Amílcar Cabral, 1966... Fotograma do filme documental
Labanta Negro, do realizador italiano Piero Nelli, 1966, a preto e branco, 16 mm, 39' de duração... Passou recentemente no
doclisboa2011, na retrospetiva 'Movimentos de Libertação'...
Foto de Luís Graça (2011).
1. Continuação da leitura do livro de memórias do Bobo Keita (BK), da autoria de Norberto Tavares de Carvalho (*)...
“Eu não fui mobilizado directamente pelo Partido” – confessa BK ao seu entrevistador, NTC. “Foi graças à minha actividade desportiva e sobretudo à conversa do Nkrumah no Gana [, por ocasião do torneio de futebol de 1959]” (p. 58).
BK sabia da existência do PAIGC, clandestino, mas não tinha contactos diretos com nenhum militante, em Bissau. “(…) Sabia que havia o Rafael Barbosa e que o meu primo Momo Turé fazia propaganda do Partido, mas não conversávamos sobre o assunto” (p. 59).
Já na clandestinidade e sob vigilância da PIDE (, instalada em Bissau desde 1956), Amílcar Cabral tinha estado na capital da província, de 14 a 21 de Setembro de 1959, para trabalho de organização política, com os seus colaboradores mais próximos (o seu meio-irmão Luís Cabral, Aristides Pereira, Rafael Barbosa e João Silva Rosa), instalando-se depois em Conacri.
Em todo o caso não se percebe muito bem, pela leitura do livro do NTC, como é que BK decide, uma bela manhã, partir para o sul com o objetivo de chegar a Conacri, e oferecer os seus préstimos a Amílcar Cabral que, em boa verdade, ele mal conhecia. BK, que era o sustento da família, despede-se, com a aparente naturalidade das gentes africanas, da sua querida mãe e dos seus 3 manos (dois dos quais irão mais tarde ingressar no PAIGC, na fase da luta de guerrilha). Presume-se que BK tenha ocultado à família os seus projetos. Aparentemente ele ia para o sul fazer a “campanha da costura” (sci), numa altura propícia aos alfaiates, que era a colheita das nozes de cola.
Por outro lado, a sua saída de Bissau não parece ter sido um ato isolado… No dia 26 de Dezembro de 1960, “o primeiro grupo de colegas” (sic) decide “organizar-se” e parte para o sul (p. 60). Presume-se que BK se refira aqui a “colegas” do futebol e do Cupelom de Baixo. A 30, “foi a vez do meu grupo sair de Bissau” (p. 60).
Terá sido simples coincidência ou foi mesmo uma “fuga”, planeada e organizada, com a eventual cobertura do PAIGC ? BK não é claro a este respeito, nem o seu entrevistador aprofundou (ou mostrou interesse em aprofundar) esta questão.
Do “primeiro grupo” faziam parte craques da bola como o Julião Lopes, o Lino Correio (UDIB) e o João de Deus (primo do BK e também titular da seleção). Do outro grupo, além do BK, fazia parte o Ansumane Mané, “Corona”. Um e outro eram também jogadores da seleção. Ao todo eram apenas três, incluindo um “rapaz de Bissau”, não identificado.
Os três embarcam no porto de Bissau a caminho de Enchudé, frente a Bissau, no outro lado do Rio Geba, mas já na região de Quínara. Aqui apanham uma boleia, de carro, até
Sangonhá, região de Tombali, já na fronteira com a Guiné-Conacri.
“Quem nos levou foi um dos condutores do Camacho, um grande comerciante português instalado no sul”… Em Sangonhá, havia duas lojas, “a do Alfa Camará e a de um senhor mestiço que, segundo constava, colaborava com a PIDE” (p. 61).
O Alfa Camará era amigo do pai do BK. Não se se sabe se era simpatizante ou até militante do PAIGC. Muito provavelmente não, já que a mobilização no interior ainda não tinha começado. De qualquer modo, era um dos contactos do BK no sul. Ele já tinha levado, “em segredo”, as bagagens do BK, numa viagem anterior em que viera a Bissau abastecer-se (p. 61).
A escolha da rota do sul, para se chegar a Conacri, era aparentemente mais fácil do que a rota do norte, via Senegal. Para justificar a sua presença, perante as autoridades portugueses, BK apresentava-se sempre como alfaiate que ia fazer a “campanha de costura do sul”. O “Corona” era o seu “ajudante” (p. 60).
O grupo não entrou na Guiné-Conacri através do posto fronteiriço de Sangonhá. Daqui seguiu para Campaeane, na margem esquerda do Rio Cacine, a sul de Cacine. Dormiram na casa de “um amigo que nos fora recomendado” (p. 61). Esse mesmo amigo levou os três, logo de manhã, para a “outra margem”, que já era território da Guiné-Conacri, a uma hora de distância.
Chegados lá, tiveram uma “agradável surpresa”, foram encontrar o grupo do Julião Lopes, que partira de Bissau a 26 de dezembro de 1960. (Este Julião Lopes será o futuro comandante da Marinha de Guerra da Guiné-Bissau, depois da independência e até ao golpe de Estado de ‘Nino’Vieira, em 14 de novembro de 1980).
Continuo, no entanto, sem perceber se BK agiu sozinho, por conta e risco, ou se beneficiou da eventual ajuda da “rede clandestina” do PAIGC que, na época, ainda deveria ser bastante “incipiente” em Bissau (para não dizer "inexistente" no sul). De qualquer modo, BK chega a Conacri, são e salvo, a 12 de Janeiro de 1961, doze dias depois de se ter despedido da mãe e dos irmãos em Bissau. Ele e os seus "colegas" da bola...
Antes disso, aos dois grupos (o do BK e do Julião Lopes), reagrupados em Canfandre, junta-se em Boké, um terceiro, também oriundo de Bissau. Formaram um equipa de futebol que ainda disputou algumas partidas. Os “Portuguis Nara” (expressão local, que queria dizer: 'São Portugueses'), com vários titulares da seleção de futebol da província portuguesa da Guiné, foram recebidos com entusiasmo pela população e pelas autoridades da região de Boké, não tanto pelo seu ardor nacionalista como sobretudo pelo seu talento futebolístico…
Chegados finalmente a Conacri, foram encaminhados para os serviços de imigração a fim de legalizarem a sua situação. Recorde-se que a Guiné-Conacri tinha-se tornado independente da França em 2 de Outubro de 1958, quase dois anos mais cedo que o Senegal (, que chegará à independência apenas a 20 de Agosto de 1960).
“Comunicaram então ao Cabral a nossa presença na capital guineense” (p.65)…
BK conhecera o “senhor engenheiro” uns anos antes, “quando era ainda muito jovem”… [ou seja, entre 1952 e 1956, quando Cabral trabalhou na sua terra como engenheiro agrónomo, com a sua esposa, Helena, portuguesa]. BK lembra-se de ele lhe oferecer “uma bola” e de organizar “pequenos torneios na Granja do Pessubé para os mais jovens” (p. 65).
Em Conacri, BK e os seus amigos passaram a ficar no “lar do Partido”, que ficava no bairro de Almame-La. Nessa época Cabral preparava os primeiros combatentes da futura “luta de libertação”. Ele próprio vai à China, em Agosto de 1960, pedir apoio, à frente de uma delegação que integra o Luciano N’Dau, o Dauda Bangura e o Joseph Turpin.
Um segundo grupo segue, no 2º semestre de 1960, para a China, para formação político-militar, do qual faziam parte 10 futuros destacados dirigentes do PAIGC, hoje todos desaparecidos, uns em combate outros na "voragem da revolução" (com exceção de Manuel Saturnino da Costa)… Aqui vão os seus nomes, por or ordem alfabética:
(i) Constantino dos Santos Teixeira (“Tchutchu Axon”);
(ii) Francisco Mendes (“Tchico Tê”) (1939-1978);
(iii) Domingos Ramos (morto, em combate, em Madina do Boé, em 11 de Novembro de 1966);
(iv) Hilário Rodrigues “Loló” (, comissário político, morreu em 1968, num bombardeamento da FAP, no Enxalé);
(v) João Bernardo “Nino” Vieira (1939-2009) (natural de Bissau; ex-Presidente da República);
(vi) Manuel Saturnino da Costa (será 1º ministro entre 1994 e 1997; ainda é vivo);
(vii) Pedro Ramos (fuzilado em 1977, às ordens de ‘Nino’ Vieira, ao que parece, no âmbito do chamado "caso 17 de Outubro");
(viii) Rui Djassi (comandante da base de Gampará, morreu em 1964, por afogamento na sequência de um ataque das tropas portuguesas);
(ix) Osvaldo Vieira (1938-1974; morreu, por doença, em 1974, num hospital da ex-URSS, e com a terrível suspeita de ter estar implicado na conjura contra Amílcar Cabral; ironicamente repousam os dois, lado a lado, na Amura); era também conhecido como "Ambrósio Djassi" (nome de guerra);
(x) Vitorino Costa (morto, numa emboscada em 1962, antes do início oficial da guerra, por um grupo da CCAÇ 153 / BCAÇ 237, comandado pelo Cap Inf José Curto; era irmão de Manuel Saturnino da Costa).
“Quinze ou vinte dias depois da nossa chegada a Conacri regressou da China este segundo grupo”, esclarece BK (p. 66).
Os primeiros tempos em Conacri – estadia que se vai prolongar até Outubro de 1961 – foram passados com aulas de “preparação política de base”, dadas pelo próprio Amílcar Cabral … As aulas chegavam a prolongar-se até às tantas da noite. Cabral utilizava, para o efeito, a garagem da casa onde vivia.
"Aí é que começamos a vida dura de militantes. Cabral dava aulas de conhecimento geral sobre a nossa terra, sobre os motivos porque resolvera lutar contra os Tugas, as injustiças, e dava exemplos práticos que toda a gente compreendia. Falava muito de independência e de liberdade" (p. 66).
À pergunta de NTC sobre se alguma vez o BK teve dúvidas ou quis voltar para trás (“e entregar-se aos tugas”), BK é firme e peremtório, mas sobretudo "politicamente correto" (aos olhos do seu entrevistador, também ele antigo militante do PAIGC, e também ele vítima do golpe de Estado de 'Nino' Vieira), como seria de esperar, de resto, de um homem que passou mais de 13 anos na dura luta de guerrilha:
“Houve momentos de incertezas, felizmente esses momentos foram passageiros. De dúvidas não posso falar. Sabe que eu tenho um princípio que é o seguinte: palavra dada é coisa sagrada. A luta foi difícil, mas nunca pensei em abandonar. Quanto aos desertores, a lei do Partido exigia que fossem executados… Era a lei militar” (p. 67).
Não tenho dúvidas que Bobo Keita, sendo um homem coerente, se tivesse jurado bandeira, nas fileiras do exército português e não se tivesse sentido injustiçado (como aconteceu com o 1º Cabo Miliciano Domingos Ramos, vítima de racismo, segundo o depoimento do seu amigo Mário Dias), nunca teria chegado a comandante do PAIGC... Bobo Keita, por outro lado - é bom recordá-lo - foi dos poucos guineenses que, opondo-se ao golpe de Estado do guineense 'Nino' Vieira contra o caboverdiano Luís Cabral, se exilou voluntariamente, em Cabo Verde, em 1998, para vir morrer no país dos tugas, em 2009...
Luís Graça,
Quinta de Candoz, Candoz, Paredes de Viadores, Marco de Canaveses, 27/10/2011
(Continua)
[ L.G. segue a nova ortografia. Respeita, no entanto, a ortografia antiga nas citações de outros autores ou fontes]
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Nota do editor:
(*) Vd. poste de 27 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8952: Notas de leitura (294): De campo em campo: conversas com o comandante Bobo Keita, de Norberto Tavares de Carvalho (Parte III): Cupelom, Pilum, Pilom, Pilão..., um bairro que dava de tudo, fervorosos muçulmanos, bajudas giras, futebolistas talentosos, destacados militantes do PAIGC, bravos comandos africanos... (Luís Graça)