Norberto Tavares de Carvalho (abreviadamente, NTC) dedica bastante tempo e espaço à infância, adolescência e juventude de Bobo Keita (abreviadamente, BK). Grosso modo, até aos seus 21 anos, quando BK, jogador do Sport Bissau e Benfica, decide “mudar de campo”. São cerca de 50 páginas, de um total de 300 (pp. 18-68). (*)
NTC nem sempre segue um fio condutor, lógico e cronológico, na longa entrevista (ou série de entrevistas) que ao longo de 2 anos conduziu com o comandante do PAIGC, até praticamente às vésperas (18/12/2008) da sua morte (que ocorreu em 29/1/2009, num hospital dos tugas).
Há saltos e desvios, muitas vezes impostos pelo discurso torrencial do entrevistado. De qualquer modo é prodigiosa a memória de BK, capaz de recordar com grande acuidade e vivacidade episódios dos seus primeiros anos de vida, além de datas, lugares e nomes (para não falar já da sua dura vida como combatente e dirigente do PAIGC).
- De Sundiata Keita a Kwame Nkrumah (Parte I, pp. 18-46);
- Das rotas do sul ao tráfico de armas (Parte II, pp. 47-121);
- Cerco à volta de Amílcar Cabral (Parte III. Pp. 122-180);
- Aviões de caça, Mig 21 prontos a descolar (Parte IV, pp. 181-236);
- e Guerrilheiros caídos no campo da honra (Parte V, pp. 237-246).
Num total são cerca de 250 pp., com o epílogo e o posfácio (, da autoria do A. Marques Lopes). O resto são anexos, alguns despropositados, como as dez páginas de listas nominais não só dos governadores da Guiné e Cabo Verde, como dos presidentes e primeiros ministros destes dois novos países lusófonos. Despropositados, porque o horizonte temporal das conversas de NTC com BK vai dos seus primeiros anos de vida (ele nasceu em 1939) até à partida do último Governador português, Carlos Fabião, em Outubro de 1974.
Ao longo do texto, e inseridas no corpo do livro (e não em rodapé, como deveria ser) também há muitas notas, algumas bastante extensas e espúrias, com informação recolhida pelo autor (por ex., sobre o Cupelom, o futebolista Joãozinho Burgo, a PIDE) ou extraída de outras fontes secundárias (desde o livro de Luís Cabral, Crónica da libertação, ao nosso blogue, passando pela Wikipédia), notas essas que cortam o fio e o ritmo de leitura.
Vamos tentar reorganizar e resumir a informação, de modo a perceber, por exemplo, a decisão do BK de se juntar, em Conacri, ao movimento liderado por Amílcar Cabral.
BK nasceu em 24/9/1939 no Cupelom de Baixo. Num das suas notas intercalares, NTC diz que o Cupelom era, desde os anos 40, um dos bairros mais populares e povoados de Bissau. Estava dividido em 2 partes, a de cima e a de baixo. O topónimo Cupelom foi imposto pela autoridade colonial. Para os seus habitantes, era o Pilum (ou Pilom). em crioulo. Os tugas, como eu, conheciam-no simplesmente como Pilão.
O pai era alfaiate e a mãe doméstica. A origem do pai remonta ao Mali, mas nasceu perto de Boké, na Guiné-Conacri, e onde o PAIGC vai ter uma base militar importantíssima. A mãe de BK, a quem o ligavam fortes laços afetivos, era oriunda de Bissau. A família era muçulmana, praticante.
BK tinha mais 3 irmãos, um rapaz e duas raparigas. O rapaz e uma das raparigas, esta como “socorrista”, também participaram na “luta de libertação”. De acordo com a tradição africana, BK deveria seguir a profissão do pai, que foi alfaiate por conta própria mas também assalariado da empresa francesa NOSOCO.
A família vivia numa casa de colmo, sem água, sem saneamento básico, sem luz elétrica. BK andava descalço, e de calções. As primeiras sandálias que teve foi na “escola do Padre” (p. 24).
Não conseguiu matricular-se na escola pública, de modo a poder frequentar o ensino primário. Alega que na escola primária, em Bissau, ao tempo (do Governador Sarmento Rodrigues, 1945-1950), “só aceitavam alunos da praça” (sic”), “filhos de funcionários [públicos e empregados das casas comerciais] e gente de primeira classe” (p. 28). Pelo que teve de ir bater à porta da escola das Missões Católicas.
Na “escola do Padre” (sic) obrigaram-no a tirar o bilhete de identidade e adotar um nome português. O seu padrinho de ocasião, Padre Henrique Santos, “sem mais cerimónias pôs-me o nome de Henrique Santos Keita” (p. 28).
Na “escola do Padre” não havia turmas mistas (tal como não havia em lado nenhum, no Portugal da época, do Minho a Timor, segundo julgo saber). Além disso, BK era obrigado a ir à missa dominical e a fazer prova disso, sob a forma de senha de presença, a apresentar na 2ª feira seguinte, no início das aulas. Quem não ia à missa, apanhava falta.
BK devia ter nessa altura 9 anos. Estaríamos, portanto, em 1948 (p.29). A obrigação de ir à missa dominical (e eventualmente o risco de ver o filho convertido ao cristianismo) encontrou no pai, fervoroso muçulmano, uma forte resistência. Felizmente que BK pôde contar com o bom senso, a compreensão, a tolerância e a caridade do missionário. Foi dispensado de frequentar a igreja, atendendo que era um aluno com bom aproveitamento e assiduidade.
"Mas só fiz a escola primária" - acrescenta BK. "Não cheguei a ir ao Liceu. Resolvi dedicar-me ao futebol. De qualquer modo, diziam que o Liceu não era para os coitados, pois aí só chegavam gente da praça, filhos de funcionários e malta bem situada" (p. 29).
BK tinha uma noção clara do seu lugar na fortemente estratificada sociedade colonial da época, tendo aprendido bem a lição de Amílcar Cabral, seu futuro professor em Conacri. "Na escala social daquela época colonial vinha logicamente a classe representada pelos portugueses. Qualquer indivíduo, seja ele pobre e analfabeto ou abastado e instruído, uma vez que era branco ocupava um lugar social superior a todas as outras classes" (p. 54).
A seguir vinham os "grumetes", em geral portadores de nomes e apelidos portugueses e que tinham um papel auxiliar na administração colonial. Por fim, vinham "os negros civilizados que tiveram acesso à escola, falam um bom português, vestem-se e comportam-se na sociedade como estes" (p. 54). Na base da pirâmide, estavam por fim os "gentios", a grande maioria dos guineenses que não eram "assimilados".
O gentio, segundo BK, era também designado por "indígena": nativo, animista, pagão, idólatra, "senão selvagem, bárbaro e sem bilhete de identidade", logo socialmente marginalizado, a não a ser para "pagar imposto"... Era gente, como os balantas, onde o PAIGC vai recrutar a sua base de apoio, os seus homens do mato... "Alguns deram bons militantes e quadros" (p. 55).
Guiné-Bissau > Bissau, capital do país > Planta da cidade, pós-independência. (Vd. mapa ampliado na página sobre sobre Bafatá e Bissau)
Cortesia de A. Marques Lopes (2005)
Sobre o bairro do Cupelom (ou Pilão, para os tugas), diz o NTC em nota intercalar: "As ruas não tinham nome, mas todos sabiam quem morava e onde. Neste bairro avizinhavam-se diversas classes e etnias que viviam em perfeita comunhão (...)".
Havia uma numerosa comunidade muçulmana (ou islamizada), tanto no Cupelom de Baixo como no de cima, a par de cristãos e animistas, em especial Mancanhas no Cupelom de Baixo. Com o início da guerra colonial, vieram outras gentes, mas o bairro continuou a ser predominante de população islamizada. De dia, era um bairro com vida própria, com muita azáfama. À noite, enchia-se "dum certo secretismo ligado não só ao sector das ditas 'mulheres de vida' - escreve NTC com algum pudor - mas também às estranhas reuniões furtivas onde se falava de assuntos guardados preciosamente longe de orelhas indiscretas" (p. 56).
O Cupelom, para além de ter sido um "enorme canteiro de gente feminina que perfumava o bairo" (sic), foi um viveiro de jogadores de futebol mas também de combatentes, quer de um lado quer do outro. "Vários dos melhores jogadores de futebol foram aí recrutados, os mais destacados combatentes do PAIGC tiveram aí as suas influências e conhecidos elementos dos Comandos Africanos também aí fizeram história" (NTC, p. 56).
BK recorda com saudade os seus tempos de infância e adolescência no Cupelom. Pilum era um bairro lindo, a gente hospitaleira, a juventude unida, os mais velhos protegiam os mais novos... Também tinha as suas histórias de conflitos de territória, por causa das "moças de outros bairros" (p. 57)...
Era, por outro lado, um lugar de passagem e de encontro, obrigatório, "para os que habitavam nos bairros circundantes" (Santa Luzia, Plubá, Penha, Péfine, Calequir, etc.): "para descerem à cidade, [tinham de] passar pelo Cupelom", o que em si já era "um acontecimento" - sublinha o BK.(p. 56).
"Quando a mobilização começou nos anos 60, os jovens do nosso bairro foram os que mais aderiram à luta. Chamavam [ao] Pilum Bairro de Terroristas" (p. 56) (**). E porquê ? "A maior parte de nós não acreditava no futuro, não havia trabalho, a estiva pagava mal e era muito pesado, o desânimo era geral" (p. 57)...
Guiné > Bissalanca > Finais dos anos 50 > "Fotografia tirada na despedida do gerente da NOSOCO, Monsieur Boris, que nesse dia regressava a Paris (está ao centro de fato e gravata). O João Rosa, o guarda-livros, [e que foi um dos fundadores do MLG - Movimento de Libertação da Guiné] , está na segunda fila à direita; à sua frente, o 2º da direita é o Toi Cabral. Os restantes elementos da foto são alguns (quase todos) dos empregados do escritório da NOSOCO em Bissau (MD), incluindo eu próprio" (MD)...
O terceiro elemento, a contar da esquerda, é o Armando Lopes (n. 1920), pai do nosso amigo Nelson Herbert, e antiga glória do futebol caboverdiano e guineense, e que o Bobo Keita, embora de outra geração, deve ter conhecido. (NH/LG)
Foto (e legenda): © Mário Dias (2005). Todos os direitos reservados.
Mas voltando à adolescência do BK: aos 12/13 anos, por volta de 1951/52, teve a sua festa do fanado, na Granja do Pessubé, nos arredores de Bissau. A cerimónia iniciática durou um mês. Foi circuncisado e tornou-se lambé (pp. 25-27).
Entretanto, a crise da NOSOCO (onde, de resto, também trabalhou o nosso camarada Mário Dias, nos anos 50) levou o pai do BK a procurar trabalho, no sul, como alfaiate ambulante. Mas em breve deixou de dar notícias e a família perdeu-lhe o rasto.
BK tem agora de tomar conta da mãe e dos três irmãos. Pega na máquina de costura Singer que o pai deixara em casa, e começa a coser panos, a bordar, a vender. Os Saraculés é que tingiamos seus panos. Como jovem e como alfaiate, BK tinha a Guiné-Conacri como modelo de referência e fonte de inspiração (moda, vestuário, música e até política). Trabalhava muitas vezes até às tantas da madrugada.
Lembra-se da agitação que ia em Bissau no dia 3 de Agosto de 1959 (dia do chamado massacre do Pindjiguiti). Na altura, com quase 20 anos, jogava à bola e trabalhava na "alfaiataria do tuga" (p. 24)... ...
No livro, BK refere-se sempre aos portugueses como tugas... NTC refere isso mesmo, "a irresístível tendência do ex-guerrilheiro em designar continuamente o português por tuga" (15)... O termo, depreciativo, designava originalmente os portugueses e, mais tarde por extensão, os brancos. Por parte dos combatentes do PAIGC, o termo era usado por oposição a turra (corruptela de terrorista)...
Este tratamento depreciativo do adversário é comum em todas as guerras, acrescenta NTC. Hoje o termo é usado, na Guiné-Bissau, com um outro sentido, sem a carga negativa que lhe atribuía Amílcar Cabral e os seus seguidores. Recorde-se, em todo caso, que o histórico fundador e dirigente do PAIGC sempre fazia questão de distinguir o povo português e os colonialistas, Portugal e o regime político então em vigor...
O mais surpreendente é que BK não é coaptado diretamente pelo PAIGC. A sua ida para Conacri, largando tudo o que amava (a família, o bairro, a cidade, o futebol...), será contada em próximo poste. (**)
PS - Segundo informação do nosso camarada A. Marques Lopes, o livro está à venda no Porto, na UNICEPE, e em Lisboa, na Livraria Portugal, na Rua do Carmo, 70.
[Continua]
_____________
Notas do editor
(*) Vd. 25 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8947: Notas de leitura (292): De campo em campo: conversas com o comandante Bobo Keita, de Norberto Tavares de Carvalho (Parte II): Futebol e Nacionalismo (Nelson Herbert / Luís Graça)
(**) Vd. poste de 13 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6848. Memórias de um Combatente da Liberdade da Pátria, Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai (6): 1966, o ano das prov(oc)ações
(...) Numa sessão da Câmara Municipal, o Major Matos Guerra que era o Presidente anunciou-nos que ia destruir, com uma bulldozer nova encomendada, e por ordem do Sr. Governador Arnaldo Schultz, o bairro do Cupelom, suspeito de ser um ninho de terroristas.
Repliquei, pedindo-lhe para nos informar onde é que a população iria ser alojada. Respondeu que não sabia. Dei-lhe como exemplo o bairro de Alvalade, em Lisboa, onde se construiu o bairro, primeiro, para depois se desalojar as pessoas.
Foi uma discussão que durou, foi suspensa para o jantar e depois retomada até de madrugada. Nós, a vereação, coesa, recusámos a proposta de decisão, que ficou suspensa. Isto pode ler-se na acta da Câmara Municipal. (...).
(***) Último poste da série > 26 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8949: Notas de leitura (293): A Última Missão, de José de Moura Calheiros (José Manuel M. Dinis)
(***) Último poste da série > 26 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8949: Notas de leitura (293): A Última Missão, de José de Moura Calheiros (José Manuel M. Dinis)
3 comentários:
Que eu saiba nunca ninguém perdeu a cabeça no Cupelom, aliás Pilom, aliás Pilão... Refiro-me aos tugas... A não ser em sentido figurado ("perder a cabeça", o juízo, a razão, o tino)...
Houve menino que lá ia dormir e tudo... A (má) fama do bairro já vinha de muito longe... Temos, no blogue, uma boa meia dúzia de histórias passados no Cupelom, aliás, Pilom, aliás Pilão...
O Hélder Sousa já aqui nos confidenciou que ia lá... ao alfaite. Nesse tempo já não podia ser seguramente o Bobo Keita, nem muito menos o pai...
________________
http://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2007/11/
guin-6374-p2271-as-nossas-inconfidncias.html
Histórias sobre o Pilão, ver aqui:
http://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/
search/label/Pil%C3%A3o
Enviar um comentário