena não termos conseguido pôr de pé o nosso projecto que era, quanto a mim, o melhor para os africanos e para nós também”. Almeida Bruno espraia-se sobre as operações que coordenou, os acontecimentos do chão manjaco que culminaram com o massacre de três majores e um alferes em 20 de Abril de 1970, as iniciativas de conversação com Senghor que Caetano proibiu. Trata-se de um longo depoimento em que Bruno contesta a primazia de ocupação do território pelo PAIGC. Contesta que até Julho de 1973 se pudesse considerar que a Guiné estivesse à beira de uma derrocada. E termina assim: “Na Guiné não havia condições para ser criado um Dien Bien Phu. Um Dien Bien Phu tinha que ser Bissau e Bissau, porque está encostada ao mar, nunca o poderia ser, a menos que o PAIGC aparecesse com uma marinha de guerra superior à nossa. Eu perdi o meu gosto pela Guiné a partir do momento em que vi que a nossa solução política estava perdida, porque os políticos de Lisboa não tinham entendido a nossa mensagem. Quando percebi que tinha perdido essa batalha, só vi uma hipótese: derrubar o regime.

O quarto testemunho é dado por Manuel dos Santos, o operacional do PAIGC que tinha a seu cargo a responsabilidade dos misseis Strella. Explica como aderiu ao PAIGC, destaca as diferenças da governação entre Schulz e Spínola, opina sobre a invasão de Conacri e a cedência em 1972 dos mísseis Strella pela URSS, dando conta do abalo que este novo armamento provocou nas tropas portuguesas. E emite o seu juízo sobre o desfecho da guerra: “Penso que o Governo português encarou a perda da Guiné como uma eventualidade possível. O Bethencourt Rodrigues chegou lá quando já estava praticamente tudo acabado. Lembro-me que a chegada do Bethencourt Rodrigues foi saudada com uma operação, talvez a última operação ofensiva que os portugueses fizeram. Foi uma operação no chão manjaco com duas companhias de comandos que se infiltraram ali de helicóptero mas que os helicópteros já não puderam ir buscar por causa dos mísseis terra-ar. Essas duas companhias foi perfeitamente destruídas e até capturado o comandante de uma delas”.

Este terceiro volume inclui ainda depoimentos de grande interesse como os de Ferrand d’Almeida, o papel desempenhado pelas enfermeiras pára-quedistas, a opinião de várias governantes sobre a situação económica e financeira dos últimos anos do regime e um ensaio do brigadeiro Lemos Pires sobre doutrina e prática na guerra de África.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 9 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8652: Notas de leitura (263): Guinéus, de Alexandre Barbosa (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P8663: (Ex)citações (147): Guidaje – 1973. Esclarecimentos (José Manuel Pechorro)

1. O nosso Camarada José Manuel Pechorro, (ex- 1.º Cabo Op Cripto da CCAÇ 19 - Guidaje -, 1971/73) enviou-nos a seguinte mensagem.

Camaradas,

Tentei introduzir uma resposta no poste P8658: (Ex)citações (146): Guidaje - 1973, um comentário e algumas interrogações (José Manuel Pechorro / Juvenal Amado), em seguimento ao meu comentário no P8644, mas como o texto é extenso não consegui.

Assim, agradeço a publicação do texto e 2 fotos anexas sobre Guidage, no blogue, tentando responder às duas perguntas do Juvenal.

Amigo camarada Juvenal:

Estive com o Sr. Cap Cav Salgueiro Maia em Santarém, estagiei no Centro Cripto, na Escola Prática de Cavalaria.

No dia 29 chegou a 6ª coluna auto a Guidage, comandada pelo Sr. Cap Jorge Rodrigues (Cmdt da CCaç 14), onde vinham integradas a 38ª CCmds, parte da CCaç 4512, CCaç 3414 - Cumeré, Gr esp  mil 342 – Olossato, Gr Esp Mil - Farim (?) e CCav 3420.

Segundo conversas que ouvi, foi a 38ª CCmds que teve o principal embate com a guerrilha, durante o percurso…

Dei pelo aproximar do Cap Cav Salgueiro Maia ao posto de comando, onde estava próximo o Sr. Ten Cor Cav Correia de Campos, não dando mostra de esgotamento e vinha dizendo, já próximo e repetindo: "tenho ("8") homens que querem desertar para o Senegal", na presença de soldados do quartel e do Comandante de Guidage. Os soldados da CCav 3420 chegaram fortemente armados e muito cansados; reconheci um moço de Santarém.

Não li o livro deste oficial, que escreveu sobre o cerco, mas baseado em pequenos relatos que li neste blog, em:

Guiné 63/74 - P5774: Notas de leitura (63): Salgueiro Maia (2): Guidaje numa descrição digna do Apocalypse Now (Beja Santos), Sábado, 6 de Fevereiro de 2010:

"O chão estava lavrado por granadas, as casas, todas atingidas, pare-ciam ruínas, os homens viviam em buracos, luz e água não havia... como que para nos cumprimentar, pelas 21 horas somos flagelados por um morteiro de 82, com as granadas a cair em grupos de cinco e, para cúmulo, granadas nossas de 81 mm, das capturadas na coluna de reabastecimentos, agora disparadas contra nós. No dia seguinte, pouco depois do alvorecer, inicia-se a coluna de regresso com o pessoal que, até à data, tinha sobrevivido e que, para além dos sofrimentos de que já padecia, deitado sobre colchões velhos, saltava como pipocas cada vez que a Berliet passava num buraco".

E a descrição que ele faz de Guidage é perfeitamente dantesca:

"A enfermaria e o depósito de géneros tinham sido praticamente des-truídos; como assistência sanitária, tínhamos um sargento enfermeiro e alguns maqueiros. O pessoal dormia e vivia em valas abertas ao redor do quartel. Esporadicamente, errava-se por lanços por entre os edifí-cios ou o que deles restava. Como dormir no chão não é muito agradável, na primeira oportunidade passei revista aos escombros e tive sorte: descobri dentro de um armário que tinha pertencido a um alferes madeirense que ficou sem uma perna uma farda nº 3, o que me permitiu lavar o camuflado e, como prenda máxima, um bolo de mel e uma garrafa de vinho da madeira quase cheia e inteira no meio de tudo partido. Com isto fiz uma pequena festa com três ou quatro homens, porque era perigoso juntar mais gente. Nesta altura pensei em, depois de regressar a Bissau ir ao HM 241 saber quem era o alferes para lhe agradecer tão opíparo banquete, mas tal não foi possível e ainda hoje tenho esse peso na consciência.

Nas minhas visitas pelos escombros, desci ao abrigo da artilharia, onde houvera quatro mortos e três feridos graves. O abrigo fora atingido em cheio por uma granada de morteiro 82 com retardamento; a granada rebentou a meio de uma placa feita com cibes; o resto do abrigo ficou totalmente destruído; o chão tinha um revestimento insólito - consistia numa poça de sangue seco, cor castanha com 2 a 3 mm de espessura, rachada como barro ressequido. O odor envolvente era um pouco azedo, mas sem referência possível; o sangue empastava os col-chões e as paredes. A minha preocupação era encontrar um colchão. Depois dar volta aos oito que lá se encontravam, escolhi o que estava menos sujo. Tirei-lhe a capa, mas o cheiro que emanava de dentro era insuportável; mesmo assim, consegui trazê-lo para a superfície, onde ficou a secar debaixo da minha vigilância, para não ser capturado por outro. Depois de bem seco e com os odores atenuados, levei a minha conquista para a vala, onde, para caber, tive de o cortar ao meio, fazendo bem feliz o meu companheiro do lado que, sem esforço, ganhou um colchão, e sem saber de onde ele tinha vindo".

Noutra parte, que não recordo onde li, talvez no blog, seguindo a mesma lógica,  afirmou, salvo erro:

- "Dos cerca de 40 ou 50 ataques do mês anterior (Abril), em Maio Guidage sofreu 167!":
Em Abril sofremos um ataque com armas ligeiras no dia 6, o dia dos mísseis Strela e do abate das duas DO27 e do T6,e uma flagelação no dia 28.
Durante o mês de Maio fomos atacados e flagelados 45 vezes; sendo a última a do dia 29 pelas 21 horas. 36,foram antes do dia 19...

- “Em Guidage os mortos foram enterrados na parada!”

As campas foram abertas entre a vala e o arame farpado, próximo da caserna abrigo do 1º pelotão.
. . . . 0 . . . .

Trata-se de uma versão adaptada, de Guidage… Parece descrever uma batalha, de zona habitacional francesa, próxima das trincheiras da 1ª Guerra Mundial, tudo arrasado e destruído!

Fomos flagelados com granadas de mort 81 (1 ou 2 não explodiram) e deduzimos tratar-se das granadas que vinham nas viaturas da coluna Binta-Guidage, do dia 8 de Maio, acidentada com mina anti-carro e fortemente atacada durante a noite e madrugada do dia 9, foram abandonadas, sendo destruídas de imediato pela nossa aviação… Mas estas granadas apareceram 3 ou 4 dias depois da coluna, não a 29…

As moranças (casas da tabanca), edifícios do quartel e abrigos, em parte atingidos, não ficaram destruídos ao ponto de não continuarem a ser utilizados...


Foto adquirida ao 1º Cabo Radiotelegrafista Janeiro (alentejano). Ao lado o espaldão do morteiro 81, vê-se o bloco de comando a casa do gerador e mota-bomba da água, o depósito, as viaturas e a porta da cantina de bebidas… Avistam-se embalagens das granadas do morteiro 81. O aspecto do terreno era este, as granadas de mort 82 e canhão s/ recuo quase não se notavam nesta terra dura… Os edifícios atingidos mostravam o que o tecto do comando mostra…

A enfermaria tinha placa em betão armado, atingida “duas ou três” vezes, aguentou e continuou a ser frequentada e utilizada.

Fotos adquiridas ao 1º Cabo Radiotelegrafista Janeiro (alentejano). Enfermaria depois de atingida 2 ou 3 vezes, por flagelação de morteiro de 82 mm. Tinha placa de betão armado a protegê-la…

A descrição do abrigo alvejado, na madrugada do dia 25, não corresponde... Faço ver o que aconteceu na P5479 de 16/12/2009. A granada de morteiro caiu e explodiu, no canto da placa, em cima da parede do abrigo. Devido á explosão os estilhaços do próprio tecto causaram as baixas sofridas... Só o canto do tecto de troncos de palmeira, enfraquecido pelo tempo ficou destruído. Os que estavam próximos do canto e do tecto foram atingidos. Um alferes madeirense (o Alf Mil Inf Luciano Dinis, da CCaç 19), ficou ferido com certa gravidade no abrigo, mas ficou inteiro... Não soube de Alferes que tivesse ficado sem uma perna, naquelas condições teria falecido… O pavimento do abrigo, tinha vestígios de sangue, mas não como está descrito... Eu vi logo que se fez dia. Este sim deixou de ser utilizado.

Havia um depósito de água, um gerador eléctrico e moto-bomba que tirava a água de um furo:

No quartel não faltou a água e nem a electricidade, embora houvesse cortes: Aguardávamos nas valas, e sem luz de propósito… segundo informações, teríamos um forte ataque de vingança (algumas deram a entender que o IN estava a abandonar a zona, depois do dia 19). Houve noites escuríssimas e também de luar que parecia dia.

Desligou-se o gerador, a certa hora, para poupar combustível, devido ao falhanço de 2 colunas que não passaram...

Chegamos a ter 800 homens juntos no aquartelamento, se levavam comida, retidos alguns dias, consumiam o que levavam, tinha que haver uma diminuição na quantidade e na qualidade. A vida degradou-se… Fui sempre comer as refeições ao refeitório, mas, algumas vezes fugi para o local de abrigo mais próximo…

As granadas de mort 82 não danificavam muito o terreno… Falo em flagelações com morteiro 120, a ter acontecido, só foi entre 22 e 25 de Maio... O Sr. Ten Cor Cav Correia de Campos afirmou tratar-se de mort 82... Mas as que explodiam no quartel, notava-se mais o local da explosão no chão endurecido.

O quartel de Guidage recebeu instalações novas, cobertas com chapa de zinco, feitas pela BEng em 71/72. Não havendo ataques ou flagelações, com retretes com chuveiro de água canalizada e luz do gerador, onde ia a avioneta do sector, “estávamos na cidade”…

Cobertas as valas interiores e demolidos a maior parte dos abrigos, restaram as 4 casernas abrigos dos 4 pelotões e se não erro 5 pequenos abrigos espalhados… O aquartelamento pequeno e superlotado, teve as suas consequências…

O Sr. Cap Cav Salgueiro Maia (e a CCav 3420), salvo lapso, abandonou Guidage, na coluna auto em 12/6/1973 onde foi o Sr. Ten Cor Cav António Valadares Correia de Campos. Substituído no terreno pelo futuro Cmdt do COP 3 Sr. Maj. Inf. Carlos Alberto Wahon da Costa Campos. Os 3 já morreram.

Com calma e serenidade, os que lá estiveram, cercados, numa batalha dura e cruel, vivendo a guerra! Concordará que a realidade não foi como está descrita pelo Ex. Sr. Cap Maia...

Quanto ao abandono de Guilege:


- Em Guidage recebemos mais "duas" flagelações em Junho: No dia 1 e a 17.

Não tenho a certeza se foram três, é provável que tenha sido mais uma no dia 11, que aconteceu o que descrevo: Ao chegar a coluna, cerca das 18,15 h, com mort 82. Durante 10 ou 15 m. Além dos estrondos, foram nítidos os clarões... Caíram na parada perto do comando e da enfermaria, local de maior aglomeração de soldados... A rapidez como desapareceram! Por milagre não tivemos baixas.

O Sr. Ten Cor Cav Correia de Campos estava no canto exterior do edifício do comando e não nos acompanhou em corrida para o refúgio do posto de rádio; apareceu e lá se meteu, foi das poucas vezes que o vi procurar abrigo. Fechamos a porta.

O suposto ataque de vingança, pelo nosso ataque a Cumbamory e a sua quase total destruição, tinha por fim reter as nossas forças operacionais no norte? Não chegando socorro a Guileje ou Gadamael nas devidas condições.

- Não quero julgar ninguém. Cada quartel teve a sua cruz... Não sou a pessoa habilitada para o fazer:

Em Bissau e o PAIGCV, certamente esperavam maior resistência em Guilege e se esta tem acontecido, não daria tempo para o socorro aparecer?

Um abraço a todos,
José Pechorro
1º Cabo Op Cripto da CCaç 19
____________
Notas de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

11 de Agosto de 2011 >Guiné 63/74 - P8658: (Ex)citações (146): Guidaje - 1973, um comentário e algumas interrogações (José Manuel Pechorro / Juvenal Amado) 

Guiné 63/74 - P8662: O Nosso Livro de Estilo (2): Comentar (nem sempre) é fácil...


Lourinhã > Vimeiro > Monumento comemorativo  e centro de interpretação da Batalha do Vimeiro > Azulejo alusivo ao desembarque das tropas luso-britânicas, na Praia de Paimogo, em 19 de Junho de 1808... A batalha do Vimeiro foi em 21 de Agosto de 1808. Azulejo desenhado e pintado à mão por Salvador (2000).

Foto: Luís Graça (2011). Todos os direitos reservados

Comentar é FÁCIL, sob o velho e frondoso poilão da Tabanca Grande...


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Alguns membros desta equipa têm poderes de administradores, podendo eliminar comentários que infrinjam as nossas regras editoriais.

PS - Em qualquer altura poderemos reintroduzir, com pena nossa, o mecanismo da moderação dos comentários,  se se verificar a violação sistemática, por parte de alguns leitores,  do direito de comentar livremente no nosso blogue (e do correspondente dever de o fazer de maneira responsável).

___________

Nota do editor:

Último poste da série > 22 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8588: O Nosso Livro de Estilo (1): Política editorial do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné

Guiné 63/74 - P8661: Em busca de ... (173): Meu Pai, José António Pires, natural do concelho de Estremoz, que pertenceu ao BCAV 490 (Bissau, Como e Farim, 1963/65) e cujo paradeiro desconheço desde 1973 (Rui Manuel Pires dos Santos, Espanha)

1. Mensagem do nosso leitor Rui Manuel Pires dos Santos:

De: Airsoft Airsoft  [airsoftrmp67@gmail.com ]
Data: 5 de Agosto de 2011 17:46
Assunto: Busco o meu Pai

Olá, meu nome é Rui Manuel Pires dos Santos. Procuro informações sobre o meu pai. Se algum de vocês tiver qualquer foto, poderá enviá-la para mim. Vivo em Espanha e não sei do meu pai ou do seu paradeiro desde 1973. Obrigado pela vossa colaboração.

As informações de que eu tenho sobre o meu pai são as seguintes:

(i) Nome: José António Pires;
(ii) Nascido em Veiros-EstremozM
(iii) Nome do pai dele: Domigos Tomáz Pires;
(iv) Tirou a recruta no Quartel em Beja;
(v) Depois já pronto,  veio para o Regimento de Cavalaria nº 3 em Estremoz;
(vi) Foi mobilizado para o Ultramar, para a província da Guiné, integrado no Batalhão nº 490: esteve lá nos anos de 1963 a 1965;
(vii) Fez em Julho,  69 anos de idade. (Nasceu em 19/07/1942; mas também poderá ser 9/6/1944.)

Gostava de saber concretamente em que unidad militar ele esteve, companhia de caçadores ou cavalaria ,. do tal batalhão nº 490.

Muito obrigado.

2. Resposta do nosso colaborador permanente José Martins, com data de 5 de Agosto, a pedido dos editores:

Boa noite, Luis. Gostava [ de estar], mas não estou de férias.

A unidade em questão é o BCAV 490, do Tenente Coronel Fernando Cavaleiro, que esteve na Ilha do Como [Op Tridente, Jan/Mar 1964]
.
Pelo que entendi, o rapaz já não sabe do pai desde 1973, e pretende saber se alguém o conhece e se tem fotografias [dele ou dos seus camaradas].

No blogue há 24 entradas para BCAV 490 [, que esteve em Bissau, Ilha do Como e Farim, 1963/65].

Alguns membros da Tabanca Grande [de quem me recordo assim de repente, ou de quem há postes no nosso blogue, e que foram do BCAV 490 ou a ele estiveram ligados]: Armor Pires Mota - CCAV 488; Valentim Oliveira - CCAV 489; António P. Bastos - Pel Caç 953; Jero e Belmiro Tavares - CCAÇ 675.

O Jorge Cabral conhece o Fernando Cavaleiro. Já escreveu sobre ele.

Abraço e boas férias para ti e Alice (não sei se os filhos estão convosco). De qualquer forma, saudações.
José Martins 

3. Comentário do editor:

Sobre o BCAV 490 ( (Bissau, Ilha do Como e Farim, 1963/65), comandado pelo Ten Cor Cav Fernando José Pereira Marques Cavaleiro.  Integrava  as CCAV 487, 488 e 489.

(i) CCAV 488: Mobilizada pelo RC 3, partiu para a Guíné em 17/7/1963 e regressou a 12/8/1965. Esteve em Bissau, Ilha do Como, Jumbembém e Bissau. Comandantes: Cap Cav Fernando Manuel Lopes Ferreira; Cap Cav Manuel Correia Arrabaça; Ten Cav Lourenço de Carvalho Fernandes Tomás.
 
(ii) Restantes companhias: CCAV 487 (Bissau, Ilha do Como, Farim, Bissau); CCAV 489 (Bissau, Mansabá, Ilha do Como, Cuntima, Bissau).
 
______________

Nota do editor:

Último poste da série > 4 de Agosto de 2011 > Guiné 63/71 - P8639: Em busca de... (173): Contacto de camaradas da CCS/BCAÇ 2834, Buba, 1968 (Manuel Traquina)

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Guiné 63/74 - P8660: Recortes de imprensa (46): Guiné: Cmdt Fuz Esp Rebordão de Brito, em entrevista ao “O Diabo” (Magalhães Ribeiro/Manuel Marinho)

1. Com a devida vénia e agradecimentos ao semanário O Diabo (fundado  em em 10 de Fdevereiro de 1976) publicamos hoje, para quem ainda não conhece, mais um interessante depoimento para a catarse da história da guerra na Guiné, datado de 16 de Junho de 1992. É uma entrevista ao lendário Comandante Fuzileiro Especial Alberto Rebordão de Brito (entretanto já falecido), que de alguma forma reforça as ideias e  matérias reproduzidas nos poste P8644 e P8650.

A postagem, em formato Word, contou mais uma vez com a preciosa e amigável colaboração do nosso Camarada Manuel Marinho (1.º Cabo da 1.ª CCAÇ/BCAÇ 4512, Nema/Farim e Binta, 1972/74), pelo que se registam igualmente os nossos melhores e devidos agradecimentos. (MR)

Comandante na reserva, Rebordão de Brito, em entrevista.

“ O PAIGC DIFICILMENTE AGUENTARIA MAIS UM ANO DE LUTA”
Chama-se Rebordão de Brito e é comandante na reserva. Nasceu em Cabo Verde, de onde saiu com apenas 4 meses de idade. Decidiu ser militar ao serviço dos Fuzileiros Especiais nº 12, que foram colocados na Guiné. Aí participou na conhecida operação Mar Verde e chefiou campanhas em cenário de guerra. No dia 25 de Abril estava de férias em Londres, regressando 4 dias depois da revolução. De Lisboa embarcou para a Guiné para que as tropas africanas portuguesas não caíssem na mão do inimigo. Com a chegada ao poder de Vasco Gonçalves decide abandonar o País. Parte para o exílio, no dia 11 de Março de 1975, porque a Pátria que serviu não é a mesma. Hoje tem uma vida igual à de tantos militares que, como ele, combateram nas províncias ultramarinas embora não se sinta refugiado no seu próprio país, não quer ser fotografado, nem pel’O DIABO


O DiaboEm que ano foi colocado em África?

Comandante Rebordão de Brito – Não fui colocado em África fui voluntário, para prestar serviço no Destacamento de Fuzileiros Especiais nº 12 que partia em comissão de serviço para a província ultramarina da Guiné. Estranhará por certo esta diferença de terminologia, mas, o facto é que, tendo nascido em Cabo Verde, sempre me senti português de alma e corpo inteiro e nunca um colonizado.

O DiaboQuais eram os objectivos da operação “ Mar Verde”?

R B – O principal objectivo era resgatar os portugueses que se encontravam prisioneiros em Conacri. Simultaneamente dado conhecermos a enorme oposição a Sekou Touré, seria facilitar a ascensão ao poder de um governo não hostil a Portugal que interditasse ao PAIGC a utilização de santuários no território da Guiné-Conacri. A dar-se tal situação é fácil de prever que o esvaziamento daquele partido era uma mera questão de tempo.

O DiaboEssa operação destinava-se também a resgatar Amílcar Cabral?

R B – Como atrás disse, o principal objectivo não era esse. No entanto, se Amílcar Cabral se quisesse acolher à nossa protecção seria certamente
bem-vindo, e quem sabe, talvez ainda hoje fosse vivo.

O DiaboConsta-se que um dos objectivos seria apanhar uma série de aviões “MIG” que estariam estacionados numa base da Guiné – Conacri. Tem algum fundamento?

R B – Não era básico. Essa intenção fazia parte da neutralização das forças da Guiné-Conacri, o que permitiria andar por lá praticamente à vontade. O que interessava era trazer os prisioneiros, e como havia connosco uma série de dissidentes do regime da Guiné-Conacri, a ideia era dar cobertura à instalação de um poder que nos fosse favorável, e com isso, claro, desmantelar o PAIGC.

O DiaboQuem foram os principais intervenientes nessa operação?

R B – Bom, essa pergunta é de difícil resposta. Temo, por um lado esquecer-me de alguns que, convicta e orgulhosamente, nela participaram e, por outro, relembrar quem, convenientemente hoje, por ela não quer ser recordado. Ainda assim, e porque é homem que não renega o seu passado, não posso deixar de referir o inspector-adjunto Matos Rodrigues. Embora não tendo participado fisicamente na operação, ao seu entusiasmo, patriotismo e proficiência na recolha de informações, estabelecimento de contactos e apoios se deve uma boa parte da gestação da operação “ Mar Verde”.

O DiaboComo descreveria a situação da guerra ultramarina à data do
25 de Abril 74?

R B – Julgo ser suficientemente conhecido o panorama em Angola e Moçambique para que a ele me refira agora. Quanto à Guiné, em que a situação era um pouco mais complicada (dada a pequenez do território e a grande extensão fronteiriça), creio, apesar desses condicionalismos, termos sido, vítimas de bem tramada intoxicação, de deficiente informação ou ainda de ambas. E digo isto porque em Junho 1974, quando da entrada dos primeiros elementos do PAIGC, estes se apresentavam, na sua maioria esfarrapados e com péssimo aspecto. Alias, ao conversar na povoação de Cacine com o então comandante da sua marinha (Pedro Gomes), este confessou-me que dificilmente o seu partido aguentaria mais um ano de luta. Esta confissão é sem dúvida corroborada pelo insistente pedido feito às nossas autoridades para que se procedesse ao imediato desarmamento das forças africanas.

O DiaboÉ verdade que na Guiné o PAIGC levava uma grande vantagem sobre as tropas portuguesas?

R B – Nada mais falso. Se se disser que os guerrilheiros atacavam com alguma impunidade guarnições fixamente agarradas ao terreno, isso poderá, nalguns casos, corresponder à verdade. No entanto sempre que os encontros se davam com tropas especiais ou outras tropas comandadas, com determinação e vontade, o confronto era-lhes sempre e fatalmente, negativo.

O Diabo É de opinião que de um modo geral a guerra em Angola e Moçambique estava ganha?

R BEstava estacionária e em regressão.

O DiaboEntão só na Guiné é que ainda havia problemas?

R B – Na Guiné havia, mas depois vim a averiguar de que não era tão grave como isso. Após o 25 Abril vim a confirmar essa situação. Na altura não havia pilotos suficientes, nem meios aéreos, mas se tivéssemos forças de intervenção rápidas, em vez de fazermos uma guerra de quadrículas, nós tínhamos conseguido resolver a questão.

O DiaboO que aconteceu na Guiné depois do 25 de Abril?

R B – Eu estava em Londres no dia 25 de Abril. Vim para Lisboa a 29 e segui para a Guiné onde as manobras de guerra tinham parado. Havia uma situação um tanto ou quanto confusa, e como as operações tinham parado havia que dar destino àquela gente que tínhamos enquadrado, africanos, que eram bastantes. Uma das minhas preocupações, um pouco antes da independência, foi andar entre Lisboa e Bissau a ver se conseguia integrar aquelas forças nas futuras Forças Armadas da Guiné e, no meu caso, criar uma marinha onde eles tivessem um lugar, nem que fosse para lhes salvar a vida. Não se conseguiu totalmente. Nas minhas unidades consegui-o mais ou menos, pagando-lhes até ao fim desse ano (1974).
Aconselhei-os a saírem da Guiné o mais depressa possível e dirigirem-se para o Senegal para não terem a sorte que na altura tiveram, muitos comandos africanos.

O DiaboQue foram mortos?

R B – Sim, e muitos por culpa deles, porque se deixaram ficar na Guiné-Bissau.

O DiaboAcompanhou sempre todas as operações militares na Guiné?

R B – Sim, de 1967 a 1974. Saio da Guiné antes da independência.
Recusei-me a assistir à independência.

O DiaboConhece alguns episódios ocorridos durante a guerra colonial que queira contar?

R B – Como deve calcular, ao longo do tempo que passei no ultramar, milhentos episódios se passaram. Como temos falado da “Mar Verde” vou-lhe contar um, de certo modo caricato, que durante ela se passou.
Quando o meu grupo de assalto largou do navio-mãe e partiu em direcção às embarcações inimigas houve um bote que se atrasou visivelmente. Voltei atrás e insultei o seu chefe, o pobre marinheiro Sani, (mais tarde assassinado pelos seus “irmãos libertadores”). Disse-lhe que se tinha medo podia voltar para bordo, pois não queria cobardes no grupo. Ele balbuciou umas palavras que na confusão não entendi e deixei-o, voltando à cabeça da formação. Concluída a missão dei ordem de reembarque e cada um voltou ao seu bote. Isto é, cada um julgou ter voltado, ao seu. Mandei-os seguir à minha frente a fim de verificar os resultados e confirmar se não haveria algum retardatário. Verificações feitas, acelerei a fundo e da carcaça do meu potente motor saiu um profundo gemido e um tossir que assustaria o mais calejado médico dos sanatórios do Caramulo. Enfim, grunhindo e arrastando-se, o miserável bote lá conseguiu chegar ao navio onde, no negrume da noite, qual fantasma, me esperava uma branquíssima dentadura que generosamente apenas me perguntou:
“ Então chefe, a quantas cervejas tenho direito?”

O DiaboConcorda com a afirmação de que o general Spínola se terá deixado ultrapassar pelos acontecimentos aquando do 25 Abril?

R B – Não concordo de forma alguma. Acho, isso sim, que o general Spínola, raciocinando e agindo como homem e militar íntegro que era e é, foi enredado nas malhas que a traição e baixa política tecem. Convém não esquecer os vários “judas” (conscientes ou imbecis úteis), que na sua órbita gravitavam. O general Spínola queria manobrar e verificou que não tinha forças para isso, alguns não compareciam, outros saíram deliberadamente, outros faziam o jogo da esquerda sem saber bem porquê. São os tais a quem eu chamo os “imbecis úteis” e ele viu-se enredado numa confusão tremenda e só teve, a saída que teve em 30 de Setembro, que foi aquele discurso.

O DiaboComo se processou a fuga do general Spínola para o Brasil?

R B – Antes de mais refuto liminarmente a tese da fuga. Como já foi amplamente divulgado, dadas as informações que circulavam, houve um grupo de civis e oficiais (entre os quais o general Spínola), que foram aconselhados a receber a protecção de uma das poucas unidades militares não completamente conspurcadas pelo desvario pseudo-revolucionário que então grassava em quase todo o País.

Em determinada altura, por estarmos sem qualquer comunicação com o exterior, acompanhei o general Spínola à unidade vizinha no intuito de sabermos o que se passava. Quando o nosso helicóptero regressou ao ponto de onde partira verificamos imediatamente uma enorme efervescência na guarnição e soubemos que alguns oficiais já tinham sido presos. Considerei que o melhor, de momento, seria embarcar a esposa do general Spínola e a aproveitar o helicóptero para sermos colocados fora da unidade e daí seguir para onde julgássemos ser mais conveniente. No entanto, dada a perseguição movida durante algum por dois aviões, considerou-se que o mais seguro seria rumarmos a Espanha. Não foi, nesta altura, considerada a hipótese de partir para o exílio no Brasil.

O DiaboPortanto nesta altura ninguém pensava no exílio?

R B – Nessa altura apenas pensávamos em sair da base aérea e sermos colocados num sítio qualquer e dali arranjar um transporte que nos levasse aonde quiséssemos. Não havia nada a ideia de sair do País, mas dado as condições foi a melhor coisa a fazer. Assim considerámos a hipótese de ir para França, para não estarmos muito afastados de Portugal.

O Diabo Era essa a única solução?

R B – Sem dúvida. Com a loucura colectiva comandando o País, o mais provável era ter havido fuzilamentos a coberto da defesa da Revolução.

O DiaboEm sua opinião o que é que poderia ter alterado o rumo dos acontecimentos nos dias que se seguiram ao 25 de Abril?

R B – É-me muito difícil dar uma resposta razoável a essa pergunta, porque, nessa altura, me encontrava na Guiné tentando salvar a vida dos fuzileiros africanos que tive o privilégio de instruir e comandar.

O DiaboO que pensa dos acordos do Alvor celebrados em 1975?

R B – Os acordos do Alvor? Poderá considerar-se acordo uma farsa montada pelos vassalos da ex-URSS com um fim único de servir o expansionismo desta e adiar o seu estertor? Creio bem que não.

 O DiaboOs acordos do Alvor, uma farsa?

R B – Não é mais do que isso. Estava tudo perfeitamente orquestrado para entregar aquilo às forças marxistas de Angola, e, aliás, com o desenrolar da situação verifica-se isso.

O DiaboComo classifica neste momento a situação vigente na Guiné?

R B – É dramática. É um país, sem economia, sem indústrias, a agricultura está destruída. Não tem quadros; uma classe dirigente e completamente corrupta; todas as ajudas exteriores que recebem são desviadas. Não vejo grande saída para a Guiné: ou é absorvida por aqueles dois grandes espaços francófonos a norte ou a sul, ou (passo o termo) encosta-se a Portugal e é a única maneira de sobreviver como país independente.

O DiaboComo natural de Cabo Verde como vê o futuro daquele arquipélago?

R B – O caso de Cabo Verde é um pouco diferente. Tem uma colónia de emigrantes muito grande, quer nos Estados Unidos quer na Holanda, e em Portugal, como é óbvio, mas as outras são muito mais potentes economicamente, e como tal, recebe imensas divisas. Neste momento está a dar alguns passos no turismo e tem condições para desenvolver a pesca, e, para além disso, tem quadros e uma população muito mais evoluída e culta que a Guiné. Embora também não tenha uma agricultura muito desenvolvida, porque em Cabo Verde só chove quando Deus quer, e muitas vezes Deus não quer.

O DiaboQual é a sua opinião relativamente ao diferendo existente entre o Governo e a Presidência por causa da lei dos coronéis?

R B – Eu não gostaria de ter opinião acerca disso, mas julgo que os únicos prejudicados no meio disso tudo são os militares que não foram tidos nem achados para alimentar essa fogueira e que estão nessa querela sem culpa nenhuma.

O DiaboO que pensa do serviço militar obrigatório ter passado para 4 meses?

R B – Entre haver serviço militar obrigatório com 4 meses e não haver, acho que era preferível não haver. Fazer isso, sim, mas com umas Forças Armadas profissionais, bem treinadas e relativamente pequenas, porque serviço militar obrigatório de 4 meses não dá para coisíssima nenhuma.

O DiaboÀ semelhança do que acontece nos EUA com os Fuzileiros?

R B – Porque não. Basta olhar para Inglaterra, são perfeitamente profissionais, quando são chamados estão sempre prontos, e sabem aquilo que fazem.


O DiaboOs nossos Comandos não correspondem a essa necessidade?

R B – Os Comandos são um ramo das Forças Armadas, mas como sabe têm também serviço militar obrigatório. Apenas os quadros são profissionais.

O DiaboMantém contactos regulares com os militares que o acompanharam em campanhas no ultramar?

R B – Muitos dos meus colegas que serviram nos fuzileiros não estão ao serviço ainda. Tenho contactos permanentes, quase todas as semanas um deles me telefona e anualmente fazemos um almoço para comemorar a ida para a Guiné. Os outros, os africanos, que temos aos poucos conseguido trazer para cá, quer eu, quer o meu antigo imediato, estão todos empregados, e mais não temos feito porque não temos tido apoios.
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Notas de M.R.:

Vd. também os postes relacionados com esta matéria em:

6 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8644: Recortes de imprensa (43): O pacto secreto de NINO com a PIDE, jornal TAL & QUAL, 14 Maio 1999 (Magalhães Ribeiro/Manuel Marinho)

9 de Agosto de 2011 >

Guiné 63/74 - P8650: Recortes de imprensa (45): Guiné: Uma diligência interrompida. Porquê? Da autoria de António Vaz Antunes (Coronel de Infantaria)

Vd. último poste desta série em:

9 de Agosto de 2011 >

Guiné 63/74 - P8650: Recortes de imprensa (45): Guiné: Uma diligência interrompida. Porquê? Da autoria de António Vaz Antunes (Coronel de Infantaria)