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segunda-feira, 26 de maio de 2025

Guiné 61/74 - P26849: Notas de leitura (1801): "A Independência da Guiné-Bissau e a Descolonização Portuguesa", por António Duarte Silva; Afrontamento, 1997 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Maio de 2024:

Queridos amigos,
É extensíssima a bibliografia que António Duarte Silva incorpora neste seu primeiro volume, quando o escreveu não era propriamente um recém-chegado ao mundo da investigação, possuía também tarimba universitária, fora assistente do ISCTE e da Faculdade de Direito de Lisboa, assistente da Escola de Direito e assessor científico da Faculdade de Direito de Bissau, possuía escritos sobre Direito Constitucional, Direito Colonial e Descolonização. 

Estruturado de uma forma singular, este seu primeiro livro faz desenvolver uma narrativa que se prende com o gérmen nacionalista até à fundação do PAIGC, como Amílcar Cabral foi o dínamo da estratégia, da formação, da abertura à comunidade internacional para a sensibilizar quanto às razões que assistiam às lutas do PAIGC, sempre entremeando o direito, a política e a luta militar, esta obra de referência levar-nos-á até ao contexto que foi reconhecida a Guiné-Bissau e a sua admissão nas Nações Unidas. O autor estava assim a preparar a maturação de uma tese sobre o pensamento e a ação de Cabral que agora está traduzida numa nova obra de referência e que se intitula Amílcar Cabral e o FIm do Império.

Um abraço do
Mário



A independência da Guiné-Bissau e a descolonização portuguesa (1)

Mário Beja Santos

António Duarte Silva [na foto à direita] é indiscutivelmente o investigador com mais créditos no estudo no pensamento e ação de Amílcar Cabral, no direito e política, abrangendo o seu centro de investigação, a independência da Guiné-Bissau e o processo jurídico-político da descolonização da Guiné-Bissau, toda a sua obra maneja com alta perícia estes domínios. 

O seu primeiro livro é exatamente o que vamos analisar, A Independência da Guiné-Bissau e a Descolonização Portuguesa, Afrontamento, 1997, um trabalho de longo fôlego, assente em quatro partes: 

  • colonialismo e nacionalismo na Guiné; 
  • o ato inédito no direito internacional da declaração unilateral de independência; 
  • como se processou a descolonização portuguesa; 
  • e, igualmente, como teve lugar a formação do Estado.

Como é obrigatório, o autor apresenta a pequena parcela da Costa da Guiné explorada pelos portugueses a partir do século XV, como se foi modelando, à escala universal, o sentimento de mudança (de colonização para descolonização), assistiu-se à quebra das amarras das potências coloniais e dos povos tutelados; como se deu o despertar do nacionalismo em terras da Guiné, apareceu o Partido Socialista da Guiné, que pouco fez e pouco durou, irrompe a figura de Amílcar Cabral, a importância dos contactos que ele estabeleceu em Lisboa com outros estudantes africanos de colónias portuguesas, a sua presença como engenheiro na Guiné, onde, um ano depois de ele ter regressado a Lisboa, se tentou se criar um Movimento para a Independência Nacional da Guiné (MING), que Rafael Barbosa, que será figura fundamental do PAIGC até 1962, comentará que não passou de um campo de experiência.

Tudo irá mudar em 1959, mas no ano anterior um conjunto de nacionalistas decidiu formar um Movimento de Libertação da Guiné. A 3 de agosto de 1959, dão-se os trágicos acontecimentos do Pidjiquiti, haverá mortos de número indeterminado, tem lugar a 19 de setembro de 1959 uma reunião em Bissau, em que está presente Amílcar Cabral, em que se tomam importante decisões: deslocar a ação para o campo, mobilizando os camponeses, preparar-se para a luta armada e transferir parte da direção para o exterior. 

Ainda hoje não está historicamente aclarado a formação do PAI, dada como ocorrida em 1956. Entretanto, tem lugar a formação pelos movimentos nacionalistas da criação de organizações unitárias contra o colonialismo português, o autor dá-nos o quadro de toda esta construção, e assim chegamos à Conferência de Túnis em que em declaração pública Cabral fala da motivação da luta de libertação nacional; estamos em 1960, o líder do PAIGC passa a viver em Conacri, Rafael Barbosa é o condutor da mobilização de jovens guineenses que são encaminhados para a República da Guiné; em janeiro de 1961 partem dez militantes do PAIGC com destino à Academia Militar de Nanquim, China, irão tornar-se os principais comandantes de guerrilha, caso de Osvaldo Vieira, João Bernardo Vieira, Constantino Teixeira, Domingos Ramos ou Francisco Mendes.

Nos primeiros dias de outubro de 1960, o ainda PAI realizará em Dacar uma reunião de dirigentes, é nesse evento que foi adotada definitivamente a sigla PAIGC, aprovados os programas dos partidos, que tinham sido elaborados por Cabral, escolhida a bandeira do PAIGC, também por sugestão de Cabral; enviada uma vez mais ao Governo português a proposta de abertura de negociações, e a não haver deferência por parte do Estado português, teria início a luta armada. 

O quadro ideológico em que se irá mover Cabral irá diferir do proposto por outros intelectuais, líderes políticos ou líderes revolucionários. Embora sensível a paradigmas internacionais, Cabral irá cimentar o seu pensamento, no dizer de Mário de Andrade, pela convergência quanto à identidade cultural, ao nacionalismo, à identidade nacional, à guerra popular de longa duração, a uma nova ordem social, à natureza e ao controlo do futuro Estado independente.

Desde muito cedo que o líder do PAIGC busca apoios nesta altura fundamentalmente em África, URSS e países não alinhados. No início, Moscovo temia que o PAIGC estivesse dominado por tendências para os chineses. Conacri gera facilidades e dá ajuda concreta. 1962 é o ano em que Rafael Barbosa é preso na Guiné, é desmantelada a organização do PAIGC em Bissau e desencadeada a sublevação nas regiões do Sul. 

A luta armada propriamente dita inicia-se em janeiro do ano seguinte. O Ministro da Defesa, general Gomes de Araújo, numa entrevista a um jornal em julho de 1963 refere a preponderância do PAIGC no Sul, dizendo que tinham penetrado numa zona correspondente a 15% da superfície da província. 

Em meados desse ano, a guerra atingiu as florestas do Oio, tudo se vai complicar na zona Centro-Norte, é uma comoção demográfica impressionante com populações fugidas, tabancas abandonadas e destruídas, a vida administrativa e a atividade comercial profundamente afetadas.

 Nesta fase da luta, o PAIGC ainda tem um concorrente, a FLING, irá diluir-se a partir de 1965. O autor explica como Cabral procurou defender a sigla da unidade Guiné-Cabo Verde.

O período de 1964 a 1968 corresponde à unificação do poder civil e militar, Arnaldo Schulz é simultaneamente Governador e Comandante-Chefe, vai seguir e intensificar uma manobra de disposição de destacamentos e povoações em autodefesa, foi uma tentativa de agrupar a população que não quis expressamente ficar na órbita da guerrilha, se bem que no decurso de toda a guerra tenha vindo a avultar a problemática do duplo controlo. 

Neste período, consolida-se a posição do PAIGC no Sul, na região do Morés, os grupos do PAIGC atuavam praticamente no Sul abaixo do Geba e a Oeste do Corubal; Schulz e os seus comandos militares pronunciavam-se a favor do recurso às tropas de elite, ao reforço do poder aéreo e naval, foi favorável à africanização da guerra constituindo pelotões de caçadores nativos e pelotões de milícias, mais tarde companhias de caçadores , os efetivos militares metropolitanos foram crescendo, isto enquanto o PAIGC ia ganhando uma certa superioridade no armamento, na capacidade de flagelação, minagem das estradas e de muitos trilhos, obtendo um certo êxito na paralisação da atividade económica em certas regiões.

Nos cinco anos do Governo seguinte, tendo à testa Spínola, este pretendeu alterar significativamente a estratégia portuguesa, despachou para a metrópole um bom punhado de quantos militares, remodelou o dispositivo fazendo retirar a presença portuguesa sobretudo em áreas do Sul e na região Leste, no Boé. 

Pretendeu desde a primeira hora que se fizesse um esforço de contra penetração nas zonas fronteiriças, numa extensa ação psicológica fez lançar empreendimentos a que se deu o nome de reordenamentos populacionais, abriu caminho para os chamados Congressos do Povo, uma hábil forma de auscultação e uma simulação de democracia direta, iremos ver proximamente em que contexto dominante se foi montando uma estratégia conducente que levasse à independência, as iniciativas de Spínola para se chegar a um entendimento de autodeterminação, como se chegou à operação de declarar unilateralmente a independência e o apoio internacional imediato ao que se passou algures no leste da Guiné em 24 de setembro de 1973.

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 26 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26847: Notas de leitura (1800): "Gil Eanes: o anjo do mar", de João David Batel Marques (Viana do Castelo: Fundação Gil Eanes, 2019, il, 131pp.) - Parte I: A história do navio-hospital da frota bacalhoeira (Luís Graça)

segunda-feira, 5 de maio de 2025

Guiné 61/74 - P26768: Notas de leitura (1794): Memórias Minhas, por Manuel Alegre; Publicações Dom Quixote, Março de 2024 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Abril de 2024:

Queridos amigos,
As memórias de Manuel Alegre incluem referências a encontros com Amílcar Cabral em Argel, terá sido numa emissão da Voz da Liberdade que Amílcar Cabral concedeu uma entrevista a uma emissora portuguesa. O detentor do Prémio Camões recorda o modo como o dirigente revolucionário dava apreço aos Descobrimentos portugueses, como, quando Marcello Caetano sucedeu a Salazar, numa conferência de imprensa em Argel, Cabral gerou perplexidade ao dizer que estava disposto a ajudar Marcello Caetano a ser um De Gaulle português; e, por fim, uma conversa havida com Cabral a propósito de alguém querer atentar contra a sua vida, ele terá dito algo que repetirá no ciclo de conferências havidas para quadros do PAIGC em Conacri, em novembro de 1971, algo como se um dia eu for morto será por alguém do meu próprio partido, provavelmente um militante da primeira hora, o que não era o caso de Inocêncio Cani, com um histórico de combatente, antigo responsável pela Marinha do PAIGC, é ele quem dá o primeiro tiro em Amílcar Cabral, foi outro sublevado quem lhe deu o tiro de misericórdia.

Um abraço do
Mário



Amílcar Cabral nas memórias de Manuel Alegre

Mário Beja Santos

A obra intitula-se Memórias Minhas, por Manuel Alegre, Publicações Dom Quixote, março de 2024, uma longa viagem de lembranças dos ancestrais, da vida em Águeda, a aprendizagem escolar, a passagem por Lisboa e pelo Porto, os estudos em Coimbra e os primeiros passos na intervenção política, na vida teatral no TEUC; as eleições presidenciais de 1958, que mudaram a sua vida; e depois Mafra, a ilha de S. Miguel e até alguns sonhos de rebelião; a ida para Angola e a vida militar, segue-se a prisão em Luanda, regressa a Coimbra, não para de intervir, mesmo fazendo exames, é membro do PCP; impõe-se partir para o exílio, assim chega a Argel, compete-lhe preparar as emissões da Voz da Liberdade, que ele assim apresenta:

“A Voz da Liberdade foi sempre uma voz portuguesa livre. Dei-lhe dez anos da minha vida, dez anos de oiro da minha juventude, dias e noites a escrever e a preparar a emissão. Em certas noites eu tinha a sensação de que estava a falar para mim mesmo e a combater o meu próprio desalento. Mas depois lá vinha de novo a esperança, a luta renascia, as vozes chegavam de Portugal e ecoavam na nossa própria voz.”

É neste ponto que ele insere a entrevista que fez a Amílcar Cabral, a primeira que o líder do PAIGC concedeu a uma emissora portuguesa. 

“O que mais surpreendeu e tocou quem a ouviu foi o facto de ele ter dito o que a esquerda portuguesa, por complexo, não tinha então coragem de dizer. Cabral exaltou os Descobrimentos portugueses e afirmou: ‘Não é mentira, não, os portugueses deram de facto novos mundos ao mundo e aproximaram povos e continentes’. E sublinhou que o fascismo e o colonialismo estavam a desunir o que a História tinha aproximado. Citou versos de Camões e contou que celebravam algumas datas históricas portuguesas, entre elas o 5 de outubro de 1910. Foi uma entrevista muito inteligente, que procurou quebrar tabus e sublinha que, para ele, o principal aliado no combate pela independência era o Povo Português e a sua luta pela liberdade.”

É neste contexto memorial que Amílcar Cabral aparece nas recordatórias seguintes.

O primeiro texto intitula-se “Uma conferência de imprensa”. Segue-se a transcrição:

“Quando Marcello Caetano sucedeu a Salazar, Amílcar Cabral deu uma conferência de imprensa em Argel. E a certa altura, surpreendeu e confundiu os jornalistas:
- Estou disposto a ajudar Marcello Caetano a ser um De Gaulle português.

Também nós, representantes da Frente Patriótica, ficámos perplexos. Retirei-me da conferência e escrevi um bilhete a Amílcar Cabral dizendo que não compreendia aquela afirmação, era uma grande ajuda ao pseudo-reformismo do sucessor de Salazar, que mudava os nomes às coisas para que tudo ficasse na mesma.

Umas horas depois, Amílcar Cabral veio a minha casa e disse-me que a nossa amizade não era uma amizade circunstancial, mas algo que tinha importância para além de nós. E acrescentou:
- Tens de compreender que eu estou a lutar pela independência do meu país. Essa é a nossa prioridade, não a queda do regime em Portugal. Se o Governo de Caetano quiser negociar, eu estou pronto a fazê-lo. Não é contra vocês. É pelo meu país e pelo futuro das relações entre os nossos povos.”


E segue-se o texto intitulado “Premonição”, como segue literalmente:

“Por vezes chegavam desertores portugueses da Guiné. As autoridades argelinas entregavam-nos à Frente Patriótica e depois seguiam para a Europa. A maior parte não desertava por razões políticas, mas para fugir de eventuais punições de delitos cometidos. Eram acolhidos pelo PAIGC em Conacri e depois encaminhados para Argel. Certa vez chegou-nos a informação de que um desses desertores contava ter pensado cortar a cabeça a Amílcar Cabral para regressar com ela a Bissau.
Piteira Santos e eu contámos o caso a Amílcar Cabral. Ele puxou os óculos para a testa, num gesto que lhe era peculiar, olhou-nos muito direito e disse:
- Se um dia for morto será por alguém do meu próprio partido, provavelmente um fundador.

Quando soube que ele tinha sido assassinado por Inocêncio Cani, fundador do PAIGC, senti um arrepio. Lembrei-me daquela frase e fiquei com a sensação de que Amílcar Cabral estava a pressentir a sua própria morte. Sabia que podia ser morto e até, talvez, por quem [Inocêncio Cani não era fundador do PAIGC, era um veterano da guerrilha, chegou a ser comandante da Marinha do PAIGC, fora castigado e afastado do Conselho Superior de Luta, deu o primeiro tiro a Amílcar Cabral, segundo a versão de Oscar Aramas-Oliva, o embaixador cubano em Conacri, foi outro sublevado, de nome Bacar, quem matou Amílcar Cabral".


Foram estas as referências que encontrei a Amílcar Cabral, a segunda parte deste livro das memórias fundamenta-se essencialmente a sua atividade política e poética depois do 25 de Abril.

Amílcar Cabral, pintura em acrílico por Noronha da Costa
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Nota do editor

Último post da série de 29 de abril de 2025 > Guiné 61/74 - P26741: Notas de leitura (1793): Um Trajeto de Vida, por Rui Sérgio; 5 Livros, 2021 (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 20 de março de 2025

Guiné 61/74 - P26599: Manuscrito(s) (Luís Graça) (268): A velha Amura dos tugas, agora panteão nacional...



Titina Silá (1937-1973)



Domingos Ramos (1935-1966) 

Pansa Na Isna (1938-1970)


Osvaldo Veira (1938-1974) | Rui Demba Djassi (1938-1964 )



Amílcar Cabral (1924-1973)





'Nino' Vieira (1939-2009). 


Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2025)
 

A velha Amura dos tugas...

por Luís Graça


A velha Amura dos tugas, 
agora cercada de guinéus
por todos os lados.
Ilha de areias movediças
foi rampa de lançamento de lançados
e de vozes suplicantes 
que nunca chegaram aos céus.
Dizem que aqui nasceu a Bissau colonial,
 já republicana,
de linhas tortas, as ruas direitas da capital.

Saúda os ilhéus, e os grumetes,
figuras de museu de cera, de faces mortiças:
à frente, o capitão-diabo, 
o bigode farfalhudo,
espadeirando a torto e a eito, 
de peito feito ao fogo do canhangulo.

Mais os seus soldadinhos de chumbo, 
empunhando os seus mosquetes: 
eram uma ternura, 
em linha, em formatura,
nas suas fardas multicolores, coloniais, 
do tempo dos Cabrais.
Davam vivas à Pátria e à Rainha,
aqui e em toda a parte 
onde o Império tinha mais feitiço, engenho e arte.

Ah!, a velha Amura dos tugas, 
agora inútil baluarte,
com os seus canhões de bronze, incandescente...
Casamata, prisão, paiol,  dormitório,
e por fim panteão nacional,
coberta de poilões debruados a branco
e onde pousavam os pachorrentos jagudis.

Eram onze os soldadinhos, 
como no jogo de matraquilhos.
E combatentes da liberdade da Pátria,
contavam-se  pelos dedos da mão.

E os irregulares do Abdul Injai, 
que eram pagos com o soldo do terror e do saque ?
Esses não entram no jogo da honra e da glória.

E quanto a ti, querida Titina, 
que incendiavas paixões pelo Óio ?
Que fazes tu aqui,  
jazida entre os poilões da triste Amura ?
Cuidado, Silá, 
que os fuzileiros tugas montaram-te cilada
na cambança do Rio Farim.
Vens às exéquias do pai da Pátria em Conacri,
a terra de todas as traições.
Tu, sim, gritaste bem alto o teu horror
à demência dos cabra-matchus em Cassacá.

E mais à frente,  
tu,  Domingos, tu, valente Ramos,
herói de banda desenhada,
nos livros de leitura da segunda  classe,
que irás morrer de morte matada, 
em Madina do Boé.
E o Cabral a ver tudo de binóculos,
lá sua colina de estimação.
Irá chorar por ti
 o teu irmão branco e inimigo na guerra,
o comando Mário Roseira Dias.

E tu, Rui, e tu Demba, e tu Djassi,
aprendiz de boticário e de feiticeiro,
de quem ninguém sabe nada, do teu paradeiro,
a não ser que morreste em 1964,
ainda a revolução era uma criança,
depois do tenebroso Congresso de Cassacá ?!

Em 2008 ainda tinhas nome de rua,
Rua Djassi, suja e esburacada, na capital da tua terra,
ao pé do estádio Lino Correia,
outrora Sarmento Rodrigues,
transmontano de Freixo Espada à Cinta...
Morreste cedo demais para mostrar o que valias. 
Tu e o Correia e tantos mais. 

E tu, camponês, balanta, Pansau Na Isna,
herói da ilha do Como, 
guerrilheiro-cóboi,
enfrentando as naves loucas dos tugas,
com a tua Kalash de contrafacção, made in China?!

E sobretudo tu, Amílcar, que já te mataram, Cabral ?
Qual vai ser o teu lugar no Olimpo dos Combatentes ?
E de que traições podias falar, se fosses vivo, 
tu, primo Vieira, que eras Osvaldo ?

Na Amura fez-se história, diz o guia,
Mas quem a escreve hoje é herói, 
amanhã pode ser vilão.
Cuidado, João, 
cuidado, Bernardo, 
cuidado, Vieira.
Há quem te espere, 'Nino', no Panteão Nacional.

© Luís Graça (2008)

Bissau, Simpósio Internacional de Guileje, 7/3/2008. 
Revisto em 19/3/2025

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Nota do editor:

Ultimo poste da série > 19 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26597: Manuscrito(s) (Luís Graça) (267): No dia do pai... Aos nossos pais, nossos velhos, nossos camaradas... a quem nunca tratámos por tu

quarta-feira, 12 de março de 2025

Guiné 61/74 - P26576: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (37): O silêncio do rio Xaianga




Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > O Rio Geba, o estreito (do Xime para montante) e o largo (do Xime para jusante)... c. 1970, no tempo seco... O rio era navegável de Bissau até Bafatá!... Os cartógrafos portugueses chamava-lhe Xaianga, ao Geba Estreito. Normalmente, as embarcações civis, os "barcos turras", iam até Bambadinca... As LDG ficavam pelo Xime, mas também chegaram a Bambadinca, pelo menos até a 1968... Dois pontos vulneráveis do percurso eram a Ponta Varela (na margem esquerda do Rio, entre a Foz do Corubal/Ponta do Inglês e o Xime), e o Mato Cão (entre o Xime e Bambadinca, no troço serpenteante do Geba Estreito ou Xaianga)... Era o maior rio da Guiné-Bissau: rio de planície, com cerca de 550 km de comprimento, caudaloso na época das chuvas (de abril a outubro), nasce a cerca de 40 km a nororeste da cidade de Koundara, região de Boqué, na Guiné-Conacri, corre para Norte, penetra no Senegal, para logo fazer uma longa curva para o Sul, receber as águas do rio Bidigor e desaguar em Bissau; o  seu principal afluente é o Rio Corubal

Foto do álbum do Humberto Reis, ex-fur mil op esp (CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)


Foto (e legepnda): © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



O silêncio do rio Xaianga

por Luís Graça


− Ah!, se pudéssemos identificar, selecionar, decompor e voltar a juntar o melhor de cada povo, teríamos o melhor da humanidade!... Teríamos a humanidade perfeita!...

− Não sou assim tão otimista e utópico como o vosso Amílcar Cabral... Aliás gostava de reconhecer esse "homem novo" guineense, que foi prometido nas Colinas do Boé − respondeste tu, com afabilidade e sem ironia, ao teu interlocutor, um antigo comissário político do PAIGC, da última geração dos "combatentes da liberdade da pátria".

O comissário político era, explicou-te ele, o padre ou o pastor, conduzindo um rebanho de crentes sobre o qual tem o poder de punir e perdoar. Retiveste essa metáfora sem, todavia, lhe pedir para exemplificar. Mas tencionavas mais tarde perguntar-lhe o que é que o comissário político fazia nas FARP (Forças Armadas Revolucionárias do Povo).

Achaste piada ele ter-te dito, com candura, que agora era um "ex-tudo"...

− Ex-tudo ?...

− Sim, ex-combatente da liberdade da pátria, ex-comissário político, ex-militante do PAIGC, ex-católico, ex-marido...

Só não era ex-pai, porque continuava a amar muito os seus filhos, e não eram poucos, de várias relações...

E estavas tu ali, na terra dele, agora "libertada" (uma metáfora: livre das "velhas algemas do colonialismo", rapidamente substituídas por outras, de outros "ismos"...).

Estavas tu ali, não como um "antigo inimigo" nem como um "simples turista" ( o tal "estúpido em férias" que sabe pouco ou nada do "paraíso" que lhe caiu na rifa....) mas como um "amigo" do "povo guineense"...Mesmo que amigo e povo fossem conceitos nem sempre fáceis de definir ou entender.

Aproveitavas também a ocasião para "fazer as pazes" com o passado. Antes de mais, contigo próprio, que foras "obrigado a comprar a guerra que te quiseram vender"... Como não eras livre, nem mercenário, não pudeste negociar nada, muito menos o preço.

Eras "amigo da Guiné, agora Guiné-Bissau", mas não confundias o "povo" com a sua "elite dirigente", que começou por ser, em 1974, os "novos senhores da guerra". 

Tinhas relutância, por exemplo, em apertar a mão de alguns daqueles homens, novos e antigos senhores da guerra, como o 'Nino' Vieira, que regressava ao poder depois de uma sangrenta guerra civil (a de 1998/99) e de um exílio mais ou menos dourado. E de outros ainda mais sinistros como o Quemo Mané, o Mamadu Injai, o Inocêncio Cani e outros de "segunda linha", que, felizmente para ti,  já tinham ido parar aos quintos  do "inferno dos combatentes"...

Acabarias por o conhecer pessoalmente, ao 'Nino' Vieira, uns dias depois, numa receção no "palácio presidencial"... Para todos os efeitos, era uma figura institucional, o presidente da república, eleito, pensavas tu em voz alta na iminência de o teres de cumprimentar... Um ano depois, em 2009, era miseravelmente morto. E rapidamente esquecido. 

Estranho país aquele onde facilmente se passava de herói a vilão. Nada, de resto, que tu não soubesses já, a começar pelo teu país, e a sua história recente.

Ainda tinhas dificuldade em definir o teu estatuto naquela terra a que chamavas "verde-rubra", não obstante a ambivalência das cores que eram também as cores da bandeira dos "tugas", lembrava-te o Tó Brandão, com quem começaste a simpatizar por ser um tipo "porreiro, bonacheirão, ingénuo". Falava-te do passado, sem azedume, embora às vezes com uma pontinha de ironia. ( Ou seria uma mistura de tristeza e de culpa ?!)

Não achaste a terra assim tão "verde-rubra" como há quarenta anos atrás. Nessa altura, quando desembarcaste de um velho cargueiro colonial, já era a época das chuvas. E o capim começava a crescer como os velhos campos de trigo da tua terra. Nunca gostaste da Guiné no tempo seco, tempo das queimadas e das grandes operações militares, tempo da sede e da insolação, tempo da desidratação e da exaustão, física e emocional...

Voltavas lá, quarenta anos depois, em março de 2008. Havia no ar uma aridez de deserto. O Saara ali tão longe e tão perto. 
 
Há terras que ficam na memória das nossas geografias emocionais, pelos cheiros, os sabores, os sons,  as cores... A Guiné era uma delas...

− A guerra já acabou para ti há muito − comentou o teu convidado, com.ar sério.

Ele falava corretamente o português, com aquela doçura acrioulada que te encantava. E gabava-se de ter andado no liceu Honório Barreto, "ainda seu antepassado remoto pelo lado materno".

− E para ti, não ?!...A guerra  ainda não acabou  ?! − interpelaste-o, mas respeitaste o silêncio,
que se  seguiu. Um silêncio algo embaraçoso e magoado,  mas que falava por si.

Por entre dentes, terá dito qualquer coisa em crioulo que não entendeste bem mas que poderia traduzir -se por um velho provérbio universal, o tempo é o cruel coveiro das das nossas ilusões de juventude.

Quem era, afinal,  esse teu cicerone, que se oferecera para mostrar as velhas ruas e casas de estilo colonial, poeirentas e esburacadas, de "Bissau Bedju", cujo traçado em linhas paralelas e perpendiculares, ainda retinhas, se bem que vagamente, na memória ?

O António Brandão ("Tó para os tugas"...) tinha-te sido apresentado por um amigo comum, português,  ligado à cooperação, conhecido ativista contra a guerra colonial, e incondicional admirador do Amílcar Cabral, embora agora mais crítico em relação aos seus "fracos herdeiros"...

A sua obsessão, em Bissau, era encontrar um "mãos limpas", isto é, um dirigente   ( dos poucos que já restavam vivos)  que não estivesse direta ou indiretamente ligado ao "narcotráfico". A sua deceção ia aumentando por aqueles dias, à medida que as suas "fontes secretas" iam confirmando as suas "suspeitas":

− Eh!, pá, até o fulano tal..., imagina!... 

Referia-me a um dos últimos comandantes do PAIGG que ainda gozava de um algum crédito entre os "amigos estrangeiros"...

Tu e ele eram participantes do Simpósio Internacional de Guileje, que se realizava em Bissau, com uma visita de fim de semana ao "mítico Cantanhez". Estava-se em março de 2008. A iniciativa não era partidária, nascera da sociedade civil e propunha-se também juntar os antigos combatentes de um lado e do outro.

O Tó Brandão era não um "típico guineense". Para já, provinha da uma família cristã, mestiça, de Bafatá.

− Grumete do Geba!− esclareceu ele.

Tal como o Amílcar, que também não era um "típico guineense".

− Mais branco do que muito branco.

Era um "mundo crioulo" que te intrigava e fascinava ao mesmo tempo, aquela mistura de cores, sabores, línguas, saberes, fenótipos, florestas, tarrafes, bolanhas,  rios, braços de mar....mas também ódios e amores.

Tinhas dificuldade em perceber (e penetrar em) aquele sistema de relações de parentesco e de poder, em que os machos e os "mais velhos" dominavam, e as próprias religiões monoteístas e proselitistas,  o cristianismo e o islamismo, não se davam mal de todo com a idiossincrasia animista... 

Não sem surpresa, deste conta que  o Tó era profundamente supersticioso e ainda usava alguns dos amuletos do tempo da guerrilha.

Por delicadeza (ou receio de melindre) não lhe quiseste fazer perguntas sobre as origens da família, embora a tua curiosidade fosse alguma.

Acabou por ser ele a falar-te dos seus antepassados. Tinha um bisavô algarvio, de Portimão ou Faro, não sabia ao certo... Contar-te-ia ele, já para o final da refeição.

Depois de um emocionalmente penoso, para ti, "passeio turístico" até à marginal e à zona portuária, descendo a antiga e 
tua conhecida avenida da República (avenida Amílcar Cabral,  a partir de 1975), nada como um almoço de pitche-patche (caldo de ostras) e de frango de chabéu, bem regado com umas "superbocks"...

O "tasco" era de um antigo soldado da manutenção militar. A esposa, cabo-verdiana, era uma cozinheira de mão cheia. O seu pitche-patche era talvez o melhor da cidade, garantia-te o Tó, que era um bom garfo e um melhor copo. 

À segunda "super", o Tó Brandão já estava a tratar-te por ermon. Sem constrangimento da tua parte. O tratamento por tu, da tua parte,  não o vias como um velho tique do paternalismo colonial, mas como uma forma de facilitar a comunicação entre dois antigos combatentes, para mais lusófonos. E sem qualquer veleidade "luso-tropicalista", do teu lado, mesmo sendo tu mais velho que ele uma boa meia dúzia de anos!

Percebeste (pelo que ele deu a entender durante o almoço) que gostava de poder mandar estudar um dos seus filhos em Portugal.

− Em medicina!

Nunca tinha conseguido sequer uma bolsa de estudo para o estrangeiro, o que achaste estranho, pertencendo ele (ou tendo pertencido até 1980) á 
nomenclatura do PAIGC.

Disseste-lhe que na altura não estava fácil entrar nas faculdades de medicina, cujas notas eram escandalosamente altíssimas... E que havia poucas vagas para os PALOP... E, a título de consolo, alertaste-o para o risco de "perder o filho": os médicos não voltavam â Guiné, ou seja, à procedência, para vir trabalhar em "condições heróicas", isto é,  miseráveis... Conhecias muitos casos. E, se regressavam, eram mal aproveitados. Lembravas-te de um que fizera o curso na China. De regresso ao país,  não acharam melhor colocação para ele do que o de tradutor-intérprete ... 

O Brandão era crítico do regime do 'Nino' Vieira, então no poder.

− Matou o Cabral pela segunda vez!

Segundo apuraste da longa conversa desse dia, que se prolongou pela tarde dentro, o Brandão já era guerrilheiro no início dos anos 70.

− Na frente do Xitole. Em 1972, ia fazer 19 anos. 

− Por um triz (ou melhor,  talvez por um ano de diferença), não nos cruzámos nos matos do Xime e do Xitole! Tu de Kalash, eu de G3 em punho.

Andara pela "barraca" da Mina / Fiofioli, já em 1972... Depois da morte de Mário Mendes, em meados desse ano, o PAIGC concentrou a maior parte das suas forças na Zona Oeste, no Norte, para atacar Guidaje, como manobra de diversão. E no Sul, para cercar e "aniquilar" Guileje...

− Havia a crença de que se Guileje caísse, a guerra estava ganha... Disse-o Cabral, antes de morrer...

As "áreas libertadas" da bacia hidrográfica do Corubal ficaram vulneráveis, à mercê dos "raides punitivos" da tropa portuguesa...O PAIGC ficou desfalcado e os "tugas" voltam a entrar na mata do Fiofioli, três anos depois da Op Lança Afiada. O Brandão fora entretanto  para a barraca de Hermancono, no Senegal. Nunca mais voltaria ao Leste.

Turra, foi o que eu fui... Turra, como vocês diziam...

−  Turra dum cabrão!... E insultávamo-nos uns aos outros, na mata, quando nos encontrávamo-nos, aos tiros.

−  E falávamos a mesma língua!

− Estranho, diria um observador estrangeiro, que nos estivesse a espreitar por detrás de um bissilão!

−  E, afinal, éramos todos do mesmo clube, uns do Benfica, o maior da época, mas também do Sporting,  um ou outro do Belenenses, e até do Porto .

−  Do Belenenses ?!

−  Sim, por causa do Matateu!

−  Ah!, o Matateu, mas esse já não era do nosso tempo... Não estarás a confundir com o Eusébio ?!... 

Afinal, tu é que não estavas a dar conta da importância  do futebol na génese e desenvolvimento da luta pela independência...

−  Tivemos vários futebolistas na luta, do Lino Correia ao Bobo Queita.. E o próprio Amílcar Cabral, dizem que chegou a prestar provas no Benfica. Sabias ?

 −  A sério ?!...Não se pode ignorar a bola... Ainda vi hoje uns quantos  djubis, á saída do hotel, com a camisola do Ronaldo!...

−  E então diz-me lá por que razão andámos a guerrear este tempo todo ?

−  Tó, o homem grande de Lisboa, primeiro o Salazar, e depois o Caetano, não se entenderam com o Cabral... Foi pena.

−  Talvez o Spínola tivesse conseguido, se o Cabral não tivesse sido morto.

Contrariamente à maioria dos combatentes, militantes e simpatizantes do PAIGc , o Brandão não atribuía a morte de Cabral ao Spínola nem aos "tugas".

Julgavas que ele não disse isso só para te agradar ... Veladamente,  deu-te a entender que o 'Nino' Vieira, o primo Osvaldo Vieira e o Sékou Touré teriam as "mãos sujas de sangue". Mas o 'Nino'  ainda estava vivo e não longe do restaurante, pelo que o Tó não queria aprofundar o assunto que o incomodava... Deduziste o que ele te queria dizer:  sabiam do complô,  nada fizeram para o neutralizar e provavelmente também eram cúmplices...

Não resististe a querer saber algo mais sobre a infância e a adolescência do Brandão, depois de, conversa puxa conversa, de terem chegado à conclusão de que tinham andado ambos pelos mesmos sítios, embora em anos diferentes. 

 Mandaste vir mais cerveja para destaramelar a  língua...

−  Como é que chegaste afinal a comissário político, um cargo mais importante do que comandante de bigrupo ?  −  quiseste tu saber...

Ele preferia falar da origem da família... Sobre o bisavô, desterrado para Cabo Verde, ele disse-te que sabia pouco, ou o que a mãe lhe contara,  ainda em pequeno, quando sonhou que ele "ainda viria a ser seria padre e talvez até bispo"...

Era cabo-verdiana e muito devota a Nossa Senhora de Fátima.

 −  Uma santa pelo que aturou ao meu pai... E, claro, como boa africana,  também consultava os búzios...

O Brandão nunca tinha estado em Portugal mas sabia muitas coisas da história e da geografia, do tempo da escola, sobre a terra do bisavô,  "o Algarve, que fora dos mouros", isto é, "dos africanos"...

A senhora, Nha Luana,  tinha medo de morrer ainda nova e de levar para o  outro mundo os segredos da história da família do lado paterno. Achava que tinha obrigação de transmitir essas memórias aos filhos mais letrados, que eram também os mais novos... Ela e o filho eram muito chegados, para não dizer cúmplices...                                                                                                       
Assim, o o nosso homem sabia que o bisavô (de que já não se lembrava o nome, nem nunca vira nenhuma foto)  fora deportado para a ilha do Fogo. Alegadamente por se ter amotinado no navio de guerra a cuja guarnição pertencia. Teria chegado a Cabo Verde por volta de 1895, "no tempo dos reis" (pelas tuas contas).

O Brandão não sabia explicar o que se passara a bordo, a memória da família não chegava a tanto pormenor, mas parece que o marinheiro-fogueiro já tinha nessa época "ideias republicanas". 

À melhor oportunidade teria fugido da ilha onde lhe fora fixada residência. Numa leva de contratados para São Tomé, para as roças de cacau, acabou por seguir a bordo num vapor que fazia escala em Bolama (capital da Guiné a partir de 1879, acrescentaste tu).

Não ia de todo clandestino, terá beneficiado da cumplicidade  de um conterrâneo (ou antigo camarada da marinha de guerra) que o escondeu num beliche. A viagem, de resto, não era longe. 

Com a falta de "colonos brancos", não foi difícil arranjar trabalho na loja de um antigo deportado, ali estabelecido como comerciante e que  também tinha uma ponta na extremidade sul da ilha.

Nos primeiros tempos ficou afastado da vila de Bolama (só cidade a partir de 1913),  à frente de  destilaria de aguardente de cana. Os seus conhecimentos de fogueiro da marinha foram-lhe úteis.

Acabou por casar com uma bijagó de Bubaque  educada nas missões católicas. A mulher grande deu-lhe um bando de filhos, fora os que arranjou noutras moranças e camas. Parece que mais tarde dedicou-se à marinhagem num barco a vapor que fazia a cabotagem entre Bissau, Bolama e Bubaque. Acabou por trazer a família para Bissau e depois para o presídio do Geba.

O avô do Brandão vamos  encontrá-lo  a combater ao lado do capitão  Teixeira Pinto, do tenente Sousa Guerra e do Abdul Injai, comandante das tropas irregulares, na campanha contra os papéis e os grumetes da ilha de Bissau, em meados de 1915.

− Esse avô terá salvo a vida do capitão-diabo, quando este foi ferido. Contou-me a minha mãe, que ainda não era nascida. 

Louvado por feitos em combate, acabou por seguir a carreira militar e chegar ao posto de sargento, no final da I Grande Guerra.  

O pai do Brandão, por sua vez, foi soldado em Bolama, numa companhia de caçadores indígenas no início dos anos 40.  Terá estado em Angola (ou Macau, já não podes precisar de memória), durante a II Guerra Mundial, como expedicionário.  Esteve tentado a lá ficar mas as saudades da família (já era casado, e com filhos)  eram muitas.

Quando voltou, foi trabalhar para a Casa Gouveia, em Bafatá, vilória que, graças ao florescente comércio da mancarra, já há muito havia suplantado a decadente Geba e todas as demais terra do Leste.

−  Nasci em Bafatá, onde é hoje o bairro da Rocha...

E é aqui, por volta de 1953, que começar a história de vida do António Brandão...

− Brandão ?!...

−  Sim, apelido do meu padrinho de batismo: era ponteiro em Bambadinca e parente da minha mãe, cabo-verdiana. 

Era um colono respeitado, nacionalista, cuja casa o Amílcar Cabral frequentava  nos escassos anos em que trabalhara na Guiné como engenheiro agrónomo.

− E a esposa do Cabral, que era branca, chegou a pegar-me ao colo, contou-me a minha mãe.

Toda a gente se conhecia na Guiné nos anos 50. E a mãe do António tinha sido  empregada da família Brandão. Também ela educada nas missões católicas, em Bambadinca. 

Foi graças aos missionários católicos, italianos, de Bafatá,  que o Tó conseguiu fazer mais do que a 4ª classe.

−  Mandaram-me para o liceu de Bissau. Não havia mais nenhum.

Era um rapaz inteligente, vivaço mas humilde. Devem ter pensado que daria um bom padre. Feito o quinto  ano (e ainda antes do sétimo) , tencionavam mandá-lo para Roma, para aprender latim e grego aprofundar a  filosofia e iniciar a teologia.

−  Estava entusiasmado... Ia conhecer o Papa! E, claro, as belas romanas...

Os pais (e sobretudo a mãe)  viram com bons olhos esta benção do céu.  Tinha os irmãos mais velhos em Bissau, não seria difícil a adaptação.

Mas Deus põe e o homem dispõe...

***

− E isso da JAAC, a Juventude Africana Amílcar Cabral, foi a sério ? − perguntaste tu.

Explicou-te que inicialmente fora uma "brincadeira de putos" mas depois levada longe demais até ao ponto de não-retorno.  

Andar na Mocidade Portuguesa era uma "seca", o que ele queria eram as farras, as "mininas", os bailaricos com os gira-discos (uma novidade e um luxo nessa época), na casa uns dos outros, os mais abastados, e sobretudo longe do olhar dos professores e dos "nossos mais velhos"...

Em 1968, tinha o Brandão quinze anos e completava, com sucesso, o quinto ano. O Amílcar Cabral gozava de muito prestígio, "a nível internacional e até nacional".

−  Tinha derrotado o Schulz!

Ele pronunciava "Schultz". E a resposta, como já ouviras a outros guineenses, é que este governador e comandante dos "tugas" não era português mas "alemão" (sic).

−  A prova é que o Spínola veio tomar conta do lugar dele. O Salazar tinha pressa em acabar a guerra...

−  Pressa ? −  comentaste tu. −  Ele achava que ainda iria a tempo de ver a História e os Aliados do Ocidente dar-lhe razão! 

A libertação dos "tarrafalistas", entre eles o histórico Rafael Barbosa, muito popular em Bissau, gerou um clima de euforia (mas também de desconforto e desconfiança) entre militantes e simpatizantes do PAIGC.

Continuou a haver infiltrações da PIDE nas células estudantis e nos bairros populares de Bissau.  Alguns venderam-se por um "prato de bianda", garantiu-te o Brandão. 

 Claro que às tantas o Tó começou a faltar às aulas e a comprometer-se com alguns rapazes e raparigas que, viria mais tarde a saber, pertenciam à célula clandestina da JAAC no liceu.

Por influência do grupo, nas horas vagas já estava a distribuir papéis e a participar em reuniões , mais ou menos clandestinas, em se que falava dos problemas estudantis e dos progressos da luta do PAIGC... 

Começaram a catalogá-lo como "simpatizante" e às tantas já tinha, sem saber como nem porquê, a "chapa do Partido"... De repente, deu-se conta de que não estava nada interessado em pegar numa Kalash e ir para o mato combater a tropa dos "tugas" onde tinha amigos, sobretudo guineenses e cabo-verdianos (!).

É verdade que, naquele tempo, não tinha inimigos, só não gostava dos fulas que eram cipaios da administração do Guerra Ribeiro, e que serviam para dar porrada ao pessoal que entrava em Bafatá descalço!... Mas isso não era razão bastante para andarem a matar-se uns aos outros...  Tinha, de resto, amigos de várias etnias na escola primária.

Alguns colegas do liceu começaram, entretanto,  a ser chamados para a tropa. O medo instalou-se.  Um ou outro  mais afoito acabou por ir parar a Dacar e juntar-se ao PAIGC.

Em 1969 as coisas começaram a dar para o torto. Uma das "mininas" do grupo, aluna do liceu, foi detida pela PIDE... E deu à língua. Houve prisões. O Brandão teve que "passar à clandestinidade".

A mãe e os irmãos mais velhos e os missionários católicos do PIME tinham em Bissau os seus "espiões" de modo a não deixar o Tó "pôr o  pé em ramo verde".

Não chegou a fazer o 7º ano. Começou a fazer "trabalho político" com uma miúda que depois viria, mais tarde, a ser a mãe dos seus dois primeiros filhos. Viviam no Cupelon de Baixo, paredes meias com o quartel-geral, em Santa Luzia.

O controleiro da célula do bairro cedo se apercebeu de quão valioso e promissor era o "miúdo". Foi o próprio Amílcar Cabral quem fez questão, depois de saber da sua história, em recebê-lo em Conacri.  E foi ele quem o entrevistou para pôr a prova as qualidades do novo membro do Partido, antes de o mandar para Cuba, mesmo sem o "batismo de fogo"...

− Tinha lá os balantas, os homens do mato,  para matar e morrer − comentaste tu com indisfarçável ironia. 

 Instintivamente o Amílcar Cabral − disseste tu para os teus botões − procurava poupar os melhores dos seus futuros quadros.

Foi para Cuba sem deixar rasto, sem se despedir da mãe e dos irmãos. Ela nunca lhe perdoou, até quase à hora da morte.  Apesar de conhecer o Amílcar, que tinha ascendência cabo-verdiana, e era mais novo quatro anos, ela não gostava dele.  Estava convencida, mesmo sem fundamento,  de que tinham sido "eles", os tipos do PAIGC,  que haviam raptado e morto o marido na fronteira do Senegal, ainda antes do início da guerra.

***
−  E Cuba ?

−  Bem, na altura, eu ia de olhos tapados, comprei tudo o que me quiseram vender. E também acreditei piamente na sinceridade dos internacionalistas cubanos... Vim depois a saber que, muitos deles, coitados, faziam pela vida, tal como eu... A guerra era um modo de vida.

Não quis falar muito mais,  do tempo da luta.  Participou na Op Amilcar Cabral. Só não quis dizer onde, no Norte ou no Sul. Estás mais inclinado para Guidaje. 

Também já era tarde e "amanhã é dia de trabalho"...Pediu-te para levares uma pequena "encomenda" para Lisboa... E até lá ainda se encontrariam no hotel onde decorria o simpósio.

Cruzando esta com conversas ulteriores, ficaste a saber que o António Brandão não tinha estudado mais. Ia-se inscrever no 7º ano, quando teve de fugir.

Agora com 55 anos já "não tinha cabeça". A vida política não o interessava mais. Estava "triste" com o rumo que as coisas seguiram no seu país. "Ingénuo" (o termo era dele), pensava que, depois da independência, por um simples toque de magia, iriam abrir-se, de par em par, as portas do progresso, da liberdade e da justiça. 

Não estava arrependido pelos anos que andou no mato, na luta pela independência da sua terra. Mas tinha agora algum pudor e muita reserva em falar desse tempo. Os mais novos não mostravam gratidão pelo sacrifício de seus pais. Por outro lado, recebia uma miserável  pensão (que chegava ao seu bolso, tarde e a más horas). O Governo tratava mal os antigos combatentes. 

Temia a velhice, apesar da sua família extensa e solidária onde, apesar de tudo, não havia memória  de se passar fome. Mesmo quando o pai desaparecera... Temia as doenças da velhice.

Trabalhava numa ONGD, estrangeira, uma "grande empresa", de um pais europeu. (Por razões obvias, não vais aqui identificá-la.)

Mas nunca se sabia até quando "eles" continuavam a apostar  na Guiné-Bissau. Os golpes de Estado, a droga, a instabilidade política, o peso dos militares, a corrupção, etc., não ajudavam a promover a imagem do país que continuava no fundo da tabela...

Era já tarde quando voltaste ao Hotel 24 de Setembro. Os dias ali eram curtos. E à noite não havia iluminação pública. Bissau parecia uma cidade sitiada, em quase total "black out".  Recorria-se ao gerador, os particulares, os hotéis, os restaurantes.

Foste a pensar na história do Tó Brandão. Nem sequer sabias o nome de guerra dele. Não acreditavas em tudo o que ele te contara. Davas o devido desconto. Mas, no essencial, parecia ser uma história verosímil, incluindo a perseguição aos "colaboracionistas", aos "cães dos colonialistas",  ainda antes da partida do último soldado português.

Era uma "grumete", dividido por duas culturas, dois amores, dois mundos (mesmo que nunca tivesse  chegado a conhecer Portugal, tinha um secreto amor às raízes do bisavô , bem como a Cabo Verde, terra da mãe, que ele, apesar de tudo, não conhecia...)

Ao menos estava vivo, tinha sobrevivido a alguns momentos dramáticos da história recente do seu país ... Se tivesse ido para os comandos africanos, por exemplo,  hoje estaria morto como dezenas e dezenas de graduados do célebre batalhão que o Spínola criara... Teve lá amigos seus. Disse-te os nomes (que não fixaste). Teve amigos de um lado e do outro, o que ainda era mais dilacerante.

Triste episódio, esse, que manchara o regime de Luís Cabral...

−  Triste episódio ? 

Talvez um dia arranjasse alguém que lhe escrevesse as suas memória. Não era dado a escrever. Preferia falar. Mas não ali, na terra dele.

−  Um dia, Tó... Talvez em Lisboa, não  ?!

Sorriu.

***

Tu e ele ficaram amigos. Houve ali, pelo menos, empatia entre os dois. Cumplicidade.  Mantiveram contacto mais ou menos regular por email e pelo WhatsApp.  Nos últimos anos mais esporadicamente. Foste sabendo dele,  até à pandemia. Deixaste de ter notícias dele por essa altura, que foi fatídica para todo o mundo. E a ONGD onde ele trabalhava também passou por muitas dificuldades.

Entretanto a mãe já tinha morrido  em Cabo Verde, com 90 e tal anos (ela seria de 1920). O Brandão tivera um filho a estudar em Bragança, na Escola Superior Agrária. Terá viajado para o Brasil e acabaste por  perder o seu contacto.  

Tal como o pai, o Tó Brandão terá desaparecido por volta de 2020/21. Sem deixar rasto. Acontecimentos estranhos naquela terra. Podem as pessoas desaparecer sem deixar rasto ? 

Nunca mais lá voltaste, à Guiné-Bissau. Os rios da Guiné não falam, mas são caudalosos e lamacentos no tempo das chuvas. Aliás, não são rios, são braços de mar. Tentaculares, como os do lolvo. Lembravas-te, no Mato Cão, o estranho silêncio do rio Xaianga, seguido do poderoso macaréu,  na maré-cheia, que assustava homens e bichos.

Perguntaras-lhe um dia  se ele tinha inimigos...

− Mas quem os não tem hoje na Guiné-Bissau ?

Sabias que a mãe tinha regressado a Cabo Verde, depois do golpe de Estado de 'Nino' Vieira. A família dispersara-se: houve irmãos que emigraram para Cabo Verde, Portugal e Holanda; outros dois ficaram em Bissau, um trabalhava nos Armazéns do Povo (no mesmo edifício da antiga Casa Gouveia); outro teria montado um negócio por conta própria.

Enquanto o Brandão  estava "bem relacionado"  (chegara a diretor-geral de qualquer coisa...), a vida não piorara... Mas terá caído em desgraça nos anos 80. Nunca te contou pormenores. Valeu-lhe a ONGD para quem foi trabalhar na área da educação ambiental e como intérprete: era poliglota, falava português, francês, espanhol e, claro, crioulo. Era fluente em fula, entendia o papel, o balanta e o mandinga. 

O estranho desaparecimento do pai (no rio Xaianga, ele dizia Caianga) foi outra história intrigante que ele só te contaria no último dia da tua estadia em Bissau, em março de 2008, umas horas antes de apanhares o avião para Lisboa.

Procurara-te para se despedir e concretizar o pedido algo insólito que te fizera uns dias antes: se levavas, na bagagem de porão,  um saco de cola para o irmão que vivia perto de Lisboa, na margem sul. 

Esse irmão tinha um filho que ia pedir a mão de uma "minina" a um patrício. Era da tradição oferecer noz de cola para o futuro sogro.

Não tiveste lata de dizer que não.  Por precaução, pediste-lhe  que te mostrasses as nozes de cola que iam no saco, que fingiste nunca ter visto no teu tempo... (Era coisa que os teus soldados andavam sempre a mascar: no mato, eliminavam ou mitigavam a sensação de fome e de fadiga, garantiam-te eles; provaste mas não te habituaste ao seu sabor acridoce e sobretudo adstringente, que te aumentava a sede.)

Em relação ao pai, empregado da Casa Gouveia...

− Nunca quis morder a mão a quem lhe dava a bianda.

Queria o Tó dizer: era fiel à Casa e aos portugueses que lhe davam o pão. Tinha uma boa posição, sabia ler e escrever, tinha carta de condução, uma camioneta distribuída. Não ganhava mal. Fazia a campanha da mancarra, percorrendo todo o leste. 

Ainda não havia guerra,  apenas umas "escaramuças" junto à fronteira do Senegal,  na região do Cacheu,  "coisa da gente manjaca". Ele só lidava com fulas e mandingas do leste, e uma ou outra tabanca balanta. Batia o leste de Sare Bacar a Gabu, do Xime ao Saltinho, de Galomaro a Pirada. Os fulas eram seus amigos. Dos mandingas não tinha a mesma opinião. Alguns começavam a ser aliciados pelo PAIGC (aliás, ainda era o PAI, Partido Africano para a Independência).

Não se sabia o que acontecera em pormenor. Desta vez ia sozinho, sem ajudante habitual que terá ficado doente de paludismo em Bafatá. A camioneta apareceu abandonada, numa curva do rio  Xaianga (ou Caianga, como se dizia então, em 2008), quando ia caminho de Paunca e Sare Bacar na zona fronteiriça. Não havia sinais de violência. Teria sido raptado ou morto sem deixar rasto ? 

A Casa Gouveia, se mandou investigar o caso, nunca comunicou à família as conclusões. O corpo nunca apareceu, não se fez o choro. Houve quem dissesse que ele tinha fugido para o Senegal com um saco de patacão, outros, seus inimigos dentro da Gouveia, insinuavam  que, à semelhança do Luís Cabral, tinha "ido no mato" (passado à clandestinidade)... O que era tudo mentira. Para mais ele tinha ainda alguns filhos pequenos a quem era preciso ajudar a criar.

A mãe do Tó nunca se conformou com o silêncio da Casa Gouveia, tão pesado como o do rio Xaianga (o maior da Guiné, que percorria três territórios),  mas não pôde fazer nada. Eles eram poderosos, donos da Guiné. O filho mais velho também trabalhava lá. 

A história que se contava na família (teria o Tó 8 ou 9 anos) é que o pai ter-se-ia  sentido mal quando ia a conduzir, tinha saído para apanhar ar e acabara por cair ao rio. A verdade é que o corpo nunca apareceu. 

A Gouveia terá abafado o caso. Não se sabe se a PIDE investigou. O irmão mais velho teve de substituir o pai no sustento da família.  A mãe e os irmãos mais velhos passaram a ser ainda mais hostis ao partido do Amílcar Cabral, que nessa altura andava já a fazer trabalho de sapa nas tabancas e a sabotar algumas infraestruturas (postes telefónicos, etc.),

Passados uns anos a mãe do Tó vai passar por outro grande desgosto: o filho, o António,  decide "entrar na luta" (sic),   quando estava destinado a ser padre...

Quando o PAIGC se sentou à mesa do Estado, em Bissau, em 1974,  já só havia sobras... Quem as apanhou foram os primeiros a chegar a Bissau. Ele fora dos últimos... Ficaria na tropa por mais uns anos até ao golpe de Estado do 'Nino' Vieira, que lançou uma onda de veneno e  ódio contra os cabo-verdianos e os mestiços... 

Aos 36 anos arrumou as botas, a farda e a kalash. E entrou numa nova vida. Foi professor, foi agente comercial, andou na campanha do caju, etc. Até finalmente conhecer a ONGD que lhe deu a mão.  

Era uma daquelas ONGD com generoso financiamento estrangeiro (e, mais tarde, da CEE), que preenchia, em muitos setores (saúde, educação, cultura, agricultura, ambiente, etc.) as funções que o frágil (e quase inexistente) aparelho de Estado guineense não conseguia cumprir. 

Viajava bastante, pela Guiné (regiões de Cacheu,Bafatá e Tombali, onde a ONGD tinham projetos).

***


− E agora, António ?

Bebeu mais uma golada de cerveja, pigarreou, deixou passar mais uns tantos segundos e disse-te mais ou menos isto, num longo monólogo, à laia de confissão:

−  Só tenho que me queixar das decisões que não fui eu a tomar. As que os outros tomaram por mim. 

Não quis particularizar, mas estava, se calhar, a referir-se a família, à mãe (que era uma mulher "poderosa, dominadora"), aos irmãos mais velhos, aos missionários , aos colegas de liceu que já eram paigêcistas e que o empurraram para a luta armada. E, claro, ao próprio Amílcar Cabral que foi para ele o pai que "ele nunca tivera", o seu herói, o seu ídolo... Nunca mais o voltaria a ver desde   que, em 1969,  o mandou para formação em Cuba. Terá chorado como ninguém a sua morte, em 1973.

Confessou-te (ou deu a entender) que, no seio do Partido (como ele ainda dizia), chegou a sentir-se, por  vezes, discriminado por ser "mais branco do que preto".  Quem disse que na cúpula do PAIGC não havia racismo ?

Não quis entrar en grandes detalhes sobre a sua vida no mato, nas "áreas libertadas". Como comissário político", depois de vir de Cuba, teve que mostrar que era tão ou mais "cabra-matchu" do que os "mais velhos". Teve que dar o exemplo aos outros: ser frugal, casto, disciplinado e disciplinador, respeitar as bajudas, defender a população...Tinha que garantir a "pureza ideológica", os valores do Partido... Sobretudo tinha que se impor pelo exemplo. Havia conflitos com os "mais velhos", e sobretudo com os mandingas.

− Conflitos ?... Entre camaradas ?...

Sem concretizar, o Brandão referia-se aos "pequenos abusos", os privilégios dos comandantes: vinho de palma, "água de Lisboa", bajudas para dormir, "bianda com mafé", relógio de pulso, amuletos, saco-cama, medicamentos, cigarros, guarda-costas.... 

Percebeste o ele que queria dizer, por meias palavras. 

Havia quem andasse na luta há muitos anos. Desde o princípio e, com sorte, estava vivo. Um jovem, de 19/20/21 anos,  só por ter estudos e ser comissário político, não ia mudar aquelas "cabeças duras"...

 Havia o culto do "cabra-matchu", denunciado aliás nos discursos do Amílcar Cabral. Mas o líder histórico não andava com eles no mato. Muitos nunca o tinham visto em carne e osso, só em fotografia. Conacri ficava longe. Tal como as Colinas do Boé.

Sobre os ajustes de contas com os "cães dos colonialistas", a seguir à independência, não quis falar. A expressão era usada pelo Cabral para se referir aos fulas e outros "colaboracionistas"...  O assunto incomodava-o visivelmente, e tu não insististe. Era delicado demais para uma conversa entre antigos inimigos, logo nos primeiros tempos em que se conheciam.

Ainda houve tempo de ir ao cais do Pijiguiti para dar um último adeus e ouvir o silêncio do Geba, que ali já era estuário,  barrento, misturando-se com as águas azuis do Atlântico. O Xaianga, o Geba Estreito, era a montante, a partir do Xime... Um enorme braço de água que serpenteava pela Guiné e os seus dois países vizinhos... 

Tiveste pena de não poder parar no Mato Cão, no regresso da viagem ao Cantanhez, e aguardar a chegada do macaréu, quando aquela gigantesca serpente de água irrompe pelas margens lodosas, na maré-alta, com o seu rugido de meter medo... 

Que diriam aquelas margens se pudessem falar dos silêncios e dos macaréus dos últimos 500 anos de História ?

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