sábado, 14 de agosto de 2010

Guiné 63/74 - P6852: Recordações de umas férias numa biblioteca em fogo (4): Memórias das Guerras Coloniais, de João Paulo Guerra (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Agosto de 2010:

Queridos amigos,
O que se passou nas minhas férias não foi exactamente assim mas andou lá perto.
Não entrego a limpeza dos meus livros e a desorganização disciplinada dos meus papéis a quem quer que seja. Tinha o corpo molengão, as leituras eram convidativas para fugir à fornalha do sol.
Prometo extinguir o fogo à minha biblioteca nos próximos dias...

Um abraço do
Mário


Recordações de umas férias numa biblioteca em fogo (4)

por Beja Santos

Uma vasta memória de factos de três guerras, entre 1961 e 1974

O projecto inicial está cumprido, quer dizer, foram limpas 6 estantes e cerca de 700 livros, está ali acumulada papelada avulsa que precisa de ordem para uma utilização possível em A Viagem do Tangomau. Vamos para nova empreitada, limpar 8 estantes para onde anarquicamente vou acumulando o que vem de Lisboa, desde catálogos de exposições, livros de ficção, ensaio e, inevitavelmente, as coisas da Guiné. A temperatura não abranda, o melhor é pôr no gira-discos uma música suave, talvez uns metais do período barroco. É nisto que a vista se queda no tampo da secretária: “Para ler em breve. É o primeiro livro com uma visão conjunto sobre as guerras coloniais. Está datado, mas levanta dúvidas pertinentes. É matéria para o blogue”. Olho displicentemente para vassouras, balde, detergentes e panos de limpeza. Pego no livro e deito mãos à obra.

“Memória das Guerras Coloniais” , de João Paulo Guerra (Edições Afrontamento, 1994) foi o primeiro esforço individual de memorizar as três frentes da nossa guerra colonial. O autor, no prefácio, avisa-nos que deve haver cautelas, mecanismos de leitura que travem a vontade de ver certezas em tudo quanto se lê: “Não são juízos. São factos, muitos deles postos em dúvida no próprio texto, porque é por vezes difícil de distinguir nas fontes a informação da propaganda. Separadas por um abismo ideológico, o regime colonial português e os movimentos de guerrilha que o combateram partilhavam uma mesma concepção oficial e única da verdade histórica. Vem daí a inquinação das fontes”. Findo o império, importa pôr de pé o contexto em que decorreram os factos, iluminar o palco onde tiveram lugar os acontecimentos, conhecer as reacções e as atitudes políticas nesse percurso onde se adejaram espectros como o complexo da Índia, o confronto de várias linhas conservadoras dentro das Forças Armadas, a gradual contestação entre a Fé e o Império, quem foram os apoiantes da causa portuguesa nos diferentes territórios, isto sem esquecer refractários e desertores e como se processou, nos três territórios, o cessar-fogo. Essa, em síntese, a tarefa a que se arrogou João Paulo Guerra.

Primeiro, o papel do colonialismo na História, como nasceu o sentimento das independências no chamado Terceiro Mundo, um fenómeno inevitável se bem que tenha sido alimentado pelos grandes actores da guerra fria. A partir dos anos 50, os areópagos internacionais põem na mira de fogo o trabalho forçado, os colonatos, o estatuto dos indígenas e os equívocos da presença portuguesa em África. A eleição de Kennedy veio desequilibrar irreversivelmente a natureza dos apoios que Portugal tinha no chamado mundo ocidental. Para escapar à solidão, a política externa portuguesa é forçada ao malabarismo de negociar em permanência com os diferentes vizinhos, nos três territórios. A solidariedade africana adensa-se, com o apoio do bloco soviético, dos nãos alinhados, dos países árabes e da China.

Segundo, as campanhas militares não escapam à lógica da qualidade dos dirigentes, da coesão dos princípios, da energia na mobilização, na gradual superação das contradições. O autor estuda Angola em primeiro lugar, desvela a estratégia dos três movimentos e da resposta das autoridades portuguesas, assim concluindo: “No final de 1973 e no início de 1974, a FNLA estava confinada à fronteira com o Zaire, a UNITA constituía uma pequena reserva entre o Moxico e o Bié; o MPLA estava reduzido a pequenas bolsas de guerrilha ao longo da “Estrada do Café”, tinha irradiado do Leste para Sul, com bases localizadas a Sul de Gago Coutinho (Lumbala) e a Leste de Mavinga e pela acção combinada das tropas portuguesas e da UNITA tinha retrocedido para o Cazombo, após o impetuoso avanço a partir da fronteira com a Zâmbia, em parte devido ao abandono da guerrilha pelos líderes e combatentes da Revolta do Leste. A situação em Angola era, do ponto de vista militar, a única dos três teatros de guerra que podia considerar-se favorável às posições portuguesas. O regime colonial não tinha ganho a guerra em Angola. Mas estava a ganhar tempo”.
E chegamos à leitura dos acontecimentos na Guiné, as chamadas guerras da pacificação, a chegada, em 1927, da CUF que nunca impediu que a economia colonial da Guiné tivesse saído de um estado primitivo. Apresentadas as populações, o autor convoca Amílcar Cabral, a sua vida e a sua obra, o seu papel até na fundação do MPLA e como, com este, coordenou a luta contra a dominação colonial na esfera internacional. E chegamos à surpresa de 1963: em vez de atacar postos de fronteira, o PAIGC aparece em Tite, Bedanda, Fulacunda e Empada. Em escassos meses, o Sul ficou desarticulado. Em Junho desse ano o PAIGC instalou-se no Oio. As tropas portuguesas viram-se confrontadas com um inimigo que separara populações e criara santuários que se podiam atingir e até eliminar, mas temporariamente, tropas e populações do PAIGC podiam voltar horas depois, findas as operações: foi esta a lógica implacável que Cabral e os seus companheiros estabeleceram para a luta de libertação. A partir de 1964, se bem que com menos ímpeto, a guerrilha progrediu para o Norte, Nordeste e Leste. A partir de 1966, Madina do Boé é alvo de intensas flagelações com artilharia. O historial dos acontecimentos veio a conhecer agravamentos de todos os tipos.

O aspecto tumultuoso da evolução da guerra obviamente que foi acompanhado de divergências e contradições entre os políticos e militares. Em 1964, Schultz proclamara que a paz tinha voltado ao território. Em 1970, Spínola declarava que a situação evoluía num sentido francamente favorável. Bethencourt Rodrigues, o último governador confessou muito mais tarde que a situação se tornara duríssima para as nossas tropas. João Paulo Guerra descreve essas diferentes linhas de força e evidencia como o espectro da guerra sem saída vai mudando a mentalidade dos militares, a começar pelo próprio Spínola que ficou atónito quando Caetano lhe terá dito em 1972 que “Não é forçoso que vençam”.

Impõe-se uma pausa, o que se irá ler a seguir tem a ver com a Guiné e Cabo Verde, depois o autor detém-se longamente em Moçambique e por último temos a complexidade das questões que eram omissas na imprensa, desde as desinteligências entre a igreja e o regime até aos cessar-fogos. Coisa estranha, está agora a arrefecer, vou para as limpezas e depois acabo a leitura do livro. Não deixa de ser agradável passar uma boa parte das férias numa biblioteca a arder. Poiso o livro de João Paulo Guerra ao lado dos livros que constituirão as arremetidas seguintes: “Ébano”, de Ryszard Kapuscinski, e “Quadros de Viagem de um Diplomata (Senegal, Guiné e Cabo Verde) ”. Verão que esses conteúdos não os irão desapontar.
__________

Nota de CV:

Vd. poste de 13 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6850: Recordações de umas férias numa biblioteca em fogo (3) (Mário Beja Santos)

10 comentários:

Anónimo disse...

Sem pretender arengar sobre livros (de que gosto! do objecto, do grafismo; dos conteúdos, dos estilos... da leitura)
sem querer arengar, permita-se-me todavia um desabafo - reajo mal a 'pretensões' mal ilustradas. Atraiçoam a minha expectativa preliminar, induzem mal; ainda que vestigialmente, ainda que previamente.
E são pretensiosas por tentar, discretamente, fazer 'sobreler'.
Um livro que se pretende de caracter historicista e ilustra com e na capa, um discurso diferente daquele que apresenta é uma aldrabice prévia. Eventualmente vestigial, despercebida mas aldrabice.
Já vimos isto em outras obras aqui apresentadas -esta falta de rigor ou esta insídia- e tropeçamos agora na imagem que não é das 'guerras coloniais' a que se referirá o sr JPGuerra (isto, sem comentar a veleidade de escrever considerando sobre 'as três', a aceitar a indicação dada e apesar de que "O autor, no prefácio, avisa-nos que deve haver cautelas, mecanismos de leitura que travem a vontade de ver certezas em tudo quanto se lê", uma cautela expedita, comum)


SNogueira

Anónimo disse...

Caro Mário Beja Santos e caros editores!

Desculpem!

Estou saturado de ver aqui no nosso Blogue, resenções ou aquilo que lhe queiram chamar.

Quero ver e ler as histórias vividas do soldado Português.

Se for a contar as estórias dos livros que tenho lido e as narrações que tenho ouvido, (se os editores mo permitissem!) ninguém mais escreveria no Blogue.

Desculpem a minha frontalidade, e o camarada Beja Santos que fale das suas experiências em terras de Guiné.
Que tenha a coragem de responder aos meus comentários, principalmente na questão da herança de Spínola. Que fale do Aristides Pereira e do seu livro.

Francamente histórias da carochinha estou saturado!

Ou vamos ao debate, ou para mim terminou.

Para que toda a Tabanca conheça o farda amarela que correu as matas do Tombali e Cantanhez, conviveu com populações dos dois lados, e para além de ter vivido muito nesta guerra à qual cada um apelide do nome que lhe aprover leu muito e ouvio mais.

Se O Luís, ou os coeditores acharem que este comentário possa ser editado como Post, que o fassam. Estou desponível para o debate sobre a "Guerra".

Mais uma vez, desculpem a pedrada, mas neste momento estou junto ao pântano de Priame, e não me importo de lhe atirar a pedra ou lá voltar a entrar.

O abraço de sempre do tamanho do Cumbijã.

Mário Fitas

Anónimo disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Anónimo disse...

Favor retirar duplicação ddo comentário.

Desculpem erros ortográficos

Obrigado!

Mário Fitas

Anónimo disse...

Caros Camaradas. Quando é que se vai marcar data para a "fogueira"?. Primeiro...os livros.Quando as chamas estiverem bem altas...os autores. Depois...os críticos.E,finalmente..."alguns"dos leitores. Se os mais exaltados,ou os outros,(os mais cínicos),se derem ao trabalho de vir até minha casa encontrarao muito o que queimar. E,citando clássicos:"Cuidado com o stress térmico"!

Anónimo disse...

Eu diria:
Cuidado com as "G3"!

Deixem-nas saír!

Mário Fitas

Carlos Vinhal disse...

Caros camaradas
Permitam que me pronuncie como leitor, tertuliano e antigo combatente da Guiné, deixando de fora a função de publicar postes.

Não entendo a reacção do nosso camarada Mário Fitas. As recensões não invalidam que os fardas amarelas, verdes ou camufladas continuem a escrever as suas memórias, ficções, opiniões, etc. Nem todos temos bibliotecas e discotecas, porque muitos de nós comeram quase tudo que ganharam não dando muita folga para comprar livros e discos.

As recensões, se para mais não servirem, dão a conhecer a imensa bibliografia que existe sobre a guerra colonial e a Guiné em particular, e quer queiram, quer não, o nosso camarada Mário escreve muito bem e a leitura atenta da sua prosa ensina-nos a evitar muitos erros ortográficos. Não preciso de particularizar.

Camarada Mário Fitas, por favor, deixa chegar aos outros a cultura que tu possuis, não te esqueças daqueles que não tiveram acesso a ela e que aqui, por teu intermédio, do Mário Beja Santos e de outros camaradas igualmente instruídos adquirem um pouco de conhecimento.

Um abraço à tertúlia
Carlos Vinhal

Anónimo disse...

Caro Carlos,

Desculpa, mas tenho o direito de expremir que me sinto farto.
E possivelmente não estarei só!

Desculpa mas lê bem o meu comentário pois não tento proibir histórias de quaisquer fardas seja qual for a cor usada na Guiné.

Obrigado pelo piropo da ortografia.
Registo e terei mais cuidado revendo os textos.

Continuando com os piropos:
Sou filho de gente humilde lá da planície que muito pouco me deixou para além do pagamento dos estudos.
O que ganho e ganhei como trabalhador da TAP foi sendo gerido com algum sacríficio. Não tenho Bibliotecas nem colecções de DVDs. Vou comprando algum livro aos camaradas e outros beneméritos vão-me oferecendo.

A Cultura não é aquilo que se escreve, é a Vivência.

Espero que o meu comentário seja visto como está. Não como se queira interpretar.

Um abraço,

Mário Fitas

Um abraço

Anónimo disse...

Fitas - a lição de dignidade perante o lugar comum.

MUITO BEM!


(em meu entender isolado, só...)


SNogueira

Anónimo disse...

He came up generating betrays to lot neutrogena reviews more gentle they may be less
dangerous. [url=http://www.luyuanjie.com/Shownews.asp?id=56736]neutrogena reviews[/url] You'll also want to know professionally regarding the ingredients plant seeds assistance with facial lines? Parabens will be the most often identified kinds as they are anticipated procedure that consists of expansion of dwelling microorganisms. http://fskehua.com/Shownews.asp?id=88 Kinetin may match by promoting humidity help revitalize skin color that has been dull and tired looking.