terça-feira, 9 de agosto de 2011

Guiné 63/74 - P8651: Blogpoesia (157): Não sei qual é mais feio: / se o meu joanete, se a minha alma, se o mundo... (Luís Graça)


Lourinhã, entre a Praia da Areia Branca e a Praia de Vale de Frades > Agosto de 2011 > Pedras do meu caminho...

Foto (e texto): © Luís Graça (2011). Todos os direitos reservados


Dedicatória:

Em homenagem aos nossos médicos, que passaram pelo TO da Guiné (1961/74), em geral; e ao meu ortopedista, o Dr. Francisco Silva, em particular...  E a cima de tudo, a todos os caminhantes que, como eu, precisam das patas, das duas patas,  a da esquerda e ada direita, para caminhar... e aprender que o caminho se faz... caminhando, como dizia o poeta. (LG)

Não sei qual é mais feio:
se o meu joanete, se a minha alma, se o mundo…


Fui fazer um raio X
à pata, esquerda.
É tão feio o esqueleto, assim descarnado.
Uma merda, dirá o poeta, desbocado,
pondo os pontos nos ii.
Mesmo que não seja o esqueleto, inteiriço,
que seja apenas uma pata,
até mesmo só a pata esquerda,
la gamba sinistra,
como dizem os italianos,
a pata que em todo o caso
já calçou muita bota
cambada, cardada,
civil e militar.
Tanto a esquerda como a direita, pois claro,
que ambas aprenderam
a andar a toque de caixa...
- Esquerda, direita, esquerda! -
e já levaram muita pisadela nos calos.

- É uma merda, doutor, o esqueleto
visto  ao negatoscópio.
Nem sequer no livro de anatomia,
eu gosto de te ver, ó esqueleto meu!
 O ortopedista não concorda:
Afinal, é onde ele põe a mão
e ganha o pão nosso de cada dia.
P'ra mim, desculpem-me a franqueza,
todos os meus amigos hipocráticos,
e todos os meus camaradas, medalhados ou não,
é feio o esqueleto, assim radiografado.
Nu.
Sem pêlo.
Sem chicha.
Sem embrulho.
Sem a farda.
Sem os galões.
Sem as medalhas.
Sem os tendões.
Sem os ligamentos.
Sem o papel celofane.
Sem a epiderme.
Sem o nervo à flor da pele.

É peremptório o relatório, médico:
Tenho o dedo grande do pé todo torto.
Dois dedos encavalitados.
Um joanete.
Um trambolho.
Sequelas, quiçá, da vida,
das tropelias da vida,
das pedras das vielas e calçadas,
dos trambolhões da tropa, da Guiné, eu sei lá!,
das marchas a mata-cavalos.
das cambanças
por lalas e bolanhas,
por rios e tarrafos.
- Faca com ele, o joanete!-,
diz o ortopedista,
franzindo o sobrolho.

Fui fazer um ressonância magnética.
À alma.
Translúcida como uma alforreca,
espalmada como um linguado do estuário do Tejo.
- É feia a alma -,
diz-me o imagiologista,
quebrando o dever de reserva da intimidade
e de sigilo profissional.
Mas eu não posso deixar de concordar:
É feia, a alma, sem carne nem osso.
- Tens um diabrete a atormentá-la,
um irã mau -,
diz-me o Doc, curandeiro, balanta,
do Largo de São Domingos,
na baixa lisboeta,
cais de náufragos do império.
Sequelas porventura do tempo, diz ele,
em que fui o guardião de Nhabijões
onde o bulldozer deitou abaixo todos os sagrados poilões,
porque reordenar era preciso…

- Opero ou não opero,
eis a minha questão existencial -,
segrega-me ao ouvido
o meu cirurgião da alma,
com a maior calma,
diga-se, deste mundo.

Faço uma tomografia axial computorizada
ao mundo.
Ao meu planeta outrora azul.
Entre o tá-tá-tá e o pum-pum-pum do aparelho,
passo em revista o meu mundo,
descubro-o medonho, pavoroso, cavernoso.
Mais feio que o meu joanete,
Mais lúgubre que a minha alma.
Tem um cancro, generalizado,
local, regional, global.
Com metástases por todo o corpo,
da crosta ao coração,
ao mais fundo do fundo,
do osso até ao tutano.

Fui, com o meu planeta outrora azul,
à Oncologia,
baixaram a cabeça,
em sinal de impotência e negação:
- Em boa verdade,
não sei como extirpá-lo,
não há ciência e tecnologia médicas
para tamanha patologia,
diz-me o cirurgião do mundo…

Explicou-me,
em traços largos,
com um desenho
na irrisória capa de uma revista cor de rosa,
o prognóstico, reservado:
- Não há mais mundo, meu caro…
Muito menos azul ou rosa, verde ou vermelho.
Não há mais mundo à volta da carne,
do osso, da pata, do joanete, da alma…

Resta-me,
impávido e sereno,
o verídico do Dr. Francisco Silva,
meu amigo e camarada da Guiné,
irã bom do poilão da minha tabanca,
que tem encontro marcado com o meu pé, esquerdo.
A partir do dia 1 de Setembro.
- Depois das férias,
vamos começar por tratar desse joanete…

(E eu tenho a secreta esperança,
confesso,
de que,  se a minha pata ficar mais bonita,
a minha alma também fica mais jeitosa…
e quiçá o mundo melhore um bocadinho!)

Luis Graça
Caminhante, entre o Vale de Frades e o Paimogo,
muitas vezes sem rede...

Lourinhã, Agosto de 2011


________________

Nota do editor:

Último poste da série > 5 de Agosto de 2011 >
Guiné 63/74 - P8641: Blogpoesia (156): O Sonho e a Realidade ou a angústia de uma sentinela (Juvenal Amado)

12 comentários:

Anónimo disse...

Meu caro L.Graça

Sem esqueleto éramos uns invertebrados (salvo seja).
Já agora deixa-te operar.
Essa "porra" é complicada no pós-operatório,mas pior do que estás não ficas.
Um alfa bravo

C.Martins

Anónimo disse...

Professor Luís Graça!

Vai ver, que o Dr. Francisco Silva vai por o seu pé todo janota, apesar de não ser fácil nem agradável, agora o nosso mundo é que, não há remédio que lhe valha...só um milagre!..

Somos náufragos!

Estamos à deriva!

Boas férias.

Um abraço

Felismina Costa

Anónimo disse...

Carissimo Luis

Fui operado ao joanete do pé esquerdo nos anos oitenta,e foi uma boa decisão, porque estou bem.

O pós operatório custa um pouco,mas o balanço é positivo, pois já passaram quase trinta anos.

Desejo que te corra tudo bem.

Um grande abraço deste teu ex-camarada de Companhia

António Marques

Sotnaspa disse...

Luis

Mantêm-te firme como o fizeste na Guiné, que essa operação, vai ser como um palitar de dentes, comparada com as que fizeste no L1.

Muita saúde e sorte.

Um alfa bravo do

ASantos
SPM 2558

Anónimo disse...

Amigo Luís,
Com receio da operação? Não acredito. Não custa nadinha, vai ver que até vai gostar.
Vai correr tudo bem.
Abraços
Filomena

Juvenal Amado disse...

Pois é Luís

Não vai custar nada pelo o menos a mim.
O pé tem conserto agora a alma não sei. Tens que te informar melhor. Quanto ao Mundo já a minha avó dizia «Adeus Mundo de Mal a Pior»

Desculpa a brincadeira e boas e rápidas melhoras, pois as época das transferências milionários está aí para Dezembro.

Um abraço

Hélder Valério disse...

Caro camarigo Luís Graça

Desculpa, mas não acredito na pieguice que está associada a esta tua aparente ansiedade.
Já por alturas do Natal passado foi a questão da dor ciática...
Agora o joanetezito....

Acho que o que tu queres é mimo! Colinho!

Pronto, faça-se a vontade!
Aqui vão então os votos para que tudo corra bem, o palpite de que não vai custar nada, ficas como novo, a certeza que a recuperação é um 'bocadito complicada' mas nada que alguém que já teve outros 'encontros imediatos' não consiga superar com êxito e, por assim dizer, com 'uma perna às costas'.

Fica bem, amigo, e continuação de boas férias...

Abraço
Hélder S.

a2rodrigues disse...

amigo Luis, caminha em frente, o caminho faz-se caminhando, se tu tens receio que hei-de eu dizer e ou pensar, temos de caminhar percorrer o caminho traçado e por nos calcorreando para seguirmos sempre em frente e cabeça erguida, so assim seguimos a linha do horizonte que fica mais uns pontos á frente... abraço, e a gente se encontra lá mais pra frente...

Luís Dias disse...

Camarigo Luís Graça

Se tens disposição e ânimo para escrever sobre esse "rochedo" que te incomoda, é porque já te decidiste e bem sobre a forma de acabares com esse desconforto.
Muita força e depois de o inimigo estar localizado e devidamente cercado é de avançar e atacar com todo o poder de fogo de que és capaz, com o apoio de fogos imprescindível da unidade hospitalar e sob o comando de quem já fez, de certeza, largas dezenas dessas operações - o teu médico.
Vai-te a ele, sem contemplações e neste caso, sem necessidade de fazer prisioneiros.
Um abraço
Luís Dias

José Luis Moreira disse...

Caro Luís Graça
Umas semanas após o retoque, vai sentir o quão importante foi a reparação da base do pedestal que suporta a obra-prima.
Abraço

Luís Graça disse...

Mesmo com "pouca" rede (falo da Net), fico superconfortado com a "rede social" de apoio que também é a nossa Tabanca Grande, enfim com a manifestação do carinho e da amizade de vocês todos... Muito obrigado a quem teve a gentileza de comentar a minha lengalenga...

Mas, acreditem, não sou piegas (julgo que não) e muito menos masoquista (espero bem que não)... E já agora: não gostaria de ter nascido... invertebrado, meu caro Dr. Martins!

Queria que lessem este texto como "material poético (e filosófico)" que é (ou pretendia ser)... Julgava que vos divertia, de algum modo... Parece que errei o alvo... Para mim, é um pura diversão ou brincadeira... A brincar (mesmo com coisas sérias), também se exorcizam fantasmas...

Não fiquem, portanto, preocupados comigo nem muito menos com o meu esqueleto que um dia gostaria de doar aos homens e às mulheres das ciências biomédicas (se lhe acharem alguma utilidade lou valia).

Estou em boas mãos, as do nosso camarada Dr. Francisco Silva, que trabalha no Hospital Amadora-Sintra (passe a publicidade...). Boas férias na Madeira, Francisco!

Um xicoração. Luís Graça (também em "vacanças")

Joaquim Luís Monteiro Mendes Gomes disse...

Força...força...Amigo GraçA!
Vai correr tudo bem. Ficamos a torcer por isso.
Um grande abraço
JMendesGomes