1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Agosto de 2010:
Queridos amigos,
Não há aqui nenhuma encenação, ler foi o melhor remédio para o braseiro que vivemos na semana passada.
É mentira que dentro das florestas a temperatura é mais amena, eu já tinha esquecido a tortura dos suores viscosos dentro das florestas galeria, na época seca, naquela guerra que vivemos.
Defendi-me a ler, sempre reverenciando a Guiné, como a nossa agremiação merece.
Um abraço do
Mário
Recordações de umas férias numa biblioteca em fogo (3)
por Beja Santos
Amílcar Cabral lembrado por Oscar Oramas
Nem ao anoitecer sopra uma aragem. Não é para me gabar, as estantes estão limpas e as aranhas removidas. Socorro-me de um música de fundo pletórica, avassaladora, já andou aí pelos ares a banda sonora da Lawrence of Arabia, depois o Blade Runner, agora Passage to India. Aspirei, bruni, até relampeja o óleo para as madeiras. Agora começa a arrefecer, é tempo de pegar num testemunho de alto nível, o do embaixador cubano Óscar Oramas Oliva, a primeira pessoa fora do PAIGC que viu Amílcar Cabral morto naquela noite de 20 de Janeiro de 1973.
A tradução é abaixo de cão, é muito difícil haver tantas gralhas por página (“Amílcar Cabral, para além do seu tempo”, por Óscar Oramas, Hugin, 1998). Mas o conteúdo é suculento, para além da má tradução e das obrigações propagandísticas de um embaixador cubano. Talvez não valha muito a pena determo-nos nas origens, do meio em que cresceu e dos estudos em Portugal de Amílcar Cabral, é matéria consabida, não é por aí que se encontrará inovação no retrato político. Cabral pertenceu à linha dos visionários africanos, numa linha de compromisso entre a praxis marxista e a lucidez em escapar ao envolvimento proporcionado pelas garras da guerra fria. Conhecia o suficiente das estruturas sociais da Guiné e Cabo Verde a ponto de se saber que foi por puro fanatismo que misturou uma com outra, como se o fosso histórico e cultural pudesse ser iludido. E nesse fanatismo se conduziu à perdição e comprometeu as relações entre dois povos.
Oramas tem razão em contextualizar a luta de Cabral nesse momento particular em que África se lançou nas independências, no estabelecimento hábil de relações de vizinhança que estabeleceu com o déspota de Conacri e o intelectual Senghor, sempre timorato de uma guerra de secessão que roubasse Casamansa ao Senegal. O Amílcar Cabral dos anos 50 é um guineense filho de cabo-verdianos que tem consciência de que não existe proletariado na Guiné e de que o papel das empresas coloniais se distingue de tudo quanto se passa em Angola ou Moçambique, por exemplo. Juntou-se a outros intelectuais e assalariados, assim se constituiu a linha dirigente do PAI, berço do PAIGC. Nesses anos 50 formam-se diferentes grupos ditos de autonomização e libertação e parecia claro que era imiscível qualquer forma de associação natural entre cabo-verdianos e guineenses. Cabral consegue dar a volta, tal a sua determinação, estabelece linhas gerais para a mobilização, ideologização, formação dos quadros, tenta o agrupamento de todas as forças de independência, e enquanto no interior começa a subversão, instalado em Conacri Cabral movimenta-se na cena internacional, capta apoios, recebe ajudas na formação para a luta armada, incluindo armamento. No congresso de Cassacá, em Fevereiro de 1964, faz reprimir aqueles que praticaram abuso do poder nas chamadas zonas libertadas e denuncia a perversidade da “regulandade” (a criação de grupos de súbdito em torno dos chefes), a “catchorindade” (o servilismo) e a “mandjoandade” (espírito de clã). A região Sul é o primeiro trunfo do PAIGC. Em 1965 a organização da unidade africana reconhece o PAIGC como o único interlocutor válido. Cabral dá provas de ser um exímio organizador, um educador vigoroso, dotado de oratória vibrante e convincente. 1968 marca o grande confronto com um Spínola que não quer só vitórias militares, vem disposto a grandes concessões no terreno social e traz um plano de desenvolvimento económico. Cabral continua a achar prematuro a captura e ocupação das localidades que possam representar ser um presente envenenado para os guerrilheiros. O relacionamento com o Senegal é normalizado e vai levar a uma viragem na frente Norte. Oramas inclui um capítulo sobre a participação cubana na luta da libertação da Guiné, tem muitíssimo interesse refere que Cuba está muito próxima das concepções de Cabral e que recebeu lança-roquetes GRAP, canhões sem recuo de 82 mm e roquetes portáteis Strella 2 que só tinham sido usados pelos soviéticos em manobras internas. Outros pontos que merecem amplo desenvolvimento no trabalho de Oramas é a actividade internacional de Amílcar Cabral, que aparece profusamente documentada e as suas ideias políticas, e é aqui que Oramas deixa uma nota inequívoca dos princípios doutrinários de Cabral. Admira a obra de Frantz Fanon, considera que África pode e deve fazer a sua própria contribuição para a luta geral de libertação nacional, designando esta luta como um acto de cultura. Considera que o conceito de partido é o resultado da luta de classes e que compete a esse partido ser o instrumento de transformação da sociedade: para atingir e ferir de morte o colonialismo e para construir o progresso da nação. Defende acerrimamente a centralização dizendo com ironia: “Sou um ditador democrático, pois tomo decisões e delas informo os meus companheiros”.
E chegamos ao capítulo crucial em que Oramas descreve o assassínio de Cabral.
Minutos depois de se terem ouvido os disparos, Oramas é chamado por Otto Shacht, chefe de segurança do PAIGC. Cabral apresenta um orifício de bala na parte posterior da cabeça, já está morto. Shacht informa o embaixador que já sabe quem assassinou Amílcar Cabral. Ouvem-se tiros perto, o embaixador retira, alguém o informa que ouve pessoas a correr em direcção à praia e que se ouviram motores de barcos. Fica-se a saber que Aristides Pereira fora sequestrado. Acompanhado por um ministro da República da Guiné, vão ter com Sekou Touré que estava rodeado pelos conjurados que explicam ao presidente da Guiné Conacri que a direcção do PAIGC tem estado controlada pelos cabo-verdianos que humilham os guineenses. Sekou Touré manda prender os revoltosos. Os vários diplomatas presentes contestam a Sekou Touré que mande prender todos os militantes do PAIGC. Sekou Touré recua e manda alojar os dirigentes do PAIGC em hotéis. O que mais impressiona em todo este testemunho de Oramas é sentir-se que o complot é constituído exclusivamente por guineenses.
Oramas não se compromete seriamente a acusar a PIDE, limita-se a explanar algumas hipóteses e deixa mesmo no ar a possibilidade de um envolvimento indirecto de Sekou Touré. Convém recordar que todos os testemunhos escritos e gravados sobre os revoltosos desta conjura de 20 de Janeiro desapareceram, cada um é hoje livre de especular sobre os motivos de fundo deste assassínio. Oramas termina o seu depoimento lembrando uma frase de Amílcar Cabral: “Eu sou simplesmente um africano cumprindo o meu dever no meu país, no contexto do nosso tempo”.
Quisera eu que a canícula abrandasse, o ar continua abafado, à cautela começo a ouvir o 1.º Acto da Ópera “Parsifal”, com a direcção de Pierre Boulez. Contrariando a lógica das coisas, em vez de uma leitura ligeira vou de emersão para “Memórias das Guerras Coloniais”, de João Paulo Guerra. À falta de genica, embalado pela aragem, entro na leitura. Preparem-se.
(Continua)
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Nota de CV:
Vd. poste de 12 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6847: Recordações de umas férias numa biblioteca em fogo (2) (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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