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sexta-feira, 29 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26213: Notas de leitura (1750): O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, até ao virar do século (4) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Outubro de 2024:

Queridos amigos,
Continua a ser mistério insondável o silêncio do Boletim Oficial da Província da Guiné quanto aos acontecimentos, verdadeiramente preocupantes, das dificuldades postas à pacificação e ocupação do território. Nunca se fala da hostilidade do Oio e da sua firme oposição a pagar impostos; não há uma só referência à insubmissões das populações à volta de Cacheu, isto a despeito de haver relatórios mensais do comandante militar de Cacheu, parece que está tudo em paz. Um dia, em conversa com Armando Tavares da Silva, ele contou-me como é que sendo ele um professor catedrático aposentado da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, se lançou neste cometimento de investigação da História Política e Militar nas vésperas de autonomia até ao fim da I República. O seu avô, tenente da Armada Real e administrador colonial, estivera na guerra do Churo, deixara documentação, picado pela curiosidade, lançou-se ao trabalho. Neste texto, em que se fala da guerra do Churo de 1904, invoco com respeito a memória de Armando Tavares da Silva, a quem a historiografia da Guiné muito fica a dever.

Um abraço do
Mário


O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, até ao virar do século (4)

Mário Beja Santos

O leitor tem vindo a ser informado da parcimónia informativa do Boletim Official da Província da Guiné quanto a este período do virar do século, entrou-se numa rotina burocrática das chegadas e partidas, nomeações e exonerações e questões alfandegárias, não esquecendo as questões militares, mas também de caráter burocrático. Por isso se regressa ao vasto acervo documental da obra de Armando Tavares da Silva, A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar, 1878-1926, no caso vertente o período de 1903 a 1905.

Judice Biker partiu, chegou Soveral Martins. Este escreve para Lisboa, elogiando a obra pacificador do seu antecessor, considera a situação que a situação económica da província não correspondia à riqueza e vastidão do território e observa que “fazer a guerra a pretos com pretos só serve e basta quando aqueles sabem que ela pode ser sustentada com outras forças cuja decisiva e irresistível ação já sentiram.” Exprime dúvidas quanto à lealdade de diversas etnias, será o caso do Oio, a campanha de Judice Biker podia ter sido seguida por uma ocupação séria, é de prever nova guerra. Faz ao Governo uma resenha dos diferentes povos, enumera a multiplicidade de artérias fluviais e questiona em voz alta quais os meios que a província dispõe para manterem respeito aos povos inimigos. Alude à ocupação reduzida aos comandos militares – Cacheu, Farim, Bissau, Geba, Buba e Cacine, os postos fiscais de Arame, São Domingos e Contabane; existem duas lanchas canhoneiras, Cacheu e Farim, que não podem sair ao mar. O material de guerra é inapropriado, dúvida do seu bom estado de funcionamento. Elogia a administração francesa em que o sipaio senegalês mantinha o prestígio colonial, a segurança e integridade do território.

Enumera as regiões que, pelo seu estado de revolta, necessitam de uma imediata ocupação: o Oio; a região ocupada pelos Balantas nas duas margens do Mansoa; a ilha de Bissau; o arquipélago de Bijagós e Manjacos. Para que se dê essa ocupação seria indispensável um estabelecimento de um total e seis comandos militares, fala dos efetivos necessários, a presença de um navio de guerra capaz de sair ao mar, forças europeias. Em Lisboa, o novo ministro do Ultramar pede ao ex-governador Judice Biker um relatório confidencial, este elabora-o, considera que o principal problema passa por castigar os Oincas e sujeitá-los ao pagamento imposto, tinha a convicção que se assim não se fizesse, os Fulas e Biafadas passariam a ter relutância ao pagamento; e Biker exprimia também a opinião de que na época seca seguinte se devia avançar para o Oio e depois aproveitar a mesma expedição para castiga o gentio do Churo, que estava constantemente incomodando a praça de Cacheu; Biker termina o seu relatório indicando as forças militares necessárias para manter o gentio em sossego; o desenvolvimento comercial com a paz na província compensaria bem todos os esforços e defesas. Também não deixa de notar quando, a 13 de julho de 1900 assumira o Governo da província “o nosso domínio era pouco mais que nominal, limitando-nos a conservarmo-nos na sede dos comandos militares, mas sem prestígio e influência sobre os gentios para nos fazermos obedecer.”

O ministro não responde às propostas de Soveral Martins, era certamente da opinião que se fazia resolver sem empregar a força. Soveral Martins viaja pelo interior da província, informa o ministro que conseguira com meios suasórios a submissão de agentes do Oio, o que estava muito longe da realidade. É nisto que o comandante militar de Cacheu avisa o governador que foi prevenido pelo gentio de Churo de que no prazo de três dias iria atacar a praça. Seguem uma embarcação para Cacheu e mais tarde a lancha canhoneira Cacheu. Está tudo num impasse, não há nenhuma operação contra o Churo, mas a 7 de dezembro o gentio de Churo avança sobre Cacheu. O governador junta reforços para a defesa da praça. O ministro expede um telegrama para o governador de Angola perguntando-lhe se ele poderia organizar um batalhão disciplinar com uma companhia europeia e outra indígena para destacar em serviço de campanha na Guiné. O ministro não tem dinheiro, não é aceitável qualquer guerra dispendiosa, sugere ao governador que aproveite os Grumetes como elemento essencial e principal nas operações. O governador vê esboroarem-se os seus planos, mas pede apoio naval, 500 armas Snider e 200 mil cartuchos. A custo, fora organizada na metrópole uma pequena força composta quase só de praças que, estando na maioria dos casos a cumprir penas, se tinham voluntariado para servir no Ultramar.

Depois de alguns avanços e recuos organiza-se a coluna de operações composta por um núcleo de forças regulares e por forças irregulares de auxiliares Grumetes, partem a 26 de fevereiro de 1904 para Cacheu, vai chegando mais apoio naval, a coluna põe-se ao caminho, dirigem-se para as tabancas de Churo, as palhotas foram incendiadas, houve algum tiroteio, mas o Churo estava vencido. Restava, para completo castigo dos rebeldes levar a guerra às tabancas da região de Cacheu. Não era possível atravessar o território entre o Churro e o Cacheu, 30 km de mato quase impraticável e o calor era uma fornalha. Regressa-se a Cacheu e a partir por terra castigavam-se os povos que mais incomodavam a praça.

O governador deixou um detalhado relatório, informa o governo em Lisboa dos resultados desta nova expedição, as tabancas arrasadas em torno de Cacheu. O governador viajará a Cacheu para receber a submissão do gentio e impor as suas condições para o perdão, estas foram aceites. Para que houvesse ocupação efetiva, era indispensável a nomeação de um corpo de tropa aguerrida, ou um esquadrão de dragões. O ministro irá arguir à constituição de um esquadrão de dragões indígenas da Guiné, pede que se proceda à reorganização militar, e o esquadrão fica com a sua sede em Farim. Lapa Valente é o governador interino, vê-se confrontado com a decadência progressiva do pequeno comércio nas margens dos rios e no interior. Interessante observação dele sobre o comércio da Guiné, constituiria “um sindicato entregue a três ou quatro companhias estrangeiras, pouco escrupulosas, que num futuro muito próxima explorarão sem consciência europeus e indígenas”. E, mais adiante, referindo-se ao pequeno comércio no interior diz que é “constituído por nacionais clientes dessas companhias, e que se limitavam a casas de venda a grosso e retalho em Bolama e Bissau, os portos servidos pela navegação de longo curso.” Internando-se pelos rios, ali faziam o seu abastecimento, promovendo com o indígena “trocas em dinheiro e em produtos do país (mancarra, cola, borracha, bandas, gado, coros, cera, etc.), que entregues a essas casas, eram depois por elas lançadas nos mercados europeus.” É, pois, manifestamente favorável ao estabelecimento de companhias estrangeiras no interior dos rios.

Decorrem, entretanto, a delimitação de fronteiras, acarretando confrontos com o gentio; tratava-se da delimitação da fronteira norte pela missão conjunta luso-francesa, com o levantamento dos rios Cacheu e Casamansa, para se determinar a linha de separação. Encontrou-se bastante hostilidade. Em 15 de dezembro de 1904 é nomeado novo governador, o capitão Carlos d’Almeida Pessanha, virá tomar posse em 2 de fevereiro de 1905.

Armando Tavares da Silva
Lapa Valente nomeado governador interino na ausência de Carlos d’Almeida Pessanha, 1905
Nomeação de João Augusto d’Oliveira Muzanty como governador da Guiné, 1906
Um prisioneiro. Oferta de Maria Alice Caldeira, viúva do Coronel de Artilharia/Comando Octávio Barbosa Henriques (1938-2007), de um conjunto de materiais do seu espólio. No arquivo da EPHEMERA, encontra-se um número significativo de fotografias da guerra colonial, em particular da sua estadia na Guiné entre 1968-1972, aquartelado no Sul da Guiné junto da fronteira com a Guiné-Conacri.

(continua)
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Notas do editor

Vd. post de 22 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26181: Notas de leitura (1747): O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, até ao virar do século (3) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 25 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26191: Notas de leitura (1749): A Guiné Que Conhecemos: as histórias sobre unidades do BCAV 2867 (1) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26065: Notas de leitura (1736): Regresso a um clássico da historiografia guineense: A questão do Casamansa e a delimitação das fronteiras da Guiné (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Julho de 2023:

Queridos amigos,
As considerações finais desta obra de referência que é a investigação de Maria Luísa Esteves sobre a questão do Casamansa são verdades com punhos. A França foi extremamente hábil em apoderar-se do Casamansa, as autoridades portuguesas depositavam pouco interesse na região, revelaram-se ingénuas, não cuidavam de enviar para a região administradores hábeis e foi assim, contrariando os interesses das populações, que se foram apoderando do comércio da região. Ao tempo, deram-se outras adversidades, relevo a falta de recursos financeiros, a desvalorização da mancarra e fundamentalmente o cataclismo que foi a guerra do Forreá, guerra sanguinolenta entre fulas-forros e fulas-pretos, desmantelou-se quase completamente a presença de explorações agrícolas no rio grande de Buba, o que também levou o comércio no rio Nuno a ficar valorizado. Outra grande habilidade dos franceses, como destaca Maria Luísa Esteves, foi terem visto aprovada uma convenção que impediu a nossa presença no Futa Djalon, este tornou-se um protetorado francês. Com esta delimitação de fronteiras feitas a réguas e esquadro suscitaram-se conflitos gravíssimos, a potência mais forte ficou sempre na mão de cima. E o resultado sai nas palavras da autora: "A França soube assegurar para si uma fronteira fácil de guardar sob o ponto de vista fiscal e, com o intuito de conseguir um maior desenvolvimento do baixo Casamansa, procurou salvaguardar a rede de vias navegáveis." E lembrarmo-nos nós dos alertas sucessivos que Honório Pereira Barreto dirigia ao governador de Cabo Verde e até Lisboa...

Um abraço do
Mário



Regresso a um clássico da historiografia guineense:
A questão do Casamansa e a delimitação das fronteiras da Guiné (3)


Mário Beja Santos

No repositório das obras admiráveis, de leitura obrigatória para melhor compreender a historiografia luso-guineense, avulta o impressionante trabalho de Maria Luísa Esteves, A Questão do Casamansa e a Delimitação das Fronteiras da Guiné, edição conjunta do Instituto de Investigação Científica e Tropical e do INEP, 1998. Trata-se de uma revisitação, o anseio de um novo olhar sobre tão importante narrativa, isto depois de ter lido e aqui comentado o texto do tenente da Armada Real, Cunha Oliveira, que coordenou em 1888, do lado português, a comissão mista que procurou resolver questões encrencadas na delimitação das fronteiras, tudo produto de quem assinou a convenção luso-francesa de 12 de maio de 1886 não fazer a menor ideia das delicadezas da topografia da região.

A convecção luso-francesa de 12 de maio de 1886 não contemplou os espaços verdadeiramente ocupados pelas diferentes etnias, houve para ali trabalho de régua que irá suscitar uma permanente atmosfera de conflitos que irão exigir missões das comissões luso-francesas e ajustamentos que pareciam ter ficado resolvidos ainda no tempo da monarquia que, pasme-se, se prolongaram até à década de 1930. Evitando uma penosa listagem desses conflitos, dir-se-á que eles ocorreram logo nas fronteiras luso-francesas, tendo diferentes protagonistas e lugares: o régulo de Firdu, no Casamansa, Mussá Moló, súbdito francês, invadiu territórios pertencentes ao distrito de Geba, fez destruições, atacou depois em Farim, será questão que se prolongará por anos; haverá conflitos entre fulas e mandingas e uma oficial francês em terras de Pachisse; um antigo chefe nalu, prisioneiro dos portugueses, depois de libertado fixou-se em território francês, teremos a seguir um contencioso diplomático, o comandante francês de Kandiafará atravessou a fronteira e intimidou populações, veio-se a apurar que foram chefes gentílicos da Guiné portuguesa que chamaram o oficial francês.

Temos uma missão em 1900 que se prendeu com o reconhecimento por parte dos dois países sobre a imprecisa delimitação da colónia, cujas fronteiras continuavam abertas e sujeitas a contingências que punham em perigo o domínio territorial e a respetiva influência política. É neste período que começaram a ser colocados marcos, logo na fronteira sul. Fora nomeado como encarregado da delimitação de certos trechos da fronteira o 2.º tenente da Armada, Oliveira Muzanty. O ponto de partidas das operações foi a ponta Cagete, que se revelou impraticável. Lisboa apoiava a ideia dos legados fazerem concessões recíprocas de território, obviamente que tinham de ser sancionados, ou não, os respetivos comissários. Nova missão reuniu-se em janeiro de 1901, demarcou-se a parte Sul e Sueste da fronteira entre a ponta Cagete e Dandum, os trabalhos foram interrompidos por um surto de febre amarela. Vai ter lugar nova comissão, entre 1902 e 1903. As dificuldades subsistem, basta ler o parecer da Direção-Geral do Ultramar:
“Pôr de parte a convenção de limites de 1886 dando largas concessões e poderes aos comissários não parece prudente mormente quando se sabe que na região leste da província o governo francês pode levantar dificuldades ao traçado da linha indicativa do meridiano limítrofe, visto a população do régulo principal da região ficar na esfera portuguesa; o que a França não podia supor e não verá com bons olhos. Destas circunstâncias não parece conveniente aumentar os poderes dos nossos delegados mesmo quando estão em harmonia com os dados dos comissários franceses.”

Seja como for, lança-se a proposta de trocas de território de igual superfície, no caso de interesses políticos a salvaguardar, ou para obter uma linha natural de fronteira, sempre que haja aprovação pelos respetivos governos. Temos depois uma nova missão em 1904 e 1905, a operação da colocação de marcos e pilares teve sérias dificuldades, haverá hostilidade de algumas populações, o que vai exigir a presença de efetivos militares. Só em janeiro de 1906 é que se deu por aprovada a fronteira norte.

Analisando as vicissitudes destas missões, observa a autora:
“Se atentarmos ao resultado final conseguido, não podemos deixar de considerar que se não foi favorável também não envergonhou os esforços do gabinete de Lisboa, em período politicamente instável, assoberbado por questões internas e jogando forças com uma nação poderosa e cheia de ambições colonialistas. Muito já estava perdido quando o problema se levantou, e milagre se faria se os diplomatas africanistas tivessem conseguido reaver o que há muito fora usurpado.”

Em tempo de considerações finais sobre este dossiê da questão do Casamansa, atenda-se à natureza das observações da autora:
“Os indígenas do Casamansa sempre foram afeiçoados aos portugueses e viam com relutância a presença de outros europeus, não sendo raro pedirem a sua interferência nos seus conflitos com os franceses. O plano gizado pela França englobava também o rio Nuno e era bem vasto. Para o conseguir realizar serviu-se de exploradores que souberam preparar o caminho para os seus compatriotas. Estudavam as regiões, procurando conhecer qual o seu interesse, e, enquanto intrigavam e indispunham os indígenas contra os portugueses, faziam propaganda a favor da sua pátria. Era uma política de aliciamento a que não eram estranhos os negociantes que habilmente sabiam desviar para as zonas que lhes interessavam o comércio sertanejo.
O governo português não soube ou não pôde responder a este repto. E a decadência da Guiné cada vez se acentua mais com a instalação dos franceses em Carabane e em Selho.
Não eram só os negociantes franceses os culpados da estagnação da vida económica nacional e da diminuição das receitas. Outros fatores contribuíram também: desvalorização da mancarra nos mercados europeus, fretes onerosos sobre as mercadorias e falta de recursos financeiros, pois os capitalistas não acreditavam nas possibilidades da colónia.
A abolição da escravatura agravou ainda mais a situação. Portugal ao ajudar os fulas-pretos ao sair da escravidão, concitou contra si o ódio dos que os dominavam, os fulas-forros. As lutas tribais que se seguiram prejudicaram enormemente a agricultura e desviaram o comércio do sertão das rotas comerciais, fazendo-o afluir às feitorias francesas. A França soube assegurar para si uma fronteira fácil de guardar sob o ponto de vista fiscal e, com o intuito de conseguir um maior desenvolvimento do baixo Casamansa, procurou salvaguardar a rede de vias navegáveis.
Com a posse dos rios Casamansa e Nuno e dominando a região Futa Djalon, os franceses absorveram toda a vida comercial.
As duas Guinés, a francesa e a portuguesa, foram criadas sem terem em conta, muitas vezes, não só os limites naturais como as realidades étnicas, sociais e económicas existentes. Só mais tarde, quando já não era possível emendar os erros cometidos, se verificou que os povos com história e cultura comuns foram separados e entregues a países diferentes sem respeito pelo seu passado. Não era para admirar que assim tivesse acontecido quando as negociações de fizeram longe dos locais a delimitar por pessoas mal informadas sobre a história dos povos e sem conhecimentos suficientes de geografia e utilizando cartas topográficas pouco rigorosas.”


O marco 173 está situado em Chão Baiote, junto à tabanca Kassu, na praia de um dos muitos cursos de água da Baixa Casamansa. A linha de fronteira atravessa Kassu, deixando um bairro na Guiné-Bissau e outro no Senegal. O marco está instalado num espaço aberto, apenas frequentado por vacas que, para fugirem às moscas, buscam as zonas perto de água. Imagens de Lúcia Bayan, já publicadas no blogue, com a devida vénia.
Casamansa, a imagem do atrito
Imagem da ilha de Goreia, junto a Dacar
Imagem de pesca no rio Casamansa
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Nota do editor

Último post da série de 14 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26044: Notas de leitura (1735): Regresso a um clássico da historiografia guineense: A questão do Casamansa e a delimitação das fronteiras da Guiné (2) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 7 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24375: Historiografia da presença portuguesa em África (371): As campanhas de pacificação na Guiné no livro "História do Exército Português", pelo General Ferreira Martins; Editorial Inquérito, 1945 (Mário Beja Santos)

Com a devida vénia a Cabral Moncada Leilões. Foto editada


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Setembro de 2022:

Queridos amigos,
Não se pode dizer que a narrativa do general Ferreira Martins traga algo de novo àquilo que se tem vindo aqui ilustrar sobre as campanhas de pacificação, chamemos a este texto um exercício de divulgação. Há aqui algumas falhas de peso, não se fala na bravura de Graça Falcão no Oio, pelo que de novo se recomenda a quem queira estudar este período o importante levantamento documental efetuado por Armando Tavares da Silva que tem o título "A presença portuguesa na Guiné: história política e militar, 1878-1926", Caminhos Romanos, 2016.

Um abraço do
Mário



As campanhas de pacificação na Guiné no livro História do Exército Português, pelo General Ferreira Martins

Mário Beja Santos

Trata-se de uma obra de divulgação que fez a sua época, publicada em 1945 pela Editorial Inquérito. Veremos adiante que há de facto uma poderosa intervenção do Exército no caso vertente da Guiné, mas antes do Capitão Teixeira Pinto destacaram-se briosos oficiais da Marinha. Para quem se interessa pela matéria, a partir da página 470 deste tomo ir-se-á falar da pacificação da colónia da Guiné. Vamos ao que escreve o general Ferreira Martins.

Logo no começo do século XX, sendo governador o Primeiro-Tenente da Marinha Júdice Biker, houve que reprimir revoltas em Jafunco (1901) e no Oio (1902) utilizando as poucas tropas disponíveis, mas contando com a cooperação de canhoneiras e a intervenção de auxiliares indígenas. Houve sublevação do gentio do Churo (Cacheu), reprimida pelo novo governador, Soveral Martins, também oficial da Marinha, em 1904. O autor enfatiza que estas operações não foram completadas por uma ocupação efetiva e cita o marechal Bugeaud: “Em África uma expedição não seguida de ocupação não deixa mais vestígios do que o sulco de um navio no oceano”. Governava a Guiné em 1907 o Primeiro-Tenente Oliveira Muzanty, outro oficial da Marinha, a quem se deve a ocupação da ilha Formosa (Bijagós), quando se deu a sublevação de régulo do Cuor, Infali Soncó. Embora à espera de uma expedição metropolitana, Muzanty lançou-se numa coluna de operações sobre a região revoltada do Cuor. Infali aliciara os régulos de Badora e do Xime. Muzanty foi temporariamente bem-sucedido, assaltou com sucesso a tabanca de Campampe, que estava solidamente fortificada. Por curto tempo, a margem esquerda do Geba, entre Xime e Bafatá, ficou pacificada.

No princípio de 1908, um outro destacamento constituído por praças da Marinha e outros militares europeus foi encarregado de, sob o comando do Capitão Ilídio Nazaré, efetuar a reparação das linhas telegráficas danificadas por rebeldes no Quinara, efetuou-se a reparação e castigaram-se os rebeldes. Em março, o Capitão Botelho Moniz bateu os Felupes de Varela, que se negavam ao pagamento do imposto. E a 19 desse mesmo mês chegou a tão desejada expedição metropolitana que trazia uma companhia de Infantaria 13, alguma artilharia deficiente e uma força de engenharia. Muzanty viu-se obrigado a reforçar o grupo expedicionário com uma companhia da Marinha e uma companhia mista de Infantaria (deportados europeus e atiradores indígenas). Irão bater a margem direita do Geba. O primeiro combate deu-se em Canturé, em 6 de abril, os Biafadas bateram-se bravamente, a povoação foi incendiada, a expedição seguiu para Sambel Nhantá, esta era a sede do regulado, régulo e sua comitiva fugiram, a coluna avançou para Madina que após hora e meia de combate foi tomada incendiada. Em 1 de abril, hasteava-se a bandeira portuguesa no Cuor, neste regulado, em Caranquecunda ficou uma companhia de Infantaria macua, dispondo de armamento velho.

Muzanty foi depois defrontar-se com os papéis que em 1894 o Governador Vasconcelos e Sá não conseguiu dominar. Depois de bombardeadas pela artilharia da fortaleza de Bissau, as povoações de Intim, Bandim e Antula, marchou uma desfalcada coluna sobre Intim, onde foi violentamente atacada mas a povoação foi ocupada e destruída. Prosseguiu a operação para Contume, celeiro natural da ilha, deu-se aqui um violento combate que custou a vida ao alferes Jaime Duque. Os Papéis não desarmaram e atacaram a coluna, a resposta foi enérgica, dentro de um quadrado que Papéis e Balantas não conseguiam desarticular, e os rebeldes acabaram por fugir. Com este violente combate de Intim terminou na Guiné a campanha de 1908.

O autor fala agora das operações de 1909, cita um livro do antigo governador Carvalho Viegas, donde extrai a seguinte observação: “Foi o Balanta, talvez o indígena que maior resistência opôs à expansão do propósito colonizador, enfrentado com decisão e valentia as colunas enviadas a recontros em que as armas de fogo não puderam contê-lo à distância.”

Foi este o inimigo com que se defrontaram os portugueses em 1909 quando na região de Gole (Porto Gole) gente sublevada atacou na manhã de 21 de fevereiro o posto militar, a guarnição conseguiu repelir o atacante. Havendo indícios de que em breve voltariam os Balantas a atacar o fortim com mais numerosos elementos, mandou o governador Muzanty reforçar a guarnição com tropas de infantaria e artilharia. E pela primeira vez é referida a presença de Abdul Indjai, ele é o régulo do Cuor. Sucediam-se os ataques dos sublevados, sem êxitos.

Estamos agora em 1912, não se pode ainda falar na ocupação definitiva da Guiné, as rebeliões sucedem-se. Em 1912, o Governador Carlos Pereira, também ele oficial de Marinha, organizou uma coluna de operações para castigar revoltosos, dirigiram-se primeiramente a Binar, foram depois a Cacheu, foram sucessivamente punindo rebeldes. É neste contexto que aparece na Guiné o Capitão João Teixeira Pinto. Começa por castigar rebeldes do Oio, leva consigo Abdul Indjai, conta com a colaboração de duas lanchas e de um grupo armado pela administração de Geba. Em 1913, Teixeira Pinto, quase só com irregulares de Abdul Indjai e de outro oficial de segunda linha, Mamadu Sissé, foi a Cacheu e bateu o gentio de Churo. As sublevações acalmaram mas não desapareceram. Em fevereiro de 1914, os balantas de Braia trucidaram o Alferes Manuel Pedro e o seu pelotão de cavalaria, houve chacina, coube ao Capitão Teixeira Pinto vingar os desditosos camaradas trucidados. Coube a Teixeira Pinto responder, obteve a pacificação de toda a região Balanta entre Mansoa e Geba.

Graças ao seu crescente prestígio, o governo aproveitou para em 1915 submeter definitivamente os Papéis e Grumetes de Bissau, a sua rebeldia era permanente. Teixeira Pinto pôs-se à frente de uma numerosa coluna, contava com os irregulares de Abdul Indjai, travou com os rebeldes renhidos combates de Intim e Bandim, cujas posições foram tomadas depois de um bombardeamento. Teixeira Pinto atacou ainda outras povoações, lutando sempre com a inaudita resistência dos rebeldes. Teixeira Pinto é preferido em Safim, recolhe-se a Bissau, mas a coluna, sob o comando do Tenente Sousa Guerra, continua o avanço e tomou de assalto outras posições. Depois de dois meses de operações em que as forças de Teixeira Pinto tinham sofrido 47 mortos e 202 feridos, tomaram-se de assalto outras posições rebeldes e a ilha de Bissau foi considerada como submetida. O autor fala da ilha de Canhabaque, houve operações em 1917, comandadas pelo Major Ivo Ferreira (Governador da Guiné entre 1917 e 1919), tais operações demoraram oito meses, mas os atos de rebeldia continuaram. Em 1925, o novo Governador, Vellez Caroço, viu-se forçado a realizar novas operações na ilha, apreendeu armas e munições, parecia que o castigo tinha sido duro, pura ilusão, as operações foram retomadas em 1935-1936, são consideradas como o termo das operações de pacificação, daí o monumento em Canhabaque, evocativo que era tido como o fim das rebeliões. O General Ferreira Martins concluiu assim as suas referências às campanhas de pacificação.


General Luís Augusto Ferreira Martins (1875-1967)
Joaquim Pedro Vieira Júdice Biker (1867-1926)
Alfredo Cardoso de Soveral Martins (1869-1938)
Imagem da guerra do Cuor, fotografia de José Henriques de Mello, 1908
No Xime, no decurso da guerra do Cuor, fotografia de José Henriques de Mello, 1908
Estátua do Capitão João de Teixeira Pinto
Monumento aos heróis da pacificação de Canhabaque, imagem retirada do livro “Bijagós Património Arquitetónico”, fotografia de Francisco Nogueira, Edições Tinta-de-China, 2016, com a devida vénia
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Nota do editor

Último poste da série de 31 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24357: Historiografia da presença portuguesa em África (370): Da CUF à Casa Gouveia, da Casa Gouveia à CUF: Uma viagem interminável (3) (Mário Beja Santos)

sábado, 1 de julho de 2017

Guiné 61/74 - P17533: Falsificações da história (3): (i) Oliveira Muzanty foi um governador-geral controverso; (ii) nunca houve nenhuma coluna de operações proveniente da metrópole em 1891; (iii) aventuras e desventuras no Oio do "herói" Graça Falcão... (Armando Tavares da Silva, historiador)


Guiné > Região de Bafatá > Bafatá > c. 1970 > Parque da cidade com a estátua de Oliveira Muzanty (governador-geral, 1907-1909) e, ao fundo, a Casa Gouveia.

Foto: © Benjamim Durães (2011). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. O historiador Armando Tavares da Silva mandou-nos os seguintes comentários ao poste P17532, sobre o trabalho de António dos Anjos “Resumo do que era a Guiné há vinte anos…” (edição de autor, Bragança, 1937). (*)

[Foto à direita: Armando Tavares da Silva, membro da nossa Tabanca Grande, autor de “A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar (1878-1926)” (Porto: Caminhos Romanos, 2016, 972 pp.). ]


 (i) A demarcação das fronteiras da Guiné

No início do Post apresenta-se uma imagem da estátua de Oliveira Muzanty erigida em Bafatá. A inclusão desta imagem neste Post leva-me a um comentário. Eu creio que essa estátua se destinou mais a homenagear o oficial que desempenhou um papel importante na chefia da parte portuguesa da comissão luso-francesa que procedeu à demarcação das fronteiras da Guiné, do que o governador a quem esteve confiado o território entre 1906 e Janeiro de 1909.

Nesta qualidade [, como governador,]  a sua actuação não deixou boas recordações nem resultados úteis, tendo mesmo no final do seu mandato sido objecto de fortes críticas. Muitas das campanhas militares que empreendeu, ou redundaram num efectivo fracasso, ou foram desnecessárias.

Notemos que a inutilidade da campanha de Muzanty de 1908 em Bissau fora também referida no relatório de inspecção das alfândegas da Guiné, a que procedera o comissário Henrique Gonçalves Cardoso em 1912, e que determinou uma reorganização destes serviços. No índice do relatório, na parte referente à apreciação da vida da província, são mencionados os seguintes parágrafos: “As guerras de Bissau”, “A intriga dos proprietários em Bissau”, “Necessidade de pacificação de Bissau”, “A campanha de 1908 foi inútil”. 

Caso curioso é o facto de as páginas deste relatório que conteriam estes parágrafos, não se encontrarem presentes no relatório, fazendo crer terem dele sido removidas propositadamente, talvez para esconder factos que alguém desejaria que ficassem desconhecidos.

A efectiva demarcação das fronteiras da Guiné para dar cumprimento às disposições da Convenção de Maio de 1886 desenvolveu-se em várias fases. A primeira decorreu entre Janeiro e Março de 1888, e nela foi feita a demarcação da fronteira sul, sem que problemas de maior tivessem sido levantados. Porém, a demarcação da fronteira norte vai ser fonte de dificuldades, pois obrigava Portugal a abandonar Zeguichor [, Ziguinchor ou Zinguinchor], facto contra o qual várias vozes se levantaram, originando resistências e um atraso nessa entrega, que só ocorrerá em 12 de Abril.

Após esta entrega, os trabalhos de demarcação ficam suspensos, pois a França pretendia agora que se fizesse uma alteração à Convenção de 1886, substituindo o cabo Roxo pela ponta Varela, donde partiria a linha de fronteira, o que não fora aceite. Parecia, de resto, que, conseguida a ocupação de Zeguichor, os franceses se desinteressaram de prosseguir os trabalhos de demarcação.

Estes só serão retomados no começo do ano de 1900, passados mais de 10 anos desde os trabalhos daquela primeira missão, e na sequência de uma série de diligências iniciadas com a apresentação, pelo governo português, junto do governo francês, de uma proposta com aquele objectivo, no início de 1898.


(ii) O papel do 2º tenente João Augusto d'Oliveira Muzanty na chefia da parte portuguesa da comissão luso-francesa para a demarcação das fronteiras

É para chefiar a parte portuguesa desta segunda missão que é nomeado o 2.º-tenente João Augusto d’Oliveira Muzanty. Porém, os novos trabalhos de demarcação iniciam-se pela fronteira sul, uma vez que os franceses rejeitavam o traçado fixado pela comissão de 1888, realizado com base em cartas que apresentavam erros, colocando exigências que se traduziam para Portugal na perda de territórios no Forreá. Isto conduz à ruptura das negociações e à necessidade de um levantamento rigoroso das zonas fronteiriças, e a aceitar a cessão recíproca de territórios se indicações geográficas ou outras a tornassem indispensável e fosse justificada.

Os trabalhos só são retomados em Janeiro de 1901, ficando os delegados portugueses instruídos a cingir-se, tanto quanto possível, à Convenção de 1886, mantendo-se os pontos iniciais da fronteira sobre o litoral, tanto ao norte como ao sul, nela mencionados, de modo a não diminuir a extensão da costa portuguesa. A fronteira sul ficará demarcada em Maio desse ano.

Os trabalhos de demarcação só serão retomados em finais de 1902, e Oliveira Muzanty mantinha-se a chefiar a delegação portuguesa. Novamente devido a inexactidões das cartas, nomeadamente ao facto de se ter reconhecido que, de acordo com estas, Cadé ficaria dentro do território português, contrariando os termos da Convenção de 1886, foi necessário proceder a compensações territoriais. Os trabalhos desta nova comissão ficam concluídos em Maio de 1903.

Só em Janeiro de 1904 serão retomados os trabalhos de demarcação da parte mais importante, a fronteira entre o Casamansa e o rio Cacheu, que obrigava ao levantamento destes rios, o qual fica terminado em Maio. Reiniciados no final de 1904, depois de passada a época das chuvas, virão finalmente a terminar em Abril do mesmo ano, com a colocação de um marco no cabo Roxo. Terminava assim um longo período, durante o qual a chefia da delegação portuguesa nestas comissões estivera confiada a Oliveira Muzanty.


(iii) O opúsculo de António dos Anjos contém inúmeras inexatidões, erros e omissões

O trabalho de António dos Anjos pretende transmitir a ideia de que foram múltiplas as dificuldades que se depararam às autoridades no estabelecimento de uma administração no território e, sobre este aspecto, cumpre o objectivo. Porém, devo advertir o leitor de que este trabalho contém muitas inexactidões, podendo criar uma ideia errada de alguns dos acontecimentos que procura relatar. O que é natural, pois o próprio diz “não consultei relatórios nem Boletins Oficiais”, baseando-se no que ouvira, e também no que tinha visto depois de chegar à colónia em 1911. E sabe-se quanto a transmissão oral do conhecimento leva à adulteração dos factos.

Não vamos ser exaustivos na análise do que escreve António dos Anjos. Digamos, como exemplo, que menciona a ida para a Guiné de uma coluna de operações proveniente da metrópole, aquando dos problemas de Bissau de 1891. Ora, o que é facto, é que nenhum contingente metropolitano foi enviado para Bissau nessa altura. Foram os efectivos lá existentes que protagonizaram os acontecimentos da altura.

Mas há uma parte do escrito de António dos Anjos que merece um comentário mais desenvolvido, pelas convicções que transmite e por me parecer estar bastante longe da realidade dos factos. Diz respeito ao que se passou no Oio em Março de 1897, na desastrada incursão desencadeada por Graça Falcão.


(iv) O mito do herói Graça Falcão

Jaime Augusto da Graça Falcão (e não António) tem um extenso historial desde que, como alferes, foi transferido de Angola para a Guiné por questões disciplinares em 1892, até ao momento em que, em 1926, foi aposentado compulsivamente pelo governador Vellez Caroço, por desrespeito a este. Extenso historial que não vou aqui desenvolver, acrescentando apenas que durante este período foi expulso por três vezes da Guiné, tendo a sua liberdade de movimentos na Guiné sido coarctada uma outra vez.

Digamos que a operação que ele promoveu no Oio em Março de 1897, que já tinha sido precedida de outra incursão entre Janeiro e Fevereiro do mesmo ano, que se saldara num “revés” e que o governador Pedro Inácio de Gouveia mandara sindicar, foi realizada à revelia deste, e para a qual não tinha autorização, deixando de cumprir a determinação de que os comandantes militares estavam proibidos de sair das sedes dos comandos sem ordem ou licença. 

Responsável por este desastre é também o 1.º tenente Álvaro Herculano da Cunha que, como delegado do governo no presídio de Farim, determinara a 6 de Março a organização de uma coluna de operações do Oio. Nesta incursão perderam a vida dois oficiais, dois sargentos além de vários soldados. Uma tentativa do governador de última hora, ao tomar conhecimento, através das autoridades do Senegal, de que os oincas pretendiam a paz, não resultou, alegadamente por tal intervenção ter chegado ao conhecimento de Herculano da Cunha e Falcão depois de iniciado o ataque.

Este lamentável episódio, deu origem a dois autos de averiguações, quatro relatórios, em que se procurava fazer luz sobre as razões últimas que levaram Graça Falcão a invadir o Oio, servindo-se de uma força apreciável de auxiliares.

Os relatos que até agora têm sido feitos sobre este incidente, tendentes a transformar Graça Falcão num herói, e a enaltecer o facto de este ter escapado com vida, desconhecem toda a realidade envolvida nesta lamentável aventura não autorizada, e cuja realização parece que fora previamente decidida. (**)
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 29 de junho de  2017 > Guiné 61/74 - P17523: "Resumo do que era a Guiné Portuguesa há vinte anos e o que é hoje", de autoria do 2.º Sargento Reformado António dos Anjos, 1937, Tipografia Académica, Bragança (1) (Alberto Nascimento, ex-Sold. Cond. Auto da CCAÇ 84, 1961/63)

(**) Último poste da série > 31 de maio de 2017 > Guiné 61/74 - P17417: Falsificações da história (2): o ataque a Bambadinca em 28/5/1969: eu estava lá !... e vou enviar em breve um texto conjunto com o Fernando Calado com a nossa versão dos acontecimentos (Ismael Augusto, ex-alf mil manut, CCS/BCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70)

quinta-feira, 29 de junho de 2017

Guiné 61/74 - P17523: "Resumo do que era a Guiné Portuguesa há vinte anos e o que é já hoje", da autoria do 2.º Sargento Ref António dos Anjos, Tipografia Académica, Bragança, 1937 (1): Até à pág. 14 (Alberto Nascimento, ex-Soldado Condutor Auto)


Guiné > Bissau > Fortaleza da Amura > 1908 > "Bissau: Soldados em grupo dentro da fortaleza"... Foto proveniente do Arquivo Histórico Militar, que nos chegou pela mão do nosso camarada Carlos Cordeiro, açoriano,  professor universitário. Ainda hoje a fortaleza está coberta de poilões centenários como este, seguramente contemporâneos das "campanhas de pacificação" da Guiné, do 1.º Tenente Oliveira Muzanty (1908) e do capitão Teixeira Pinto (1913-1915).

Foto: Arquivo Histórico Militar  (com a devida vénia...)


Guiné > Região de Bafatá > Bafatá > c. 1970 > Parque da cidade com a estátua de Oliveira Muzanty e, ao fundo, a Casa Gouveia, dois símbolos do "colonialismo"... A estátua foi apeada (e provavelmente destruída) depois da independência da Guiné-Bissau. "Estupidamente", acrescente-se... Não há história sem memória, e a história da Guiné-Bissau, não começou com a "gloriosa luta" do PAIGC contra os "tugas"... Oliveira Muzanty e todos os "tugas", colonialistas e anticolonialistas, fazem parte da história da Guiné-Bissau. Tal como as legiões romanas, o direito romano e o latim fazem parte da história de Portugal e da identidade dos portugueses... Todos os iconoclastas são fundamentalistas e terroristas... Porque, afinal, só há uma terra e uma humanidade... O esclavagismo, o colonialismo, o fascismo, o nacionalismo, o chauvinismo, e todos os demais ismos, incluindo o racismo e a estupidez dos iconoclastas, não têm pátria...

Foto: © Benjamim Durães (2011). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. O nosso camarada, o "veteraníssimo" Alberto Nascimento [na foto à direita] (ex-Soldado Condutor Auto da CCAÇ 84 (Bambadinca, 1961/63), enviou-nos um pequeno livro, em formato PDF, datado de 1937, de autoria do 2.º Sargento reformado António dos Anjos, para publicarmos no nosso Blogue.

Trata-se de um opúsculo que tem um título do tamanho de um comboio ("Resumo do que era a Guiné Portuguesa e há vinte anos e o que é hoje:  para cujo progresso muito contribuiu o capitão de infantaria João Teixeira Pinto", 97 pp. ).

O ficheiro que nos chegou é proveniente da digitalização de uma cópia pessoal que está nas mãos do Alberto Nascimento e que lhe terá sido entregue por um familiar, um amigo ou simples conhecido do autor, já falecido, António dos Anjos, um transmontano de boa cepa, como muitos dos militares que por andaram nesta época.

Trata-se de uma edição de autor. O livro foi impresso na Tipografia Académica, Bragança. Os acontecimentos relatados por ele remontam às "campanhas de pacificação" dos princípios do séc. XX. Não sabemos em que ano o autor terá morrido. Terá nascido por volta de 1890, a ser vivo teria agora quase 130 anos. Em 1953, ainda estaria vivo, tendo publico um livrinho de versos: "Campanhas, resistências na Guiné: heroicidades" (ed. autor, Bragança, tip Académica).

Depois de ponderados os prós e os contras, e não são sabendo ao certo se a obra é do domínio público, decidimos a sua publicação no nosso blogue, baseados no seguintes pressupostos e fundamentos:
(i) a obra foi há publicada há 80 anos, mas o autor deve ter morrido há menos de 70;
(ii) os nossos leitores (e nomeadamente os camaradas que fizeram a dura guerra da Guiné entre 1961 e 1974) têm o "direito" de conhecer este livrinho;
(iii) o autor, que é um camarada nosso, mais velho, quis publicamente fazer uma homenagem a um português, o Cap Inf Teixeira Pinto, sob cujas ordens serviu; e
(iv) o 2.º Sargento António dos Anjos, reformado à data da publicação deste seu livrinho de memórias, viveu 25 anos na Guiné, conheceu-a, de palmo a palmo, é credor do nosso apreço e admiração.

Para o efeito vamos publicar 10 postes com uma média de 9 páginas em formato JPG.

Agradecemos ao camarada Alberto Nascimento a possibilidade de dar a conhecer e divulgar desta obra já com 80 anos, esperando que desperte a atenção (e os comentários) dos nossos leitores.

O editor,
Carlos Vinhal

PS - Síntese: o autor oferece-se para uma comissão de serviço de dois anos na colónia da Guiné e acaba por lá ficar 25 anos. Desembarca em Bissau em 29/3/1911. Na altura, havia uma surto de febre amarela que terá feito bastantes vítimas. Nas 15 primeiras páginas, recapitula, de memória, algumas das principais rebeliões dos povos da Guiné desde 1844 até às "campanhas de pacificação" dos finais da monarquia e princípios da República. O paciente e conhecedor leitor irá, por certo, identificar facilmente e desculpar algumas gralhas, erros e imprecisões: por exemplo, topónimos (Bafatá e não Rafatá, p. 9), onomástica (Muzanty e não Mozanti)...

Recorde-se que nesta época, estava  à frente dos destinos da província o Governador João Augusto de Oliveira Muzanty (1906-1909), 1.º Tenente da Marinha. Sobre as campanhas de Oliveira Muzanty, nos anos de 1907-08, vd., aqui texto do José Martins.



(Continua)

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Guiné 63/74 - P15374: Por Graça de Deus, Rei de Portugal e dos Algarves, d'Aquém e d'Além-mar em África, etc.: legislação régia (1603-1910) (4): aberto um crédito especial de 250 contos, em 27/2/1908 (escassas semanas depois do regicídio), para fazer face às despesaas com operações militares na "província da Guiné", ao tempo do governador Oliveira Muzanty, 1º tenente da armada


Guiné > Bissau > Fortaleza da Amura >  1908 > "Bissau: Soldados em grupo dentro da fortaleza"... Foto proveniente do Arquivo Histórico Militar.  Ainda hoje a fortaleza está coberta de poilões centenários como este, seguramente contemporâneos das "campanhas de pacificação" da Guiné e do capitão Teixeira Pinto (1913-1915) (LG).


1. 

MINISTÉRIO DOS NEGÓCIOS DA MARINHA E DO ULTRAMAR

Direcção Geral do Ultramar



Portugal > Assembleia da República > Legislação Régia > PORTARIA, 14 DE AGOSTO DE 1900 > Portaria (ministerio da marinha e Ultramar — Diario do governo n.° 210, de 18 de setembro) determinando que as duas companhias de infanteria da guarnição da provincia da Guiné formem uma unidade administrativa com a designação de «grupo de companhias de infanteria da Guiné»
MINISTÉRIO DA MARINHA E ULTRAMAR, Livro 1900.




Portugal > Assembleia da República > Legislação Régia > DECRETO, 29 DE AGOSTO DE 1901 > Decreto (Ministerio da Marinha e Ultramar — Diario do Governo, n.º 213, de 23 de setembro) approvando a reorganização do pessoal das officinas da esquadrilha da Guiné e seus vencimentos
MINISTÉRIO DA MARINHA E ULTRAMAR, Livro 1901.





Portugal > Assembleia da República > Legislação Régia > DECRETO, 25 DE AGOSTO DE 1903 > Decreto (Ministerio da Marinha e Ultramar — Diario do Governo, n.° 19, de 26 de janeiro de 1904) determinando que os dois pelotões independentes de dragões da provincia da Guiné Portuguesa sejam substituidos por um esquadrão de dragões indigenas conformo o quadro annexo
MINISTÉRIO DA MARINHA E ULTRAMAR, Livro 1903.





Portugal > Assembleia da República > Legislação Régia > DECRETO, 22 DE FEVEREIRO DE 1908 > Decreto (Ministerio da Guerra — Diario do Governo, n.° 56, de 10 março) pondo á disposição do Ministerio da Marinha e Ultramar um corpo expedicionario de tropas para a provincia da Guiné
MINISTÉRIO DA GUERRA, Livro 1908




Portugal > Assembleia da República > Legislação Régia > DECRETO, 27 DE FEVEREIRO DE 1908 > Decreto (Ministerio da Marinha e Ultramar — Diario do Governo, n.° 49, de 29 de fevereiro) determinando a abertura de um credito especial destinado ás despesas a fazer com as operações militares da Guiné
MINISTÉRIO DA MARINHA E ULTRAMAR, Livro 1908.


PROPOSTA DE ORÇAMENTO DE ESTADO PARA O ANO DE 1908-09




Proposta de orçamento geral do Estado para o ano de 1908-1909: o total das receitas era de cerca 70,5  mil contos e o total de despesas de 71,8 mil contos: Défice; mais de 1,3 mil contos. No final da monarquia, em 1910, o nosso PIB (Produto Interno Bruto) andava por volta de 1 milhão de contos (1.000.000.000$000), sendo 1 conto igual a 1.000$000 (equivalente à importância de mil réis - 1$000 - multiplicada por mil,  ou seja,  1 milhão de réis). Com a República, em 1910, o real foi substituído pelo escudo ($) e, em 2002, pelo euro (€).


Discriminação das despesas (ordinárias e extraordinárias) do Direção Geral do Ultramar: 150 contos é a verba originalmente proposta para custear o envio de coluna militar para o sul de Angola...

Fonte: Portugal. Ministério das Finanças - Orçamento Geral e proposta de lei das receitas e despesas ordinárias e extraordinárias do Estado na Metrópole para o ano económico de ... Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1884 - 1925. [Consult em 14 de novembro de 2015]. Disponível em
http://purl.sgmf.pt/OE-1908/1/




Guiné > Região de Bafatá > Bafatá > c. 1970 > Parque da cidade com a estátua de Oliveira Muzanty e,  ao fundo, a Casa Gouveia, dois símbolos do colonialismo... A estátua foi apeada depois da independência da Guiné-Bissau. 


Foto: © Benjamim Durães (2011). Todos os direitos reservados [Edição: LG]

1. Para melhor se entender estas peças, soltas, da legislação régia, datadas da primeira década do século XX, é preciso recordar que a "campanha de pacificação" (sic) da Guiné é um longo e sangrento processo que vai da década de 80 do séc. XIX até aos anos 30 do séc. XX... E nesse processo tiverem particular dois grandes militares portugueses, Oliveira Muzantey 8em 1907-08) e Teixeira Pinto (1913-1915)... Foram 70 anos a fazer a ocupação, "efetiva", do interior da Guiné... 

Este período tem de ser entendido à luz do processo de "partilha" de África pelas potências coloniais europeias, na sequência da Conferência de Berlim de 1884/85... O que se passava em 1908, o ano do regicídio (que ocorreu em 1/2/1908, na Praça do Comércio, em Lisboa, na cabeça do império) ?

Escassas semanas depois da trágica morte do rei D. Carlos e do príncipe herdeiro Luís Filipe, o Governo do almirante Ferreira do Amaral  aprova,  em 27/2/1908, a abertura de um crédito especial de 250 contos para fazer face às despesas com operações militares na "província da Guiné" (, nesta época, o legislador nunca usa o termo "colónia" para designar os territrórios ultramarinos portugueses; "colónias" são as britãnicas)... Convenhamos que 250 contos (250 milhões de réis= 1000 x 1000 x 1$000) na época era muito dinheiro, que o tesouro não tinha...

Deslocava 1757 t, tinha de comprimento  73,8 m, 4 mil cv de
propulsão (2 máquinas a vapor,  com 4 caldeiras alimentadas a
carvão).  Velocidade: 18 nós. Tripulação: 208 elementos.
O seu primeiro comandante foi o capitão de mar e guerra
Ferreira  do Amaral,  Participou,  na I Grande Guerra,
em operações 
militares  contra os alemães no norte
de  Moçambique.  Foi abatido ao efetivo em 1934

Fonte: Wikipedia.
Como termo de comparação, cite-se o custo do cruzador Adamastor: cerca de 382 contos, em 1897 (equivalente a 8 milhões de euros em valores atuais). Construído nos estaleiros navais de Livorno, Itália, em 1896, e lançado à água em 1897, foi financiado por uma patriótica subscrição pública, organizada em resposta ao ultimato inglês de 1890.

Estava então à frente dos destinos da província o governador João Augusto de Oliveira Muzanty (1906-1909),  1º tenente da Marinha.  Sobre as campanhas de Oliveira Muzanty, nos anos de 1907-08, vd., aqui texto do José Martins.

Recorde-se também as campanhas militares de Oliveira Muzanty foram acompanhadas pelo primeiro fotógrafo de guerra português, José Henriques de Mello.

E acrescente-se também este pequeno trabalho de historiografia, que nos vem do Brasil (e que merece uma leitura mais atenta):


“A campanha da Guiné é um diário de guerra escrito pelo tenente de artilharia da marinha portuguesa Luiz Nunes da Ponte, onde ele narra a sua primeira experiência em uma guerra [Luiz Nunes da Ponte, A campanha da Guiné 1908, Porto, typographia a vapor da Empresa Guedes,108 pags.]. 

"O diário é de recordação pessoal, que foi impresso, em março de 1909, em numero limitado e presenteado a amigos militares próximos. O tenente Nunes inicia o seu diário relatando a noticia que leu no jornal O Século, do dia 05 de dezembro de 1907, que dizia: 'pelo Ministério da Marinha foi feita ao Ministério da Guerra requisição de forças para uma expedição á Guiné', nesse mesmo mês chegou a Portugal D. José relatando horrores da colônia, a sua missão na metrópole era conseguir uma expedição para a 'pacificação' da Guiné, de imediato não foi atendido, mas com a mudança no comando do ministério da Guerra mais uma vez ele solicitou essa expedição o que conseguiu para o mês de março de 1908. 

"O contexto da produção deste diário encontra-se nos desdobramentos da partilha e colonização do continente africano pela Europa no final do século XIX, apesar de que Portugal já se encontrava em partes do que hoje é a Guiné antes da partilha, nessa nova fase do contato português com os reis da região da Guiné muitos se levantam para repelir essa 'dominação'. 

"Quais seriam as causas dessas reações? O que verdadeiramente mudou na relação entre Portugal e os reis da região após 1880? Com um novo desenho espacial da região, o que isso afetou nessa relação? São questões que estão aqui postas para reflexão e que junto com o diário, publicações periódicas e leitura de texto,s serão desenvolvidas a partir deste trabalho” (…).

Fonte: Barreto, F. e Carvalho, J. - A Campanha da Guiné 1908. [Em linha] Anais Electrónicos. VI Encontro Estadual de História. Associação Nacional de História, Seção Bahía [ANPUH/BA]. 2013. [Consult em 15 nov 2015]. Disponível em http://anpuhba.org/wp-content/uploads/2013/12/Fabio-Barreto.pdf