sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Guiné 63/74 - P6848: Memórias de um Combatente da Liberdade da Pátria, Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai (6): 1966, o ano das prov(oc)ações


Continuação da publicação das memórias de Cadogo Pai (*)... O documento, de 26 páginas, que me chegou às mãos, tem por título: Memória de Carlos Domingos Gomes, Combatente da Liberdade da Pátria: Registos da História da Mobilização e Luta da Libertação Nacional. Recordar Guiledje, Simposium Internacional, Bissau, 1 a 7 de Março de 2008.

II Parte > Excertos (pp. 8-11)

14. Numa sessão da Câmara Municipal, o Major Matos Guerra que era o Presidente anunciou-nos que ia destruir, com uma bulldozer nova encomendada, e por ordem do Sr. Governador Arnaldo Schultz, o bairro do Cupelom, suspeito de ser um ninho de terroristas.

Repliquei, pedindo-lhe para nos informar onde é que a população iria ser alojada. Respondeu que não sabia. Dei-lhe como exemplo o bairro de Alvalade, em Lisboa, onde se cosntruiu o bairro, primeiro, para depois se desalojar as pessoas.

Foi uma discussão que durou, foi suspensa para o jantar e depois retomada até de madrugada. Nós, a vereação, coesa, recusámos a proposta de decisão, que ficou suspensa. Isto pode ler-se na acta da Câmara Municipal.


A seguir, houve uma nova provocação, sempre para estudo das minhas reacções. O secretário da Câmara Municipal, António Barbosa, natural de Cabo Verde, telefonou-me a dizer que havia uma proposta para mandar uma delegação da Câmara Municipal de Bissau a Lisboa, para representar a Guiné, a exemplo das outras províncias, numa manifestação de apoio ao Professor Salazar por ter decidido desencadear a guerra contra as províncias colonizadas.

Pediram-me para ir assinar a proposta. Perguntei de quem era a decisão. Respondeu-me que fora decidido pelo Governador e o Sr. Presidente da Câmara. Respondi que, por mim, eram eles que deviam assinar. Insistiu e eu respondi para dizer ao Sr. Governador e ao Sr. Presidente da Câmara que eu recusava-me a assinar a proposta. Passou o telefone ao Presidente da Câmara que me confirmou o pedido. Dei-lhe a mesma resposta, negativa, com pedido de para a transmitir ao Sr. Governador.

16. Aconteceu esta cena de manhã. Desligaram o telefone de imediato. Telefonei ao Sr. Benjamim Correia, a dar-lhe conhecimento do ocorrido. Combinámos recusar assinar. O Dr. Armandino Pereira não tinha telefone em casa. Desloquei-me de carro para o avisar. Combinámos recusar assinar a proposta.

17. À tarde, recebemos uma convocatória para uma reunuião na Câmara após o jantar. Eu e o sr. Benjamaim Correia comparecemos, mas o Dr. Armando Pereira desculpou-se, dizendo que estava incomodado, pelo que não poderia deslocar-se à Câmara, de noite.

18. No dia seguinte, quinta-feira, era o dia normal das sessões de Câmara, o Presidente da Câmara veio ao nosso encontro, à porta, com uma amabilidade fora do habitual. Cumprimentou cada um e, ao dirigirmo-nos para os nossos lugares, convidou-nos para um encontro no seu Gabinete, com o Dr. Manuel Marques Palmeirim, que fora mandado pelo Sr. Governador Arnaldo Schulz para ter uma reunião com os vereadores.

19. Fui o primeiro a entrar. Convidou-me a ficar na cadeira mesma à sua frente e, depois de cada um ocupar o lugar que lhe fora oferecido, disparou:
- Senhores Vereadores, parece que se estabeleceu na Câmara uma confusão, para se atender o pedido do Sr. Governador, de se mandar uma delegação da Câmara a Lisboa para tomar parte numa manifestação em apoio ao Professor Salazar.

Respondi, pedindo desculpas, para dizer que não havia confusão nenhuma. Apontei para o livro que tinha aberto à minha frente, a Reforma Administrativa Ultramarina (RAU), que diz que é a Câmara que decide e delibera, não é o Sr. Governador que desencadeia a iniciativa. Respondeu-me:
- Tem razão o Sr. Carlos Gomes.


20. Fez-me três perguntas. A primeira foi a seguinte:  Sendo a Câmara que iria reunir para tomar a decisão, qual seria a minha opinião.

Respondi-lhe que, por mim, se fosse a Câmara a decidir teria que indicar o Presidennte, a quem compete a representação da Câmara.

Fez-me a segunda pergunta:
- E se o Presidente não puder ir ?

Respondi que, por mim, nesse caso seria o Sr. Vice Presidente, Dr. Armando Pereira, no caso de aceitar a missão.

Fez-me a terceira pergunta:
- E se o Dr. Armando Pereira não puder ir ?

Respondi-lhe que teríamos que decidir por escrutínio secreto… Mas se a escolha recaísse na minha pessoa, recusaria aceitar a missão.

21. O Sr. Governador teve que ser ele a decidir, mandando o Sr. Presidente da Câmara representar a Guiné.

22. A partir dessas provocações, nunca mais tive vida sossegads, sucederam-se prisões e mortes (Durante Vieira e outros)… A minha construção continuou a evoluir, mas com desassossego.

 [ Revisão / fixação de texto/ excertos / digitalizações / título: L.G.] 

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