quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Guiné 63/74 - P8657: O Regresso dos Heróis (Domingos Gonçalves) (2): Guiné, 1968


O Regresso dos Heróis*

Por

Domingos Gonçalves**
(Ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887)


DEDICATÓRIA
A todos os colegas da CCAÇ 1546 do BCaç 1887



II - GUINÉ, 1968

Dia 1
Novo ano começa. Embora a Guiné e os seus fantasmas se continuem insurgindo à minha frente, o ano de 1968 não se apresenta sinistro. A Guiné será muito em breve para mim e para todos estes heróis que me acompanham, como que um sonho acontecido ontem, do qual raras vezes visionaremos imagens precisas. Este novo ano será para mim um ano de libertação, um ano de paz. Como alguém me escreveu, este ano poderá ser para mim um ano maravilhoso. Quando os meus olhos se deleitarem de novo a olhar o belo panorama dos montes da minha terra, cobertos do verde dos pinheiros e do cinzento das oliveiras, serei de novo feliz. E, como eu, todos estes homens da Companhia de Caçadores 1546, quando pisarem o chão de Lisboa serão homens diferentes.

Será uma nova vida que todos teremos pela frente. Será um novo futuro a sorrir às nossas vidas.
Que esse dia e essa hora não demorem a chegar!..

A convicção de que este ano não será para nós mais um ano de guerra, é já uma razão muito forte a descongestionar as nossas mentes, todo o nosso espírito, até aqui impregnado de medos e sombras.
Hoje, em rigor, não fiz nada. Foi por isso um dia de tédio... Mesmo um dia inútil...
Ao fim da tarde cacei algumas rolas... Apaga-se o tédio matando alguma coisa!.. E matar, mesmo que seja uma simples rola, causa-nos sempre um estranho prazer... Não passamos de uns reles sádicos...


Dia 2
Pelas dez horas começou a grande reza dos Mandingas. Fui assistir, a convite do régulo e dos chefes da tabanca. Realizada ao ar livre, a cerimónia, desprovida de aparato externo e de barulho, é cheio de simplicidade. Quando vejo estes homens rezar, com tanto fervor e convicção, fica-me até pena de não ser Mandinga ou Fula como eles. Na vida quotidiana destes muçulmanos a religião, com toda a sua singeleza, é fundamental.

Chegou de Farim a secção de quartéis da Companhia que nos virá render. É mais uma esperança... É o dia do regresso cada vez mais próximo...

Guidaje
Foto: Ex-1.º Cabo Radiotelegrafista Janeiro (2009). Direitos reservados


 Dia 3

De tarde saí para os lados de Guidage, a queimar o capim que se estende ao lado da estrada e que já está a ficar seco. Com estas queimadas pretende-se aumentar a visibilidade ao longo da estrada, anulando assim a possibilidade de emboscadas muito perto do itinerário que temos que percorrer.
O alferes que veio com a secção de quartéis é um doente mental muito chato. Se assim continua, antes de terminar a comissão vai maluco para a metrópole.

Se os que vieram para cá normais, no gozo perfeito das suas faculdades, acabam por ficar malucos, que destino poderá estar reservado aos que chegam aqui já contaminados, e muito, com o vírus da maluquice?


Dia 4
De tarde fui a Guidage.
A Companhia está a entregar o material à tropa que nos vem substituir. É a rendição à vista. A hora do regresso a chegar...


Dia 5
O capitão anda absolutamente maluco. Já não tem remédio. Vive só para os caprichos de que se vai alimentando, e mais nada. Cada homem para ele não passa de um simples boneco, com quem ele se farta de brincar... É um louco... Agora deu-lhe para martirizar o pessoal da secretaria com trabalho nocturno. Como de costume, levanta-se perto do meio-dia. De tarde vai de jeep para a tabanca fazer ninguém sabe o quê... Ou até se sabe! À noite dá-lhe para chatear toda a gente. Passa o tempo a berrar e a gritar. As pessoas convenceram-se de que ele é doido e, talvez por isso, vão tendo paciência para o aturar... É um homem desorganizado e sem regras...
Mas não é tarefa simples aturar um doido desta natureza, principalmente quando esse doido é chefe...
Durante quanto tempo teremos ainda que o aturar!

Binta
Foto: José Eduardo Oliveira (2009). Direitos reservados.

Dia 6

Chegaram as barcaças com o abastecimento. O 2.º Tenente que comanda a escolta ficou connosco todo o dia.
O inimigo terá sofrido 3 mortos e alguns feridos no rebentamento de uma armadilha que montei em Tenanto.


Dia 7
Ao alvorecer parti para Farim ao encontro do pelotão que ficará em Guidage no interregno da rendição. Ainda antes do almoço parti com a coluna de viaturas para o referido destacamento. Só piquei a estrada a partir de Genicó. Regressei a Binta ao entardecer. Deixei em Guidage a secção de quartéis e um alferes do Batalhão de Engenharia.

A nossa guarnição que estava em Guidage, o 4.º pelotão, também veio comigo para Binta. Aquilo já não é um pelotão de tropa, mas um grupo de homens esfarrapados. A miséria desta tropa chegou a tal ponto que já nem dão aos soldados uma farda em condições. Aparentemente somos uma tropa esfarrapada. De facto, somos todos um grupo de heróis mal vestidos e mal tratados... Dificilmente haverá no mundo um exército que trate desta maneira os seus heróis!

Agora por aqui anda tudo louco...

Estou com medo de um ataque dos turras... O grau de abandalhamento e de desmotivação é tal que, se os gajos se dignam atacar isto a sério, pode acontecer um grande desastre. Todos se comportam como se a guerra já tivesse terminado ou fosse qualquer coisa que acontece noutro mundo, muito longe de todos nós. Mas não é assim... Ainda estamos na guerra... À nossa volta, e talvez a poucas centenas de metros, para além do rio, o inimigo existe. Às vezes até me espanta o facto de ele não nos atacar com mais frequência.


Dia 8
O ambiente geral é de que iremos embora dentro de pouco tempo... Por isso, agora os dias parecem mais longos e são mais difíceis de passar... Mas lá se vão passando. O que interessa é sair o mais depressa possível deste Vietname em miniatura, fugir a esta guerra que parece não ter fim, desta guerra que apenas serve para destruir vidas, muitas vidas, mutilar pessoas, criar ódios... E enriquecer, por certo, alguns homens, que nem serão muitos.

Há na companhia, ao que parece, propostas para algumas condecorações e louvores. Se os boatos se confirmarem, e se tiverem lugar os louvores ou as condecorações de que se fala, tudo não passará de uma farsa, e de um verdadeiro ultraje à dignidade de todos estes homens. Nestas condições, para mim, pessoalmente, um louvor, ou uma condecoração, seria algo que me negaria a aceitar... Vindo da pessoa que poderia vir, isso constituiria para mim uma vergonha, ou um ultraje, e não algo de que me pudesse orgulhar...

Comenta-se por aí, e com razão, que a tribuna dos heróis está a ser ocupada por fantoches, que o sacrifício foi suplantado pela fanfarronice, que a justiça deu lugar à desvergonha, à ingratidão, às cenas de pancadaria e a um novo tipo de escravatura.
E as virtudes militares deram lugar aos relatórios majestosos, repassados de cinismo e de mentiras, onde a guerra se apresenta como vencida e o inimigo como inexistente, ou esmagado. E é este o mundo dos nossos heróis. Os que de facto o são, se é que alguns há por aí, são heróis desconhecidos... Mas, para além do mais, o que estes homens precisam, e todos nós precisamos, é, quando formos desmobilizados, de condições de emprego, de trabalho e de integração social. Com as condecorações e com os louvores de que se fala, ninguém irá resolver problema nenhum.
 A concretizarem-se os boatos que se ouvem por aí, o mundo dos nossos heróis fica muito de rastos... Será que a cobardia algum dia poderá vir a ser condecorada?


Dia 9
Acredito que a política nem sempre segue o rumo que os seus criadores desejam incutir-lhe. As ordens e as ideias que partem dos que governam chegam aos seus destinatários sempre muito deturpadas. É, talvez, o problema dos intermediários... Dos realizadores...

Hoje eu pergunto-me:
- Será que o governo, em Lisboa, está devidamente informado sobre o evoluir dos acontecimentos, de tudo o que se passa com esta guerra? Tenho muitas dúvidas. Como o que está em causa é o prestígio do exército, e o dos seus chefes, pressagiar o abandono desta guerra e o arrumar das malas, seria um golpe demasiado duro para essa gente que apenas se deleita a olhar para o ouro dos galões que traz sobre os ombros... Para muita gente não convém que a guerra termine... É talvez por isso que ela ainda irá continuar por muito mais tempo. Os generais não têm interesse em que isto termine. Com o fim da guerra eles iriam perder importância e influência, o que não lhes interessa nada. E perderiam também muito dinheiro! E todos nós sabemos que é o dinheiro, e tudo quanto com ele se consegue, quem alimenta todos estes conflitos.

Invoca-se o interesse da população... Do povo... Mas é só para atirar areia aos olhos da sociedade que se deixa cegar com muita facilidade.

O destino tem destas ironias:
- Faz-se tudo em nome do povo... Justifica-se tudo com o interesse do povo... E ele, em nome de quem tudo é feito, não beneficia, em rigor, mesmo de nada. Ele é mesmo sacrificado dia a dia, hora a hora, nesse altar iníquo que é, no nosso caso, uma torpe ideia de Império, com algum sentido em séculos passados, ou até nas primeiras décadas deste século vinte, mas que hoje, face à evolução cultural e política que pelo mundo todo vemos, não faz mais sentido. Mas, infelizmente, é em nome dessa ideia ultrapassada e torpe, que por aqui se combate, se sofre, se definha e se morre! Só não se adivinha até quando tudo continuará assim.


Dia 10
Coluna a Guidage. Foram os rebeldes. No regresso trouxeram a secção de quartéis. O alferes de Engenharia ficou em Binta por falta de transporte.


Dia 11
Antes de partirmos para a Metrópole o capitão já começou a sementeira do joio. Quer deixar aqui a erva daninha da intriga e da discórdia. Em conversa com o novo Comandante das tropas de Binta, e referindo-se ao Brayma Sonco, que o ano passado fugiu de Guidage para o Senegal, disse-lhe que o homem regressará, embora seja contribuinte do PAIGC. Estará apenas a aguardar que a nossa Companhia se vá embora. Entende que, se regressar, deve ser preso.
Nunca quis admitir que, se o homem fugiu, foi apenas por medo do que lhe poderia fazer, ou mandar fazer... Ele, capitão, foi o único causador dessa fuga.

O Brayma Sonco, até no momento em que desertou foi um homem leal... Se, como se quis insinuar, ele fosse efectivamente simpatizante do PAIGC, na altura em que desertou teria tomado outra atitude bem mais prejudicial para as nossas tropas. O homem fugiu para o Senegal, mas ocupou o seu lugar até ao último minuto... Foi-se embora mas não levou a arma nem a farda... Levou com ele apenas o seu orgulho e a sua dignidade. Roubaram-lhe a oportunidade de ser herói! Roubaram-lhe aquele momento grande em que poderia “fazer ronco,” ser espectacular! E ele não aguentou a frustração e foi-se embora...


Dia 12
O Alfange, a barcaça da Marinha de Guerra que nos levará para Bissau, é esperado com ansiedade geral. Os preparativos da partida estão concluídos. Agora é mesmo só esperar a hora do embarque... Embarcar e… partir...
Agora já ninguém pensa em mais nada. Já ninguém apaga a esperança...
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Notas de CV:

(*) O Regresso dos Heróis é um livro do nosso camarada Domingos Gonçalves (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68), edição de autor.

(**)Vd. primeiro poste da série de 8 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8648: O Regresso dos Heróis (Domingos Gonçalves) (1): Muitos anos depois

1 comentário:

Anónimo disse...

Caro Domingos Goçalves:
Ao contrário do que disseste no teu diário e não sabendo se os factos te fizeram, mais tarde, mudar de opinião, atrevo-me a discordar da tua convicção de que as condecorações e os louvores nada resolveriam, na vida dos militares, após a desmobilização.Com efeito bem sei e muitos também sabem como as condecorações pesaram positivamente, naquele crucial momento de entrar para a GNR, PSP, Judiciária, Seguros, Bancos etc. etc. etc. Claro que nem todos utilizaram em seu proveito as vantagens de tais <>, muitos deles obtidos por inegável mérito, diga-se de passagem. Pela parte que me toca, não recebi qualquer um destes documentos, sendo certo que também não os mereci.

Um grande abraço

Carvalho de Mampatá