Lourinhã, entre a Praia da Areia Branca e a Praia de Vale de Frades > Agosto de 2011 > Pedras do meu caminho...
Foto (e texto): © Luís Graça (2011). Todos os direitos reservados
Em homenagem aos nossos médicos, que passaram pelo TO da Guiné (1961/74), em geral; e ao meu ortopedista, o Dr. Francisco Silva, em particular... E a cima de tudo, a todos os caminhantes que, como eu, precisam das patas, das duas patas, a da esquerda e ada direita, para caminhar... e aprender que o caminho se faz... caminhando, como dizia o poeta. (LG)
Não sei qual é mais feio:
se o meu joanete, se a minha alma, se o mundo…
Fui fazer um raio X
à pata, esquerda.
É tão feio o esqueleto, assim descarnado.
Uma merda, dirá o poeta, desbocado,
pondo os pontos nos ii.
Mesmo que não seja o esqueleto, inteiriço,
que seja apenas uma pata,
até mesmo só a pata esquerda,
la gamba sinistra,
como dizem os italianos,
a pata que em todo o caso
já calçou muita bota
cambada, cardada,
civil e militar.
Tanto a esquerda como a direita, pois claro,
que ambas aprenderam
a andar a toque de caixa...
- Esquerda, direita, esquerda! -
e já levaram muita pisadela nos calos.
- É uma merda, doutor, o esqueleto
visto ao negatoscópio.
Nem sequer no livro de anatomia,
eu gosto de te ver, ó esqueleto meu!
O ortopedista não concorda:
Afinal, é onde ele põe a mão
e ganha o pão nosso de cada dia.
P'ra mim, desculpem-me a franqueza,
todos os meus amigos hipocráticos,
e todos os meus camaradas, medalhados ou não,
é feio o esqueleto, assim radiografado.
Nu.
Sem pêlo.
Sem chicha.
Sem embrulho.
Sem a farda.
Sem os galões.
Sem as medalhas.
Sem os tendões.
Sem os ligamentos.
Sem o papel celofane.
Sem a epiderme.
Sem o nervo à flor da pele.
É peremptório o relatório, médico:
Tenho o dedo grande do pé todo torto.
Dois dedos encavalitados.
Um joanete.
Um trambolho.
Sequelas, quiçá, da vida,
das tropelias da vida,
das pedras das vielas e calçadas,
dos trambolhões da tropa, da Guiné, eu sei lá!,
das marchas a mata-cavalos.
das cambanças
por lalas e bolanhas,
por rios e tarrafos.
- Faca com ele, o joanete!-,
diz o ortopedista,
franzindo o sobrolho.
Fui fazer um ressonância magnética.
À alma.
Translúcida como uma alforreca,
espalmada como um linguado do estuário do Tejo.
- É feia a alma -,
diz-me o imagiologista,
quebrando o dever de reserva da intimidade
e de sigilo profissional.
Mas eu não posso deixar de concordar:
É feia, a alma, sem carne nem osso.
- Tens um diabrete a atormentá-la,
um irã mau -,
diz-me o Doc, curandeiro, balanta,
do Largo de São Domingos,
na baixa lisboeta,
cais de náufragos do império.
Sequelas porventura do tempo, diz ele,
em que fui o guardião de Nhabijões
onde o bulldozer deitou abaixo todos os sagrados poilões,
porque reordenar era preciso…
- Opero ou não opero,
eis a minha questão existencial -,
segrega-me ao ouvido
o meu cirurgião da alma,
com a maior calma,
diga-se, deste mundo.
Faço uma tomografia axial computorizada
ao mundo.
Ao meu planeta outrora azul.
Entre o tá-tá-tá e o pum-pum-pum do aparelho,
passo em revista o meu mundo,
descubro-o medonho, pavoroso, cavernoso.
Mais feio que o meu joanete,
Mais lúgubre que a minha alma.
Tem um cancro, generalizado,
local, regional, global.
Com metástases por todo o corpo,
da crosta ao coração,
ao mais fundo do fundo,
do osso até ao tutano.
Fui, com o meu planeta outrora azul,
à Oncologia,
baixaram a cabeça,
em sinal de impotência e negação:
- Em boa verdade,
não sei como extirpá-lo,
não há ciência e tecnologia médicas
para tamanha patologia,
diz-me o cirurgião do mundo…
Explicou-me,
em traços largos,
com um desenho
na irrisória capa de uma revista cor de rosa,
o prognóstico, reservado:
- Não há mais mundo, meu caro…
Muito menos azul ou rosa, verde ou vermelho.
Não há mais mundo à volta da carne,
do osso, da pata, do joanete, da alma…
Resta-me,
impávido e sereno,
o verídico do Dr. Francisco Silva,
meu amigo e camarada da Guiné,
irã bom do poilão da minha tabanca,
que tem encontro marcado com o meu pé, esquerdo.
A partir do dia 1 de Setembro.
- Depois das férias,
vamos começar por tratar desse joanete…
(E eu tenho a secreta esperança,
confesso,
de que, se a minha pata ficar mais bonita,
a minha alma também fica mais jeitosa…
e quiçá o mundo melhore um bocadinho!)
Luis Graça
Caminhante, entre o Vale de Frades e o Paimogo,
muitas vezes sem rede...
Lourinhã, Agosto de 2011
________________
Nota do editor:
Último poste da série > 5 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8641: Blogpoesia (156): O Sonho e a Realidade ou a angústia de uma sentinela (Juvenal Amado)
à Oncologia,
baixaram a cabeça,
em sinal de impotência e negação:
- Em boa verdade,
não sei como extirpá-lo,
não há ciência e tecnologia médicas
para tamanha patologia,
diz-me o cirurgião do mundo…
Explicou-me,
em traços largos,
com um desenho
na irrisória capa de uma revista cor de rosa,
o prognóstico, reservado:
- Não há mais mundo, meu caro…
Muito menos azul ou rosa, verde ou vermelho.
Não há mais mundo à volta da carne,
do osso, da pata, do joanete, da alma…
Resta-me,
impávido e sereno,
o verídico do Dr. Francisco Silva,
meu amigo e camarada da Guiné,
irã bom do poilão da minha tabanca,
que tem encontro marcado com o meu pé, esquerdo.
A partir do dia 1 de Setembro.
- Depois das férias,
vamos começar por tratar desse joanete…
(E eu tenho a secreta esperança,
confesso,
de que, se a minha pata ficar mais bonita,
a minha alma também fica mais jeitosa…
e quiçá o mundo melhore um bocadinho!)
Luis Graça
Caminhante, entre o Vale de Frades e o Paimogo,
muitas vezes sem rede...
Lourinhã, Agosto de 2011
________________
Nota do editor:
Último poste da série > 5 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8641: Blogpoesia (156): O Sonho e a Realidade ou a angústia de uma sentinela (Juvenal Amado)
12 comentários:
Meu caro L.Graça
Sem esqueleto éramos uns invertebrados (salvo seja).
Já agora deixa-te operar.
Essa "porra" é complicada no pós-operatório,mas pior do que estás não ficas.
Um alfa bravo
C.Martins
Professor Luís Graça!
Vai ver, que o Dr. Francisco Silva vai por o seu pé todo janota, apesar de não ser fácil nem agradável, agora o nosso mundo é que, não há remédio que lhe valha...só um milagre!..
Somos náufragos!
Estamos à deriva!
Boas férias.
Um abraço
Felismina Costa
Carissimo Luis
Fui operado ao joanete do pé esquerdo nos anos oitenta,e foi uma boa decisão, porque estou bem.
O pós operatório custa um pouco,mas o balanço é positivo, pois já passaram quase trinta anos.
Desejo que te corra tudo bem.
Um grande abraço deste teu ex-camarada de Companhia
António Marques
Luis
Mantêm-te firme como o fizeste na Guiné, que essa operação, vai ser como um palitar de dentes, comparada com as que fizeste no L1.
Muita saúde e sorte.
Um alfa bravo do
ASantos
SPM 2558
Amigo Luís,
Com receio da operação? Não acredito. Não custa nadinha, vai ver que até vai gostar.
Vai correr tudo bem.
Abraços
Filomena
Pois é Luís
Não vai custar nada pelo o menos a mim.
O pé tem conserto agora a alma não sei. Tens que te informar melhor. Quanto ao Mundo já a minha avó dizia «Adeus Mundo de Mal a Pior»
Desculpa a brincadeira e boas e rápidas melhoras, pois as época das transferências milionários está aí para Dezembro.
Um abraço
Caro camarigo Luís Graça
Desculpa, mas não acredito na pieguice que está associada a esta tua aparente ansiedade.
Já por alturas do Natal passado foi a questão da dor ciática...
Agora o joanetezito....
Acho que o que tu queres é mimo! Colinho!
Pronto, faça-se a vontade!
Aqui vão então os votos para que tudo corra bem, o palpite de que não vai custar nada, ficas como novo, a certeza que a recuperação é um 'bocadito complicada' mas nada que alguém que já teve outros 'encontros imediatos' não consiga superar com êxito e, por assim dizer, com 'uma perna às costas'.
Fica bem, amigo, e continuação de boas férias...
Abraço
Hélder S.
amigo Luis, caminha em frente, o caminho faz-se caminhando, se tu tens receio que hei-de eu dizer e ou pensar, temos de caminhar percorrer o caminho traçado e por nos calcorreando para seguirmos sempre em frente e cabeça erguida, so assim seguimos a linha do horizonte que fica mais uns pontos á frente... abraço, e a gente se encontra lá mais pra frente...
Camarigo Luís Graça
Se tens disposição e ânimo para escrever sobre esse "rochedo" que te incomoda, é porque já te decidiste e bem sobre a forma de acabares com esse desconforto.
Muita força e depois de o inimigo estar localizado e devidamente cercado é de avançar e atacar com todo o poder de fogo de que és capaz, com o apoio de fogos imprescindível da unidade hospitalar e sob o comando de quem já fez, de certeza, largas dezenas dessas operações - o teu médico.
Vai-te a ele, sem contemplações e neste caso, sem necessidade de fazer prisioneiros.
Um abraço
Luís Dias
Caro Luís Graça
Umas semanas após o retoque, vai sentir o quão importante foi a reparação da base do pedestal que suporta a obra-prima.
Abraço
Mesmo com "pouca" rede (falo da Net), fico superconfortado com a "rede social" de apoio que também é a nossa Tabanca Grande, enfim com a manifestação do carinho e da amizade de vocês todos... Muito obrigado a quem teve a gentileza de comentar a minha lengalenga...
Mas, acreditem, não sou piegas (julgo que não) e muito menos masoquista (espero bem que não)... E já agora: não gostaria de ter nascido... invertebrado, meu caro Dr. Martins!
Queria que lessem este texto como "material poético (e filosófico)" que é (ou pretendia ser)... Julgava que vos divertia, de algum modo... Parece que errei o alvo... Para mim, é um pura diversão ou brincadeira... A brincar (mesmo com coisas sérias), também se exorcizam fantasmas...
Não fiquem, portanto, preocupados comigo nem muito menos com o meu esqueleto que um dia gostaria de doar aos homens e às mulheres das ciências biomédicas (se lhe acharem alguma utilidade lou valia).
Estou em boas mãos, as do nosso camarada Dr. Francisco Silva, que trabalha no Hospital Amadora-Sintra (passe a publicidade...). Boas férias na Madeira, Francisco!
Um xicoração. Luís Graça (também em "vacanças")
Força...força...Amigo GraçA!
Vai correr tudo bem. Ficamos a torcer por isso.
Um grande abraço
JMendesGomes
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