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sábado, 10 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24386: Blogpoesia (792): "Soneto", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

Hoje é dia de Camões. Longe de mim a pretensão, mas a título de comemoração, deixo aqui um dos poucos sonetos que fiz. Escrevi-o em 1971, dois anos após a morte de meu pai

Tão cedo a esta vida te roubaram
Saudoso pai, meu bom e grande amigo
Que mal teus olhos fundos se fecharam
Boa porção de mim partiu contigo.

Flores e velas, preces lacrimosas
Oh! Alienas artes da razão
Ainda bem que não te iludem rosas
Meu doce pai que em tudo és meu irmão.

Minha fé, minha crença, minha idade
De homem-filho, é grito de homenagem
Que outro não sei, sem lágrimas, sem prantos.

Mãos dadas pelos céus da eternidade
Nesse reino sem trono e sem linhagem
Vives tu, vivem papas, reis e santos.


adão cruz

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Nota do editor

Último poste da série de 30 DE ABRIL DE 2023 > Guiné 61/74 - P24270: Blogpoesia (791): "Passei o dia a ouvir música", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

segunda-feira, 5 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24370: A galeria dos meus heróis (50): Diz-me quem foi o teu pai... (Luís Graça)

 


A galeria dos meus heróis > Diz-me quem foi o teu pai…

por Luís Graça (*)


Há gajos que nascem com o cu virado para a lua. E que fazem gala disso… Como o teu cunhado, por exemplo…

Quem, o Ulisses?

 Sim, Jorge, só tens um,  que eu saiba.

 Já agora retifica: ex-cunhado... Mas nunca fomos à bola um com o outro.

E eu aproveitei então para esclarecer, o meu interlocutor, que já não via o Ulisses desde 1974, a seguir ao 25 de Abril… Mal saiu a amnistia aos faltosos, refratários e desertores, voltou à sua terra para abraçar o paizinho e as manas e, claro, para limpar a caderneta militar.

Veio com pressa, mal nos vimos. Mas ainda me lembrava dele na escola, ao ex-cunhado de Jorge, hoje o senhor embaixador com nome de rua na terra, o doutor por extenso Ulisses  C...

Foi um puto mimado, pelo menos  na escola. O pai, o senhor Anselmo, já era uma pessoa importante e rica. (Ou rica e importante, como queira o leitor.) O Ulisses gostava de se armar em vítima quando as coisas não lhe corriam de feição, nomeadamente no recreio, nas jogatanas de futebol ou nas partidas do pião.

Sou mais velho que vocês, já não vos apanhei na escola acrescentou o Jorge.

Foi um sortudo, o Ulisses!...

Se ele estivesse aqui responder-te-ia logo: “Sortudo, eu?!... A minha mãezinha ia morrendo de parto. A dona Natércia é que nos salvou. A mim e a ela, à força de braço!"

A dona Natércia?!... exclamei eu. A parteira que  nos aparou a todos. Era tão ou mais popular que o nosso João Semana… Mas eu não sabia dessa história do parto que podia ter corrido mal.

Há,  sim. E a nossa terra não teria agora  atalhou o Jorge uma figura tão grada como o senhor embaixador Ulisses C...

A mãe do Ulisses adorava contar essa história, aos netos e às visitas lá de casa, de como a velha parteira a salvara a ela e ao seu menino…

− O "menino de sua mãe", estou a ver!

− A minha ex e as suas irmãs não escondiam a ciumeira que tinham dele  , confidenciou-me o Jorge, uns bons anos mais velho do que eu. − Nascera prematuro, mas safou-se. Naquele tempo foi, de facto,  um sortudo... (Morriam 125 crianças com menos de um ano de idade por cada mil nascimentos.)

Naquele tempo, não havia cuidados neonatais, com exceção da Maternidade Afredo da Costa, inaugurada em 1932, na capital.   Estamos a falar dos finais da guerra, doze anos depois, em 1944, quando o Ulisses veio ao mundo, em casa.

− Nem as senhoras iam ter os filhos aos hospitais, que horror!− lembrei eu.

Em amena  cavaqueira com o Jorge, o nosso historiador local, o homem que mais sabia sobre as misérias e  as grandezas das famílias tradicionais da terra, vim a descobrir que o Ulisses nunca mais voltara à "parvónia" depois da amnistia de 1974…

Nem no funeral do pai… Ou do paizinho, como ele o tratava. O que sempre achei uma ingratidão comentava o Jorge.  No funeral da mãe, da querida mãezinha, entendia-se, ele estava fora do país, ilegal, exilado. A mãe morreu cedo com cancro da mama, incurável na época.

Claro, o pai Anselmo visitava-o no estrangeiro, com alguma regularidade,  até ao dia em que as relações entre eles se azedaram quando o Ulisses e as manas  descobriram que o pai tinha arranjado uma amante 20 e tal anos mais nova.

Mas… exilado, dizes tu?!

É uma figura de estilo. Como sabes, ele fugiu à tropa.

 À tropa ou da tropa?... Não é a mesma coisa: legal e tecnicamente, ele não foi um "fujão", como alguns que a gente conheceu. Foi refratário, com muitos outros… Refratário ou  desertor era bem mais grave do que faltoso na época, até porque estávamos em guerra.

Aqui o Jorge gracejou comigo,  dizendo:

− Eras ainda um puto, não te deves lembrar...  Mas em 1961, e eu já em Angola,  não tenho ideia de Portugal ter declarado guerra contra nenhum Estado estrangeiro soberano:

− A não ser talvez a Índia que, no final desse ano,  vai ocupar e usurpar descaradamente...

− ... a nossa joia da coroa!...− apressou-se o Jorger  a completar a minha frase.

E depois elucidou-me:

− Afinal, lembras-te!... E, como os nossos homens capitularam, e não se bateram até a última gota de sangue contra as tropas do Pandita Nehru, Salazar tratou os nossos prisioneiros de guerra, no seu regresso à Pátria, com o maior dos desprezos… 

− Só soube muito mais tarde... Também nunca vi semelhante humilhação aos militares,  na nossa história. 

− Sou dessa geração, tenho dois ou três colegas do tempo de escola e da tropa, naturais do concelho,  que ficaram prisioneiros de guerra na Índia e que, quando regressaram, coitados, estiveram semanas e semanas sem sair à rua com vergonha... Vergonha de serem gozados ou escarnecidos  pelos vizinhos. 

 Mas tu também te lixaste, Jorge, foste dos primeiros da terra a marchar para Angola, "rapidamente e em força"... 

− De pistola-metralhadora em punho, capacete de aço e farda amarela.  E as praças equipadas com mauser, estás a imaginar?!… A desfilar na marginal de Luanda. Mas tive uma sorte danada, uma hepatite recambiou-me cedo para o hospital de Belém.

Foi então a ocasião para conhecer melhor a história do Ulisses, o Ulysses com y grego, como ele gostava de escrever, e do seu pai, o senhor Anselmo.  

Das suas origens do Anselmo, sabia-se pouco. Sabia-se que tinha vindo de fora. E, tal como outros que vieram de fora, tinha sido bem recebido na terra e tivera sucesso, em termos  pessoais, familiares e profissionais.  Aqui casou aqui, teve filhos e aqui criou e desenvolveu os seus negócios.

− Os "saloios" sempre trataram bem os "galegos", os que vinham de fora, do Norte...  − observou, com sarcasmo, o Jorge. 

Muito antes de Portugal ter aderido à EFTA, a Associação Europeia de Comércio Livre, já o Anselmo tinha um negócio de import-export (como gostava o filho de dizer aos basbaques dos putos da escola)…  

− Digamos, tinha alguns contactos, embora ainda tímidos, mas pioneiros, com países da Europa do Norte. Com uma ou outra representação de empresas escandinavas (e depois italianas), na área das alfaias e máquinas agrícolas.

Começou no tempo da Segunda Guerra Mundial, com uma pequena oficina metalúrgica, aventurando-se depois na reparação automóvel. Passou, entretanto, a ter uma bomba de gasolina da Shell. Uma novidade, já que ainda havia poucos carros. Havia poucos automóveis particulares, um ou outro carro de aluguer, uma meia dúzia de camionetas de transporte de mercadorias... Ainda sou do tempo em que só havia uma camioneta de passageiros por dia com destino à capital... E a estrada ainda era macadmizada.

Os negócios do senhor Anselmo foram crescendo no pós-guerra, em condições de mercado mais favoráveis, e sobretudo ao longo da década de 1950, com a tímida abertura da economia, ao ponto de se ter tornado, à escala regional, um médio industrial. Era dos poucos que tinha carro e, mais importante, era o único que já tinha ido a Roma ver o Papa e visitado os lugares santos em Jerusalém. Viajava com alguma frequência para a Europa do Norte, com destaque para a Holanda (hoje Países Baixos) e também para a Itália (onde tinha a representação de uma conhecida marca de motocultivadores e tratores).

Quando se soube, por um dos diários da capital, o "Novidades" (jornal oficioso da  hierarquia da Igreja Católica portuguesa), que tinha sido recebido pelo Papa Pio XII, integrando um grupo de peregrinos católicos,  portugueses e brasileiros, o seu estatuto social na terra subiu mais uns dois ou três pontos. Passou a ter lugar na primeira fila na igreja, ao lado dos notáveis locais que tinham contribuído  com um "conto de réis ou mais" para o restauro da igreja matriz. (Eram "poucos mas bons", e sobretudo "almas piedosas", esses beneméritos, como dizia publicamente o pároco, a quem os dos "reviralho" chamavam, entre dentes, o "sabujo dos ricos".)

Nunca foi, ao que se saiba, um católico praticante. O Anselmo ia à missa ao domingo, mais para "ver e ser visto" e, naturalmente,  acompanhar a esposa. O Jorge achava que ele era do "reviralho"...

− Mas finório como ele sempre foi,  nunca falou de política comigo. Nem nunca o ouviu falar de política com os filhos.

Também é verdade, sempre declinou o insistente convite para integrar a União Nacional (o partido do Estado Novo), alegando  a sua origem social modesta: era filho de operário, vinha de um sítio mal afamado (a Marinha Grande), tinha a 4.ª classe, embora fosse um autodidata e poliglota. Ironicamente, insinuava que não podia competir com os doutores, médicos, advogados e magistrados da comarca.

Recusou igualmente um linsonjeiro convite para integrar o executivo camarário, mas aí tinha um argumento de peso, os seus múltiplos afazeres como empresário de quem já dependiam algumas dezenas de famílias da terra. Em boa verdade, a razão não era essa: ele movimentava mais dinheiro que a câmara toda, dependente das "esmolas" do senhor governador civil do distrito para poder construir um simples lavadouro público ou abrir um estradão ...

Com uma grande superioridade moral, e elevação de espírito, deixou bem claro, à tacanha elite local, que não precisava da política para subir na vida... Acabou,  no entanto, por se aproximar de alguns círculos da elite financeira e política do Estado Novo, quando encabeçou um grupo representativo das "forças vivas" locais que se "mexeram para trazer para a terra a primeira agência bancária".

Todavia, sabia-se pouco da sua história de vida passada. Sabia-se, isso sim, que tinha vindo "de fora"... Insinuavam alguns dos seus poucos inimigos que tinha vindo "foragido" da Marinha Grande logo a seguir à revolta de 1934.

− O 18 de Janeiro de 1934 ?... − indaguei eu.

 Sim, mas ele não gostava de falar desses tempos, pelo menos quando eu frequentava a  casa da família, depois de casado. O pai era operário vidreiro, desde miúdo, e terá morrido misteriosamente uns meses depois da revolta de 1934. Havia versões contraditórias, para uns o pai tinha morrido, de infeção, depois de baleado, num perna, pela tropa de Leiria; para outros, teria morrido, muito simplesmente de silicose, o que sempre me pareceu mais verosímil ... 

A mãe, a avó paterna do Ulisses, era operária na Tomé Feteira. Era natural de  Vieira de Leiria. Terá morrido ainda mais cedo, de tuberculose. Lá em casa do Anselmo, só havia uma velha foto da família, dos anos de 1910, com os pais e os irmãos, pequenos. Também nunca houve grande curiosidade em saber mais da vida desses obscuros (e, de algum modo, incómodos) antepassados.

Das poucas vezes que o Anselmo, a mulher e os filhos foram a Veira de Leiria, em passeio, aproveitando para visitar uns primos, deu para perceber melhor a sua origem: esses parentes viviam, como os pescadores, em "palheiros", casas de madeira, sob estacaria, construídas na duna e que na época balnear alugavam aos forasteiros.

− Apesar da distància, naquela época, o meu ex-sogro gostava de ir à Praia da Vieira, só para assistir à  arte xávega e passar lá  uns dias na terra da sua mãe... Chegou a alugar um "palheiro" nos anos cinquenta... Mas a muher e os filhos detestavam... preferindo São Pedro de Moel, que já era chique nesse tempo, atraindo as famílias burguesas da região...

Estamos, entretanto, a falar de uma época em que  o industrial era menos considerado socialmente do que o comerciante. O proprietário agrícola, de média ou grande dimensão, esse, sim, tinha mais estatuto. E o Estado Novo estava bem representado por algumas famílias tradicionais agrárias. Umas eram de tradição republicana, e outras não escondiam a seu amor à bandeira azul e branca da monarquia.

Com o 28 de Maio de 1926, e sobretudo com o salazarismo, clarificaram-se  as águas… Os agrários da região, absentistas nalguns casos, deram-se bem com o Deus, Pátria e Família, monárquicos e republicanos reconciliaram-se, sentindo-se representados, mal ou bem, na União Nacional... 

A "praça da jorna" continuou a funcionar ao longo dos anos, fornecendo mão de obra dócil e abundante, os "cavadores de enxada", às principais casas agrícolas. Até que veio, como uma enxurrada, o êxodo rural, a emigração para as cidades e para França, além da guerra colonial... e depois o 25 de Abril.

Mas, também, ao fim de três ou quatro gerações, o património fundiário (e nomeadamemnte as quintas) destas famílias já andava pelas ruas da amargura: nuns casos, hipotecado aos bancos, noutros expropriado por interesse público ou  vendido ao desbarato para a especulação imobiliária, ou, noutros casos ainda, mal entregue a caseiros ou a feitores... Poucos se modernizaram, inviabilizando as explorações agrícolas. Os netos ou os bisnetos já tiveram que mendigar um emprego "à mesa do Estado".

Foi, além disso, o Anselmo, um homem de visão, como então se dizia… Pôs os quatro filhos a estudar. As raparigas tinham o quinto ano, o rapaz foi mais longe, chegando a embaixador na então CEE . Comunidade Económica Europeia. Uma das raparigas foi professora primária, outra assistentes social. A mais velha, a ex-mulher do Jorge, ficou a trabalhar com o pai, no escritório das empresas.

O Anselmo nunca foi íntimo das famílias mais tradicionais da terra, mas acabou por ser um dos homens mais endinheirados da região. Investiu no bom tempo também no imobiliário, fez um bairro de casas "à Raul Lino", com o nome da esposa. E acabou por vender as moradias a seguir ao 25 de Abril, antes que fossem ocupadas. 

Não se adaptou bem aos novos tempos, mas também não se colou aos partidos que, entretanto, nasceram com a liberdade. Os negócios tiveram altos e baixos, com a descolonização, depois a crise económica e financeira dos anos 70 e 80. A integração na CEE já chegou tarde para ele. A fábrica teve de ser intervencionada. Antes da declaração de falência, e muito  por desgosto com a vida, e com o rumo que tomou o país, para além de problemas de saúde (era diabético), morreu nos princípios dos anos 90, com oitenta e tal anos. Tinha nascido com a República.

 O Ulisses ainda foi meu colega de escola… Mas não propriamente meu amigo, Separavam-nos três anos e os seus "tiques de classe", quero eu dizer os seus trejeitos de menino rico… Ele já na 4.ª classe e sempre na primeira fila.  Na altura juntavam-se os putos das várias classes. Ele tirou o 2.º ano (hoje o 6.º ano) no colégio da terra, que eu nunca pude frequentar. Depois o pai mandou-o para Lisboa para seguir o liceu. Ficou na casa de uma tia materna, cujo marido trabalhava nas finanças. Tinha explicações particulares de francês e de inglês. E fez a sua primeira viagem ao estrangeiro por ocasião da  Expo 58, em Bruxelas. Ganhou o gosto pelas viagens e pelas línguas estrangeiras. 

− É capaz vir desse tempo o sonho de enveredar pela carreira diplomática − interrompeu o Jorge. Estou a vê-lo, no regresso da Expo 58... Imagina, um luxo que não era para todos, ir de Lisboa a Bruxelas, de comboio… Um puto com 14 anos!... Eu já namorava com a irmã mais velha… Ofereceu-me um cartaz a cores com o ícone da Expo 58, o Atomium, se bem recordo.

Uns anos depois, estava a frequentar, na faculdade de letras de Lisboa, o curso de germânicas... Ainda apanhou a crise académica de 1962 mas o pai tratou de o ir buscar rapidamente, antes que as coisas dessem para o torto (como deram). Entretanto foi à inspeção com a malta do ano dele, a de 1944. O pai estava convencido que ele nunca seria apurado para o serviço militar. Tinha um problema no ouvido esquerdo devido a uma otite, mal curada, que apanhara em criança, na época balnear. Vinha munido de uma valente cunha e de um relatório médico, passado por um conceituado otorrino, professor da faculdade de medicina de  Coimbra. O pai fez questão de entregar pessoalmente o documento ao presidente da junta médica militar.

O melhor que o Ulisses conseguiu foi uma ida ao Hospital Militar Principal, na Estrela, para uma consulta da especialidade. A gravidade do diagnóstico não foi confirmada. E o Ulisses viu-se apurado para todo o serviço militar, para grande desgosto dos pais.

Podia ter acabado o curso de germânicas, antes de ser chamado para a tropa,  mas, logo em 1964 numa viagem à Alemanha, numa "summer school" organizada pelo Instituto Goethe, ele arranjou maneira de ficar por lá, tendo-se fixado na Holanda, onde o pai tinha contactos. 

−  Tudo combinado com o pai, que mexeu todos os pauzinhos para o pôr a bom recato.   adiantou o Jorge.   Não foi uma decisão fácil para o meu ex-sogro: o Ulisses era o único rapaz da família, e era esperado que fosse o seu sucessor à frente dos negócios. 

− Mas a vida trocou-lhe as voltas − acrescentei eu.

De facto, aqui contava muito a opinião da mãe que, segundo uma cena melodramática que terá feito lá em casa, "preferia ir ver o seu filho a Amsterdão, terra de herejes, do que ir ao cemitério depositar-lhe uma coroa de flores". A mãe era uma senhora conservadora,   beata e amiga dos pobres. E não autorizava que se falasse de política  à hora das refeições.  De resto, não era hábito falar-se política naquela época, muito menos nas casas das pessoas decentes.

A senhora tinha ficado muito impressionada com a morte do Licas, o filho mais velho da empregada doméstica (na altura, dizia-se "criada"), que morrera em Angola, em 1962. Fora o primeiro soldado da terra a morrer na "guerra do ultramar". E o caixão nunca veio, "nem cheio de pedras". A família era pobre de mais para pagar a urna de chumbo e o transporte marítimo...

A verdade seja dita: o Ulisses não desperdiçou as novas oportunidades que lhe surgiram pela frente... Formou-se em direito europeu na Holanda, trabalhou no Parlamento Europeu e, talvez ainda mais importante, casou com uma holandesa, filha de um importante dirigente político, de um partido na área da social-democracia, filiado na Internacional Socialista. Abriram-se-lhe depois as portas da diplomacia europeia.

− Foi o Euromilhões do Ulisses, diríamos hoje! − comentou o seu ex-cunhado. − Hoje tem uma reforma dourada, um vasto capital de relações sociais, é livre de fazer os seus negócios na área do imobiliário, vive entre  o Algarve  e a Holanda, a terra dos seus filhos e netos... Não nos falamos, desde que eu me divorciei da sua irmã. Nem nunca mais apareceu por cá.

− De qualquer modo, ele  é mais holandês do que português!  − arrematei eu. − Que é como quem diz, tem o melhor de dois mundos.  Mas temos de reconhecer que teve um bom pai.

© Luís Graça (2023)




Título das páginas centrais (4 e 5) do "Diário de Lisboa", de 18 de janeiro de 1934.  São escassas as referências ao que se passou na Marinha Grande e noutros pontos do país, de Almada a Silves, de Lisboa a  Coimbra... E nos dias seguintes a censura foi implacável: não há mais referências a estes acontecimentos, de resto ainda hoje mal conhecidos dos portugueses... Sobre o 18 de janeiro de 1934, ler por exemplo o artigo de Fátima Patriarca, publicado na "Análise Social", em 1993.

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Nota do editor:

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24056: Facebok...ando (72): Nós, os antigos combatentes, porque nos tornaram proscritos? (Angelino Santos Silva, ex-fur mil 'cmd', 26ª CCmds, Bula, Teixeira Pinto e Bissau, 1970/72)


Capa e contracapa de um dos romances históricos do nosso camarada Angelino Santos Silva, "Geração de 70: época das chuvas" (edição de autor, 2014). (*)


I. O Angelino  Santos Silva (foto atual à esquerda), publicou na sua página do Facebook (em 16 de janeiro último) e replicou, na página do Facebook da Tabanca Grande Luís Graça, a reflexão, que a seguir reproduzimos (com a devida vénia), sobre a nossa geração de combatentes da guerra colonial, nascida nos anos 40. 

O Angelino aceitou o nosso convite para ingressar na Tabanca Grande, a comunidade virtual de amigos e camaradas da Guiné que se reune neste blogue. Iremos apresentá-lo brevemente à nossa tertúlia.

Para já aqui um breve apontamento biográfico do autor:

(i) nasceu em novembro de 1948, na aldeia de Recarei, concelho de Paredes;

(ii)  concluído o ensino básico, fez os seus estudos na cidade do Porto;

(iii) aos 17 anos entra na Efacec como estagiário escolar, situação que se manteve até ingressar no Serviço Militar Obrigatório;

(iv) como trabalhador-estudante faz o SPI para entrada no Instituto Industrial do Porto;

(v) em 1969 vai para o CIOE, em Lamego, para frequentar o Curso de Comandos, com vista à Guerra Colonial Portuguesa em África;

(vi) integrado na 26ª Companhia de Comandos, em março de 1970 embarca no navio Niassa para a Guiné, local onde esteve 22 meses (passando por  Bula, Teixeira Pinto e Bissau);

(vii)  em março de 71, sofre em combate um "acidente" provocado por mina anticarro que o projecta a cerca de 30 metros; porque ia dependurado no lado contrário ao rebentamento da mina, quis a sorte que ficasse apenas com algumas queimaduras nas costas, provocado pela água da bateria do camião cisterna, que ficou completamente destruído; sorte, que não tiveram os camaradas dentro do camião; esteve hospitalizado dois meses;
 
(viii) regressado à Efacec em 1972, inicia a carreira profissional como Técnico de Projetos de Engenharia de Equipamentos de Produção e Distribuição de Energia Elétrica, profissão que manteve até 1982;

(ix) em 1982 despede-se da Efacec e inicia uma nova carreira profissional como vendedor de Produtos Químicos de Manutenção Industrial; promovido a Chefe de Vendas ao fim de meio ano, foi promovido a Diretor Técnico/Comercial da zona Norte, ao fim de três anos, cargo que ocupou durante 20 anos na Quimivenda;

(x) o gosto pela escrita em prosa e poesia é de sempre, mas apenas em 2010 começou a publicar os seus textos; Pedaços de Vida foi o seu primeiro romance.(**)

(xi) sabemos que frequenta as Tabancas de Matosinhos e dos Melros;

(xii) contactos: Angelino Santos Silva > telem 912 998 600 | email: angelinosantossilva@gmail.com

 Fonte: Adapt. de Wook (com a devida vénia)


II. Facebok...ando  (***) > Nós, os combatentes: Porque nos tornaram  proscritos?

por Angelino Santos Silva

1. Para responder à questão, temos de recorrer à História, não só à que nos diz directamente respeito, mas também à dos nossos pais, ou seja, à história do país do séc. XX.

A vida é um somatório de passos por caminhos sinuosos com encruzilhadas à mistura. Por vezes temos dúvidas quanto ao caminho a tomar, porém, temos consciência de que temos de prosseguir por um. Noutros, alguém os escolhe por nós sem apelo nem agravo e poucas saídas nos restam para o evitar e sempre com custos elevados.

Nós, os Combatentes pertencemos a este último grupo: perante a maior encruzilhada que a vida nos reservou, alguém nos traçou o caminho e sem qualquer recurso, tivemos que o percorrer.

Vamos aos factos históricos.

A nossa Geração nasceu no período compreendido entre o início da II Guerra Mundial e poucos anos após o fim da mesma, ou seja, entre 1941 e 1953. Olhamos à distância de 70 ou 80 anos e sentimos um amor incomensurável pelos nossos pais, que nasceram no período compreendido entre o fim da Monarquia e os princípios da I República.
 
Enquanto miúdos, víamos o enorme sacrifício que faziam para nos subtrair a um estilo de vida de grande dificuldade que lhes era imposto pelo Estado Novo. Nessa época quase metade da população portuguesa era analfabeta, principalmente nas aldeias, sendo que – analfabeto  – significava apenas não saber ler e escrever com desenvoltura, porque da vida e do trabalho os nossos pais eram mestres: aos dez anos iniciavam uma profissão, aos vinte sabiam quase tudo sobre a mesma e aos trinta eram mestres na arte que escolheram para ofício. 

Para um país retrógrado como era o nosso, tal capacidade e empenho significava uma enorme riqueza, não aproveitada por um regime que mantinha pobre o seu povo e fazia da emigração, ou antes, dos dinheiros enviados pelos emigrantes, o seu pote de ouro. Porém, beneficiaram os países que acolheram a emigração, aproveitando a mão-de-obra barata depois do descalabro da II Guerra Mundial.

Por cá, o esforço e empenho dos nossos pais, também não foram aproveitados por quem tinha o dever de melhorar o nível social do país e acompanhar o desenvolvimento social da Europa do pós-guerra mundial. Aproveitamos nós - seus filhos - cada um por si e todos criamos condições para melhorar a vida de nossas famílias. 

E assim aconteceu: perante cada encruzilhada que nos foi surgindo após o Serviço Militar, não tivemos grandes dúvidas em escolher um caminho, sempre com os olhos postos no exemplo de nossos pais: os que continuaram a estudar após a 4ª classe (o ensino básico era obrigatório até aos 14 anos para quem reprovava) fizeram-no com o intuito de arranjar o melhor emprego possível e os que foram trabalhar legalmente após os 14 anos de idade, fizeram-no com o mesmo propósito. 

Todos melhoramos substancialmente as nossas vidas, criamos as bases para erradicar o analfabetismo e os nossos filhos têm hoje um razoável nível de vida. Parte significativa é licenciada e alguns já exibem um doutoramento. 

Porém, os seus filhos – nossos netos – estão nos antípodas das gerações de seus avós e pouco sabem sobre a nossa missão enquanto Combatentes na Guerra Colonial em África. Tudo é diferente nesta Nova Geração. Aparentemente, os miúdos do Séc. XXI – aos quais designo por Geração de Cristal – têm tudo ao seu alcance, mas na realidade, perante uma encruzilhada que lhes surja pela frente, já não têm tanta certeza, como a tiveram os seus pais e avós. 

É claro, que não é por culpa própria, mas sim pelas decisões políticas erradas tomadas pelas elites governantes, que a pretexto de salvar a “economia” criam dificuldades inultrapassáveis para a maioria das pessoas. 

Esta nova forma de “olhar o mundo“ e geri-lo sob um conceito estritamente económico, - o mesmo que dizer, proteger interesses dos mais ricos - está a transformar a vida dos jovens em uma “caixa de Pandora”. No ensino, parte dos cursos académicos estão desajustados às necessidades do tempo actual e de pouco servem aos licenciados, que se veem obrigados a aceitar um emprego para o qual não estudaram, precários e mal remunerados

Além da frustração que tal opção acarreta, os jovens tornam-se permeáveis aos problemas de foro psíquico e o recurso aos antidepressivos é cada vez mais frequente. Portugal é um dos países da Europa com maior prevalência do número de doenças psiquiátricas. 

No primeiro semestre de 2022 os portugueses compraram perto de 10,9 milhões de embalagens de ansiolíticos, sedativos e antidepressivos, o que representou um encargo para o Serviço Nacional de Saúde (SNS) de cerca de 32,5 milhões de euros. Em média, venderam-se mais de 59.732 embalagens de ansiolíticos, sedativos, hipnóticos e antidepressivos por dia, totalizando 10.871.282 nos primeiros seis meses do ano, o que representa um aumento de 4,1% face ao mesmo período de 2021 (10.439.500), segundo dados do Infarmed.

A pandemia veio acelerar este consumo, sendo que nos jovens se verificou o maior aumento.

Ao prosseguir nesta forma de “olhar o mundo”, ou seja, sob orientação puramente económica, chegaremos a 2030 com uma juventude sem perspectivas quanto ao futuro, com um curriculum académico puramente administrativo que pouco serve, sem emprego ou com emprego mal pago, insuficiente para fazer face à vida. 

Chegados aqui, teremos a Geração de Cristal transformada na “Geração dos Nem Nem” ou seja, Nem estudam, Nem trabalham, porque mais vale viver de subsídios. Se isto não for corrigido, a geração dos nossos netos será confrontada com um recuo civilizacional de um século e chegará ao tempo da Monarquia.

2. É muito importante que falemos aos nossos netos. É muito importante que lhes expliquemos, porque motivo existe, desde o 25 de Abril, um esforço da parte dos governantes em ignorar os Combatentes e se possível, fazer deles, cidadãos Proscritos ou seja, banidos da História de Portugal.
 
3. Este esforço tem sido feito por todos os governos com maior ou menor disfarce e todos comungam do mesmo objectivo: passar em branco as páginas da História da Guerra Colonial e nela, a dos Combatentes.

4. Cabe-nos, não permitir que tal objectivo tenha sucesso. Como fazer isso? Escrever. Escrever muito sobre nós, Combatentes.

5. Porque o tempo não pára e porque estamos confrontados com a verdade inquestionável da idade, deparamos com uma nova e derradeira encruzilhada: escrever sobre nós, utilizar as redes sociais falando sobre nós, porque no ensino escolar ninguém o faz.
 
6. Os nossos filhos também não, porque ao longo da vida familiar pouco falamos sobre a nossa presença em África, absorvidos que estávamos – tal como os nossos pais – a trabalhar para lhes dar um nível social melhor do que o nosso.
 
7. Entre nós falamos muito, facto que por vezes causava espanto aos nossos familiares, quando nos acompanhavam aos Encontros Anuais e encontros de ocasião.

8. Mas devemos falar mais, porque o tempo urge. Seremos hoje cerca de 250 mil, número com algum impacto, se unidos, coisa complicada num país que se uniu para derrubar o Estado Novo, mas logo se dividiu nas artimanhas dos políticos.
 
9. Porque, parte significativa de nós anda entre os 70 e 80 anos – os mais velhos já ultrapassaram este limite – daqui a 10 anos seremos talvez, menos de 50 mil, porque segundo as estatísticas é na idade dos 80 em diante que morre mais gente. Não fugiremos a esta realidade, até porque em cima de nós vieram algumas mazelas que nos causaram desgaste físico e psíquico.

10. De abril de 74 para cá, temos andado divididos entre religião, futebol e política. Tem sido este o desenho bem aproveitado pelos políticos, que sabem que quem não tem potencial para fazer lóbi, fica irremediavelmente para trás. E assim tem acontecido e acontece com os Antigos Combatentes, disfarçado com esmolas que “desarmam” alguns.
 
11. Se nos achamos injustiçados e entendemos fazer alguma coisa, está na hora de encontrar o caminho, porque o tempo urge e já não teremos outra encruzilhada pela frente. Esta será a última das nossas vidas.

• Quanto à pergunta, PORQUE NOS TORNARAM PROSCRITOS?

A resposta é fácil: depois de manipuladas e arregimentadas as gerações que fizeram a Guerra Colonial e, por consequência, a divisão do grupo de Capitães/Combatentes, que se tinham unido para derrubar o Estado Novo, nenhum dos governantes conheceu a guerra colonial portuguesa em África.

Um abraço a todos Combatentes.

Angelino dos Santos Silva
Combatente na Guerra Colonial Portuguesa na Guiné-Bissau

[Revisão e fixação de texto / Negritos, para efeitos de edição deste poste no nosso blogue: LG]
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de
14 de dezembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15486: Notas de leitura (788): “Geração de 70”, por A. Santos Silva, Euedito, 2014 (Mário Beja Santos)

sábado, 28 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23305: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (93): Projecto “Querido Pai”, que tem como objectivo investigar e dar a conhecer o modo como os militares mobilizados em África mantiveram uma relação com os filhos que ficaram na Metrópole (Joana Ponte e Ana Vargas)

“Querido Pai”

Um projecto para investigar e dar a conhecer o modo como os militares mobilizados em África mantiveram uma relação com os filhos que ficaram na Metrópole

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1. Mensagem de Ana Vargas enviada ao nosso Blogue em 5 de Maio de 2022:

Boa tarde
Sou filha, neta e sobrinha de militares. Perdi o meu tio mais novo na Guiné, para onde pouco tempo depois partiu o meu pai, para o que seria já a sua terceira comissão.
Os meus irmãos e eu recebemos postais e aerogramas desse período, dado que, pela primeira vez, não o acompanhámos. Receando que uma parte importante da nossa memória desaparecesse com o decurso do tempo, fui sensibilizando amigos e familiares para que fossem preservando os aerogramas e outros testemunhos da guerra colonial.

Em conjunto com a Investigadora Joana Pontes, autora do livro Sinais de Vida, estou neste momento envolvida num projeto de recolha de depoimentos e documentos que testemunhem a relação pais/filhos vivida à distância, quando os pais partiam para a guerra. Leio com frequência este blogue e nele encontrei já referências a esta correspondência, contada por uma neta.
Gostava de saber se seria possível facultarem o contacto de Albano Mendes de Matos para o podermos recolher o depoimento dele, bem como da filha e, ainda, saber da possibilidade de divulgarmos este projeto no vosso blogue.

Antecipadamente grata
Ana Margarida Serpa Soares Menino Vargas

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2. Depois de algumas trocas de mensagens com a Dra. Ana Margarida Serpa Soares Menino Vargas, aqui fica a publicação do texto com a apresentação do seu projecto a levar a cabo com a investigadora Joana Pontes:

Somos Joana Pontes (joanatomaspontes@gmail.com) e Ana Vargas (amssmvargas@gmail.com), autoras de um projecto que nomeámos “Querido Pai” que tem como objectivo investigar e dar a conhecer o modo como os militares mobilizados em África mantiveram uma relação com os filhos que ficaram na Metrópole. Para o efeito, pretendemos recolher depoimentos, aerogramas, desenhos, fotografias ou pequenos vídeos (filmes) que testemunhem essa relação.

O propósito final será a realização de um documentário, a publicação de um livro e a salvaguarda das memórias que nos têm sido confiadas pelos militares e famílias que, muito generosamente, têm falado connosco.
O projeto foi apresentado ao ICA - Instituto do Cinema e do Audiovisual, no âmbito do programa de apoio ao audiovisual e multimédia. Entre mais de 90 candidaturas apenas 7 foram elegíveis, incluindo esta.

Joana Pontes - investigadora e realizadora, autora de Sinais de Vida, correspondência da guerra, 1961-1974, Edição Tinta da China (tese de doutoramento)
e
Ana Vargas - jurista, filha, sobrinha e neta de militares do Quadro Permanente.

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Nota do editor

Último poste da série de 2 DE DEZEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22773: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (92): O nosso camarada Serra Vaz quer fazer um estudo de toda a simbologia das Unidades Militares mobilizadas para as Campanhas de África (Mário Beja Santos / Serra Vaz)

quarta-feira, 27 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23206: 18º aniversário do nosso blogue (7): "O senhor vai responder-me com toda a verdade: era o meu filho que vinha naquela urna de chumbo?" (Belmiro Tavares, ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66)



Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66)



Capa do livro "A nossa luta: dois anos de muita luta: Guiné 1964/66, CCAÇ 675)", de Belmiro Tavares e José Eduardo Reis de Oliveira, edição de autor, il.. Lisboa, 2017, 606 pp. [Um exemplar autografado foi oferecido ao nosso editor, com a seguinte dedicatória; "Ao caro amigo Luís Graça, com enorme amizade e carinho. Lisboa, 1/2/2021, Belmiro Tavares".]


I. Aqui vai, em republicação (*), c0m adaptações, uma das muitas (e boas) histórias, daquelas que nos tocam fundo,  contadas pelo Belmiro Tavares , ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66.

O Belmiro Tavares foi  Prémio Governador da Guiné (1966), é membro nº 390, da nossa Tabanca Grande, desde 1/11/2009; é empresário hoteleiro em Lisboa: é autor da série "Histórias e Memórias de Belmiro Tavares", de que se publicaram 47 postes ao longo de mais de 4 anos, entre novembro de 2009 e maio de 2014. 

É também autor (em parceria com o nosso saudoso JERO, acrónimo de  José Eduardo Reis de Oliveira, 1940-20221) do livro "A nossa luta: dois anos de muita luta: Guiné 1964/66, CCAÇ 675" ( edição de autor, il.. Lisboa, 2017, 606 pp.) (cuja capa se reproduz acima).

Este poste é  uma tripla homenagem ao Belmiro Tavares, que hoje faz anos; ao JERO, que nos deixou há um ano atrás, vítima de Covid-19  (em 27 de janeiro de 2021, iria fazer 82 anos se fosse vivo, em 4 do corrente); e ao nosso blogue, que fez 18 anos em 23 do corrente, o blogue que nos tem permitido, aos amigos e camaradas da Guiné,  partilhar memórias e afectos.(**)

Honremos também a memória do infortunado fur mil Álvaro Manuel Vilhena Mesquita,  natural de Vila Nova de Famalicão,  morto por uma mina A/C em 28 de dezembro de 1964, no subsetor de Binta.



Vila Nova de Famalicao > Cemitério local  > 8 de julho de 2010 > O Belmiro Tavares e o JERO junto campa do Álvaro Manuel Vilhena Mesquita.


Cortesia do blogue JERO > 12 de julho de 2010 > M 276 - SENTIMENTOS / PARTE UM

(...) O Álvaro morreu na Guerra do Ultramar. Morto em combate em 28 de Dezembro de 1964 na “quadrícula” da sua Companhia na região de Caurbá, a poucos Kms. do aquartelamento de Binta, Norte da Guiné. Nessa altura eu estava por perto pois pertencíamos à mesma “família”. A Companhia de Caçadores 675, então no mato desde Julho de 1964. Ele regressou à sua terra natal para ser sepultado nos primeiros dias de Dezembro de 1965.

Passaram desde essa data fatídica cerca de quarentas e cinco anos. Na minha memória , e ao longo de toda uma vida , o Álvaro continuou – continua – a ser o meu “irmão” dilecto dos tempos da guerra.

O seu irmão Francisco, que conheci fugazmente muitos anos depois da morte do Álvaro, num encontro casual no Hotel D. Carlos, em Lisboa, faleceu agora, com 69 anos, em 1 de Julho corrente no Hospital de Cochin, em París.

Estive presente no seu funeral , na terra da sua naturalidade, em 8 de Julho de 2010. Estive no seu funeral por diversas ordens de razões. Em preito à sua memória, em homenagem à família Vilhena Mesquita e em nome da minha CCaç. 675, onde militou o seu e meu “irmão” Álvaro (...) 


"O senhor vai responder-me com toda a verdade:
 era o meu filho que vinha naquela urna de chumbo?" 

por Belmiro Tavares 


1. Como alferes miliciano estive dois anos na Guiné, algures a norte do Cacheu, mais precisamente em Binta, integrado na CCaç 675 uma companhia extraordinária (foi lá e, mais de 40 anos depois, continua a sê-lo cá) que deu “água pela barba a muita gente”. 

O nosso comandante era o Capitão Tomé Pinto, hoje Tenente General, um militar fora de série, autenticamente um homem doutra galáxia. Podemos descrevê-lo parafraseando o poeta: “Homem dum só parecer, dum só rosto e duma só fé... d’antes quebrar que torcer”...! É o Homem que sabe ser militar (de que maneira o sabe!) e o Militar que não deixa de ser Homem, qualidades que juntas se acham raramente.

Entre os graduados da companhia havia um furriel miliciano, natural de V. N. Famalicão, de seu nome Álvaro Manuel Vilhena Mesquita o qual é o epicentro dos factos que aqui vão ser contados.

Em fins de Dezembro de 1964 o Mesquita estava de “baixa”; aguardava transporte para o HMP 241 em Bissau.

No dia 28 desse mês, dois grupos de combate (pelotão com morteiro, Breda e LGF – lança granadas foguete, vulgo bazuca) iam fazer uma patrulha para além do limite oeste da nossa zona na margem direita do rio de Buborim, um afluente do Cacheu. O Mesquita pertencia ao 1.º Gr Comb mas estava inoperacional.

A companhia à qual aquela zona pertencia e tinha a incumbência de a patrulhar, estava sediada em Bigene; para ali chegar, teria de passar pela tristemente célebre base de Sambuiá (um mito de inexpugnabilidade que a CCaç 675 se encarregou de fazer desaparecer) que era a base inimiga mais forte do norte da Guiné.

O nosso Capitão decidiu estabelecer no “terreno do vizinho” aquilo a que se chama “uma zona tampão”. Pretendia-se ter o inimigo não só fora da nossa zona mas também bem afastado. Aliás a CCaç 675, dentro da mesma estratégia foi a única companhia que, entre Junho de 1964 e Abril de 1966, “bateu” a Península de Sambuiá como se de “passeio” se tratasse... ou quase.

Nota: aconselhamos a leitura do Cap 26 do livro Golpes de Mão’s, de José Eduardo Reia Oliveira, Fur Mil Enf da CCaç 675. [Foto ca capa, à esquerda]

Voltemos aos carris! Os dois Gr Comb seguiram de viatura durante cerca de 12 km. Quanto se apearam e partiram para o cumprimento da missão, a segurança das viaturas passou a ser feita por alguns (poucos) soldados europeus, alguns soldados africanos e uns tantos milícias.

Entre os militares europeus havia doentes e feridos ligeiros que não necessitavam de cama para se restabelecer. Entre os doentes “leves” estava o fur Vilhena Mesquita, pois a sua doença – não sei qual - não o impedia de andar de camuflado e armado em cima duma viatura. Ele próprio se apresentou voluntariamente para tomar parte na segurança das viaturas. Um alferes comandava esta escolta muito heterogénea, como se depreende.

Quando os dois Gr Comb regressaram às viaturas, iniciou-se a viagem de volta em direcção a Binta. Alguns quilómetros à frente ouviu-se um rebentamento enorme: uma mina anti-carro explodiu estrondosamente debaixo da roda direita traseira, duma das viaturas. Por cima dessa roda seguia o malogrado Mesquita que naquele momento abandonou o mundo dos vivos.

Nota: ver página 181 e seguintes do livro atrás citado.

A primeira viatura era uma GMC e a mina rebentou na roda de trás da 2.ª viatura, um Unimog, o que nos levou a crer que se trataria duma mina telecomandada, o que seria numa novidade na actuação do inimigo.

Era o nosso segundo morto e pela 2.ª vez custeámos a urna própria (de chumbo) para que a família do nosso companheiro pudesse fazer-lhe um funeral condigno e “com o corpo presente”. Fizemos o mesmo também ao nosso 3.º morto, o malogrado soldado Nascimento.

Mais uma vez nestas situações a CCaç 675 foi ímpar; talvez tenham sido poucas as unidades - ou talvez nenhuma – a proceder deste modo... à maneira da CCaç 675.

Neste caso não temos certamente um ”suicida altruísta” mas na verdade o Mesquita – que a terra lhe seja leve – partiu voluntariamente para um “encontro marcado com a morte”.


2. O nosso capitão informou dolorosa e comovidamente os pais do Mesquita sobre o trágico acontecimento.

Eles também receberam, à posteriori, o tal “telegrama seco, brutal, frio, impessoal” a informar que a urna com os restos mortais de seu filho se encontrava no D.G.A. (Depósito Geral de Adidos) na Calçada da Ajuda, [em Lisboa]. 

[Na foto, à esquerda, o Mesquita, de camuflado, na Guiné, Binta, 1964].

Os familiares enlutados deslocam-se a Lisboa com a Agência Funerária; entram na Unidade Militar, o pai contacta o graduado de serviço, um ordenança é mandado indicar-lhe o local onde se encontra a urna. Havia várias; O soldado procura pelo nome e informa com toda clareza, sem pestanejar:

- É esta! Pode levar!

Mais “seco, brutal, frio, impessoal” nem o telegrama. Só faltou mandar embrulhar!

Devemos, apesar de tudo, ter em conta que se tratava dum soldado talvez pouco letrado, talvez mesmo analfabeto, sem formação nem preparação para tal e que não tinha vivido os horrores da guerra. Não terá sido ele de certeza o único culpado nem até talvez o maior culpado.

Na tropa, naquela época, todos tínhamos de ser “pau para toda a colher” – frequentemente seríamos pau tosco,... demasiado tosco até... Naquela época, na tropa de cá, quantos soldados haveria preparados para informar cabalmente e com humanidade os familiares dos nossos mortos em combate?!

Por cá, naquela época, quem se apercebia e sentia por dentro os pesadelos da guerra? – Os pais, os irmãos, os amigos íntimos dos combatentes e poucos mais! A guerra travava-se muito longe... lá noutro continente.

3. Os pais do Mesquita terão sofrido – sofreram mesmo – a bom sofrer aquela morte absurda (como absurdas são todas as mortes da guerra) e antecipada de seu filho. Eles não eram diferentes dos outros pais! Também eles eram de carne e osso e tinham dentro do peito um coração que sangrou... sangrou muito! Disso temos a certeza!

Naquela altura chegou a Famalicão um combatente vindo da Guiné (creio que seria um cabo) que tinha acabado a comissão. Como muitos combatentes, especialmente os da “guerra de Bissau” ou do “ar condicionado” sabiam tudo à cerca de tudo sem saberem nada de nada e para se impor aos concidadãos inventavam estórias por vezes sem sentido e sem ponta de verdade.

O Pai do Mesquita, profundamente fragilizado pela dor que o atormentava, teve o azar de encontrar (não sabemos como nem por quê) um autêntico charlatão que lhe fez uma narração rocambolesca, malévola e mentirosa dos factos. Inventou e deturpou! Chamando o boi pelo nome: “mentiroso sem escrúpulos”.

 [Na foto, à esquerda, o Fur Mil Mesquita, ao lado do Cap Tomé Pinto].

Aproveitou a depressão emocional daquele Pai com o coração desfeito para dar asas à sua imaginação. O cabo em questão terá eventualmente contactado com o Mesquita em Maio ou Junho de 1964 em Bissau.

Este hipotético encontro – se realmente aconteceu – ocorreu antes de irmos para o mato, ou seja seis meses antes da fatíidica morte do Mesquita. Assim sendo o tal cabo não podia saber o quer que fosse à cerca do que, em 28 de Dezembro de 1964, aconteceu nos arredores de Binta.

Este pobre pai acabrunhado e desesperado pela morte dum filho querido, de “mal com a vida” até pela maneira como foi tratado no DGA e por outros motivos que nos ultrapassam... Por tudo isto e talvez muito mais, o Pai do Mesquita, apesar de homem de letras, tornou-se terreno fértil para acreditar na mentira e tê-la-á publicado no Jornal de Famalicão de que era Director e creio que proprietário.

Até onde um coração desesperado, esfrangalhado nos pode conduzir!...

A verdade nua e crua dos factos terá no entanto ficado por contar aos amigos do nosso companheiro Mesquita.

Mais uma vez... que a terra lhe seja leve.


4. Em 1967, creio que em Abril, o companheiro e camarada JERO e o autor destas linhas deslocámo-nos a Valença para assistir ao casamento dum dos seus furrieis.

Por mero acaso (ou propositadamente?) pernoitámos em Famalicão. De manhã pedimos a um taxista que nos conduzisse ao cemitério. Não encontrámos a sepultura do Mesquita. 

[Foto à esquerda,  o nome do Mesquita, inscrito no mural dos mortos do Ultramar, Forte do Bom Sucesso, Belém , Lisboa].

Pedimos apoio ao taxista que logo nos informou que o Mesquita estava sepultado no cemitério novo e para lá nos levou. Lá estava o sepulcro do Mesquita, bem diferente – para melhor, muito melhor – das demais sepulturas. Lá encontrámos, cravada no mármore a lápide de bronze que os seus companheiros da CCaç 675 lá fizeram chegar, perpetuando a camaradagem e aquela amizade pura, simples, desinteressada que sempre nos uniu e, incorruptível, continua a enlaçar-nos.

Por motivos que não são aqui chamados, tínhamos dúvidas se íamos ou não visitar os pais do Mesquita. Por um lado entendíamos que devíamos visitá-los; por outro sentíamos que não tínhamos o direito de reabrir ou mesmo avivar aquela ferida no peito e na alma daqueles pais que sentiram o filho partir tão novo, tão na flor da idade.

Não estamos (raramente estamos) preparados psicologicamente para ver os nossos pais partir (e isso é o normal); mas um filho partir antes dos pais é a inversão total das leis da vida! Daí a dor ser mais intensa, mais marcante, mais profunda, mais feroz!

A atitude do taxista foi decisiva e nós fomos visitar os pais do nosso companheiro. A mãe apareceu logo. Toda de preto vestida, rosto carregado de pesar, olhos plenos de tristeza, baços, penetrantes. Já tinham decorrido mais de dois anos sobre a morte do filho!...

Conversámos durante breves instantes. A senhora aproximou-se de mim, olhou-me bem por dentro, poisou nos meus ombros as suas mãos brancas de cera, pesadas como chumbo e disparou:

- O senhor vai responder-me com toda a verdade sobre o que vou perguntar-lhe?

Respondi afirmativamente e ela perguntou de chofre, ansiando pela resposta:

- Era o meu filho que vinha naquela urna?

Olhos nos olhos respondi sem vacilar (por quê vacilar se ia transmitir a mais pura das verdades?!) tentando levar um pouco de paz e tranquilidade àquela mãe desesperada, destroçada pela morte do seu filho e a dúvida que lhe mordia na alma.

- Pode ter a certeza absoluta que era o corpo do seu filho que vinha naquela urna; não podia haver troca!

- Mas morreram muitos juntamente com o meu filho! (versão do tal informador).

- Mesmo que assim fosse não podia haver troca; mas felizmente e infelizmente só morreu o seu filho; foi o nosso segundo morto naquele ano; houve também três feridos graves, é certo, e alguns feridos ligeiros mas só um morto.

- Fico-lhe eternamente grata porque me tirou um tremendo peso de cima! Todos os dias tenho ido rezar junto daquela sepultura mas essa dúvida terrível atordoava-me, dilacerava-me a alma; agora sei que vou rezar junto do meu filho pois fiquei com a certeza que ele está ali.

Houve mais umas palavras de circunstância e... apareceu o pai do Mesquita com ar de pessoa mais velha, acabrunhado, triste, cheio de dor de alma, parecia ter ouvido a nossa conversa. A dor pela morte do filho e a doença não perdoavam; cremos que sofria da doença de Parkinson, em estado bastante adiantado. Pouco falou ou nada para além dos cumprimentos. Pelo menos nada recordo... já lá vão 42 anos!

A nossa missão estava cumprida e o nosso dever também. Despedimo-nos e retomámos a viagem para Valença onde chegámos a meio do almoço mas satisfeitos connosco.

5. Desde Abril de 1974 trabalho no Hotel Dom Carlos Park em Lisboa – passe a publicidade. Um dia, em meados da década de 80, ouvi um recepcionista dizer que ia chegar ao hotel o Eng. Vilhena Mesquita. O nome era muito familiar; era impossível não ser parente próximo do nosso Mesquita.

Perguntei pela sua naturalidade mas só sabiam que era do Norte e tinha escritório em Paris. Pedi que me avisassem, logo que chegasse.

Quando o vi, tremi, fiquei atónito, estupefacto... parecia que estava ali à minha frente o Álvaro Mesquita; era apenas um irmão mais novo mas muito, muito parecido.

Apresentei-me, perguntei pelos pais - um deles, creio que a mãe, ainda era vivo – sabia que os tínhamos visitado. Os pais iam frequentemente visitá-lo em Espanha (Galiza) onde ele se deslocava vindo de Paris.

Depois duma longa conversa sobre a CCaç 675 (como não podia deixar de ser) contou-me as peripécias da sua curta passagem pela tropa.

A meio da recruta fez um requerimento a pedir para não ser mobilizado porque o seu irmão falecera na Guiné! Requerimento indeferido! O Mesquita deu o “salto”; “aterrou” em Paris; ali fundou uma empresa de construção civil, já de boa dimensão àquela data.

Após a revolução dita dos cravos vinha a Portugal com certa assiduidade. Casou com uma sobrinha do ex-ministro Bettencourt Rodrigues, o tal que indeferiu o requerimento.

A vida dá cada volta!...

Lisboa, terça feira, 24 de novembro de 2009

Belmiro Tavares 

[Fixação / revisão de texto / negritos e itálicos / título: L.G.]
___________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 25 de novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5336: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (1): Quatro Histórias com Mural ao Fundo

(**) ÚLtimo poste da série > 26 de abril de  2022  > Guiné 61/74 - P23201: 18º aniversário do nosso blogue (6): O enviado especial do "Diário de Lisboa", Avelino Rodrigues, em 1972, no CTIG: uma "crónica imperfeita" em quatro artigos - Parte II: 29 de agosto de 1972: no mato com Spínola, "a simpatia como arma de guerra"

sábado, 19 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23094: A galeria dos meus heróis (44): O "mô camba" Jorge Levi, natural de Luanda, levado por engano pela "garota de Ipanema" a desertar do exército colonial... Um filho de pai ausente, que foi quase tudo na vida, não se achava mau ator de todo mas que, afinal, não sabia como sair de cena... (Luís Graça)

 

Angola > Luanda > Ilha de Luanda > Esplanada do famoso Restaurante Coconuts > 19 de Setembro de 2004 > Em cima da praia, praticamente privativa. Com seguranças, em todos os lados. O apartheid do dinheiro, como em qualquer outra parte do mundo não inclusivo.  Um ou outro russo, com dentes de ouro... Dos cubanos, não se dá conta...Um almoço de peixe grelhado com vinho ficava então, no mínimo, entre 40 a 50 dólares (o equivalente ao salário mínimo na função pública, em Angola nessa época!)... Estive em Luanda, pela primeira vez,  em setembro de 2003.  Ainda no tempo das "vacas gordas": 1 dólar equivalia a c. 85 kwanzas. O cacete (tipo de pão) custava cerca de 20 kwanzas (julho de 2004). Hoje, em 19 de março de 2022,  1 dólar equivale a 455,99 kwanzas (5,4 vezes mais). E 1 euro vale 504,07 kwanzas. Nesse tempo ainda eram raras as caixas de multibanco. Comprávamos  kwanzas na rua às  quínguilas que puxavam um maço de notas sebentas do farto peito que servia de cofre. A grande maioria da população activa de Luanda (três quartos) estava então na economia informal ou paralela.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2004). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




O autor, em Contuboel, c. junho/julho de
 1969.  Foto: Luís Graça

A galeria dos meus heróis >  O "mô camba" Jorge Levi, natural de Luanda, levado por engano pela "garota de Ipanema" a desertar do exército colonial

por Luís Graça


– O que é que se leva desta vida ?!... Boa pergunta, a tua, mas, se queres que te diga, não sei, não sei mesmo responder-te... Assim, de chofre, tenho dificuldade em responder-te… Enfim, para te dar uma resposta, digamos, que não seja politicamente correta...

– Prazeres terrenos, coisas boas da vida que não haja no céu… Não é a tal pergunta de um milhão de dólares!...


– Sim, mas... o que me apetecia logo responder-te é aquilo que me parece mais óbvio: não levas nada, "mô camba" [meu amigo], fica cá tudo!… Mas tudo mesmo!... Casas, chácaras, automóveis, iates, contas bancárias, amantes, mulheres, filhos, netos, amigos, camaradas, memórias, vaidades, tainadas... 

E deu uma das suas saudáveis gargalhadas, que me vieram confirmar que aquele era mesmo o "mô camba" Jorge Levi

 Eh!, mano, lembrei-me dos iates, mas ficas a saber que não tenho (nem quero ter) nenhum.

– Talvez a pergunta seja cretina… E, depois, a verdade é que...ainda não saiste de cena, como tu gostas de lembrar!

Aí o Jorge,  um "caluanda" de alma e coração,  deu um murro na mesa, querendo talvez, com esse gesto (que não era de irritação),  exprimir um misto de espanto e de alívio, e quase fazendo saltar as chávena do café e os respetivos pires mais os balões da aguardente DOC Lourinhã:

– Porra, ainda não morri, nem sequer arrumei as botas!...É verdade, estou vivo e ainda sou capaz de vir contigo à Ericeira comer uma caldeirada... Já não vinha cá, ao "Puto", há muitos anos!... Sou mais velho do que tu, mas ainda não me acho com idade para encerrar para balanço, fazer o deve e o haver da puta da vida...


Infelizmente ele tivera  de voltar à terra dos seus avós não pelas melhores razões, mas sim por motivos de saúde... 


– Bem, ainda sou cidadão português... e europeu. Às vezes esqueço-me deste privilégio, que em Angola ou no Brasil vale ouro... Eu costumo dizer, tenho o melhor de dois mundos...Nasci em África, o berço da humanidade...  

Procurei tranquilizar o meu amigo, o "caluanda", com quem convivera no Seminário Maior, durante dois anos, antes de irmos para a tropa e depois, para a guerra na Guiné. Voltara a encontrá-lo em Luanda, há uns largos anos atrás, em 2004. E, mais recentemente, em Lisboa, onde ele, de passagem,  me procurou no sítio onde eu trabalhava.


Em 2015, ele viera expressamente de Luanda, onde também tem casa, na Maianga,   para ouvir em Lisboa a opinião de um reputado urologista, que o tranquilizou, relativamente à gravidade do seu carcinoma da próstata,  e o encaminhou para uma conhecida clínica em São Paulo. Embora reservado, o prognóstico não era assim tão mau quanto se temia no início. 

– Não vou morrer desta merda, mas tenho que submeter-me a  um tratamento rigoroso em São Paulo  – disse-me ele,  descontraído, nesse fim de semana, já não me lembro qual, do mês de setembro de 2015, no fim do verão, em que o convidei-o para almoçar comigo. 

Escolhi uma coisa que eu sabia que ele gostava, uma caldeirada de peixe em terras do Oeste estremenho, na Ericeira, que tinha a vantagem de ficar às portas de Lisboa, e que ele conhecia do tempo da tropa, quando passara por Mafra, no Curso de Oficiais Milicianos. No dia seguinte, ou no princípio da semana, partiria para São Paulo (onde, de resto, já residia a maior parte do tempo e tinha o grosso dos seus negócios).

Quis, também, de certo modo, retribuir a hospitalidade com que ele me recebera na ilha de Luanda, nesse ano já distante de 2004. Eu estava alojado numa casa de hóspedes, ternurenta, de estilo colonial, dos anos 20 do séc. XX, a Soleme, dirigida por umas simpatiquíssimas e adoráveis senhoras, manas de um conhecido general, próximo do Edu. Mas foi na rua, na Maianga, no sítio mais inverosímil do mundo, que eu me cruzei com o Levi, e foi ele que, espantosamente, me reconheceu.

– Bolas, estás na mesma! – interpelou-me ele, descaradamente.

– Só com... quarenta anos a mais!

– Dá cá um "candando", um abraço do tamanho da distância que nos separa no tempo e no espaço! 

Agora na Ericeira,  com o grande oceano Atlântico à nossa frente, retomámos a nossa  longa conversa na ilha de Luanda.  
 
– O que é que se leva desta vida ?... Perguntas tu, e bem, e eu volto a responder-te: Nada. 

– Se ainda fosses cristão... – acrescentei eu.

– Sim, se eu ainda fosse cristão, remeteria isso para o juízo final. Aí, sim, todos temos de prestar contas, crentes ou não crentes. E eu já tenho o bilhete comprado para a última 
viagem... Só não fiz a mala... nem pus de lado os mantimentos para a viagem, como faziam os antigos egípcios.

Não tinha perdido  o sentido de humor que eu sempre lhe conhecera, apimentado com o gosto da linguagem vernácula. E eu retorqui-lhe:

– Temos todos bilhete comprado ou reservado para o barco de Caronte... Mas acreditas nessa, do além ?


– Já não tenho idade para voltar a acreditar... Perdi a fé, na altura de ir para a tropa... Ou fizeram-ma perder.  Fui batizado, em criança,  por força do lóbi materno, com grande desgosto do meu avô e do meu pai, que eram militantemente ateus ou agnósticos, nunca soube qual era a diferença...

– Somos todos cristãos, de uma maneira ou de outra, até os ateus e os agnósticos. Todos temos uma matriz cristã... Não há como fugir ao nosso caldo de cultura judaico-cristã... Gosto de repetir que somos todos cristãos, 
 socioantropologicamente falando, uns "cristãos velhos", outros "cristãos novos"... E tu deves ser "cristão nivo", pelo apelido de família... Vá lá,  responde  à pergunta... – disse-lhe eu, em tom de mais de  galhofa do que de proviocação.

– Não  me conheces o suficiente, tivemos muitos anos afastados. E eu mudei, como todo o mundo... E mudei muito, Hoje sou como a enguia, refugio-me em subterfúgios, silogismos, desculpas mal esfarrapadas... Se calhar sou demasiado cobarde para te responder com franqueza…

E aí contemporizei eu, mais uma vez:

− Também não quero ser o teu confessor. Se invertêssemos os papéis, eu também ficaria  à rasca para te dar uma resposta brilhante, sincera e sobretudo convincente... Iria refugiar-me, como tu, nos lugares comuns... Mas hoje sou eu o entrevistador. Ou o santo inquisidor, se preferires...

E acrescentei, para lhe lisonjear o ego que eu sabia que era bem maior do que o meu:


− De qualquer modo, quero aqui deixar expresso o meu agradecimento pelo tempo de antena que me concedes... ainda por cima num mau momento da tua vida que, felizmente,  há de passar...  Sei que abriste uma exceção... no ano [, 2015,] em que fazes os setente anos e decides tirar uma sabática... Passas os teus negócios a um dos teus filhos "brasileiros", é isso ?!...


− Mais brasileiros do que angolanos ou portugueses, os meus filhos. Nenhum deles conhece Portugal, para desgosto meu... E de Angola, só Luanda e o Mussulo.... Nisso, fui um mau pai, os meus filhos pouco ou nada  sabem das minhas raízes... Tive pouco tempo para eles....

E depois de um gole da aguardente DOC Lourinhã, acrescentou: 

− Quanto aos meus negócios, no Brasil, estão agora limitados ao imobiliário, em S. Paulo, onde investi umas massas valentes na boa altura. Com a crise,  é bom ter património.  E se tens grana, compra... Quanto à minha sabática, se queres que te diga,  é apenas uma forma de ganhar tempo ao tempo, como se tal fosse possível... É uma corrida onde estou em desvantagem.

− Estamos todos em desvantagem, Jorge,  na corrida contra o tempo!...

E eu prossegui, explicando-lhe uma das razões de ser do nosso "almoço de trabalho"... A outra razão era de "saudade" e de "amizade".

− Acredita, estás aqui por uma boa causa... E alguém há de pagar o almoço... Já te expliquei, por email, a natureza do meu trabalho de investigação sobre histórias de vida de gente que andou no seminário e fez a guerra colonial...

– Pois seja, como queres. Mas não vejo onde e a quem o meu caso possa interessar.  Sou um caso atípico, deixa-me prevenir-te. De resto, continuo a ser um gajo porreiro, mesmo acabado, ou à beira do fim de prazo de validade... 

– Qual quê ?!... Somos velhos amigos, condiscípulos e só depois camaradas de armas, se bem que eu não goste da expressão. Por outro lado, nunca nos encontrámos na Guiné. Espantoso: vamo-nos encontrar em Luanda, estava eu a caminho do Hospital Josina Machel / Maria Pia, aonde eu fazer uma visita de estudo. Estava em Luanda num curso de administração hospitalar... Lembras-te  do nosso encontro ?!

Ele fez que sim com a cabeça, e eu prossegui:

– É verdade... São demasiadas cumplicidades para uma conversa íntima sobre o sentido último da vida... Passei grande parte da adolescência à volta desta estúpida questão existencialista... Anos que, afinal, não vivi!... Mas tu é que foste o sortudo, tu é que tiveste uma vida aventurosa, cheia de emoções, em pelo menos três continentes, entre o Velho e o Novo Mundo...

Depois de uma breve pausa, para molhar os lábios com a nossa aguardente DOC Lourinhã, no final da refeição, o Jorge Levi disparou:

– É muita bondade tua. Dás-me uma dica. Vou começar por aí... Nunca tinha pensado nisso, se calhar vivi uma vida por empréstimo, esta vida que eu vivi talvez não fosse minha mas dos personagens que criaram para mim… 

– Quem ? O destino ?

– Não sei quem, só sei que tudo  é teatro, afinal, citando o Machado de Assis do "Dom Casmurro"...

– Como assim ?!... É verdade, todos temos várias máscaras, desempenhamos vários papéis, podemos até ter vários heterónimos, como o pobre diabo do Fernando Pessoa que ouvia vozes e acabou por morrer a falar sozinho, entre duas bicas e um bagaço…

– Quero eu dizer: não escolhi, foram mais as vezes que eu segui a única picada que me apareceu pela frente. Noutras deixei-me levar pelas circunstâncias. A única exceção terá sido a entrada no seminário, na altura em que nos conhecemos...  

– Exceção ?... – perguntei-lhe eu. – Sempre me pareceste muito autodeterminado, mais seguro do que eu dos "caminhos do Senhor"... De resto, no Seminário Maior, eras o nosso herói, secreto, invejado: uma "vocação tardia", algo de muito bem amadurecido, e ainda por cima vinhas de um meio social favorecido... Até se dizia, ao ouvido, que o "caluanda" (a tua alcunha) era afilhado do Cerejeira... Havia gajos que te invejavam por detrás e adulavam pela frente... Muito mais importante para nós, “sotainas negras”, tinhas mundo, tinhas viajado, tinhas conhecido gajas... Nenhum de nós tinha mundo, e seguramente a maior parte eram virgens...

– Fazes-me rir!... 


– Mais tarde, muito mais tarde, voltei a encontrar-te, em Luanda, homem de negócios, até então de sucesso no plano empresarial, profissional, social e até amoroso... E ainda bem que não chegaste a padre, tinhas estragado muitas famílias... Sempre foste um sortudo com as gajas...

– Não me lixes! – intimou-me o Jorge. – São mais as vozes que as nozes. E depois não confundas sucesso com dinheiro. Ganhei muita grana com os negócios no Brasil e até em Angola, no tempo das vacas gordas... Mas também perdi, estupidamente, muito dinheiro... Calotes, casinos, festas, investimentos errados, desvalorização da moeda, subornos, luvas, prendas, "gasosa"... Sobretudo muitas luvas e muitas prendas. Sou realista, dirás tu que sou cínico:  o dinheiro compra tudo, menos a felicidade...

– Por favor, não digas isso aos pobres... E os negócios do coração ?

– Da cama, queres tu dizer... Vou-te ser franco, tenho pouco a esconder nesta altura do campeonato: tive gajas porque tinha dinheiro...

– ... E lábia!... Muita lábia, disseram-me!

– Seja, dinheiro e lábia ! – concordou o Jorge.

– Não é preciso mais – anui eu. – E alguma "tusa", vamos lá...Mas até isso agora se compra na farmácia.


– "Cumbú", dinheiro,  graveto, meu menino, sobretudo dinheiro para poder sustentá-las!... Não há "fodas" de borla, só por amor... O meu avô paterno, que eu ainda conheci bem, era um mulherengo, eu segui-lhe o rasto... Mas só gosto de brasileiras, dengosas, com cheirinho a cravo e canela...

– "Gabrielas"?!... Mas, já agora, quem era esse teu avô ?

E lá fomos mergulhar na história da família paterna... Esse avô, esse "pretoguês",  era um alentejano de Elvas, “um português das Arábias”:

– Levou o meu pai, aos quinze anos, a Badajoz, aos touros e às "putas"... Não fiques chocado: eram outros tempos... Estamos a falar do início da década de 1930. E pôs ao meu pai o nome de Amato Lusitano... Ainda estou a tentar saber porquê... mas cheira-me que tenha a ver com a sua, nossa, costela de judeus sefarditas, e depois cristãos-novos à força...

– O Amato Lusitano foi o médico português mais famoso do séc. XVI, João Rodrigues de Castelo Branco, descendente de judeus sefarditas, nascido em Castelo Branco, ao tempo de Dom Manuel I, o "Venturoso"... 

Falou-me com afeto e admiração desse avô, republicano dos quatro costados,  com quem ele ainda conviveu, em vida, em Angola, e que era "o seu ídolo de infância". Quando era "candengue", miúdo, viveu algumas temporadas com esse avô paterno em Nova Lisboa.

Esse avô era um homenzarrão, de barba pelo peito, e grande bigodaça, maçónico, anticlerical, professor primário. Deixara crescer a barba quando foi mobilizado para Angola, durante a I Grande Guerra. Participou nas "campanhas de pacificação do sul de Angola", onde foi ferido.

O Jorge sabia pouco desse período, sabia que o avô tinha estado integrado nas forças expedicionárias, sob o comando do general Pereira d’Eça (1852-1917), que combateram e derrotaram não só os alemães como o rei dos cuanhamas, o célebre Mandume (1894-1917) cuja bravura e carisma ele, de resto, passou a admirar. A sua paixão por Angola viria, ao que parece, desse tempo.

– O que te lembras mais desse teu avô ?

– Era uma rabo de saia, tinha olho azul como eu, impetuoso como eu, ainda mais garanhão do que eu, seguramente muito mais feliz e otimista do que eu... Melhor ser humano, seguramente, do que eu. Um homem com princípios e valores, que eu tentei seguir, mas que perdi ou atropelei nas trapalhadas da vida...

– ...Portanto, posso concluir que os amores são daquelas coisas que se levam desta vida...

– Amores e desamores – atalhou o Jorge. – Acho que não tive nenhum grande amor na minha vida... Nem as mães dos meus filhos... Gajas, sim, mas cansava-me delas depressa... porque eram possessivas, ciumentas, intriguistas, sacanas...

– Todavia, casaste ?!...

– Sim, como quase todo o mundo… Não há cão nem gato que não se case e descase... Em Angola, tal como no Brasil, é de bom tom ter uma "legítima" e uma amante. Ou duas, porque a uma delas  já estás a pòr os patins... Mas eu suportava mal a rotina do casamento e das relações estáveis... Ao fim de quinze dias a comeres bife, com batatas fritas e ovo a cavalo, já suspiras por umas ostras ao natural com um bom champanhe francês ou por uma feijoada mineira, acompanhada de umas caipirinhas...

– Tudo na vida é rotina! – comentei eu. – E o casamento tem muitas armadilhas, ao retardador.


– Casamento ? O casamento mata a paixão e o amor, e gera o ciúme... O casamento é só para dares uma mãe e um pai ao teu filho... 

– Ou é o preço que se paga para reproduzires os teus genes egoístas ?!...

– Ou isso !... No meu caso, de vez em quando voltava a casa, tipo caixeiro viajante, para "marcar o ponto"... pelo menos, na época em que viajava muito, França, Brasil, Angola, África do Sul... Por favor, não graves isto... E desculpa-me esta linguagem rude, franca, machista, como diriam as feministas, portuguesas ou brasileiras, mas eu sou desse tempo...

– Ficou por Angola, o teu avô Levi ?...


– Não, foi ferido, no célebre "quadrado de Mongua" em agosto de 1915 e penosamente evacuado para Luanda, onde se restabeleceu. Milagrosamente... 

– Regressou  a Lisboa, não ?!

 Sim, sim... Dedicou-se depois ao ensino e á divulgação do mutualismo e do cooperativismo. Assistiu, entretanto, com grande desgosto, à progressiva decadência da República e ao triunfo da Ditadura Militar em 1926 e à consagração do Estado Novo, já com Salazar. Por desgosto ou saudade, ou as duas coisas, retorna a Angola, instala-se em Nova Lisboa [hoje Huambo], como professor primário, na primeira metade dos anos 30. A minha avó ficará, nos primeiros anos,  na capital do Império com as raparigas. Era também professora. O meu pai era o único rapaz, o mais velho…

– Fala-me do teu pai…

– Esse seguiu também as peugadas dos meus avós. Depois do curso do magistério primário, foi para Barcelona tirar belas artes. Era o artista da família... Em 1936, com 22 anos, alistou-se nas milícias da República. Era anarquista. Louco. 


– Esteve na guerra civil espanhola ? – indaguei eu.

– Sim, e foi ferido. Ironicamente, não em combate contra os franquistas, mas sim numa "rusga" punitiva realizada pelos comunistas, imagina!... Matavam-se uns aos outros, aqueles filhos da mãe! 

– Safou-se ?

– Por um triz! – continuou o meu interlocutor. – Escapou à justiça dos "rojos" e dos "blancos"... Antes da queda de Barcelona, e logo depois dos bombardeamentos aéreos da cidade, o meu pai, que tinha passaporte português, pirou-se para França, creio que por volta de abril ou maio de 1938. Daqui para a Bélgica e depois depois Holanda e finalmente Angola. Eu nasceria seis anos mais tarde, já no final da II Guerra Mundial, em 1945.

– Passou incólume pela teias da PIDE ? 


– Não me perguntes como... A PIDE ou a sua antecessora (tinha outro nome, de que eu já não me recordo)...

– A "Pevide", até 1945, a PVDE, Polícia de Vigilância e Defesa do Estado.

– Olha, não sabia... Tinha pouca ou nenhuma implantação em Angola, essa "Pevide",  à época do meu avô... E mesmo a PIDE. Isto antes da guerra colonial... O território era vasto e os do "reviralho", sobretudo brancos e mestiços, mas também os negros "assimilados", estavam dispersos... e não incomodavam ninguém. Lisboa ficava bem longe. Alguns eram velhos desterrados por razões políticas ou de delito comum. Olha, tens o exemplo do Zé do Telhado, ainda hoje lembrado com respeito em Angola...

– A prova é que PIDE não previu nem preveniu, como lhe competia, os trágicos acontecimentos de 1961...

E eu emendei:

– Prever, devia ter previsto. Prevenido, era mais difícil, não era tarefa que llhe competisse.

– De resto, havia mais liberdade em Angola, que era uma colónia,  do que na capital do Império... – acrescentou o meu amigo.
– E éramos mais liberais nas ideias e nos costumes.

– O teu pai chega a Angola, quando ?... – pergunto eu.

– Talvez em finais de 1938 ou princípios de 1939, já não posso precisar. Em Amesterdão, apanhou um navio inglês, misto de carga e passageiros, que fazia a rota do Cabo. Os avós maternos do meu pai, que viviam em Lisboa, com alguns meios de fortuna própria (o sogro do meu avô era médico, também republicano), devem-lhe ter mandado dinheiro, "cumbú",  depois que fugiu de Barcelona. 

– Chega a Angola... e depois ?

– Desembarcou em Luanda, onde o navio inglês se reabastecia, e foi visitar os pais, em Nova Lisboa, decidindo depois percorrer Angola, de lés a lés, de Cabinda ao Cunene.

O Jorge conta-me que o pai, Amato Lusitano, para sobreviver e custear a expedição, fez de tudo um pouco: fotografia, pintura, ilustração, jornalismo. E até safaris. Era um bom aguarelista. Ganhou dinheiro a vender aguarelas e retratos a carvão aos fazendeiros ricos e até aos sobas, aos administradores, aos caçadores profissionais e aos missionários, que só conheciam a sua região. 

– Pelo caminho teve várias ocupações de ocasião, fez contactos e amizades.  E se calhar filhos... Era um sedutor nato. Conheceu a minha mãe numa fazenda de café do Uíge. E cantou-lhe a canção do bandido... Foi caçador no Leste, mestre escola em missões protestantes no Sul, capataz de fazendas de café no Norte , e boémio em Luanda. Acabou por se perder em Luanda... Álcool, sexo, droga, sabes como é... A decadência.

Enfim, escreveu para jornais em Luanda e até em Lisboa, sob pseudónimo, notas etnográficas sobre os usos e costumes dos diversos povos de Angola. Havia então uma grande curiosidade sobre a África negra, que viria a ser reforçada, em 1940, com a Exposição do Mundo Português, "de que foi comissário um grande africanista, o capitão Henrique Galvão, se não estou em erro, e que o meu avô conheceu", acrescentou o Jorge.

Depois da eclosão da II Guerra Mundial, o pai do Jorge, o Amato Lusitano, fixou-se em Luanda, na Maianga. Como tinha o curso do magistério primário, e havia falta de professores, não lhe foi difícil arranjar emprego. Mas não gostava de ensinar.

– Era uma homem de ação, e um gajo da noite, o meu pai. Não tinha pachorra para os putos da escola nem para os inspetores escolares  nem muito menos para os filhos. Por outro lado, amava os grandes espaços, as chanas e os desertos... Eu nasci, como te disse, antes do final da guerra…

– Um pai ausente ?!... – insinuei eu.

– Sim, em boa verdade, cresci sem pai, sem o afeto, o colinho, de um pai. A minha mãe sofreu muito com as escapadelas e as infidelidades dele... Ela, sim,  era uma verdadeira matriarca, uma mulher de forte personalidade, uma verdadeira angolana... Fiz o 7º ano no antigo Liceu Salvador Correia. E depois vim para Lisboa, para casa dos meus tios-avós maternos, que tinham um palacete na avenida da República, e que eram muito católicos. Viviam bem. Um deles era cónego da Sé e muito influente junto do Cardeal Cerejeira. Em contacto com a malta do colégio Pio XII e da JUC, aproximei-me da Igreja. E, de repente, no meu 2º ano de agronomia, tive uma coisa parva, daquelas que não têm explicação, uma crise mística, senti que Deus me chamava para padre e me confiava a grande missão de salvar a humanidade...

– Porra, uma vocação tardia?!... – interrompi eu.

– Sim, se quiseres... Entrei com facilidade no Seminário Maior, com a bênção do tio-avô cónego e do Cardeal Cerejeira, que me tratava por "meu filho"... Ainda me lembro de ter ido lá ao palácio dele, o palácio do patriarcado,  ali no Campo de Santana,  se não erro,  fui ao beija-mão com o meu tio-avô cónego...

– Mas foi sol de pouca dura, não ?!... Refiro-me à crise mística...

– Fiz dois anos de teologia, como sabes. Nas férias grandes, não resisti ao pecado da carne. Andei enrolado com uma gaja francesa que, ainda por cima, me pregou um valente "esquentamento". 

– Acontecia aos melhores. E depois ?...

– Já não era o primeiro, para quem, como eu, nascera e  crescera em África... Lá havia maior liberdade de costumes. Ou, se quiseres, maior promiscuidade sexual... Andava-se nos musseques com segurança, pelo menos até ao final de 1960...Enfim, perdi a vontade de salvar a humanidade, deixei de ouvir a voz de Deus a chamar-me, senti-me expulso do Paraíso como o  Adão,  ao ver o meu diretor espiritual a apontar-me o dedo e a por-me fora do seu gabinete... Fiquei especado no meio do corredor!... Ingénuo, havia lhe contado tudo, desculpando-me que  a carne era fraca, que eu era pecador, para mais impenitente, incapaz de mostrar arrependimento.... 

– Estou a imaginar a cena!... Foi aí que saíste.

– Não me expulsaram, tinha boas cunhas. Eu é que tomei a iniciativa de sair, fiz as malas e nem disse adeus àquele ninho de lacraus, de mentes perversas e falsos moralistas... Foi aí, que começou a debandada, poucos do meu tempo chegaram a padre, se é que chegou algum, com os ventos do Vaticano II a soprarem já forte. Claro, passei por uma crise de identidade, andei na noite de Lisboa e, para curar-me, acabei por ir para a tropa e alistar-me como voluntário nos paraquedistas. Mas chumbei. E foi um duro golpe na minha autoestima...

– Abreviando a história, foste para a Guiné como alferes miliciano...

– De cavalaria, imagina!

O Jorge, depois de mais um gole, da segunda rodada de aguardente DOC Lourinhã, explicou-me o que eu já adivinhava: o tio-avô cónego, a rogo da sua avô materna (em Lisboa) e da sua mãe (em Luanda), conseguiu "dar um jeitinho", através de capelão-mor das Forças Armadas.

– Afinal, cunhas sempre as houve... – atalhei eu.

– Acabei por ir, em rendição individual, não já para um esquadrão de cavalaria, que era em Bula ou Bafatá, não me lembro, e ficar no Quartel Geral, na Amura, a lidar com mapas e papéis... Um tédio, como deves imaginar, para um gajo que sonhava com os paraquedistas!... O que me valia era a 5ª Rep, o Café Bento, onde passava uma boa parte do dia... Ainda te lembras, do Bento, junto à Amura ? Era o maior "mentidero" da Guiné...

E continuou a sua narrativa:

– Fui de férias em julho de 1970, e aproveitei para dar um salto a Luanda, para matar saudades da minha cidade, da minha mãe, restante família e amigos, incluindo alguns dos antigos condiscípulos do liceu, que ainda restavam, poucos, por lá, e que eu não via há vários anos, desde que fora para Lisboa estudar... Uns estavam na tropa, outros na guerra, de um lado ou do outro... Um ou outro, mestiço, iria  chegar mesmo a general nas FAPLA na segunda guerra da independência.

Bissau, comparada com Luanda, nessa época, era uma vilória. Luanda crescera com a guerra e sobretudo com o notável desenvolvimento económico dos anos 60, coincidindo com a guerra (que não chegava lá). Era das cidades mais prósperas e animadas de toda a África...


– Devias ter conhecido Luanda nessa altura!...– fez-me ele inveja.

Foi então que o Jorge Levi travou conhecimento com uma brasileira do Rio de Janeiro (ou de São Paulo, já não posso precisar), a Zinha, que tinha vindo de Paris, com o Maio de 68 no currículo. E um curso de ciências sociais, creio que etnologia, mal tirado na Sorbonne.

Embora fosse filha de "coronel" (o pai era um grande fazendeiro no Nordeste), a Zinha lutava contra a ditadura militar, como de resto muitos dos jovens universitários, artistas e intelectuais brasileiros dessa época. Em trânsito por Luanda, a brasileira queria viajar para o sul de Angola e para a Namíbia, para fazer um trabalho de pesquisa sobre os ovambos, com uma tradição histórica de resistência à colonização europeia, alemã,inglesa e portuguesa... Mas as autoridades portuguesas e sul-africanas cortaram-lhe as asas e as veleidades…

– Mal a conheci, fiquei seduzido pelo seu "canto de sereia". Passei com ela um mês maravilhoso na ilha de Luanda e no Mussulo... Chamava-lhe a "garota de Ipanema", estava então na moda a canção do Tom Jobim e Vinícius de Morais... 

– Estou a ver o filme... Acabadas as férias...

– Quando chegou a hora de voltar a Bissau e ao tédio da minha Rep, na Amura, ela conseguiu convencer-me a acompanhá-la até Durban, onde dizia que tinha amigos, de origem indiana, ativistas políticos. Queria conhecer o pulsar da luta contra o apartheid... Tomámos um avião e acabámos por aterrar... no Rio de Janeiro, onde ela possuía um apartamento, ainda do tempo de estudante. 

Pôs a mão na testa, e exclamou:

– Porra, eu devia estar muito bêbado!... E estava. Sem me dar conta, acabava de me tornar desertor do exército colonial... Que leviandade!... Há amigos e familiares meus que nunca acreditaram nesta história do arco da velha, e continuam a pensar que eu desertei por razões políticas.

– A sério ?!... Não tiveste noção da gravidade dessa tua levi...andade ? Durban ou Rio de Janeiro, a distância era a mesma de Bissau.


– Em boa verdade, eu era um puto mimado... nesse tempo. Acredita, não tinha qualquer intenção de desertar, nem tinha razões para isso: estava em Bissau, no bem-bom, na chamada guerra do ar condicionado... Nunca tinha saído de Bissau, fora de Bissau só conhecia a estrada para Bissalanca... Nem sequer cheguei a ir a Nhacra comer ostras e camarões...

– Em conclusão,  um acidente de percurso.

– Nem mais: enganei-me no avião!

– E os teus pais e restante família ?

 Claro, a minha mãe, quando o soube, ficou fula comigo. O meu pai, esse, nem chegou a saber. Estava já separado da minha mãe e era-lhe indiferente saber o que eu fazia ou deixava de fazer. Recordo-me de ele me dizer quando fiz os meus 18 anos: "Agora és maior e vacinado, toma bem conta de ti, que eu não duro para sempre".  

E prosseguiu:

– O meu avô, paterno, esse, teria ficado radiante, se ainda fosse vivo. O meu avô materno, por seu lado, mal o conhecia, pouco íamos à fazendo dele no Uíge, por causa da distância... Deixámos de lá ir depois de 1961, com a guerra... O meu avô vinha a Luanda, uma vez por outra, mas aborrecia-se logo. Ele não era da cidade, era um homem do mato. E tinha, à boa maneira angolana, várias famílias... e eu terei ainda, seguramente, por lá, largas dezenas de tios e primos...

– E como foi depois a vida no Brasil ?

– Um ano depois, ou nem tanto, a minha fogosa companheira passou à clandestinidade... Desapareceu, pura e simplesmente... Deixou-me um bilhetinho na porta da geladeira: "Amo-te muito, mas mais a liberdade do meu Brasil. Ti cuida. Ciao”.

– Tiveste que ir à vida... ou melhor, ir à procura doutra  "garota de Ipanema"...


– Não gozes, tem pena de mim... Tive uma enorme dor de corno, porque o PCB, o Partido Comunista Brasileiro,  roubara-me a namorada... Talvez tenha sido..."a mulher da minha vida", se bem que eu nunca casaria com ela... A pobre da Zinha será encontrada, mais tarde, penso que já em 1973, morta com um tiro na nuca, nua, violada, na lixeira de uma favela... Pelo que consegui apurar, mais tarde, fora executada por um esquadrão da morte.

– Porra, lamento muito!... 

E depois de uma pausa:

– Foi então que te mudaste para São Paulo...

– Mudei de ares, e em boa verdade precisava de ganhar dinheiro... O
 patacão da guerra e a mesada da mamã (na realidade do avô do Uige, que cedo recuperou a fazenda depois dos trágicos acontecimentos do 15 de março de 1961 e montou um grupo de milícias de autodefesa)  haviam-se acabado há muito... Mudei-me para São Paulo... Lá conheci gente, portugueses, que se opunham ao regime do Estado Novo e à guerra colonial, incluindo alguns marinheiros que haviam desertado em França... Um deles abriu-me as portas do mundo dos computadores..., coisa de que eu nunca ouvira falar.

Nessa altura estava já em grande expansão, a mecanografia, as "main frames" e a informática de gestão. O Jorge Levi encontrou emprego numa conhecida multinacional, de origem francesa. Depressa aprendeu o essencial do negócio ... Acabou por abrir uma empresa de importação de equipamentos informáticos... Mais tarde, negociaria também em armamento, e em equipamentos eletrónicos para fins militares (carros de combate, transmissões, sistemas de defesa anti-aérea, etc.). Tudo de origem francesa. 

   Um salto de gigante, Jorge, temos de concordar.

Não se abriu comigo sobre esse período mais "obscuro" da sua vida, em que, segundo me deu a entender, terá chegado a vender a alma ao diabo... Pudor ? Má consciência ? Sigilo ? 

– Sabes como é, o segredo é a alma do negócio e em países como Angola os negócios de guerra são segredo de Estado... Posso só acrescentar que fiz algumas coisas que envergonhariam o meu avô paterno (para não falar do meu pai, que esse deixou cedo, em Barcelona,  a bandeira preta da revolução, o gajo era anarquista, como te disse)... Negociei com ditaduras militares latino-americanas... mas também com os cubanos, os angolanos, os franceses e por aí fora...

Muitos anos depois, vou encontrá-lo, ao Jorge Levi,  no centro de Luanda, por um bambúrrio, por um feliz acaso da sorte.  Combinámos um encontro no Coconuts, no outro  dia  
As suas feições não tinham mudado muito, apesar do tempo decorrido...

– Como o Mundo é Pequeno!...

Dessa vez, na praia à frente ao Coconuts, pus-me a mirá-lo de perfil, e reconhecê-lo por detalhes como o  nariz aquilino e o olho azul, de judeu sefardita, com provável ascendência holandesa… Os seus antepassados, cristãos-novos, terão ido para Amesterdão no séc. XVII. Alguns, poucos, ainda regressariam a Portugal, duzentos e tal anos depois, na segunda metade do séc. XIX, com o triunfo do liberalismo...


Embora discreto nesta matéria, dava então a entender que tinha bons conhecimentos no MPLA e até na "entourage do Edu" (ou do "nosso mais velho", como se dizia respeitosamente nessa época, em Luanda)... Tinha também boas ligações aos franceses e até aos russos, depois da queda do muro de Berlim. Não tinha, de resto, grandes preconceitos, de natureza político-ideológica, cultural, ética ou religiosa, quando se tratava de "negócios... sujos", mas "chorudos" como os da indústria da guerra.

– Que o meu avô me perdoe!– e levantava as mãos aos céus, esquecendo-se que o avô era ateu ou agnóstico..


Nunca mais voltara a Portugal, a não ser a seguir ao 25 de Abril, para regularizar a sua situação militar e pedir um passaporte. Beneficiou da amnistia aos refractários e desertores. Tinha tripla nacionalidade, angolana, portuguesa e brasileira... Era tratado como VIP na terra onde, de resto, nascera... 

Fez questão de lembrar que dois generais, que se notabilizaram na tal segunda guerra da independência, andaram inclusive com ele no liceu Salvador Correia... Um deles ajudou-o a recuperar a casa da mãe, na Maianga, ocupada a seguir à Independência ou ao 27 de Maio de 1976...

No dia seguinte ao nosso encontro, ele ia deslocar-se ao Huambo para prestar uma discreta homenagem ao seu saudoso avô. Apesar da guerra, e da destruição da cidade, os seus ossos ainda lá estavam, no cemitério local. Mandara compôr e ajardinar a campa que, milagrosamente, escapara à sanha dos homens da UNITA. Tinha lá um antigo empregado que zelava pela boa memória do patrão Levi...

– Ele era do MPLA, o teu avô ?

– Se sim, nunca mo disse abertamente... Era um nacionalista, isso sim.  Se quiseres, era o que se chamava um "compagnon de route", um companheiro de estrada... Mas como era branco, "tuga", e era funcionário público,com uma boa casa e uma boa horta, e tinha uma família numerosa para sustentar, incluindo criados (que ele considerava como parte integrante da família), nunca tomou posições públicas que o comprometessem aos olhos das autoridades portuguesas, e nomeadamente da PIDE, que certamente o vigiava, embora discretamente, em Nova Lisboa. Claro, apoiou Norton de Matos, Humberto Delgado...

E esclareceu:

– Nunca fui (nem já irei) à Torre do Tombo, tendo estado a viver fora de Portugal estes anos todos, mas é bem possível que o meu avô tivesse ficha na PIDE... Apesar de ser um herói da I Guerra Mundial, com uma cruz de guerra... Mas era amigo de muitos futuros nacionalistas angolanos... Ele ensinou a ler e a escrever a alguns dos melhores quadros e dirigentes, da região do planalto, não só do MPLA como da UNITA...

Em tom de desabafo, e com toda a sinceridade, o Jorge confidenciou-me:

– O meu querido avô não chegou (e ainda bem) a conhecer a independência da terra que ele tanto amava e que fez sua. Muito menos passou pela provação da devastadora guerra civil que se seguiu...  Morreu cedo, ia fazer setenta anos, em 1965. Teria morrido de desgosto, se visse os angolanos a matarem-se uns aos outros, com russos, cubanos e sul-africanos pelo meio. E se soubesse que o seu neto querido também havia contribuído, indiretamente, para isso...

– E o teu pai ? Os teus pais ? 


– Do meu pai perdi-lhe o rasto, disseram-me que se tinha radicado na África do Sul, logo a seguir ao 25 de Abril ou já depois da Independência, ninguém me soube dizer ao certo. Vivia com uma "cabrita"... As nossas relações sempre foram distantes, para não dizer difíceis. Para mim, morrera há muito... Na realidade, ele  já morreu  há uns bons anos atrás
, na África do Sul, mais ou menos com a idade que eu tenho hoje...  Nem sequer o vi, quando estive de férias da Guiné, em 1970. A minha mãe, essa, é retornada, não é assim que vocês dizem, aqui no "Puto" ?!... Ainda é viva, com 90 anos feitos, vive com uma das filhas... Uma grande senhora! Eu chamava-lhe a "rainha do Congo"... Portuguesa dos quatro costados, saudosa do império, salazarista, católica, apostólica, romana!... Mas uma santa, com lugar garantido no céu!

– E tu ?... Afinal, o que vais levar desta vida ? Ou contar ao São Pedro, à hora de lhe bateres à porta ? 
– insisti eu, com humor e ironia.

– Depois da nossa conversa, longa mas agradável, aqui à beira-mar, na Ericeira (de que já não me lembrava de nada), e depois da tua aguardente, que não fica atrás do "cognac" dos franceses, cheguei a esta conclusão definitivamente provisória ou provisoriamente definitiva....

– Fiquemos pelo definitivamente provisório...

– Como queiras... Eu é que não consigo imaginar outro guião para o filme da minha vida. Fui de tudo um pouco: santo e canalha, herói e cobarde, místico e safado, rico e pobre... Já não sou o gajo que  tu conheceste nos anos sessenta e tal, e que voltaste a encontrar em 2004 ... Depois disso, a vida tem-me corrido mal, a começar pela saúde, pelo amor e pelos negócios... Se a história fosse outra, eu hoje não saberia dizer quem sou ou quem fui... Estaria no divã do psiquiatra, com uma tremenda crise de identidade... É pena que um gajo não tenha uma segunda oportunidade...  Aí juro-te, que seria santo!

 Afinal, a vida é uma peça de teatro  e não somos nós que a escrevemos – tentei eu amenizar a conversa.

 –  E eu, sem nunca ter sido um gajo genial, acho que até nem  fui mau ator de todo...

– Não, não fostes nenhum canastrão! – arrematei eu. – A não ser porventura daquela vez em que foste levado pela "garota de Ipanema" a desertar do exército colonial... O maior problema de pessoas como tu, com uma vida 
– como eu hei de dizer ? 
,  tão cheia, tão preenchida, é como saber sair de cena, sair do palco e das luzes da ribalta, com dignidade, discrição, estilo, humanidade... e humildade.

E em jeito de conclusão, ainda meti a minha colherada:

Aliás, é o nosso problema, meu e teu: como é que a gente aprende a despedir-se, com tempo e vagar, da Terra da Alegria, para citar o meu poeta preferido, o Ruy Belo, que também era das Católicas, acho até que foi da "Opus Dei" ?!...

– Não concluis nada, porque esse vai ser privilégio meu... Não me levas a mal, mas eu faço questão de pagar  a conta, mesmo estando tu na tua casa, que também é minha... Foi a conversa mais agradável e inteligente que eu já tive nestes últimos anos. E a caldeirada estava deliciosa. Estou-te muito grato por isso!  Deste-me vida e ganas de voltar a viver.

E não esteve com meias medidas, sem me dar tempo de reagir, puxou de um maço de notas, gesto que eu já tinha  visto em 2004, no Coconuts, pagou a conta e deixou uma boa gorjeta. 

Não voltei a vê-lo, ao Jorge Levi. E o meu último mail, enviado para a caixa de correio da sua conta no Brasil,  foi devolvido há uns largos meses atrás, sinal de mau augúrio. Onde quem quer que ele agora esteja,  espero que ainda me possa ler, e se ria das "baboseiras" que aqui escrevi a seu respeito, uns anos depois... 

Mas juro que é a verdade e só a verdade, mesmo que nomes de pessoas e de lugares possam eventualmente estar trocados, para respeitar o direito,  do  "mô camba", meu amigo, condiscípulo e camarada Levi, ao esquecimento... É o último direito, que ele e eu temos, o direito ao esquecimento.

© Luís Graça (2022)

Lourinhã, agosto de 2019. 
Revisto, 3 de março de 2023.
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Nota do editor:

Último poste da série > 29 de agosto de 2021 > Guiné 61/74 - P22497: A galeria dos meus heróis (43): De companheiros de infortúnio a amigos para a vida - III (e última) Parte (Luís Graça)