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quinta-feira, 13 de novembro de 2025

Guiné 61/74 - P27417: Quem foi obrigado a fazer a guerra, não a esquece: eu não esqueci... (Jaime Silva, ex-alf mil pqdt, BCP 21, Angola, 1970/72) (4): o meu batismo de fogo e a praxe ao alferes “maçarico”


Espingarda semiautomática Simonov SKS-45, calibre 7,62 x 39mm M43, 1945 (Origem: ex-URSS). Uma das caracte5rístcias distintivas é incluir uma baioneta, em forma de faca,  dobrável permanentemente anexada e um carregador fixo articulado. Como a SKS não tinha capacidade de tiro seletivo e seu carregador era limitado a dez tiros, tornou-se obsoleta nas Forças Armadas Soviéticas com a introdução da AK-47 na década de 1950. Na Guiné, era usada sobretudo pelas milícias do PAIGC.

Fonte: Cortesia de Wikipedia
Monumento aos combatentes
do Ultramar. Lourinhã. Pormenor.
Foto: LG (2025)



Quem foi obrigado a fazer a guerra, não a esquece: eu não esqueci (4): o meu batismo de fogo e a praxe ao alferes “maçarico”

por Jaime Silva

Não esqueci que o meu batismo de fogo aconteceu no decorrer da “Operação Broca”, realizada no Norte de Angola, na Mata Bala, entre 20 e 29 de maio de 1970.

Participaram nessa operação, em que esteve presente o general Luz Cunha, comandante da Região Militar Norte, várias companhias: 
  •  uma companhia do exército, sediada em Zalala,
  •  a 19ª companhia de comandos 
  • e 1ª e 2ª companhias de paraquedistas, sediadas em Luanda. 
O objetivo era destruir a Base COBA, da FNLA. Foi a minha primeira operação com a responsabilidade de comandar um grupo de combate, cujos soldados já tinham meses de experiência operacional no Norte e no Leste. 

Os dois sargentos tinham participado na guerra da Guiné e/ou de Moçambique e eu era um “maçarico” inexperiente, acabadinho de aterrar do “Puto” [#].


Jaime Silva, em 2013.
Foto LG
Na véspera, ainda em Luanda, tinha participado no briefing de preparação da operação, juntamente com os responsáveis das várias forças intervenientes.

 O que mais me impressionou, para além de uma parafernália de normas e indicações a seguir rigorosamente para o êxito da operação, foi, no final, o Oficial de Operações ter anunciado “as baixas previsíveis” nas nossas tropas:  3 a 4 mortos.

No contexto dessa operação, fomos transportados pelos helicópteros,  Alouette III. Após o assalto à base, sem oposição, ficámos na zona.

E “vejo”, ainda hoje, o local e o momento em que um guerrilheiro armado progride na nossa direção e faço sinal ao cabo Onofre, que se encontrava à minha frente, para estar atento. Este correu na direção… do combatente e capturou-o, à mão! 

Depois de interrogar o guerrilheiro, este revelou o local onde os seus camaradas guardavam o material de guerra, provisões, material médico e escolar, etc.

O paiol encontrava-se dissimulado numa caverna no alto de um morro e, ainda, no sopé do mesmo. Seguimos um trilho indicado pelo guerrilheiro, mas fomos atacados com um forte poder de fogo de metralhadoras, armas ligeiras e morteiro 60.

Nesse momento, pondo em prática os “ensinamentos” sobre “a arte de bem fazer a guerra” (que tinha recebido e treinado exaustivamente, primeiro em Mafra, na EPI, durante o COM e, depois, no RCP, em Tancos, durante o tirocínio após o curso de paraquedismo), dou ordens ao sargento Mirra, que já tinha experiência de cumprimento de uma comissão em Moçambique:

–  Mirra, envolva pela direita com a sua seção. Eu vou pelo centro com a segunda e vamos desalojá-los.

 –  Você é doido, meu alferes. Primeiro – ordena o sargento Mirra – saia de trás dessa cubata e proteja-se nessa árvore grossa que se encontra ao seu lado. Não vê as balas a saltar à sua frente? Saia daí e depressa! Depois, agarre no rádio e peça ajuda ao 1.º pelotão que se encontra na zona para nos vir ajudar no assalto.

Com efeito, os dois pelotões conseguiram desalojar os guerrilheiros e chegar ao paiol. Nunca vi tanto material durante a minha comissão em Angola: armas, granadas, outro material de guerra, medicamentos, material de apoio escolar, etc.!

 A Base até tinha uma escola com quadro preto pendurado numa árvore!

Nunca mais esqueci estes factos da minha primeira operação: 
primeiro, a lição de serenidade e coragem do Cabo Onofre, a sua lucidez e experiência naquela contexto;  depois, a do sargento Mirra;  por último, e inversamente, a atitude “sacana” do meu camarada, tenente miliciano, comandante do outro pelotão, que, face ao guerrilheiro sentado à nossa frente, rapa de um sabre de uma espingarda Simonov e, sem que nenhum dos três militares presentes (eu, o comandante de companhia e um soldado) esperássemos, num ápice, dá uma “saibrada” [## ] no coração do guerrilheiro e, depois, outra nos temporais, matando-o a sangue frio.

Estupefacto, o comandante de companhia repreende-o daquele ato ignóbil e cobarde. Como se tudo aquilo fosse o mais natural, ele respondeu:

 
– É para praxar, aqui, o alferes maçarico. É para ele aprender. Tem de se habituar.

O alferes maçarico era eu!

Foi assim! Um mundo surreal!



Notas de JS / LG:

[#] Puto, era a designação comum para referir Portugal (Continente), dada a sua dimensão reduzida em relação ao tamanho de Angola (e Moçambique).

[##] Saibrada, termo usado na gíria oral da guerra quando se uso o sabre (arma branca perfurante) para matar ou ferir o inimigo; o termo correto e que está grafado nos dicionários é "sabrada":

O uso do terno "saibrad"pode ser explicado por "contaminação (ou cruzamento Lexical)". Isto não é uma regra fonética, mas sim um lapsus linguae (lapso de língua) ou um ato falho. A contaminação ocorre quando o falante, ao tentar dizer uma palavra, a "contamina" inconscientemente com outra palavra que está semanticamente ou foneticamente próxima no seu cérebro. Neste caso, o falante queria dizer: "Sabrada" (o golpe de sabre). Mas o cérebro misturou com a palavra "Saibro" (o tipo de terra/cascalho, muito comum em campos de treino militar, "pistas de saibro", etc.).

A proximidade sonora (ambas começam com "Sa-") e a possível proximidade contextual (ambas as palavras existem no ambiente militar) levam o cérebro a fundir as duas, resultando em "Saibrada"


1. Com a devida vénia e autorização do autor, Jaime Bonifácio Marques da Silva (antigo alf mil pqdt, 1º CCP / BCP 21, Angola, 1970/72, conterrâneo do nosso editor LG; membro da Tabanca Tabanca desde 21/1/2024, com c. 120 referências no nosso blogue), passámos a criar uma nova série "Quem foi obrigado a fazer a guerra, não a esquece: eu não esqueci..."

É natural de Seixal, Lourinhã. Foi condecorado com a medalha de Cruz de Guerra de 3* Classe. Foi professor de educação física e autarca em Fafe. Está reformado. É sócio de várias associações de antigos combatentes, incluindo a AVECO - Associação de Veteranos Combatentes do Oeste, com sede na Lourinhá,  e a Associação de Pára-Quedistas da Ordem dos Grifos63,com sede em Vila Nova da Barquinha.

Este é o quarto poste da série (que terá 15 postes, correspondentes a excertos das pp. 75-98 do seu livro, Capítulo Dois):


Fonte: Jaime Bonifácio Marques da Silva, "Não esquecemos os jovens militares do concelho da Lourinhã mortos na guerra colonial" (Lourinhã: Câmara Municipal de Lourinhã, 2025, 235 pp., ISBN: 978-989-95787-9-1), pp. 84-86.

(Revisão / fixação de texto: LG)
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sexta-feira, 13 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24753: Notas de leitura (1624): "Os Desastres da Guerra, Portugal e as Revoltas em Angola (1961: Janeiro a Abril)", por Valentim Alexandre; Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2021 (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Fevereiro de 2022:

Queridos amigos,
Descritas as revoltas em Angola desde a rebelião da baixa de Cassange até ao caos sangrento após a insurreição de 15 de março, o historiador Valentim Alexandre dá-nos um retrato das movimentações políticas em Angola, tanto das organizações dos colonos como dos movimentos de emancipação. A segunda parte da obra atende às pressões externas, ao novo quadro da Assembleia Geral da ONU, onde a administração norte-americana se mostrava inequivocamente adversa ao nosso colonialismo, o regime procura apoios externos, revelara-se-ão poucos, a despeito do comércio do armamento, parceiros fixe só serão encontrados na África do domínio branco, Salazar tem a consciência de que não pode bater as palmas ao apartheid. E entramos num vórtice das tensões entre militares, o historiador dá-nos uma narrativa bem impressiva de como foi desencadeado o golpe de Botelho Moniz e como o regime se defendeu. Na conclusão, fala-se detalhadamente da explosão nacionalista em África e como ela a prazo foi bem-sucedida, era um processo histórico inexorável.

Um abraço do
Mário



O início da guerra em Angola, os três primeiros meses (3):
Uma surpreendente obra de referência sobre a génese da convulsão anticolonial


Mário Beja Santos

Os Desastres da Guerra, Portugal e as Revoltas em Angola (1961: Janeiro a Abril) por Valentim Alexandre, Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2021, marca o regresso de Valentim Alexandre à história colonial, de que possuí extenso e brilhante currículo, ainda há escassos anos nos ofereceu outra obra de referência, Contra o Vento – Portugal, o Império e a Maré Anticolonial (1945-1960), também publicado em Temas e Debates/Círculo de Leitores, que pode ser encarada como a primeira peça de algo que se afigura vir a ganhar corpo como a História da Guerra Colonial (1961-1975), empreendimento de grande dimensão, que até hoje nenhum investigador nem nenhuma equipa se acometeu, tal a grandeza da tarefa e o distanciamento que impõe.

Para concluir esta curta viagem em torno de uma obra que se tornou indispensável para o estudo dos primórdios da Guerra Colonial, passa-se em revista as movimentações políticas em Angola e as repercussões destas sublevações angolanas na vida política do regime, irão culminar com a Abrilada, um golpe palaciano falhado, a que se seguirá a declaração política de Salazar de se ir rapidamente e em força combater os focos subversivos. O autor recorda que as revoltas de 4 de fevereiro e 15 de março fizeram fervilhar iniciativas e movimentações entre a população branca, que se sentia ameaçada e não via nas instâncias oficiais a capacidade para dominar a situação, e elenca um conjunto de nomes de intervenientes, recorda que os relatórios da PIDE sublinhavam o clima de desconfiança e suspeição que se vivia em Angola. As estruturas da sociedade angolana mostravam-se paralisadas, numa enorme confusão, e a oposição angolana ao Estado Novo também mostrava incapacidade, tal como as autoridades, para combater a revolta, naquele exato período predominavam as milícias e ninguém as contestava – enfim, oposicionistas e nacionalistas brancos nada mais sabiam fazer do que atividades desgarradas. Terá sido a única exceção a recém-fundada Frente Unida Angolana “pela corrente nacionalista africana que se tinha afirmado politicamente nos últimos anos da década de 50 no distrito de Benguela”. Em 5 de abril, a Frente publicou o manifesto “À população de Angola”, apresentava-se como um movimento cívico, sem distinção de raças, tendo em vista a construção de uma sociedade multirracial. Houve igualmente uma reação das associações comerciais, apelando a Lisboa meios militares para fazer frente à gravidade do momento, sugeria mesmo o estudo imediato da transferência de todo o governo da nação para Angola. O contra-almirante Lopes Alves chega a Luanda a 24 de março, é um homem com pouca saúde, fala diariamente com Adriano Moreira, então subsecretário da administração ultramarina, não esconde a sua inquietação com a situação que se vive no Norte de Angola, pede tropas, armas e polícia. O seu ponto de vista sobre a génese da sublevação diverge da dos militares, estes diziam que todos os acontecimentos resultavam dos abusos nas relações de trabalho, especialmente no problema do algodão, Lopes Alves atribui mais importância à agitação lançada do exterior. E inopinadamente regressa a Lisboa a 2 de abril. O texto da exposição de associações económicas chegará ao conhecimento de Salazar. Este continua sem reagir.

Quanto às organizações políticas africanas, temos as declarações do MPLA e da UPA. Viriato da Cruz, figura preponderante do MPLA, revela que o partido se tinha até então abstido de qualquer ato de violência, mas esta linha de pensamento irá evoluir rapidamente com os atos subversivos. Mário Pinto de Andrade, então presidente do MPLA, revela numa conferência em Casablanca, em fins de abril, que o partido decidira passar à ação direta, estavam ao lado do povo em armas. O autor escreve: “Com a sua direção em Conacri, mal implantado no Congo ex-Belga, dizimado pela repressão policial em Luanda e áreas limítrofes, o MPLA tinha de facto grandes dificuldades em afirmar a sua ação no curso da rebelião desencadeada pela UPA no Norte de Angola. Em compensação, procurava ganhar apoios no exterior”. E dá-nos igualmente o quadro de ação da UPA, e de outras organizações de base étnica bacongo, o MDIA e a NGWIZAKO, com programas nada coincidentes, até porque a NGWIZAKO vinha lutando pela eleição do Rei do Congo. E há a questão do enclave de Cabinda, tinha à frente uma organização clandestina que se apresentava publicamente como um movimento de libertação do enclave.

O autor trata as pressões externas no palco da ONU, onde a nova administração de Kennedy em nada se revelava favorável à política do Estado Novo, montou-se em Portugal uma campanha antiamericana, o regime procurava apoios, encontrava poucos e de fidelidade duvidosa, intervinha mesmo no continente africano, só recebera atenção na África Austral, Salazar não tinha ilusões de que não se podia apresentar como apoiante do apartheid de Pretória; temos o quadro interno, naturalmente complexo, mas o regime não se sente ameaçado. É nesta atmosfera que surge a Abrilada, uma última tentativa nascida na cúpula militar do regime para destituir o ditador e mudar o curso dos acontecimentos.

As chefias militares cedo mostraram que não queriam só debater os programas de armamento e da resposta mais conveniente às sublevações angolanas, queriam debater as questões de política geral. O próprio ministro do Exército assinalou três questões críticas de índole política geral: a atmosfera internacional pouco favorável a Portugal, a existência da censura, criadora de mal-estar, a existência de pessoas ligadas à política do governo simultaneamente ligadas a empresas que afetavam os interesses económicos da Nação. Trata-se de um descontentamento em surdina que apanha transversalmente a cúspide militar, formam-se inevitavelmente grupos, um é polarizado pelo antigo presidente Craveiro Lopes, outro por Santos Costa, um indefetível de Salazar, as fações vão entrar em confronto. O general Botelho Moniz, um ministro que começara a sua carreira apoiando sem tergiversações Salazar revela-se crítico, pretende manter boas relações com os Estados Unidos, sucedem-se os textos, e para 27 de março marca-se o início da fase decisiva da Abrilada, ensaia-se que Américo Thomaz tome partido e demita Salazar, o autor esmiúça com rigor o golpe e o contragolpe, inevitavelmente Salazar ganha e os contestatários são afastados.

Em jeito de conclusão, o historiador recapitula os acontecimentos que levaram às diferentes sublevações, recorda o passado da história de Angola sempre marcado pela violência, também a génese das independências africanas, a ideia de defesa do Império como imperativo nacional, a fissura entre as Forças Armadas quanto à resposta adequada quanto ao despoletar dos nacionalismos africanos e lembra-nos como todas as insurreições em África irão marcar uma nova época de um continente cada vez mais liberto do colonialismo do século XIX.

De leitura obrigatória.


Holden Roberto
General Botelho Moniz
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Nota do editor

Último poste da série de 9 DE OUTUBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24740: Notas de leitura (1623): "Os Desastres da Guerra, Portugal e as Revoltas em Angola (1961: Janeiro a Abril)", por Valentim Alexandre; Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2021 (2) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 9 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24740: Notas de leitura (1623): "Os Desastres da Guerra, Portugal e as Revoltas em Angola (1961: Janeiro a Abril)", por Valentim Alexandre; Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2021 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Janeiro de 2022:

Queridos amigos,
Ensaio de referência, este "Os Desastres da Guerra", graças a uma metodologia altamente afinada, permitem ao leitor menos iniciado não só acompanhar o início da guerra colonial pelas revoltas de Angola, temos aqui um excelente enquadramento da alvorada dos nacionalismos africanos, no texto anterior falou-se igualmente da rebelião da Baixa do Cassange, aqui se registam os assaltos às prisões de Luanda e a insurreição de 15 de março, e o caos sangrento que acompanhou toda esta tragédia. Falta-nos ainda descrever, aproveitando este ensaio tão rigoroso quais as organizações dos colonos e dos nacionalistas, a atenção dirige-se depois para o Palácio do Vidro em Nova Iorque, onde se cresce de tom a crítica ao colonialismo português, teremos entre nós uma campanha anti-americana, o presidente Kennedy é favorável à independência das nossas colónias e o Estado Novo vai emergir para o confronto depois de a Abrilada, assim se abre o cenário para uma guerra total em Angola, Guiné e Moçambique. É uma leitura imperdível.

Um abraço do
Mário



O início da guerra em Angola, os três primeiros meses (2):
Uma surpreendente obra de referência sobre a génese da convulsão anticolonial


Mário Beja Santos

Os Desastres da Guerra, Portugal e as Revoltas em Angola (1961: Janeiro a Abril) por Valentim Alexandre, Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2021, marca o regresso de Valentim Alexandre à história colonial, de que possuí extenso e brilhante currículo, ainda há escassos anos nos ofereceu outra obra de referência, Contra o Vento – Portugal, o Império e a Maré Anticolonial (1945-1960), também publicado em Temas e Debates/Círculo de Leitores, que pode ser encarada como a primeira peça de algo que se afigura vir a ganhar corpo como a História da Guerra Colonial (1961-1975), empreendimento de grande dimensão, que até hoje nenhum investigador nem nenhuma equipa se acometeu, tal a grandeza da tarefa e o distanciamento que impõe.

Estamos agora em fevereiro de 1961, data dos assaltos às prisões de Luanda. O assalto deu-se de 3 para 4 de abril pela madrugada, os autóctones vinham armados de catanas, morreram cinco guardas brancos e houve feridos. As prisões visadas eram as seguintes: a Casa de Reclusão Militar, a Cadeia de São Paulo e a 4.ª Esquadra da Polícia de Segurança Pública. Segundo as informações oficiais internas, para além dos cinco guardas brancos mortos também um cipaio e um Cabo do Exército também tinham morrido. O objetivo da rebelião era limitado, o de libertar os numerosos presos então encarcerados nas cadeias de Luanda. Vivia-se um ambiente de extrema tensão social, os patriotas angolanos não escondiam o seu descontentamento com tão elevado número de prisões, o próprio diretor da PIDE em Angola enviara um ofício secreto ao Ministério do Ultramar a 10 de janeiro referindo o crescente número de presos acusados de crimes contra a segurança do Estado e dizia abertamente haver “estado latente de revolta generalizada”. Tal como na revolta da baixa de Cassange também por aqui andou feitiçaria e magia.

Realizaram-se os funerais dos agentes da ordem e ia iniciar-se um período de retaliações. Em documentação de caráter secreto da administração portuguesa fazia-se notar que não aparecera qualquer arma em mão dos indígenas, era de supor que não estavam armados. À saída do cemitério começou a perseguição de africanos e a sua morte, polícia e tropa irão conjuntamente com civis munidos de barras de ferro aos musseques de Luanda, haverá dezenas de mortos, uma centena de prisões e computava-se entre 700 a 800 os amotinadores detidos. O autor dá-nos a versão oficial expandida e concluí: “Não há, na documentação da época, nenhum indício credível de que os assaltos às prisões de Luanda, em fevereiro de 1961, tenham resultado de diretrizes emanadas do MPLA e da UPA – o que não significa que militantes de qualquer destas organizações não tenham neles participado, ajudando a dar corpo a um movimento espontâneo e multifacetado de revolta da população africana de Luanda”.

Passa-se agora para a insurreição de 15 de março. As autoridades militares procuravam fazer a reavaliação dos perigos que os ameaçavam, era suposto novos assaltos em Luanda, ao Paiol, a casas comerciais ou civis e num conjunto alargado de centros urbanos, greves, etc. Não se dava qualquer relevo ao Norte de Angola. Aliás, ainda se considerava que a situação estava tranquila em Moçambique e quanto à Guiné aludia-se a atividades dos elementos separatistas e escrevia-se mesmo: “A situação na Guiné é alarmante e esta Província pode ser o próximo objectivo dos nossos inimigos”, e a fonte não era despicienda, vinha do gabinete dos Negócios Políticos do Ministério do Ultramar.

A insurreição armada desencadeia-se da noite de 14 para 15 de março, logo se registou a morte de cerca de 70 europeus, muitos feridos brancos como negros, eram múltiplos os locais atacados, muitas plantações ficaram completamente destruídas e as ações terroristas de maior violência localizaram-se na região de Nambuangongo. Era insurreição e pânico. No dia 19 era possível confinar a sublevação a leste pela linha Maquela do Zombo-Carmona, Quitexe-Quieulungo e um limite a oeste definido pela linha São Salvador-Bembe-Nambuangongo e Quibaxe, mas havia ainda outros focos de tormenta.

O autor encontrou no Arquivo Salazar um documento que dá conta das características gerais do movimento: rapidez fulminante dos ataques, iniciados ao amanhecer, à hora do início dos trabalhos nas fazendas; a simultaneidade da ação em locais distanciados de centenas de quilómetros; violência e ferocidade dos processos usados; barbaridades cometidas contra brancos, mestiços e pretos; massas indígenas completamente fanatizadas; pânico das populações brancas; comportamento dos trabalhadores bailundos na resistência aos terroristas.

A operação foi conduzida pela UPA, os seus órgãos dirigentes acabaram por assumir a paternidade de 15 de março, que explode na imprensa mundial dois dias depois. Holden Roberto negou inicialmente a participação da UPA, mas tudo veio mais tarde a esclarecer-se quanto às responsabilidades deste partido, mesmo que ele venha a dizer que se tratava de um movimento espontâneo. Por detrás do cérebro de Holden Roberto estava um ideólogo, Franz Fanon que era favorável ao terror puro, considerava que era assim que o colonialismo se sentiria intimidado e disposto a negociar a independência dos povos.

Valentim Alexandre dá conta das raízes da revolta e de como o Estado Novo vai criar os seus mantras e a palavras de ordem, atacando o comunismo, a conspiração internacional, a civilização ocidental estaria em perigo se todas aquelas atrocidades não fossem contrariadas, procurava-se iludir a gravidade da situação, o trabalho forçado e a exploração indígena. O autor lembra que as extensões sociais nascidas do incremento da cultura do café no Norte de Angola não eram desconhecidas das autoridades coloniais portuguesas, havia relatórios confidenciais das missões de estudo efetuadas em 1956 e 1957, ali se explicava claramente as razões do profundo descontentamento, para já não falar em revoltas anteriores nos Dembos.

No relatório de um inspetor de trabalho também se dizia claramente que “O preto está à margem, e esquiva-se. Não saúda a autoridade que passa, fecha a porta da palhota à aproximação de carros”. Também não se pode abstrair da situação política do Congo Belga na sua marcha acelerada para a independência. Havia mais de 100 mil angolanos (bacongos, na sua esmagadora maioria) no Congo Belga. O governador do distrito do Congo, Hélio Felgas, insistirá que foram esses indivíduos vindos do Congo Belga que tinham revoltado os nossos indígenas. E instala-se um caos sangrento, como o autor escreve: “Os massacres praticados no Norte de Angola provocaram um número de vítimas até hoje não determinado com precisão. Do lado português, numa primeira fase, falou-se em 16 mortos (isto a 17 de março), depois em 164 (a 28 do mesmo mês) e em 267, para além de 72 desaparecidos, a 22 de abril, não sendo seguro se estão abrangidos apenas os europeus ou se se incluem também os africanos assassinados, bailundos na grande maioria”.

Aventam-se vários números, mas nada seguro. Aos milhares, os refugiados chegam a Luanda, e dá-se uma resposta militar, cujos números e atividades o autor vai descrever com bastante detalhe, incluindo informações sobre o equipamento português existente e o que iria ser comprado. Nota igualmente que num primeiro momento as chefias militares em Angola tiveram dificuldades em aperceber-se do que realmente se passava no terreno. Formaram-se milícias no Norte de Angola, os civis armados patrulhavam o terreno, há bastantes relatos sobre tudo quanto se vai passar, os colonos soldaram catanas em tubos de ferros galvanizados, houve mesmo metralhadoras ligeiras, armas de caça, tudo servia. E houve as prisões em massa, para além das ações repressivas da milícia, as autoridades tradicionais não escaparam, os colonos manifestamente hostis às coberturas de televisão, instalou-se uma grande tensão entre a administração e os colonos, dá-se conta de como funcionaram as milícias em Luanda, no Centro e no Sul de Angola, a PIDE está ativíssima, procede à prisão de sacerdotes negros e mestiços.

E os membros das missões protestantes viveram uma situação mais grave que os “assimilados” católicos. “Não há indícios seguros de que a campanha antiprotestante desencadeada na imprensa africana, com reflexos na da metrópole, fosse instigada pelo governo do território e pelo poder central. Mas o simples facto de a Censura a permitir é um sinal certo de que esse tema não desagradava as autoridades portuguesas. Essa campanha inseria-se, de forma mais ou menos consciente, no processo de criação de um bode expiatório para os acontecimentos de Angola – processo que, no campo ideológico, preenchia o vazio provocado pela falência das explicações oficiais dadas para a revolta, tendendo-se a atribui-la a uma simples ação conduzida do exterior, de inspiração comunista; em Angola, tornara-se por demais evidente que uma parte importante da população africana do Norte do território aderia a rebelião; e não se mostrava possível encontrar uma relação entre qualquer organização comunista e os acontecimentos. Negando-se a enfrentar a realidade – que punha em causa o poder colonial e os seus mecanismos, restava às autoridades e aos próprios colonos encontrar um bode expiatório a quem responsabilizar pela desordem que sacudia e abalava a sociedade angolana”.

Foi extremamente violenta a campanha antiprotestante, tudo se vai agravando no Norte, cresce o espectro do êxodo das populações brancas e chega agora o momento do autor se pronunciar sobre as movimentações políticas em Angola, desde os colonos aos nacionalistas, e depois vamos ver as repercussões que estas sublevações irão ter na política interna portuguesa.

(continua)


Guerrilheiros da UPA, na região do Dembos. Imagem da FNLA
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Nota do editor

Último poste da série de 6 DE OUTUBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24731: Notas de leitura (1622): "Os Desastres da Guerra, Portugal e as Revoltas em Angola (1961: Janeiro a Abril)", por Valentim Alexandre; Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2021 (1) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 6 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24731: Notas de leitura (1622): "Os Desastres da Guerra, Portugal e as Revoltas em Angola (1961: Janeiro a Abril)", por Valentim Alexandre; Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2021 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Janeiro de 2022:

Queridos amigos,
Esta obra de Valentim Alexandre é um portento de rigor, não se conhece estudo mais exaustivo quer para a génese do movimento anticolonial quer para estes tão profundamente documentados três primeiros meses dos acontecimentos angolanos de 1961. E não hesito sequer a dizer que todo este trabalho de História Colonial que cronologicamente o autor abriu com o seu monumental Contra o Vento - Portugal, o Império e a Maré Anticolonial (1945-1960), em 2017, e que agora tem os seus primeiros capítulos que garantem não só uma leitura palpitante e esclarecedora como um acervo documental único. E o distanciamento, pedra angular dos historiador, fica suficientemente comprovado para tornar todo este corpo de investigação uma pedra angular da História de Portugal Contemporâneo.

Um abraço do
Mário



O início da guerra em Angola, os três primeiros meses (1):
Uma surpreendente obra de referência sobre a génese da convulsão anticolonial


Mário Beja Santos

Os Desastres da Guerra, Portugal e as Revoltas em Angola (1961: Janeiro a Abril), por Valentim Alexandre, Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2021, marca o regresso de Valentim Alexandre à história colonial, de que possuí extenso e brilhante currículo, ainda há escassos anos nos ofereceu outra obra de referência, Contra o Vento – Portugal, o Império e a Maré Anticolonial (1945-1960), também publicado em Temas e Debates/Círculo de Leitores, que pode ser encarada como a primeira peça de algo que se afigura vir a ganhar corpo como a História da Guerra Colonial (1961-1975), empreendimento de grande dimensão, que até hoje nenhum investigador nem nenhuma equipa se acometeu, tal a grandeza da tarefa e o distanciamento que impõe.

Logo na introdução o autor equaciona os propósitos da obra a partir do momento em que o movimento de descolonização se pôs em marcha em vários continentes. As incidências no sistema político português tiveram uma resposta lenta, mesmo com a crise de Goa e os primeiros sinais das independências africanas, em 1958. 

O Estado Novo procurou responder com uma muita prudente reforma das Forças Armadas, uma certa preparação em contraguerrilha, o envio a conta-gotas de unidades militares para África e a criação de delegações da PIDE. Mesmo no crescendo de informações inquietantes, nada de significativo se tinha alterado na Guiné e em Angola, os locais onde se previa que viesse haver turbulência, com independências à volta. 

É nesse contexto que irrompem três grandes convulsões angolanas, a revolta da Baixa de Cassange, de janeiro a março; o assalto às prisões de Luanda, em fevereiro; e a insurreição no Norte do território a partir de 15 de março, o autor dar-nos-á uma empolgante, metódica narrativa dos acontecimentos e protagonistas. 

E teremos o repositório dos efeitos da crise angolana, torna-se percetível que velhos aliados se posicionem prudentemente à distância. É uma narrativa que entreabre as portas para uma guerra de 13 anos, este período do primeiro trimestre de 1961 é de grande turbulência, sangrento, timbrado para acontecimentos horríveis onde não faltam corpos desmembrados a execuções sumárias e bombardeamentos aéreos arbitrários.

Com o rigor que pauta sempre os seus trabalhos, Valentim Alexandre aborda os prenúncios e avisos dirigindo-se exatamente para o local onde era suposto haver o primeiro incêndio, a Guiné. Em 1958, é enviada uma missão militar à Guiné, constata que ainda não havia qualquer ação ativa, mas não deixou de se referir que já se fazia sentir uma “pressão insidiosa” que poderia “causar dificuldades num espaço de tempo relativamente curto”, não se ignorava que os dirigentes dos novos países independentes eram manifestamente anticoloniais e revindicavam a retirada dos europeus. 

Por esse tempo há um relatório de Silva Cunha assinalando o significado da independência da Guiné-Conacri e anotando um “sentimento geral de descontentamento” que começava a verificar-se nas camadas de nativos mais evoluídos, principalmente em Bissau […] quanto à sua situação social. E Silva Cunha não dourava a pílula, acusava “Portugal de não cuidar suficientemente de proporcionar aos nativos da Guiné meios de progresso cultural, social e político equivalentes aos que se encontravam nos territórios vizinhos”.

No ano seguinte, ocorreram os acontecimentos de 3 de agosto de 1959, no Pidjiquiti, de que resultou um número elevado de mortos e feridos. Uma comissão militar presente na colónia ajuizava a natureza do incidente devido aos baixos salários pagos pela Casa Gouveia e Sociedade Ultramarina. 

A propaganda de Conacri fazia-se sentir a partir das transmissões de rádio, proponham-se medidas, desde a neutralização desta propaganda até à ocupação em superfície do território, dizia-se mesmo que o interior se encontrava completamente desguarnecido. Boa parte destas recomendações só anos mais tardes serão aplicadas, o poder central limitou-se a remeter um chefe de brigada e seis agentes da PIDE, um destacamento de paraquedista com cerca de 30 homens e por mar partiu uma companhia de caçadores que chegou a Bissau em 18 de agosto.

Passamos agora para Angola, o grande abalo no continente e na política mundial veio do Congo Belga, estamos em 1959 quando se inicia a crise congolesa que o autor explica ao pormenor. Nesse mesmo ano os colonos do distrito do Congo (Angola) reclamavam que lhes fossem fornecidas armas para sua defesa pessoal, pressintam que a convulsões batiam à porta. 

O autor dá-nos a situação no Norte de Angola, a importância do Reino do Congo, cuja existência independente voltava a ser reclamada pelos autóctones, que eram um perigo sentido pelo Ministério do Ultramar investiram o novo Reino do Congo; há agitação política a que a campanha presidencial de 1958 deu algum folgo, dado o impacto que teve em Angola a candidatura de Humberto Delgado, formam-se vários movimentos anticoloniais, cresce a concertação entre movimentos independentistas provenientes das colónias portuguesas, formara-se em 1957 o MAC – Movimento Anticolonialista, que agregava, entre outros, Amílcar Cabral, Agostinho Neto, Lúcio Lara e Eduardo Santos, com antenas no exterior, tentava-se obter apoio dos países africanos já independentes, iniciativa que se revelou frustrante. 

No fim da década de 1950, o MAC transformou-se na FRAIN – Frente Revolucionária para a Independência das Colónias Portuguesas, o MPLA e o PAI (futuro PAIGC) são acolhidos em Conacri; o MLG – Movimento de Libertação da Guiné, de Rafael Barbosa, incorpora-se no PAIGC, os são-tomenses criam o seu próprio movimento de libertação. 

O autor procura dar-nos um quadro da génese do MPLA e da UPA, ideologias e influências. Este contexto da deterioração da situação na Guiné e em Moçambique não é ignorado pelos departamentos oficiais portugueses, ademais o cenário internacional modifica-se com a chegada dos países independentes à ONU, as resoluções anticoloniais surgem umas atrás das outras.

E temos a rebelião da Baixa de Cassange, tudo bem contextualizado por Valentim Alexandre, ficamos a saber como trabalhava a Companhia Geral dos Algodões de Angola (COTONANG), de nacionalidade portuguesa, com capitais luso-belgas, uma exploração miserável, com descarado trabalho forçado, temos um quadro da rebelião, as influências externas e até religiosas, a resposta foi brutal, logo os bombardeamentos com metralha e bombas por parte da aviação. As autoridades portuguesas tudo farão para que não se fale desta revolta onde a força motriz, de acordo com os factos documentais existentes, teve a mão declarada da UPA. 

Os militares portugueses no terreno não se escusaram a dizer a verdade do que viam: os castigos corporais, caso das chicotadas, as sovas dos capatazes que aplicavam arbitrariamente multas a torto e a direito, os roubos no peso e no pagamento e na qualificação da fibra, a corrupção impetrada pela COTONANG às autoridades administrativas que recebiam envelopes com quantias avultadas para fecharem os olhos aos abusos. Valentim Alexandre também releva o caráter messiânico na contestação ao poder colonial. E chegamos assim a fevereiro de 1961, os assaltos às prisões de Luanda.

(continua)

Imagens da reportagem de James Burke para a LIFE Magazine em 17 de fevereiro de 1961
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Nota do editor

Último poste da série de 2 DE OUTUBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24719: Notas de leitura (1621): "Tertúlias da Guerra Colonial"; edição da Associação dos Pupilos do Exército, 2021 (2) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 31 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24521: Antologia (95): "A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau", por Tor Sellström (2008). Excertos: o caso da ajuda ao PAIGC – Parte VI

 Foto nº 1 

Foto nº 2


Foto nº 3

S/l > PAIGC > Alegadamente numa "região libertada", talvez no sul  ou na fronteira com a Guiné-Conacri > Visita de uma delegação escandinava  > Novembro de 1970 >  Trasnporte de sacos de arroz  (Fotos nº 1 e 2)... 

As autoridades militares portugueses subestimaram, inicialmente, o "génio organizativo" de Amílcar Cabral e dos demais dirigentes e militantes do PAIGC. Em 1971, num documento produzido pela inteligência militar do Estado-Maior de Spínola, reconhecia-se a real importância da logística do PAIGC, mesmo não tendo os meios (navais, aéreos e terrestres) das NT...

Na foto nº 3, uma consulta médica, ao ar livre. Em primeiro plano, um enfermeiro (presume-se) e a "farmácia ambulante"  (?) (um "caixote")..

Fonte: Nordic Africa Institute (NAI) / Fotos: Knut Andreasson (com a devida vénia... e a competente autorização do NAI, de acordo com a resposta que nos deu oportunamente Webmaster do NAI:

Dear Luís Graça, I am glad to hear that you like the photos and that you use them. Best regards,

Agneta Rodling | Information/Webb | Nordiska Afrikainstitutet | The Nordic Africa Institute
Box 1703 | SE-751 47 UPPSALA | Tel +46-18 56 22 21

Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)





Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Setor L1 (Bambadinca) > CART 3494 (Xime e Mansambo, 1971/74) > População sob controlo do PAIGC, no subsetor do Xime, capturada no decurso da Acção Garlopa, em 19 de julho de 1972, num total de 10 elementos. Seguramente que os suecos nunca puseram aqui os pés, nas "áreas libertadas" do Xime, na margem direita do rio Corubal...

Foto (e legenda): © Sousa de Castro (2013). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem conplementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1.  Tor Sellström, do Instituto Nórdico de Estudos Africanos, é autor de um livro,  de 290 páginas, sobre "A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau" (publicado em 2008, em versão portuguesa). (Vd. ficha técnica a seguir.)

Nessa publicação conta-nos como é que de repente certas organizações suecas de solidariedade com a luta dos povos da África Austral (e nomeadamente c9ntra o apartheid) e o governo sueco começaram a interessar-se pelo que se estava a passar na Guiné-Bissau, um território então sob administração portuguesa, com um escasso meio milhão de habitantes, e com um pequeno partido nacionalista, o PAIGC; a lutar pela sua independência, praticame nte desconmhecidos do público sueco até ao final da década de 1960.

Apartir de 1969, a Suécia começou a dar, ao PAIGC, uma "ajuda humanitária", substancial, que se prolongou muito para além da independência, até meados dos anos 90. "As exportações financiadas com doações da Suécia representavam, durante este período, entre 5 por cento e 10 por cento do total das importações da Guiné-Bissau". Estamos a falar de valores que chegaram aos 2,5 mil milhões (!) de coroas suecas [c. 269,5 milhões de euros] durante o período de 1974/75-1994/95 (sendo de 53,5 milhöes de coroas suecas, ao valor actual, ou sejam, cerca de 5, 8 milhões de euros, de 1969/70 até 1976/77).

Estes factos ká pertencem ao domíbnio da História. Mas, oassados estes anos todos, julgamos que ainda tem algum interesse, para os nossos leitores, saber um pouco mais sobre o envolvimento da Suécia 

Vamos continuar a seguir esta narrativa, reproduzindo, com a devida vénia, mais um excerto do livro de Tor Sellström. Já chamámos, logo no início, a atenção para alguns factos e dados que merecem a nossa contestação ou reparo crítico, nomeaadamente quando o autor fala do trajeto do PAIGC e do seu líder histórico, não citando fontes independentes e socorrendo-se no essencial da propaganda do PAIGC (ou de fontes que lhe estavam próximas)...

Já apontámos, nos postes anteriores, para alguns exemplos desse enviesamento político-ideológico: (1) a greve dos trabalhadores portuários do Pijiguiti e o papel do PAIGC; (ii) a batalha do Como: (iii) o controlo de 2/3 do território e de 400 mil. habitantes por parte do PAIGC; (iv) as escolas, as clínicas e as lojas do povo nas "áreas libertadas"; (v) o assassassinato de Amílcar Cabral. etc. .

O texto (na parte que nos interessa, a ajuda sueca ao PAIGC, pp. 138-172) tem demasiadas notas de pé de página, que podem ser úteis do ponto de vista documental mas sáo extremamente fastidiosas para a generalidade dos nossos leitores. (Vamos mantê-las, para não truncar a narrativa; podem ser lidas na diagonal)

Os negritos são nossos: ajudam a destacar alguns dos pontos importantes do texto. O "bold" a vermelho são passagens controversas, são uma chamada de atenção para o leitor, devendo merecer um comentário crítico (ou o recurso a leituras suplementares).

Corrigimos os excertos seguindo o Acordo Ortográfico em vigor.

Para já aqui ficam os nossos agradecimentos ao autor e ao editor, Nordiska Afrikainstitutekl (em inglês, The Nordic Africa Institute).

Ficha técnica:

Tor Sellström - A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. Nordiska Afrikainstitutekl, Uppsala, 2008, 290 pp. Tradução: Júlio Monteiros. Revisão: António Lourenço e Dulce Åberg. Impresso na Suécia por Bulls Graphic, Halmstad 2008ISBN 978–91–7106–612–1.

Disponível em https://www.diva-portal.org/smash/get/diva2:275247/FULLTEXT01.pdf

(Também disponível na biblioteca Nordiska Afrikainstitutekl (ou Instituto Nórdico de Estudos Africanos) aqui, em "open acess" .)


Resumo dos excertos anteriores (*):

Com base numa decisão parlamentar aprovada por uma larga maioria, a Suécia tornou-se em 1969 o primeiro país ocidental a dar ajuda oficial aos movimentos nacionalistas das colónias portugueses (MPLA, PAIGC, FRELIMO). O PAIGC vai-se tornar o principal beneficiário dessa ajuda (humanitária, não-militar). Muito também por mérito de Amílcar Cabral e da sua habilidade diplomática. Até então, e sobretudo na primeira metade da década de sessenta, o debate na Suécia sobre a África Austral tinha quase exclusivamente sido centrado na situação na África do Sul, onde vigorava o apartheid.

O êxito da campanha contra a participação da empresa sueca ASEA no projecto de Cahora Bassa em Moçambique, por volta de 1968–69, na altura em que decorria a guerra do Vietname, levou a que os principais grupos de pressão (“Grupos de África”, oriundos de cidade como Arvika, Gotemburgo, Lund, Estocolmo e Uppsala) se ocupassem quase em exclusivo da luta armada nas colónias portuguesas, com destaque para a Guiné-Bissau(Parte I).

Em 3 páginas (pp. 141-143), o autor faz um resumo da "luta de libertação na Guiné-Bissau", usando unilatereal e acriticameente informaçáo propagandística do PAIGC, alguma particularmente grosseira como a pretensão deste de controlar 400 mil habitantes... (Parte II).

Nas páguinas 144-147, fala-se dos primeiros contactos com o PAIGC e das primeiras visitas ao território (Parte III).

Nas páginas 148-152, é referido a primeira visita (de muitas) de Amílcar Cabral à Suécia em novembro de 1968 (Parte IV).

As conversações de Ström com o PAIGC foram bastante simples. No seu relatório, descreveu Amílcar Cabral, secretário geral do PAIGC, como ”um jovem agrónomo bastante jovial, elegante, intelectual e um conversador desenvolto e muito animado. Nada de apelos patéticos nem declarações solenes. As suas intervenções eram objectivas, claras e concisas” (Parte V, pp. 152-154).

Tor Sellström - A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau: o caso da ajuda ao PAIGC - Parte VI:

Necessidades civis e respostas suecas (pp. 154-157)

 Excerto do índice (pág. 4)

O PAIGC da Guiné-Bissau: Desbravar terreno

Pág.

As colónias portuguesas no centro das atenções

138

A luta de libertação na Guiné-Bissau

141

Primeiros contactos

144

Caminho para o apoio oficial ao PAIGC

147

Uma rutura decisiva

152

Necessidades civis e respostas suecas

154

Definição de ajuda humanitária

157

Amílcar Cabral e a ajuda sueca

161

A independência e para além dela

168

 


Necessidades civis e respostas suecas (pp. 154-157)

O PAIGC deu, desde a primeira hora, mostras de uma grande eficácia relativamente  â administração, distribuição e listagem dos bens recebidos da Suécia. Depois de uma visita de uma delegação da ASDI a Conacri no final de 1971, concluía-se num memorando destinado ao Comité Consultivo para a Ajuda Humanitária que, por exemplo, ”o apoio sob a forma de bens, dado pela Suécia, está a ser utilizado de forma ideal. O PAIGC é sinónimo de rapidez na tomada de decisões, encomenda pormenorizada de mercadorias, bom armazenamento e contabilização” (91). 

Os relatórios escritos pelo PAIGC à ASDI eram, também eles, da maior qualidade. Anualmente, o próprio Amílcar Cabral e, depois a sua morte em 1973, Aristides Pereira, apresentavam comentários gerais quanto à ajuda e listas detalhadas de produtos recebidos, apresentadas com uma decomposição da distribuição pelas várias escolas, clínicas e armazéns do povo nas zonas libertadas (92). De acordo com Stig Lövgren da ASDI, ”o PAIGC era, para nós, uma espécie de organização ideal” (93).

Enquanto isso, o PAIGC estava confrontado com enormes desafios. Em 1971, calcula-se que viviam 400.000 pessoas nas zonas libertadas da Guiné-Bissau (94). na sua maioria artesãos e camponeses.

A taxa de analfabetismo era de cerca de 80 por cento e a situação geral em termos de saúde era complicada. Largos extractos populacionais, nomeadamente as crianças, sofriam de desnutrição (95). Ao tentar construir uma sociedade nova nas zonas libertadas, pela via da disponibilização de serviços sociais e desenvolvendo a economia, o PAIGC (que, antes de mais, estava empenhado numa guerra generalizada contra Portugal, que era apoiado pela OTAN) assumia o papel de um governo e de uma administração de um estado independente (96).

 Em contraste vincado com um estado independente, o movimentode libertação não controlava os recursos nacionais nem podia conduzir operações de comércio internacional (97). Pelo contrário, num país com um enorme potencial para as pescas, a população que vivia nas zonas libertadas sofria de falta de proteínas o que, paradoxalmente, levou o PAIGC a incluir no pacote de ajuda humanitária sueca pedidos de grandes quantidades de conservas de peixe. 

Para além disso, o PAIGC não podia cobrar impostos à população residente nas zonas libertadas porque, para já, não havia matéria tributável e também porque, de forma ainda mais clara, a economia de base monetária tinha sido abolida e substituída por um sistema de trocas directas, no qual os bens daspessoas tinham um papel economicamente crucial e politicamente delicado.

Os armazéns do povo tinham como função servir de centros de comércio ou depósitos,onde os aldeões podiam trocar os seus produtos agrícolas por outros bens de primeira necessidade e de consumo, como têxteis, óleo de cozinha, sabão, fósforos, utensílios domésticos e agrícolas ou cigarros (98).(**)

 Como notou Rudebeck, tratava-se de uma ”função altamente política. Caso não fosse realizada a contento da população, toda a credibilidade do PAIGC sairia diminuída aos olhos do povo” (99). O sistema que consistia em regatear a aquisição de produtos só poderia funcionar devidamente se as lojas do PAIGC dispusessem de stocks suficientes de produtos (100).

Beneficiando de um amplo apoio político, com necessidades quase ilimitadas e dando provas de uma boa capacidade administrativa, o PAIGC conseguiria tornar-se numa força dominante entre os movimentos de libertação africanos durante a década de setenta, recebendo ajuda oficial sueca. 

O valor inicialmente concedido foi de um milhão de coroas suecas, depois aumentado para 1,75 milhões em 1970–71, 4,5 em 1971–72, 10 em 1972–73, 15 em 1973–74 e 22 milhões em 1974–75.101 

Tal como foi dito acima, dos 67,5 milhões de coroas suecas realmente gastos pela Suécia como ajuda humanitária directa aos movimentos de libertação na África Austral e ao PAIGC entre 1969–70 e 1974–75, 64,5 milhões (ou seja, 96 por cento do valor total) foi pago ao MPLA de Angola, à FRELIMO de Moçambique e ao PAIGC da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, o que indica uma clara concentração nas colónias portuguesas. 

Desse total, uns surpreendentes 45,2 milhões foram pagos ao PAIGC. Durante os primeiros seis anos da ajuda oficial aos movimentos de libertação, o PAIGC recebeu dois terços dos fundos pagos, daí que não surpreenda que os movimentos de libertação da África Austral com os quais a Suécia tinha relações estreitas há já mais tempo, se sentissem prejudicados.

Entrevistado em 1996, o líder do MPLA Lúcio Lara declarou que o apoio ao PAIGC ”até nos deixou com algum ciúme”, acrescentando que ”comparámos os valores e constatámos a diferença” (102).

Relativamente à ajuda não-militar, o governo sueco tornou-se muito provavelmente o maior doador ao PAIGC (103).  A liderança guineense reconheceu isso mesmo muitas vezes ao longo dos anos, nomeadamente ao comparar a postura da Suécia com a de outros países ocidentais (104).

Constatando que os Estados Unidos tinham aumentado a ajuda a Portugal em quase 500 milhões de dólares, Cabral escreveu, por exemplo, em 1972 que ”o belo exemplo do povo sueco e do seu governo influencia e influenciará cada vez mais, a atitude de outros povos e de outros Governos, em prol da luta contra o domínio, o colonialismo e o racismo estrangeiros no nosso continente” (105).

 No caso do PAIGC era, contudo, bastante fácil para o governo sueco tomar uma posição. A luta de libertação não constituía uma ameaça à segurança nacional do país e a afinidade com os objectivos do PAIGC era forte. 

Além disso, não existiam conflitos de interesses relativamente à oportunidade económica (106).

Por fim, e do ponto de vista da legitimidade pública, a política oficial tinha uma grande base de apoio popular

Dito isto, e vista de um ponto de vista da Guerra Fria, que vigorava desde os anos setenta, a ajuda sueca ao PAIGC era mais política do que sugeriria uma interpretação pura e simples do termo ”ajuda humanitária”(107 )o que tem a sua importância em termos de cooperação com os movimentos de libertação na África Austral.

Para além de levar a cabo a luta militar, o PAIGC tinha entrado, por via do sistema de troca directa centrado nas lojas do povo, numa batalha económica contra Portugal.

Cabral  estava também determinado em afirmar que ”com hospitais e escolas podemos vencer a guerra”(108).

 Longe de constituírem uma reacção defensiva contra o colonialismo e a opressão, os sectores produtivo, de saúde e de educação eram vitais, fazendo parte integrante e muito activa do esforço de libertação. A maior parte da ajuda sueca era exactamente canalizada para estes sectores. 

Limitada inicialmente a bens puramente humanitários, a lista alargar-se-ia paralelamente ao ”engordar” do pacote de ajuda, por forma a permitir que necessidades de índole política fossem supridas, tendência que se foi acentuando (109). Os programas foram concebidos em conjunto pelo PAIGC e pela ASDI.

O Comité Consultivo para a Ajuda Humanitária e o governo sueco seguiam, por norma,as recomendações feitas pela ASDI.

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Notas do autor:

91 . SIDA: ”Fortsatt stöd till Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC)”/ASDI: ”Continuação do apoio ao PAIGC”, Estocolmo, 5 de Setembro de 1972 (SDA).

92. Os relatórios eram escritos em francês. A ajuda sueca era também enviada ao PAIGC na República da Guiné, nomeadamente para as escolas do PAIGC e, sobretudo, para o Hospital da Solidariedade em Boké, no norte do país. A ajuda incluía, para além disso, veículos e equipamento de escritório para o quartel-general do PAIGC em Conacri.

93. Entrevista com Stig Lövgren, p. 312.

94. SIDA: ”Fortsatt svenskt stöd till Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde”/ASDI: ”Continuação do apoio sueco ao PAIGC”, Estocolmo, 28 de outubro de 1971 (SDA).

95. Ibid.

96. PAIGC: ”Sur l’aide humanitaire de la Suède à notre parti: Rapport bref et proposition d’aide” (”Ajuda humanitária da Suécia ao nosso partido: Breve relatório e proposta de ajuda”), Conacri, maio de 1972 (SDA).

97. No âmbito da economia baseada nas lojas do povo, o PAIGC conseguiu, apesar de tudo, organizar uma quantidade limitada de exportações para os países vizinhos, nomeadamente de nozes de cola e arroz, mas também de amendoim, óleo de palma e outros produtos agrícolas. (***)

98. O sistema destinava-se também a conseguir justiça económica, mantendo os preços por troca directa mais baixos do que os preços a dinheiro praticados nas lojas portuguesas das zonas não libertadas. O primeiro armazém do povo foi criado em 1964 e por volta de 1968 já havia quinze lojas desse tipo nas zonas libertadas. Em 1973 já haveria mais do dobro de lojas.

99. Rudebeck op. cit., p. 179.

100. Sobre os armazéns do povo, ver Rudebeck op. cit., pp. 178–86 e Chabal op. cit., pp. 112–14.

101. SIDA: ”Stöd till PAIGC”/ ASDI: ”Ajuda ao PAIGC”, Estocolmo, 25 de Junho de 1974 (SDA).

102. Entrevista com Lúcio Lara, p. 19. O apoio sueco ao MPLA durante esse mesmo período não ultrapassava os 2,3 milhões de coroas suecas, ou seja, 5 por cento do apoio dado ao PAIGC. Lara atribuía a diferença às qualidades do secretário geral do PAIGC: ”A razão era a presença de Amílcar Cabral. Ele era muito dinâmico e estava sempre ”em cima” dos acontecimentos” (ibid.).

103. À falta de contabilidade global no PAIGC, esta questão fica por provar com base documental. A conclusão retirada baseia-se em declarações do PAIGC, da ASDI e das Nações Unidas.

104. Lövgren comentaria depois que a ajuda em mercadorias dada pela Suécia era, de acordo com Cabral ”a melhor forma de ajuda que a Suécia nos poderia dar. [...] Não precisavam de dinheiro naquela altura. Aquilo de que precisavam para a guerra era-lhes fornecido pelo bloco socialista, mas não tinham quaisquer recursos no que diz respeito a alimentação, medicamentos e equipamento escolar, etc. para a parte civil da luta. Dependiam totalmente de países como a Suécia para conseguir esses bens, porque não os adquiriam no mercado internacional” (Entrevista com Stig Lövgren, p. 310)

105. PAIGC: ”Sur l’aide humanitaire de la Suède à notre parti: Rapport bref et proposition d’aide” (”Sobre a ajuda humanitária da Suécia ao nosso partido: Breve relatório e proposta de ajuda”), Conacri, maio de 1972 (SDA).

106. Ver a entrevista com Bengt Säve-Söderbergh, na qual o antigo subsecretário de estado social-democrata dos Negócios Estrangeiros (1985–91) declara que ”Angola tinha interesse para quem procurava dinheiro. Sabíamos que ninguém se preocupava realmente com a Guiné-Bissau e que alguns se preocupavam, mas apenas marginalmente, com Moçambique. Angola era o foco de interesse e, por isso mesmo o país mais ”quente”, em termos da clivagem  Leste-Ocidente” (p. 338).

107. Para Cabral, toda a ajuda ao PAIGC era humanitária, ”independentemente da forma e do conteúdo da ajuda, porque é dada em prol do progresso político, económico, social e cultural da humanidade e da paz” (Carta de Amílcar Cabral à ASDI, Conacri, 28 de Julho de 1971) (SDA).

108. Cabral citado em Chabal op. cit., p. 114.

109. No início dos anos setenta, o movimento sueco de solidariedade era essencial para definir os contornos da ajuda oficial aos movimentos de libertação. Num livro publicado pelos Grupos de África dizia-se, em ~janeiro de 1972, que ”a contribuição da ASDI não era dada de forma incondicional aos movimentos de libertação, sendo dada para ’fins humanitários’ como, por exemplo, a saúde, a educação e afins, o que significava que os movimentos não eram reconhecidos como representantes dos respectivos povos e que o aspecto militar da actividade dos movimentos de libertação não recebia qualquer apoio” (AGIS op. cit., p. 194). 

Mais ou menos na mesma altura, num documento elaborado pelos Grupos de África em Inglaterra para uma conferência sobre solidariedade internacional para com a FRELIMO, o MPLA e o PAIGC, realizada em Lund no início de 1972, dizia-se que ”ao recusar-se a ver o aspecto militar como parte integrante da luta, o governo sueco está a dar uma imagem deturpada da situação. Outra das limitações é que a ajuda prestada pela ASDI é dada em géneros, seleccionados de uma lista e comprados (na Suécia) por funcionários da ASDI. Trata-se de uma forma grave de paternalismo, o que se poderá talvez explicar apenas pelo desejo de manter vínculos económicos importantes com Portugal durante o máximo de tempo possível e também pelo desejo de encontrar uma solução neo-colonialista para as colónias portuguesas” (Versão preliminar: ”Imperialismo sueco em Portugal e em África”, Conferência da Páscoa, Lund, 1972) (AGA). 

Deve notar-se que a ajuda oficial não estava vinculada à obtenção dos produtos na Suécia, nem a ASDI tentava obter mercadorias em Portugal para os movimentos de libertação nas colónias portuguesas (Entrevista com Stig Lövgren, p. 314).


[ Seleção / adaptação / revisão / fixação de texto / itálicos / bold, para efeitos de publicação deste poste no blogue: L.G ]

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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 30 de julho de 2023 > Guiné 61/74 - P24518: Antologia (94): "A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau", por Tor Sellström (2008). Excertos: o caso da ajuda ao PAIGC – Parte V

(**) Vd. poste de 12 de setembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23609: (D)o outro lado do combate (68): os "Armazéns do Povo", mito ou realidade ?

(***) Veja-se o poste de 2 de maio de  2010 > Guiné 63/74 - P6296: PAIGC: Como se vivia nas regiões libertadas (1): Chegam descalças, andrajosas, às vezes com filhos pequenos às costas a chupar os peitos secos e mirrados... (António Graça de Abreu, Alf Mil, CAOP1, Canchungo, Mansoa, Cufar, 1972/74)

(...) António Graça de Abreu > Mansoa, 3 de Maio de 1973

Na região de Mansoa, as NT capturam mais elementos IN, ou aparentados com os guerrilheiros, do que em Canchungo. Normalmente chegam ao nosso CAOP com um aspecto lastimável, a subnutrição, as doenças, a miséria têm tomado conta deste pobre povo que vive nas regiões libertadas.

Os prisioneiros são quase sempre mulheres que se deslocam às povoações controladas pelas NT, a fim de venderem por exemplo mancarra (amendoim), óleo ou vinho de palma, e são capturadas nas estradas ou nos caminhos em volta dos nossos aquartelamentos.

Chegam descalças, andrajosas, às vezes com filhos pequenos às costas a chupar os peitos secos e mirrados. Dói, só de olhar. 

São interrogadas, é-lhes pedido todo o tipo de informações sobre os acampamentos, o armamento, as aldeias controladas pelo IN onde vivem os seus maridos, os seus familiares. Como é natural, estas mulheres falam muito pouco e também magoa o coração ver como são tratadas. 

É minha tarefa comprar-lhes uns trapinhos novos para tapar o corpo, umas sandálias de plástico para protegerem os pés. (...)

Fonte: António Graça de Abreu – Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura. Lisboa: Guerra e Paz, Editores, SA, 2007, p. 94.