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quarta-feira, 13 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25267: 20.º aniversário do nosso blogue: Alguns dos nossos melhores postes de sempre (3): "Liberdade ou evasão: o mais longo cativeiro da guerra", de António Lobato (1938-2023) (excertos do livro e notas de leitura de Mário Beja Santos)

 

António Lobato (1938-2024), maj pil av ref  (*): 
É bem evidente a marca da catanada na região frontal, que lhe foi desferida em 22 de maio de 1963, na ilha do Como, por um habitante local.


O António Lobato entrevistado em 1996, num programa da RTP1, "Operação Mar Verde - Parte l", Série "Enviado Especial",  apresentado pelo  jornalista José Manuel Barata-Feyo,   em 7 de julho de 1997. Fotograma capturado e editado, com a devida vénia à RTP Arquivos. (Vídeo: 17' 38'').
 


I. é uma pequena homenagem do nosso blogue ao camarada maj pil av ref António Lobato (Melgaço, 1938 - Lisboa, 2024) (**). Reunimos aqui alguns excertos do seu livro "Liberdade ou Evasão: o mais longo cativeiro da guerra", que teve pelo menos 5 edições (entre 1995 e 2014). A maior parte dos nossos leitores nunca o leu. 

O nosso crítico literário, Mário Beja Santos, recenbseou  aqui a 2ª (1996) e a 5ª edição (2014). Reunimos, entretanto, o essencial das suas notas de leitura: P20534, P20555, P20577 (com a devida vénia...)

(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos e itálicos: LG)



Capa da primeira ediçáo (1995, Erasmios, Amadora)

´

Capa da quinta ediçáo (2014, DG, Linda-A-Velha)


1. A narrativa do major pil av António Lobato melhora de edição para edição, estou consciente que este aprimoramento vem da reflexão a que ele tem procedido, o que dá um caráter mais intimista à história do seu cativeiro. E, no entanto, somos agarrados sem qualquer possibilidade de despegar a nossa atenção tão avassaladora, veja-se logo aquela aterragem que lhe salva a vida em condições excecionais:  

"O ponto de contacto com o solo confirma-me a justeza do planeamento, mas surge um imprevisto que do ar foi impossível de detectar - o terreno não é totalmente liso; sulcos profundos, espaçados metro a metro, cortam-no de lés a lés. É uma bolanha, terreno preparado para a cultura do arroz. 

"Ao intradorso das asas do T-6 estão suspensas duas metralhadoras Browning, saliências que, ao entrar nos sulcos da bolanha, oferecem uma forte resistência ao deslizar do avião no solo. Atendendo a que este tipo de aterragem é feito com o trem recolhido, o entrar das metralhadoras num dos sulcos teve o efeito de arrancar instantaneamente as asas à aeronave. Fico sentado dentro de um charuto que rebola agora dentro de si mesmo, ao longo do terreno".

E assim vai começar o cativeiro, o mais longo cativeiro da guerra. Um relato superior, de um homem que soube superar a adversidade, que procurou fugir, mas que teve que esperar pela Operação Mar Verde para ser restituída a liberdade. (...)
 

2. (...) No prólogo das diferentes edições do seu livro, dá-nos uma síntese dos acontecimentos e da situação que viveu, nestes termos precisos:

“Em 1963, no céu português da Guiné, dois aviões da Força Aérea colidem na sequência de uma missão de ataque ao solo e após um deles ter sido atingido por projécteis inimigos.

"Um dos aparelhos despenha-se em plena selva e o piloto morre; o outro, aterra de emergência numa bolanha e o piloto, depois de agredido à catanada pela população local é capturado por guerrilheiros do PAIGC e conduzido à vizinha República da Guiné Conacri. Aí, é-lhe facultado optar entre e deserção e a cadeia.

"Optando pela fidelidade aos princípios do seu povo, é encarcerado na temível Maison de Force de Kindia, com o rótulo de criminoso de guerra.

"Durante sete anos e meio é submetido a maus-tratos, subnutrição, isolamento e contínuas ameaças de morte pelos agentes de um governo pró-soviético chefiado por um dos maiores tiranos da África Ocidental – Sékou Touré.

"Tenta três vezes a evasão, mas só na última consegue respirar, durante uma semana, o ar fresco da liberdade. Percorre cerca de noventa quilómetros em plena selva, atravessando a cadeia montanhosa do Futa Djalon em direção à Guiné Portuguesa. Ao sexto dia, é recapturado e reconduzido à prisão de onde partira.

"Ao cabo de mês e meio de total isolamento, é transferido de prisão e libertado, tempos depois, durante a Operação Mar Verde, chefiada pelo Comandante Alpoim Calvão.

"É por instâncias de familiares e amigos, por dever de cidadania e para comemorar os vinte e cinco anos do regresso à liberdade que hoje se propõe condensar em curtas páginas, não apenas os horrores, mas sobretudo algumas das vias possíveis de sobrevivência no meio hostil e o consequente enriquecimento da pessoa humana, quando, perante situações-limite, consegue vencer-se a si próprio”. (...)

Não se irá aqui cotejar as inúmeras alterações introduzidas de edição para edição. O que se pretende relevar é a melhoria substancial da qualidade literária e a introdução de um processo intimista, em edição recente, António Lobato revela as estratégias de que se socorreu para que a tremenda solidão da clausura não o destruísse, pelo menos moral e psicologicamente.

Fala-nos da sua juventude  em Paderne, como se alistou jovem na Força Aérea, depois temos o curso de pilotagem em S. Jacinto, a fase básica na Base Aérea n.º 1 em Sintra, em 22 de maio de 1958, um acidente quase que o ia matando, após dois meses de imobilização, e ao fim de cerca de oito meses de treino intensivo, ei-lo pronto para voar mais alto. Tem 21 anos e é-lhe confiada a tarefa e a responsabilidade de ensinar outros a voar. E, como ele escreve, em 1960 rebenta a guerra colonial.

 A Força Aérea não possui na Guiné qualquer tipo de estrutura. Em julho de 1961, em companhia de um outro camarada, seguirá para a Guiné em missão de soberania. 

Em 19 de setembro de 1961 descola pela primeira vez da pista de Bissalanca aos comandos de um T-6. Descreve com incisão e economia todos estes acontecimentos, casa-se, regressa à Guiné com a mulher e em 21 de maio de 1963 parte em missão para a Ilha do Como, um acidente obriga-o a uma aterragem de emergência, aterra no Tombali, é ferido e levado por guerrilheiros do PAIGC para território da Guiné Conacri.

Não é despiciendo observar como naquela região do Tombali há população afeta ao PAIGC e os guerrilheiros movimentam-se com certo à-vontade. A guerrilha tinha capturado um barco da Sociedade Comercial Ultramarina, de nome Bandim, transportará Lobato para o cativeiro. 

É bem tratado em Sansalé, tem feridas graves na cabeça e num braço. Seguem no Bandim até Boké. Segue-se um prolongado interrogatório. É interrogado, pretendem saber qual o regime político em Portugal, o que ele sabe da situação colonial, Lobato remete-se ao silêncio, depois de ter dado os seus dados militares, depois de uma longa viagem entra na Maison de Force de Kindia 

(...) “Entramos num hexágono aberto para o céu, com duas portas em cada um dos seis lados. Encaminham-me para a direita e indicam-me uma dessas portas, em ferro maciço, com o número 7 ao centro, encimada por uma grelha, feita em varão de diâmetro não inferior a 3 centímetros. 

"Entro e a pesada porta fecha-se atrás de mim com aquele ruído sinistro das portas de todas as prisões do mundo. Dou quatro passos e chego ao fim do espaço de que posso dispor. 

"Do lado direito, fazendo corpo com a parede e até dois terços de comprimento, ergue-se, até à altura de sessenta centímetros, um bloco maciço de cimento armado sobre o qual assenta um velho colchão de pano cheio de palha. Depreendo que é a minha cama. 

"Não sei bem porquê, mas sinto um forte cansaço. Sinto-me deprimido como antes nunca me tinha sentido. Apetece-me chorar. Atiro-me para cima da palhaça e não consigo conter os soluços que me sufocam. Choro tudo o que tenho a chorar e adormeço no cume da infelicidade”. (...)

Segue-se a descrição do dia-a-dia, ele é o prisioneiro da cela n.º 7, falam-nos do currículo de Sékou Touré e como ele mantém o seu regime de terror; vamos saber como é a sua cela, a degradação a que vai ser sujeito, o início da sua luta para se manter corajoso. 

A condição física começa a dar sinais de ruína, como ele próprio comenta:  

(...) “Porque não como uma boa parte das magras refeições, sinto que vou perdendo, lenta mas seguramente, toda a pujança da juventude; porque não me é fornecido qualquer tipo de medicamento, começa a ter fortes ataques de paludismo; porque a alimentação é pobre demais, a cárie dentária torna-se num flagelo; porque permaneço imóvel horas sem fim, começo a ter problemas de bexiga, a urinar pus e a sentir dores de barriga e cólicas insuportáveis. 

"Os ataques de paludismo surgem a uma cadência semanal e manifestam-se por acessos de frio, que me obrigam a bater os dentes durante horas, seguidos de vagas de calor, que me deixam exausto e banhado em suor. As dores de dentes, por vezes são tão intensas que me perturbam a visão e provocam vómitos e tonturas próximas do desmaio. A degradação do meu estado físico, se, por um lado, é dolorosa e me perturba a mente, por outro, prende-me o pensamento ao corpo e não me deixa grandes hipóteses de fuga em busca de recordações bem mais amargas que as dores da carne”. (...)


3.  (...) Descreve primorosamente a luta para se manter racional, para ir resistindo a um corpo que perde tonicidade, ocupa a mente e um dia vem até ao pátio, o recluso pode conviver.

Começam as peripécias, com todos os riscos: escreve à família, dá a sua localização, várias vezes procura a evasão, sempre sem sucesso. A liberdade irá chegar a 22 de novembro de 1970, no decurso da Operação Mar Verde. 

O seu regresso deixa-o atordoado, não pode falar do seu cativeiro, vai à televisão contar umas patranhas. E volta ao seu mundo dos aviões. E terminará o dia numa conferência citando o personalista cristão Emmanuel Mounier:

"Falta uma dimensão ao homem que não conheceu a prisão".

Não se entende como esta obra não encontrou um editor comercial, é um testemunho único. Vamos agora à edição de 2014, o agora Major Lobato remexeu na obra, deu-lhe outra palpitação sem renegar o escopo inicial. Esta edição catapulta o testemunho de Lobato para o patamar das grandes obras da literatura da guerra da Guiné.


4. Estamos a seguir de perto a edição de 1995, mais tarde tomar-se-á em conta as edições introduzidas na 5.ª edição, de janeiro de 2014, ver-se-á como o testemunho do Sargento Lobato ganhou em vibração literária, em intimismo, em vigor sobre a reflexão de um cativeiro. Ele é o preso da cela n.º 7, em Kindia, Guiné Conacri. 

Procura aperceber-se de quem são os outros presos, vai-se cronometrando com as rotinas, o dia que começa com várias portas de ferro a ranger nos gonzos, as latrinas fétidas removidas das celas, Lobato tem dois baldes, um deles serve de sanita, o outro contém água para beber, para se lavar e para substituir o papel higiénico. 

Põe a mente a funcionar, é preciso resistir à loucura ou ao embrutecimento. Os sentidos afinam-se, a sua capacidade de sobreviver também. O almoço é constituído por quatro bananas cozidas. Pesquisa à volta, põe os sentidos a funcionar, passa por um estado de dormência.

(...) “A minha cabeça está dorida e muito sensível. O simples toque dos dedos nos cabelos parece fazê-los enterrar-se, como espinhos, pelo crânio dentro. Este voltar do meu interesse para o corpo diz-me que continuo consciente da realidade vulgar, mas alerta-me também para outra realidade, muito mais real: é que bastou um simples avivar de sentimentos, provocado por um olhar para o firmamento, para desfazer a ilusão em que sempre tenho vivido de que o corpo sou Eu”. (...)

Põe os ouvidos à escuta, adapta-se às rotinas da prisão, às orações dos muçulmanos, toma consciência de que perde tónus, surgiu a cárie dentária, há momentos de grande desânimo:

(...) “Há cerca de três meses que oscilo entre o ser e o nada. Ou enlouqueço, ou me anulo, ou faço qualquer coisa para sobreviver até onde for fisicamente possível. Este estado caótico dentro de mim chegou ao limite do suportável. Isto que agora me tritura a alma, deve chamar-se desespero”. (...)

Dá luta aos percevejos, vai descobrindo a resiliência, tudo faz para se manter lúcido, doseia a plena atenção com o entorpecimento:

(...) “Quando o coração já não é mais que uma chaga e nem sequer reage aos golpes do punhal da lembrança; quando já não posso mais porque o cérebro, extenuado, se recusa a pensar por mais tempo e a evocar ou a lembrar-se; então a besta reclama, atiro-me para cima do catre e adormeço profundamente. 

"Ao acordar, tudo renasce, recomeço a evocar, a lembrar-me, de novo a sofrer mas com resignação. Consolo-me com a vitória de ter enfrentado a dor, de a ter vencido, de não lhe ter fugido e de ter ganho qualquer coisa de muito preciso que me ajuda a crescer”. (...) 

Depois de um ano de isolamento, é-lhe facultada uma hora de recreio todos os dias, pode agora observar seres humanos e aperceber-se melhor de tudo quanto se passa dentro da prisão. Encontra leprosos, tuberculosos, sifilíticos, gente que vai morrer. 

Então encontra alguém que se chama Chambord Lambert Joseph Alexandre Raymond e que lhe abre espaço para escrever para o exterior. Em 28 de novembro de 1964, da sua cela vedada com cimento e ferro, sai um código e o relatório da missão do dia 22 de maio de 1963, junta informações sobre a prisão em que se encontra, dedica alguma poesia a pessoas que ama profundamente, é de uma extrema beleza a mensagem que manda à mulher:

(...) “Durante toda esta ausência que tanto nos faz sofrer, neste abismo de miséria que submerge, nas horas que tudo me abandona, a fé inclusive, é sempre a tua imagem que me ajuda a flutuar, que me impede do naufrágio irreparável”. (....)

Encontra outro soldado português capturado, António Lauro, de Sernancelhe. Recebe propostas do PAIGC para denunciar a guerra colonial e partir para o exílio, tudo recusa. Aparecem dois graduados portugueses, Rosa e Vaz. Rosa é alferes miliciano e foi capturado em Bissássema, virá a escrever o seu testemunho, cuja recensão existe no blogue. O testemunho de Lobato vai falar das tentativas de fuga e os seus insucessos, na última andará uma semana a monte.

E em 22 de novembro de 1970, acontece a liberdade. Durante a Operação Mar Verde, um grupo assalta a prisão e liberta os 23 cidadãos portugueses, prisioneiros de guerra. Atravessam Conacri e embarcam num vaso da Armada, Lobato é apresentado a Alpoim Calvão, este está inquieto, teme que os aviões MIG, que não tinham sido destruídos, possam vir no alcance dos navios da Armada. Mas nada acontece, o contingente regressa até à ilha de Soga, daqui Lobato é transportado para Bissalanca.

Em 26 de novembro, todos os prisioneiros de guerra aterram na Portela e vão no autocarro para o Forte de Catalazete, estão oito dias consecutivos trancados numa sala com luz artificial e guardados por dois inspetores da DGS. 

Lobato interroga-se se saiu de uma prisão para entrar noutra. Ao fim de oito dias, aparece um coronel da Força Aérea com a missão de propor a liberdade desde que se comprometa a guardar segredo sobre o que sabe do desembarque em Conacri e ir à televisão contar uma evasão fictícia. Lobato está estarrecido, tem que aceitar.

Finalmente vai encontrar-se com a família, segue com a mulher e os pais para Melgaço, onde é recebido apoteoticamente

Passam-se meses sem que a Força Aérea o convoque, Lobato escreve uma carta a Marcello Caetano, é então chamado a Lisboa onde o Chefe do Estado-Maior da Força Aérea o recebe com gritaria e ameaças. 

O importante é que Lobato volta aos aviões, termina o seu relato falando de uma conferência que fez na Academia da Força Aérea e onde referiu que o choque que o indivíduo sofre quando é brutalmente retirado do seu ambiente habitual e colocado em condições precárias de sobrevivência coloca-o frente a frente consigo como se de duas pessoas distintas se tratasse. 

É uma luta transfigurante, tão intensa como a dialética interior à procura de uma fresta que mantenha o homem no limiar da razão. Lobato conseguiu fundir numa união racional aquilo que prevalece do homem social com o indivíduo.

(...) “A partir do instante em que há passagem do ponto crítico com luz à reconciliação, acede-se a um estado de paz interior, a uma lucidez parente próxima da clarividência, a um racionalismo em que nada existe de insignificante. O que ainda resta da emotividade, reflete-se apenas em esporádicas euforias provenientes de um sentir, revelador da aquisição de qualquer coisa nova que nos sobredimensiona e que Mounier (filósofo francês, criador do personalismo cristão) exprime melhor do que ninguém:

- ‘Falta uma dimensão ao homem que não conheceu a prisão’.” (...)


5. Na última parte  iremos abordar as adições que acabam por valorizar este testemunho e tornar o depoimento de Lobato uma das memórias mais impressivas de toda a guerra colonial que os portugueses viveram entre 1961 e 1975.

António Lobato mexe e remexe no seu poderoso testemunho, de edição para edição:

 (....) Verificam-se aprimoramentos que, é o meu pensar, tornam este documento imorredoiro na história da literatura da guerra da Guiné, pegam-se em duas descrições, uma a fulgurante aterragem depois do acidente aéreo no regresso da Ilha do Como, é de uma vivacidade impressionante, incluindo não só os gestos necessários à pilotagem mais adequada às circunstâncias como o texto faz fé ao estado de alma de quem vai procurar sobreviver; o segundo texto é uma narrativa de cativeiro, releva o macabro da sordidez do presídio, o macabro e o nauseabundo de toda aquela escravidão a que estavam submetidos os adversários de Sékou Touré.

6. (...) Temos agora uma narrativa ainda mais vigorosa e em muitos pontos ganhou intimismo, espelhando os altos e baixos de um cativo que descobre força anímica para acreditar em si próprio e tentar escapar ao degredo.

A primeira descrição relaciona-se com o acidente aéreo, tem mais detalhe, dinâmica, a clara perceção do risco, a mestria da operação para aterrar em condições excecionalmente hostis:

(...) “O meu avião continua a vibrar como que sacudido por uma peneira gigante, devido ao desequilíbrio provocado pelo hélice todo torcido. Nestes casos, o procedimento para evitar o descontrolo total é parar o motor e saltar em paraquedas, ou então tentar uma aterragem de emergência sem motor.

"Num relance de olhos para o exterior, vejo uma clareira no meio da mata onde me parece que sou capaz de meter o avião. Como o motor está parado, sei que tenho de guardar uma velocidade tal que me permita manter o avião a voar como um planador e fazer uma avaliação muito correta de aproximação ao início da clareira, tão baixa quanto possível, mas sem bater nas árvores que a circundam.

"A quem não está familiarizado com os assuntos de aerodinâmica e pensa que a um avião com o motor parado só resta cair, devo esclarecer que, enquanto houver altitude suficiente para descer e manter uma velocidade de planeio, este voa normalmente até chegar ao solo.

"Perante a rapidez de decisão que a situação exige, o afluxo de adrenalina é tal que todas as faculdades passam a ter uma acuidade várias vezes superior ao normal. Todas as mnemónicas aprendidas há cinco anos atrás, ainda na fase da formação, para fixar procedimentos de emergência, afluem à memória com um rigor e uma fidelidade alucinantes.

"Nos escassos segundos que me separam do contacto com o solo, enquanto vigio e controlo com a cabeça, com as mãos e com os pés, não só o valor sagrado daquela velocidade mínima que ainda permite voar, mas também a altitude, a direção e as manobras de glissagem, perigosas mas necessárias para encaixar o avião no início da exígua clareira, vou simultaneamente executando os restantes procedimentos que contribuem para o sucesso de uma aterragem de emergência, tais como: apertar cintos, abrir cabine, desligar combustível, mistura e magnetos, desligar bateria e assumir uma atitude de corpo e alma bem encostados à cadeira.

"O ponto de contato com o solo confirma-me a justeza do planeamento, mas surge um imprevisto que do ar foi impossível detetar – o terreno não é totalmente liso; sulcos profundos, espaçados metro a metro, cortam-no de lés a lés. É uma bolanha.

"Ao intradorso das asas do T6 estão suspensas duas metralhadoras Browning, saliências que, ao entrar nos sulcos da bolanha, oferecem uma forte resistência ao deslizar do avião no solo.

"Atendendo a que este tipo de aterragem é feito com o trem recolhido, o entrar das metralhadoras num dos sulcos teve o efeito de arrancar instantaneamente as asas à aeronave. Fico sentado dentro de um charuto que rebola agora sobre si mesmo, ao longo do terreno”.(...)

E é com esta chave explicativa, em pleno clímax, que Lobato sai incólume e vai ser capturado, ao princípio ainda acredita que quem com ele vem dialogar o ajudará a percorrer as duas dezenas de quilómetros para chegar a Catió, é brutalmente ferido, o calvário vai começar.

Lobato já está na cela n.º 7 na Maison de Force de Kindia, Guiné Conacri.

Vai-nos contar o início do dia nessa cadeia de segurança onde jazem inimigos de Sékou Touré:

(...) “Não resisto à curiosidade de ver o que se passa no exterior e penduro-me nas barras de reforço da porta para elevar a cabeça a uma altura que me faculte uns metros de horizonte.
O que vejo aterroriza-me! O pátio é hexagonal, um espaço a céu aberto para onde se abrem quatro portas de ferro, totalmente opacas, bem mais baixas que a minha e sem grades a encimá-las, vai-se enchendo de negros de todas as idades, descalços e quase nus, manifestamente subalimentados, que saem por aquelas portas como rebanhos escorraçados por uma fera invisível que os persegue.

"No centro do pátio, chicote em riste e porta de carrasco, um guarda sem expressão facial, tão ameaçador quanto esquelético, orienta para o grande portão de saída aquela enxurrada de negros totalmente desprotegidos, distribuindo chicotadas à direita e à esquerda, vociferando insultos apenas intercalados por nojentas cuspidelas num chão de cimento muito irregular.

"Junto ao portão de saída para o exterior, alinhadas ao lado de cada uma das ombreiras, duas colunas de homens armados. Nos pés trazem sandálias de plástico coloridas pela terra avermelhada dos caminhos que percorrem. Vestem calças engelhadas, de um caqui esverdeado, e uma camisa sem mangas, do mesmo tipo de tecido. À medida que os prisioneiros saem para as GMC que os esperam à porta, vão sendo contados pelos soldados.

"Terminada a tarefa do embarque para trabalhos forçados, os grandes portões fecham-se e tem início outra tarefa, atribuída aos inaptos para o trabalho no exterior e àqueles que alguma vez tentaram a fuga.

"De cada uma daquelas quatro portas opacas, ainda abertas, saem agora pequenos grupos que se movem com alguma dificuldade. Uns são leprosos a que já faltam partes do corpo, sobretudo das mãos e dos pés; outros tossem convulsivamente e expelem escarros amarelos para aquele chão meio desfeito; outros, ainda, apoiam-se às paredes para não tombar e arrastam-se com dificuldade em direção a uma outra porta que entretanto se abriu e dá acesso a uma área de recreio.

"Os menos afetados por doença ou caducidade sustentam nos braços metades de bidões de duzentos litros que transbordam de fezes e outros dejetos. Acompanhados por um guarda, saem pela porta principal. Minutos depois, oiço-os nas traseiras da minha cela a despejar os imundos recipientes.

"Todos os dias, após esta operação, o mau cheiro engrossa como se de coisa sólida se tratasse e põe a prisão a transbordar de nojo. O trágico amanhecer não fica por aqui. O encetar de uma terceira operação obriga-me a descer do meu posto de vigia, mas ainda bem que isso acontece, porque já tenho os braços dormentes de estar tanto tempo suspenso.

"O guarda começa a abrir as portas das sete celas que também dão para o pátio hexagonal. Dois negros estropiados retiram do interior de cada cela um balde de zinco que a seguir despejam num bidão colocado para o efeito num dos ângulos do pátio.

"Também eu tenho aqui dois baldes, sendo um deles substituto da sanita e outro servindo de contentor de água para todos os fins, isto é, para beber, para lavar e para substituir o papel higiénico que por estas paragens é desconhecido”. (...)

A transcrição destes dois textos é um convite para que se releia António Lobato, um jovem sargento piloto-aviador capturado no Tombali, em maio de 1963 e libertado durante a “Operação Mar Verde”, em novembro de 1970.

Foi considerado herói nacional e voltou ao ativo até ter passado à reserva em 1981. Exerceu outros cargos, posteriormente.

É um dos mais impressionantes documentos de vida em cativeiro, senão mesmo o mais impressionante de todos. De leitura obrigatória.
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Notas do editor:

(*) Vd. poste 10 de março de  2024 > Guiné 61/74 - P25259: In Memoriam (50): António Lobato, maj pil av, ref (Melgaço, 1938 - Lisboa, 2024), autor de "Liberdade e Evasão: o Mais Longo Cativeiro": Falta uma dimensão ao homem que não conheceu a prisão, escreveu ele, citando o filósofo Emmanuel Mounier. A sua vida foi também ela uma luta contra o esquecimento e a ingratidão. Repousa, finalmente, em paz, em Rio de Mouro.

domingo, 10 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25259: In Memoriam (50): António Lobato, maj pil av, ref (Melgaço, 1938 - Lisboa, 2024), autor de "Liberdade e Evasão: o Mais Longo Cativeiro": Falta uma dimensão ao homem que não conheceu a prisão, escreveu ele, citando o filósofo Emmanuel Mounier. A sua vida foi também ela uma luta contra o esquecimento e a ingratidão. Repousa, finalmente, em paz, em Rio de Mouro.


Capa do livro do António Lobato, "Liberdade ou evasão: o mais longo cativeiro da guerra" (5ª edição, DG  Edições, Linda-A-Velha, 2014, 276 p.).





Capa da Revista do Expresso, de 29 de Novembro de 1997 (pormenor). Uma notável reportagem do jornalista José Manuel Saraiva , que conseguiu juntar em Lisboa 16 dos 25 militares portugueses, presos em Conacri, às ordens do PAIGC, e libertados na sequência da Op Mar Verde, em 22 de Novembro de 1970. Trata-se, sem dúvida, de um documento para a história.

Imagem: Digitalização feita por Henrique Matos, da capa da revista, a partir de um exemplar, pessoal, que ele comprou e guardou no seu arquivo. Foi através desta já famosa capa que ele localizou o seu antigo fur mil Jão Neto Vaz, do Pel Caç Nat 52. 

Neste grupo de dezasseis, está também o António Lobato (que nos parece ser o último da segunda fila, à esuerda,  de cabelo branco).



1. Morreu no passado dia 8,
 no hospital onde estava internado.  o nosso camarada da FAP,  António Lourenço de Sousa Lobato: ia fazer 86 anos, amanhã,  dia 11.  Foi hoje inumado no cemitério de Rio de Mouro.

 família, aos amigos e aos camaradas da FAP manifestamos aqui a  solidariedade na dor por parte dos editores, colaboradores e demais mais membros da Tabanca Grande (*)

O nosso camarada nasceu em Sante, freguesia de Paderne, concelho de Melgaço. Era major piloto-aviador, na situação de reforma...  Tem 17 referências no nosso blogue.

De 22 de maio de 1963 a 22 de novembro de 1970 foi prisioneiro do PAIGC. Seguramente o mais célebre, o mais inconformado e o mais resistente dos militares portugueses que passaram pelos cárceres do PAIGC na Guiné-Conacri. Foi libertado na sequència da Op Mar Verde. A sua história é publicamente conhecida.

Escreveu um notável livro de memórias do seu longo cativeiro, um grande documento humano, que já tem várias várias edições e pelo menos em duas versões (1995 e 2015) , "Liberdade ou Evasão",  e de que temos vários notas de leitura publicadas no blogue.(*).



Guiné-Bissau > Bissau > Hotel Palace > 7 dde Março de 2008 > Último dia do Simpósio Internacional de Guileje (1-7 de Março de 2008) > Mensagem do Joseph Turpin, um histórico do PAIGC, para  o nosso camarada da FAP, hoje major piloto reformado, António Lobato, que esteve prisioneiro em Conacri, sete anos, de 1963 a 1970.

Vídeo (1' 36''): © Luís Graça (2008). 

Vídeo alojado em: You Tube >Nhabijoes.

2. Reproduz-se de novo o depoimento gravado por Luís Graça, em Bissau, no Hotel no dia 7 de Março, por voltas 13h11, no último dia do encerramento do Simpósio Internacional de Guileje (1-7 de Março de 2008) (**)

As condições de luz eram más e a máquina era uma digital, de fotografia e não de vídeo. Joseph Turpin era um dos históricos do PAIGC, juntamente com Carmen Pereira e Carlos Correia, que estiveram presentes no Simpósio. Pediu-nos para mandar uma mensagem para o António Lobato, o antigo sargento piloto aviador portuguesa, aprisionado pelo PAIGC na sequência da queda, por acidente,  do seu T 6  em 22 de maio de 1963, na Ilha do Como. 

Levado para a Guiné-Conacri,  permanecerá sete longos e penosos  anos de cativeiro, com várias tentativas, frustradas, de evasão. Eis uma alguns excertos da mensagem do Joseph Turpin, 

"Ó Lobato, depois da tempestade, depois de tantos anos, não sei se te vais lembrar de mim..." - são as primeiras palavras deste representant do PAIGC, na altura a viver em Conacri, sendo então membro do Conselho Superior da Luta. 

 Neste curto vídeo, o Turpin recorda os momentos em que, por diversas vezes, visitou o nosso camarada na prisão. Não esconde que foram momentos difíceis, para ambos, mas ao mesmo tempo emocionantes: dois inimigos que revelaram o melhor da nossa humanidade... 

"Eu compreendia, estavas desmoralizado...Havia animosidade"... 

Joseph Turpin agradece ao Lobato as palavras de apreço com ele se referiu à sua pessoa, ao evocar  em entrevista à rádio, a sua experiência de cativeiro. Agradece o exemplar do livro que o Lobato lhe mandou e que ele leu, com interesse. Diz que ficou sensibilizado com as palavras e o gesto do Lobato. 

"Mas tudo isso hoje faz parte da história...Seria bom que viesses a Bissau" - são as últimas palavras, deste homem afável, dirigidas ao teu antigo prisioneiro português que ele trata por camarada... 

 O Joseph Turpin insistiu comigo para entregar pessoalmente ao António Lobato esta mensagem.  Nunca tive nenhum contacto pessoal com o António Lobato, que só vi uma vez, por ocasião da estreia do filme-documentário As Duas Faces da Guerra, de Diana Andringa e Flora Gomes, e em que ele  é dos participantes.   

Para o António Lobato na alt7ura, em 2008, deixámos registada,  em nome pessoal,  dos demais editores, bem como de toda a nossa Tabanca Grande, "uma palavra de respeito, camaradagem, solidariedade e apreço". ~~

Presumimos que sim, mas nunca saberemos ao certo se esta menagem chegou ao seu destinatário. Quatro anos depois o único "feedback" que tivemos foi o da filha de Joseph Turpin (***)

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segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P24971: Notas de leitura (1650): "Comandante Pedro Pires, Memórias da luta anticolonial em Guiné-Bissau e da construção da República de Cabo Verde - Entrevista a Celso Castro, Thais Blank e Diana Sichel"; FGV Editora, Brasil, 2021 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Junho de 2022:

Queridos amigos,
Entrevistado na dimensão ainda em voga da História Oral, o comandante Pedro Pires fala da sua vida ao serviço do PAIGC e do PAICV. Confesso que me toca positivamente o que ele comenta quanto à dedicação às causas pela luta da independência dos dois países, não há para ali nem charamelas nem o vemos atrelado a nenhuma carro triunfal, resistiu a muita insídia e comentários soezes por parte da oposição, quando perdeu em 1991, faz-nos ver que Cabo Verde caminha saudavelmente como uma democracia liberal, é um verdadeiro farol africano. Não se entenderá, à luz dos conhecimentos históricos, que continue a dar como certo e seguro que Spínola e a PIDE/DGS mandaram matar Amílcar Cabral, foi mantra de grande conveniência durante algum tempo, acontece que não há nenhum, absolutamente nenhum, documento que comprove qualquer ligação do Governo de Bissau, da delegação da polícia política com o assassinato de Cabral, houvesse e dele se teria feito a devida publicitação, mas não há, não houve marinha portuguesa à espera do barco de Inocêncio Kani, e é preciso ter um grande estômago para pôr como coordenador do complô Momo Touré, não sei como pessoas com pesadas responsabilidades históricas ainda têm e tanta desfaçatez, e parecem aliviadas quando propalam tais inverdades.

Um abraço do
Mário



Comandante Pedro Pires, memórias da sua vida e da sua luta na Guiné-Bissau (2)

Mário Beja Santos

Pedro Verona Pires, após a sua deserção das Forças Armadas portuguesas juntou-se ao PAIGC em Conacri, foram-lhe atribuídas múltiplas missões, acompanhou a luta da libertação da Guiné-Bissau e de Cabo Verde. Após a independência de Cabo Verde, foi Primeiro-ministro entre 1975 a 1991 e seu Presidente de 2001 a 2011. Este livro sobre o Comandante Pedro Pires é o resultado de uma longa entrevista realizada em Cabo Verde por uma equipa da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas: Comandante Pedro Pires, Memórias da luta anticolonial em Guiné-Bissau e da construção da República de Cabo Verde, entrevista a Celso Castro, Thais Blank e Diana Sichel, FGV Editora, Brasil, 2021. O entrevistado regista a história da sua vida, mediada pelo método da História Oral. Obviamente que nos vamos circunscrever das suas declarações até à independência da Guiné-Bissau e sequelas da rutura Guiné-Cabo Verde.

Pedro Pires assume elevadas responsabilidades na luta da Guiné-Bissau, é um quadro político de peso e é nessa altura que é questionado pela equipa entrevistadora sobre o assassinato de Amílcar Cabral em 20 de janeiro de 1973. Começa por referir que Amílcar Cabral já tinha alertado sobre a probabilidade desse risco, a partir da recolha de várias informações de amigos no seio do exército português. Considera ter havido falhanço nos serviços de segurança, o próprio Amílcar Cabral não teria dado o valor necessário a tais informações. Nesse dia, 20 de janeiro, Pedro Pires encontrava-se na base de Kandiafara, na Frente Sul, as informações pareciam suspensas, só quase ao anoitecer é que alguém lhe veio dizer que ouvira na BBC a notícia do assassinato. Através de um emissário enviado a Boké receberam-se pormenores dos acontecimentos pelo responsável local, José Pereira, fora em Boké que Inocêncio Kani fora detido.

Uma semana depois, na companhia de outros líderes, como Nino Vieira e Cármen Pereira, estão em Conacri, assistem às cerimónias de homenagem a Amílcar Cabral, o ambiente encontrado era pesado e de muita tristeza. Pedro Pires propõe aos seus colegas do Comité Executivo de Luta a realização de uma reunião extraordinária para análise da situação, fez-se a reunião e traçaram-se novas linhas de orientação, todos voltaram para as frentes de luta, ele regressou à Frente Sul. Dá-se a sua visão sobre o apuramento das responsabilidades sobre os acontecimentos do assassinato, justifica a importância da operação Amílcar Cabral que tinha como objetivo geral a intensificação e multiplicação da ação militar nas três frentes, era necessário tornar a vida insuportável aos militares portugueses. Associa tais acontecimentos ao golpe de Estado de 25 de Abril, detalha ao pormenor o cerco a Guileje, e não deixa de ressalvar a diferença introduzida na luta pelos mísseis Strela. Fala num embate que teria tido lugar em território manjaco da qual um tenente dos Comandos africanos se passou para as forças do PAIGC.

A explicação para o assassinato do líder fundador do PAIGC pôde dar muito alívio a Pedro Pires, mas não tem qualquer consonância com factos documentais e elementos de prova. Que era urgente travar Amílcar Cabral antes que fosse tarde demais para a sobrevivência do Império português; que no plano interno português tinha crescido a oposição e o descontentamento pelos sacrifícios humanos, económicos e financeiros impostos ao país; que o prestígio e a credibilidade internacional de Amílcar Cabral atingira a sua quota máxima e estava em andamento uma dinâmica que devia conduzir à emergência do Estado soberano da Guiné-Bissau; que as autoridades coloniais, num esquema de guerra antissubversiva, aproveitara-se de alguns traidores que fomentaram a divisão do PAIGC entre guineenses e cabo-verdianos; refere antecedentes como a Operação Mar Verde, em que se procurara liquidar Amílcar Cabral; que Inocêncio Kani era o principal responsável pelo crime de traição.

Este mantra fez o seu percurso útil para liquidar os elementos do complô que os tribunais revolucionários decidiram, fez-se um hábil desvio histórico da fundamentada e multisecular tensão entre guineenses e cabo-verdianos, hoje é argumento de venda para puros nostálgicos, faz deliberadamente esquecer que não se podem entender os acontecimentos de novembro de 1980 e o afastamento da liderança cabo-verdiana na Guiné sem ter em conta a tensão existente em Conacri e mesmo nas bases do PAIGC no interior da Guiné, Pedro Pires nem refere que no dia do assassinato Inocêncio Kani esteve sempre na companhia de Osvaldo Vieira, e que este assistiu à distância ao assassinato do líder – pormenor de pouca importância, claro. Para consolo de nostálgicos e permanente enigma para a história é a destruição de todo o material que se acumulou sobre os julgamentos dos elementos associados ao assassinato. Há explicações que são de farsa, pôr o Momo Touré a liderar uma sedição de centenas de pessoas é por de mais caricato, não tinha nem envergadura nem credibilidade para tal cometimento. E penso que não se tem feito qualquer pressão para ouvir as figuras que participaram nos julgamentos (caso de Joaquim Chissano), que disseram ter lido toda a documentação (caso de Ana Maria Cabral), os testemunhos de quem compareceu em tribunal e não sofreu da pena capital, etc. São de presumir razões fundadas para manter esta pesada barreira de silêncio.

Pedro Pires fala do segundo congresso do PAIGC, da eleição de Aristides Pereira, a líder do PAIGC, e descreve-se o processo da Independência da Guiné-Bissau e tudo quanto aconteceu até ao reconhecimento de Portugal da Guiné-Bissau como Estado independente.

Não se pode desdizer que Pedro Pires não seja um homem de consciência tranquila sobre o seu comportamento político como Primeiro-ministro de Cabo Verde, e ele próprio explica os insultos miseráveis que sobre ele proferiram elementos de oposição. Teria tudo a ganhar em mostrar de corpo inteiro que soubera perder as eleições em 1991, que as calúnias proferidas ficaram por demonstrar, responde aos seus entrevistadores com elevado nível de tolerância, escusava de dizer qual era, no seu entender, a origem do MpD:
“Muitos foram militantes do PAICV. Por outro lado, houve gente de boa-fé entusiasmada com a abertura política que quis uma alternativa ao PAICV. Era um grupo heteróclito. Constituía uma autêntica frente dos contra. Faziam parte desta aliança ex-militantes do PAICV dececionados, os trotskistas, os herdeiros do colonialismo, os despromovidos socialmente que tinham perdido privilégios de classe, funcionários desonestos sancionados, os imediatistas à espera de resultados milagreiros em curto prazo, gente que discordava da Independência, também pessoas de boa-fé que queriam uma mudança do Governo e, ainda, os fiéis que acreditaram nas intrigas veiculadas pelo clero católico, pela rádio e pela imprensa escrita de inspiração católica. Foi mais ou menos isso. Era esse o contexto sociopolítico em que lutou o PAICV, naquela altura, e os adversários contra os quais se tinha batido”.

Comentários completamente escusados, diga-se em abono da verdade. Ao comandante Pedro Pires saem por vezes comentários que não o dignificam. Já aqui repontei com aquela sua tirada de que os Comandos Africanos cobiçavam trazer artigos das bases do PAIGC, eram artigos que eles não tinham à sua disposição no mercado da colónia, escreveu num prefácio do livro O PAIGC Perante o Dilema Cabo-Verdiano (1959-1974), de José Augusto Pereira, Campo da Comunicação, 2015. Enfim, dislates pouco abonatórios para um líder do seu tamanho.


Pedro Pires no serviço militar em Portugal
Pedro Pires na Guiné-Bissau
Entrevista de Pedro Pires a uma equipa da Escola das Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas, junho de 2019: (https://www.youtube.com/watch?v=A7eXvPIwie8)
Ilha do Fogo, Cabo Verde
Pedro Pires nas cerimónias da Independência da Guiné-Bissau
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Notas do editor

Poste anterior de 11 DE DEZEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24943: Notas de leitura (1648): "Comandante Pedro Pires, Memórias da luta anticolonial em Guiné-Bissau e da construção da República de Cabo Verde - Entrevista a Celso Castro, Thais Blank e Diana Sichel"; FGV Editora, Brasil, 2021 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 15 DE DEZEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24960: Notas de leitura (1649): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (3) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P24943: Notas de leitura (1648): "Comandante Pedro Pires, Memórias da luta anticolonial em Guiné-Bissau e da construção da República de Cabo Verde - Entrevista a Celso Castro, Thais Blank e Diana Sichel"; FGV Editora, Brasil, 2021 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Junho de 2022:

Queridos amigos,
É nos dada a oportunidade de ouvir na primeira pessoa a trajetória de um líder que viveu desde de 1961 missões de que Amílcar Cabral o incumbiu, uma das mais importantes terá sido a formação de um grupo que iria desembarcar no arquipélago de Cabo Verde, missão depois considerada inviável e que leva este grupo cabo-verdiano preparado em Cuba a ir combater no interior da Guiné. O comandante conta-nos a sua história desde a infância na Ilha do Fogo, as lembranças que ele guardou da vida do arquipélago até chegar a Lisboa, pensava tirar um curso na Faculdade de Ciências para ser professor, foi oficial da Força Aérea, desertou em 1961 e chegou a Conacri. É um discurso sereno, não há arroubos nem farroncas, uma crença inquebrantável no pensamento de Cabral, tem lugar de destaque na hierarquia do PAIGC, foge sempre com subtileza à questão tensional Guiné-Cabo Verde, ou defende-se com o mantra de que foram os colonialistas quem acirrou esse ódio, que não tinha fundamento. Não se entende como este octogenário, cioso para que haja uma história feita pelos independentistas africanos, não tenha documentação suficiente para saber que a questão cabo-verdiana se tinha naturalmente agudizado com a ocupação dos lugares chaves da administração colonial guineense por cabo-verdianos, desde administradores de circunscrição, a notários, a professores, a empresários, situação que se vivia essencialmente desde a separação da Guiné de Cabo Verde, em 1879. Não sei o que ganham estes homens que exerceram altos cargos no PAIGC e no PAICV a fugir à realidade, está tudo documentado. E, como veremos a seguir, Pedro Pires vai ter a desfaçatez de considerar que o assassinato de Cabral foi perpetrado a partir de Bissau, pela entidade colonial e a PIDE-DGS.

Um abraço do
Mário



Comandante Pedro Pires, memórias da sua vida e da sua luta na Guiné-Bissau (1)

Mário Beja Santos

Pedro Verona Pires, após a sua deserção das Forças Armadas portuguesas juntou-se ao PAIGC em Conacri, foram-lhe atribuídas múltiplas missões, acompanhou a luta da libertação da Guiné-Bissau e de Cabo Verde. Após a independência de Cabo Verde, foi Primeiro-ministro entre 1975 a 1991 e seu presidente de 2001 a 2011. Este livro sobre o Comandante Pedro Pires é o resultado de uma longa entrevista realizada em Cabo Verde por uma equipa da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas: "Comandante Pedro Pires, Memórias da luta anticolonial em Guiné-Bissau e da construção da República de Cabo Verde, entrevista a Celso Castro, Thais Blank e Diana Sichel", FGV Editora, Brasil, 2021. O entrevistado regista a história da sua vida, mediada pelo método da História Oral. Obviamente que nos vamos circunscrever das suas declarações até à independência da Guiné-Bissau e sequelas da rutura Guiné-Cabo Verde.

Pedro Pires nasceu na Ilha do Fogo em 1934, origem eminentemente rural, filho de pais médios proprietários rurais. Fala da sua família e do Fogo, onde viveu até aos 7 anos; depois fez a escola primária em São Filipe; aos 12 anos foi fazer a admissão aos liceus em São Vicente, estudo com interregnos, o dinheiro da família não chegava para tudo; inevitavelmente fala das fomes e da condição atroz da vida cabo-verdiana, da muita emigração, refere também a revolta dos famintos; em 1956, com 21 anos, terminado o liceu, vem para Portugal, inscreve-se na Faculdade de Ciências, frequenta a Casa dos Estudantes do Império, mas em 1957 vai prestar serviço militar obrigatório, depois de Mafra, fez a formação na área de controlo aéreo, tornou-se oficial controlador aéreo de radar, colocado em Montejunto. Assume que é por esta época que começa o seu crescimento político, a sua condição de colonizado, fala das suas leituras, recorda "Geografia da Fome", de Josué de Castro e as obras de Jorge Amado. Confessa que não fez parte de nenhuma organização comunista. Decide fugir de Portugal em 1961, vai com uma enorme leva de companheiros africanos, sobretudo angolanos, lembra outros companheiros de viagem, como Manuel e Lilica Boal, Amélia Araújo, Elisa Andrade e Osvaldo Lopes da Silva. Em Paris, o grupo foi visitado por Mário Pinto de Andrade e por Dulce Almada Duarte, ligada ao PAIGC. Viaja para o Gana, em Acra tem o primeiro encontro com Amílcar Cabral. Em Conacri recebe como missão ficar agregado ao secretariado da CONCP - Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas, depois foi destacado para trabalhar em Dacar no seio da comunidade cabo-verdiana residente no Senegal. Fez depois formação na União Soviética. Tece elogios à personalidade de Amílcar Cabral.

Descreve os inícios da luta armada, os primeiros líderes revolucionários formados na China, depois um grupo formado em Marrocos, onde aliás Pedro Pires esteve em missão, os envios de armas e até incidente resultantes do envio de munições de Marrocos de que Sékou Touré suspeitou que pudessem ser munições para um golpe de Estado. Considera que a obsessão pela luta armada era inevitável. “Portugal não estava em condições de seguir uma via pacífica e negociada. Não estava em condições de negociar com quem quer que fosse, porque o regime dependia política e economicamente do colonialismo. Ele só tinha futuro, tal como existia, aliado ao regime colonial”. E explica o pensamento de Cabral relativamente à natureza da luta armada que se ia fazer na Guiné. “Para Amílcar Cabral, era fundamental evitar que se transformasse numa guerra de fronteiras, que dizer, estar do outro lado da fronteira e fazer ataques armados a partir do exterior. E escolheu uma localidade do centro-sul da Guiné, Tite, para começar a luta armada. Mas já tinha havido um trabalho prévio de mobilização dos camponeses, de mobilização dos guineenses, quer em Bissau, que no interior do mundo rural”. Considera que no espírito de Amílcar Cabral esteve sempre presente a ideia de que Pedro Pires devia trabalhar prioritariamente no quadro do desenvolvimento da luta em Cabo Verde.

Pedro Pires visita pela primeira vez a Guiné-Bissau em 1968, foi destacado para a Frente Leste, em substituição do secretário-geral e na companhia de Osvaldo Vieira. Refere-se ao Congresso em Cassacá e da necessidade de jugular as arbitrariedades de líderes assumidamente criminosos. Fará parte da delegação do PAIGC à Conferência Tricontinental que se realizou em Havana, no início de 1966. Fez formação militar em Cuba. Na impossibilidade de fazer desembarque em Cabo Verde, e após completar nova formação militar na União Soviética, volta para Conacri, o grupo de que ele faz parte irá instalar-se na base Kambéra, na região de Madina de Boé. “A minha incumbência era criar as condições de acolhimento e distribuir os recém-chegados pelas três frentes, buscando, sobretudo, tirar benefício dos mais bem qualificados, e que entrariam especialmente no corpo de artilharia das FARP, com o objetivo de melhorar a eficácia da nossa artilharia. O que se conseguiu grandemente, e viria a constituir o pilar principal da derrota do exército colonial.” Faz alusão à africanização da guerra e à política da “Guiné Melhor”.

Os entrevistadores pretendem apurar qual o grau de tensão entre os dirigentes cabo-verdianos e os guineenses. “Suponho que talvez pudesse existir alguma coisa, provavelmente inveja, preconceito retrógrado, mas não dava para afirmar que houvesse tensão”. Não teve conhecimento de que houvesse conflito expresso com os cabo-verdianos. “O certo era que a presença cabo-verdiana nas FARP perturbava as autoridades coloniais e militares porque sabiam que constituíam uma mais-valia importante do ponto de vista militar e ameaçavam a sua segurança”. Da sua análise, em 1968, a guerra encontrava-se numa fase equilíbrio entre as forças opositoras, nem o movimento de libertação estava em condições de expulsar as tropas colonialistas e estas não estavam em condições de derrotar a guerrilha. Falava-se da Operação Mar Verde, da resposta do PAIGC à campanha da “Guiné Melhor” com a criação dos “Armazéns do Povo”. Considera que a rutura do equilíbrio é dada pela chegada dos mísseis Strel
a, Manecas Santos, da Frente Norte, fora o chefe da missão do grupo que se formou na União Soviética. E acrescenta:
“Os combatentes do PAIGC dispunham de uma outra arma de artilharia, ligeira e muito prática, com bom alcance, também de fabrico soviético, o 3P132GRAD-P. Numa guerrilha em que as armas e as munições são carregadas pelos combatentes, é importante que não sejam pesadas. Ora, o GRAD-P respondia a esses critérios operacionais. Além do mais, podia ser empregado com um só tubo de lançamento ou com vários tubos, em bateria, em que era mais eficaz e com menor dispersão de tiro. Trata-se de uma versão reduzidíssima da arma pesada que o exército soviético tinha usado na II Guerra Mundial, conhecida por órgãos de Estaline, é uma versão mini.”

E inopinadamente, os entrevistadores orientam a conversa para o assassinato de Amílcar Cabral.

(contínua)

Pedro Pires no serviço militar em Portugal
Pedro Pires na Guiné-Bissau
Entrevista de Pedro Pires a uma equipa da Escola das Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas, junho de 2019: (https://www.youtube.com/watch?v=A7eXvPIwie8)
Ilha do Fogo, Cabo Verde
Pedro Pires nas cerimónias da Independência da Guiné-Bissau
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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE DEZEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24931: Notas de leitura (1647): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (2) (Mário Beja Santos)

domingo, 26 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24889: S(C)em comentários (19): O silêncio da CECA (Comissão de Estudo para as Campanhas de África) sobre a trágica Op Abencerragem Candente: Xime, 26 de novembro de 1970, 6 mortos e 9 feridos graves


Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Setor L1 (Bambadinca) > Xime > c. 1969/70 > Vista aérea da tabanca do Xime, onde estava sediada uma unidade de quadrícula... Em 26 de novembro de 1970, era a CART 2715 / BART 2917, comandada pelo jovem cap art Vitor Manuel Amaro dos Santos (1944-2014). (*)

Foto: © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Um dos maiores desaires das NT, no Sector L1 (Bambadinca), no meu tempo (CCAÇ 2590 / CCAÇ 12, junho de 1969/ março de 1971) foi a Op Abencerragem Candente (subsetor do Xime, 25 e 26 de novembro de 1970). (**)

Temos 26 referências no nosso blogue a esta operação. Em contrapartida, há um estranho silêncio nos livros da CECA (Comissão para o Estudo das Campannhas de África)... Nem uma palavra no livro relativo à atividade operacional no CTIG em 1970: vd. CECA - Comissão para o Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da actividade operacional: Tomo II - Guiné - Livro II (1.ª edição, Lisboa, 2015), 

A Op Abencerragem Candente foi  53 anos atrás (4 dias depois da Op Mar Verde), e ao que sabemos terá sido a mais sangrenta das operações realizadas no subsetor do Xime, durante a guerra colonial, pelo lado das baixas  contabilizadas para as NT: 6 mortos e 9 feridos graves:

(i) Da CCS/BART 2917, ao serviço da CCAÇ 12: guia e picador Seco Camará, assalariado, trabalhando sobretudo com a CCAÇ 12; está sepultado em Nova Lamego:

(ii) Da CART 2715 / BART 2917 (Xime, 1970/72):

- Furriel Mil Mec Auto Joaquim Araújo Cunha, nº mec 14138068; sepultado em Barcelos;

- 1º Cabo At José Manuel Ribeiro, nº mec 18849069; sepultado em Lousada.

- Sold At Fernando Soares, nº mec 06638369; sepultado em Fafe;

- Sold At Manuel Silva Monteiro, nº mec 17554169; sepultado em Condeixa-a-Nova;

- Sold  At Rufino Correia Oliveira, nº mec 17563169; sepultado em Oliveira de Azeméis...

Dos feridos graves (9), helievacuados em Madina Colhido, não temos infelizmente registo dos seus nomes, tirando o sold Sajuma Jaló (apontador de bazuca do 4º Gr Comb/CCAÇ 12, onde eu ia integrado, como comandante de secção).

A emboscada, em L, enquadrada e/ou comandada por cubanos, apanhou na "zona de morte" os 3 Gr Comb do Agr C [CART 2715] e 1 Gr Comb (4º) do Agr B [CCAÇ 12]. Estiveram envolvidos nesta operação 3 agrupamentos, 8 grupos de combate, cerca de 250 homens em armas.

"O ataque durou cerca de 20 minutos, sendo a retirada do IN apoiada com tiros de mort 82 e canhão s/r (!) que incidiram sobre a antiga estrada Xime-Ponta do Inglês, e especialmente sobre os 2 últimos Gr Comb (1° e 2º) da CCAÇ 12, assim como rajadas enervantes de pistola-metralhadora, de posições que ainda não se haviam revelado, nomeadamente de cima das árvores." (Fonte: poste P1318).

2. No desfecho desta operação, uma das vítimas, "à posteriori", foi o próprio comandante da CART 2715, o jovem cap art Vitor Manuel Amaro dos Santos, então com 26 anos. Por razões de saúde, saiu do comando da CART 2715, no princípio do ano de 1971, e nunca mais voltou.

Há 7 anos atrás, o nosso editor LG deixou aqui escrito, em verso, o seguinte (****):

(...) Um, dois, três, quatro, cinco, seis homens
vão morrer daqui a três ou quatro horas,
às 8h50,
em vinte e seis de novembro de mil novecentos e setenta,
no cacimbo da madrugada,
na antiga picada do Xime-Ponta do Inglês.
Cinco brancos e um preto,
a lotaria da morte, em L,
numa emboscada que é cubana,
numa roleta que é russa,
com os RPG, amarelos, "made in China"...
no corrocel da morte que é, afinal, universal! (...)
_________

Notas do editor:

(*) Último poste da série  > 26 de novembro de  2023 > Guiné 61/74 - P24888: S(C)em comentários (18): Obrigado, América! Thank You, America ! (José Câmara, Soughton, MA)

(**) Vd. poste de 28 de novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23823: (De) Caras (190): Vitor Amaro dos Santos (Lousã, 1944 - Coimbra, 2014), o primeiro comandante´da CART 2715 / BART 2917 (Xime, 1970 /72): continuamos a honrar a sua memória 


(****) Vd.poste de 27 de novembro de  2016 > Guiné 63/74 - P16765: Manuscrito(s) (Luís Graça) (102) : Para ti, camarada, que ainda não sabes que vais morrer, às 8h50 da madrugada do dia 26 de novembro de 1970...

sábado, 6 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24289: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXV: Premonição da morte do cap graduado 'cmd' João Bacar Jaló


Guiné > Região de Quínara > Tite > s/d > Aquartelamento de Tite


Guiné > Bissau> Cupilão  pou Pilão >  Bairro > 

Fotos publicadas no livro do Amadu Djaló: cortesia do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2010)


1. Continuação da publicação das memórias do Amadu Djaló (Bafatá, 1940-Lisboa, 2015), a partir do manuscrito, digital, do seu livro "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada) (*).

O seu editor literário, ou "copydesk", o seu camarada e amigo Virgínio Briote, facultou-nos uma cópia digital; o Amadu, membro da Tabanca Grande, desde 2010, tem 94 referências no nosso blogue

[Foto à esquerda > O autor, em Bafatá, sua terra natal, por volta de meados de 1966. (Foto reproduzida no seu livro, na pág. 149) ]

Síntese das partes anteriores:

(i) o autor, nascido em Bafatá, de pais oriundos da Guiné Conacri, começou a recruta, como voluntário, em 4 de janeiro de 1962, no Centro de Instrução Militar (CIM) de Bolama;

(ii) esteve depois no CICA/BAC, em Bissau, onde tirou a especialidade de soldado condutor autorrodas;

(iii) passou por Bedanda, 4ª CCaç (futura CCAÇ 6), e depois Farim, 1ª CCAÇ (futura CCAÇ 3), como sold cond auto;

(iv) regressou entretanto à CCS/QG, e alistou-se no Gr Cmds "Os Fantasmas", comandado pelo alf mil 'cmd' Maurício Saraiva, de outubro de 1964 a maio de 1965;

(v) em junho de 1965, fez a escola de cabos em Bissau, foi promovido a 1º cabo condutor, em 2 de janeiro de 1966;

(vi) voltou aos Comandos do CTIG, integrando-se desta vez no Gr Cmds "Os Centuriões", do alf mil 'cmd' Luís Rainha e do 1º cabo 'cmd' Júlio Costa Abreu (que vive atualmente em Amesterdão);

(vii) depois da última saída do Grupo, Op Virgínia, 24/25 de abril de 1966, na fronteira do Senegal, Amadu foi transferido, a seu pedido, por razões familitares, para Bafatá, sua terra natal, para o BCAV 757;

(viii) ficou em Bafatá até final de 1969, altura em que foi selecionado para integrar a 1ª CCmds Africanos, que será comandada pelo seu amigo João Bacar Djaló;

(ix) depois da formação da companhia (que terminou em meados de 1970), o Amadu Djaló, com 30 anos, integra uma das unidades de elite do CTIG; a 1ª CCmds Africanos, em julho, vai para a região de Gabu, Bajocunda e Pirada, fazendo incursões no Senegal e em setembro anda por Paunca: aqui ouve as previsões agoirentas de um adivinho;

(x) em finais de outubro de 1970, começam os preparativos da invasão anfíbia de Conacri (Op Mar Verde, 22 de novembro de 1970), na qual vai participar (**):

(xi) a narrativa é retomada depois do regresso, por pouco tempo9,  a Fá Mandinga, em dezembro de 1970; a companhia é destacada para Cacine  [3 pelotões para reforço temporário das guarnições de Gandembel e Guileje, entre dez 1970 e jan 1971], Amadu Djaló estava de licença de  casamento (15 dias), para logo a seguir ser ferido em Jababá Biafada, sector de Tite, em fevereiro de 1971; supersticioso, ouve a profecia do velho adivinho que tem "um recado Deus(...) para dar ao capitão João Bacar Jaló".



Capa do livro do Amadu Bailo Djaló, "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974", Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.


Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXV:

Depois do regresso da Op Mar Verde, Fá Mandinga andam 
nas bocas do mundo | Premonição da morte 
do cap graduado 'cmd' João Bacar Jaló


A nossa Companhia não podia continuar em Fá Mandinga. A operação “Mar Verde” (**), a Conakry, para libertar os nossos prisioneiros, estava a ser falada em todo o lado e Fá passou a ser um alvo para a imprensa de todo o mundo.

Depois do nosso regresso em De
zembro [de 1970], ficámos a descansar uns dias. Tempos depois, a nossa companhia foi destacada para Cacine[1]. Eu não fui, estava a gozar os quinze dias de férias do meu casamento. Acabadas as férias desloquei-me para Bissau, para arranjar transporte para Cacine.

Quando cheguei a Bissau, ouvi uns rumores de que a 1ª CCmds tinha ido para Tite, no dia anterior[2]. Fiquei satisfeito, já não ia para Cacine. Dias depois, desloquei-me com a minha mulher para Tite e dois dias depois de ter chegado, saímos para Ajufa. Uma saída sem qualquer contacto com o IN. Voltámos a sair mais uma e outra vez, sempre com o mesmo resultado.

A terceira saída foi para a zona de Jabadá Biafada. Quando a companhia estava a progredir em direcção de um acampamento do PAIGC,  apanhámos um homem, Ansumane, que estava a regressar ao acampamento onde vivia com a sua família. João Bacar perguntou-lhe onde era o acampamento dos combatentes.

- Não é aqui, onde vocês se estão a dirigir é um acampamento da população, respondeu o homem. E acrescentou:

- A minha mulher e os meus filhos vivem neste acampamento. Eu levo-vos lá, mas por favor não façam fogo.

O grupo de que eu fazia parte, o do Alferes Tomás Camará, ia à frente e nesta missão coube à minha equipa seguir à cabeça da companhia. Caminhava à minha frente um soldado e à medida que nos aproximávamos íamos ouvindo barulhos vindos do acampamento. De vez em quando João Bacar mandava passar palavra para ninguém abrir fogo.

Já muito perto do acampamento, a cerca de meia dúzia de metros,  ouvimos vozes. Eram de um guerrilheiro, sentado num tronco de palmeira, a comer, estava a chamar duas pessoas para comerem também. Vi-as chegar, fardadas, e apercebi-me de que tinham encostado qualquer coisa que traziam que não descobri o que era. Reparei melhor no que estava sentado, tinha uma Kalash no colo, dependurada pela bandoleira.

Fiz um sinal com a minha arma para trás, que estava ali gente armada. De um momento para outro o furriel Lalo Baio chegou-se à frente e disparou uma rajada. Tivemos que entrar logo, já não havia mais nada a fazer. Dois RPG estavam ali à mão, um dos guerrilheiros já estava morto e outros em fuga, a dispararem para trás. Perseguimo-los e logo à frente demos com o acampamento da guerrilha. Já tinham fugido todos e enquanto procurávamos mais material,  a zona do acampamento ficou debaixo de fogo de morteiro. Foi nessa ocasião que fui atingido por um estilhaço de uma dessas granadas no tornozelo do pé esquerdo.

O capitão João Bacar queria evacuar-me para Tite, mas achei que não valia a pena, não sentia grandes dores. Mas, depois de um dia inteiro a andar, a perna inchou até ao joelho. Fiquei arrependido de não ter sido evacuado, mas agora tinha que aguentar até chegar a Tite.

 Aqui, fui para a enfermaria e o médico, depois de me observar, disse que era melhor ser evacuado para o Hospital Militar de Bissau, porque em Tite não tinha meios para me tratar.

No dia seguinte, eu, a minha esposa e a esposa do João Bacar, partimos para Bissau e, no dia a seguir fui ao Hospital Militar.

Guiné > Bissau > Hospital Militar 241 >   Foto: cortesia do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.

Fui atendido por um médico que mandou tirar radiografias. Depois de as ter observado concluiu que os estilhaços estavam muitos fundos e que, talvez mais tarde fosse mais fácil tirá-los. Deu-me alta e saí dali com a ideia de regressar a Tite no dia seguinte.

Quando cheguei a casa, encontrei lá o Capitão João Bacar Jaló, que tinha acabado de chegar de Tite. E quando o informei da minha intenção de regressar no dia seguinte, ele disse para eu esperar, que ia quando ele fosse.

Dias depois, encontrei em casa de um amigo do capitão, chamado Sabana, o tal Homem Grande que tínhamos conhecido em Bambadinca, o Mamadu Candé, conhecido como um grande adivinho.

O Mamadu Candé foi o tal de que falei atrás, que um dia, em fins de Outubro de 1970, quando estava em Paunca, me mandou chamar por um homem, chamado Sore Bombeiro. Na altura ele pediu-me para eu dar um recado ao capitão João Bacar:

 – Tu, Amadu, vais dizer ao capitão, para não aceitar transferência para qualquer local que fique na direcção do pôr-do-sol.

Fiquei a olhar para ele.

 – Se vocês continuarem cá, no leste, terão muita fama e serão invencíveis. Se forem para oeste, serão vencidos e terão muitas baixas.

E disse mais. Que nós, nos finais de Outubro, iríamos fazer uma operação a uma grande cidade e que iríamos para lá de barco. E que após essa operação iríamos sofrer até ao fim da guerra.

Nessa altura, lembro-me de lhe ter perguntado de que cidade se tratava, se era na Europa ou em África e ele respondeu que não sabia. Recomendou-me para não me esquecer de dar esta mensagem ao João Bacar, mas o capitão quando ouviu esta previsão não lhe deu qualquer valor.

Só sei que, em princípios de Novembro, o capitão entrou em férias por um mês e, a seguir recolhemos todos a Fá Mandinga, donde partimos para a operação “Mar Verde”.

Vou agora, então, retomar a história do encontro com o Mamadu Candé em Bissau, em casa de um amigo do João Bacar. Isto estava a passar-se em Abril de 1971, no Cupilão, em Bissau.

Eu ia para casa do capitão e encontrei o Mamadu Candé sentado, na rua onde morava o capitão. Quando ia a passar, reconheci-o e fui ter com ele. Depois de nos abraçarmos, disse-me que andava há três dias à nossa procura porque tinha uma mensagem para transmitir ao capitão. Respondi-lhe que viesse comigo porque eu ia precisamente a casa do capitão João Bacar.

Mas, como não o encontrámos em casa, levei-o para a minha casa, almoçámos e passou a tarde comigo. Antes ainda de chegar a noite, voltámos novamente a casa do capitão mas ainda não tinha chegado.

 – Custa-me dormir cá, mas não regresso sem lhe transmitir esta mensagem que recebi directamente de Deus.

Voltámos outra vez a casa do capitão e, desta vez, tivemos melhor sorte, encontrámo-lo em casa. Estava em orações e ficámos a aguardar. Depois de as ter terminado e dos cumprimentos que se seguiram, o velhote voltou-se para mim e disse:

 – Amadu, eu venho aqui para transmitir um recado que Deus me deu para dar ao capitão.

O João Bacar, depois de o ouvir, disse:

 – Muito bem, amanhã vamos para Tite, vens connosco, lá divertimo-nos à vontade e lá posso dar-te algo que valha alguma coisa, porque aqui tenho muito pouco para dar. 

O velhote respondeu:

 – Amadu, eu não vou para Tite e o João Bacar também não deve ir. Lá é só escuridão para toda a vida. João Bacar que vá para a cama, que diga que está doente, que não quer ir para Tite. E a sua companhia vem ter com ele a Bissau.

O capitão sorriu, disse que não podia ser assim. Morrer em Tite ou em Bissau, era Deus que destinava. Pegou em 100 escudos e deu-lhos, pedindo desculpa porque aqui em Bissau não tinha mais para dar.

O velhote não queria aceitar, fui eu que peguei na nota e lha meti no bolso. Mamadu Candé despediu-se do capitão e, quando chegámos à rua, disse-me que ia devolver o dinheiro. Eu disse-lhe que não fizesse isso, que o capitão ia ficar aborrecido. Mas o velhote insistiu, que lhe ia devolver a nota e João Bacar não ia saber.

No dia seguinte, quando nos encontrámos, o capitão desabafou comigo:

 – A morte é o destino de todos. Quando chegar o dia é infalível, e eu, portanto, vou para Tite. Não posso abandonar a minha companhia, por medo da morte. Regresso a Tite amanhã e tu não vais, Amadu.

 – Como não vou, meu capitão? Tenho coisas levantadas na arrecadação, como é que vou entregá-las?

O capitão respondeu que o furriel Braima Bá tratava disso. Que nós agora íamos para Fá Mandinga, para o curso da 2ª Companhia de Comandos. E rematou a conversa:

 – Os teus colegas que vêem de Tite trazem a tua guia de marcha e tu ficas aqui à espera.

E seguiu com o condutor para o quartel de Brá, enquanto eu fui para casa, vestir-me à civil.

Tinha pensado dar uma volta até ao Mercado de Santa Luzia e, quando estava à entrada da rua alcatroada que ia para o mercado, vi a viatura do capitão na minha direcção. O carro parou, João Bacar agarrou na minha mão esquerda e disse-me:

 –Tu vais ficar aqui em Bissau. Não te vou dizer agora porquê.

Mandou seguir a viatura e eu fui para as minhas voltas, dar o passeio.
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Notas:

[1] Nota do editor: “3 pelotões para reforço temporário das guarnições de Gandembel e Guileje, de princípios [?] de Dezembro 1970 a finais de Janeiro 1971”; cf “Resenha [...]”, vol.cit.).

[2] Nota do editor: início de Fevereiro 1971.

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Parènteses rectos com notas / Subtítulo / Negritos: LG]
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Notas do editor LG:

(*) Último poste da série > 15 de abril de 2023 > Guiné 61/74 - P24224: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXIV: As previsões agoirentas do adivinho Mamadu Candé que nos via, a mim e ao João Bacar Jaló, a viajar num barco para desembarcarmos numa grande cidade e aí a sofrer muitas baixas (... só não nos disse o nome da cidade: Conacri...)

(**) Vd. poste, publicado fora de ordem, 22 de novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23804: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte X: Op Mar Verde, há 52 anos, em 22/11/1970: para Conacri, rapidamente e em força.