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quarta-feira, 26 de junho de 2019

Guiné 61/74 - P19921: Em bom português nos entendemos (21): quem chama "fula-preto" a quem ? (Luís Graça / Cherno Baldé)



"Fula" é uma marca de óleo, registada, do Grupo Sovena. "É a marca líder no mercado português de óleos vegetais", e está "presente nos lares portugueses há cinquenta anos," (Imagem reproduzida aqui com a devida vénia...).

A marca tem inclusive um sítio próprio na Net: www.fula.pt (, além de uma página no Facebook). Na história da marca diz.se: 

"O óleo Fula foi lançado há mais de 50 anos. Nasceu como óleo de amendoim puríssimo e a origem do seu nome está em África – Fula é o nome de uma conhecida tribo da Guiné. Conheça agora as datas mais relevantes da sua história. (...)"

Cá está, mais um exemplo, da eventual utilização abusiva do nome de um povo, "etnónimo", para promover  um produto... comercial, para mais  associado à colonização, ou seja, a um contexto histórico determianado: a mancarra, o amendoim, donde se extrai  óleo alimentar, foi uma cultura comercial, irrelevante para a segurança alimentar dos "indígenas", imposta pelo colonialismo europeu, em África, no séc. XIX... Infelizmente, o caju, hoje em dia, na Guiné-Bissau, uma desastrosa opção estratégica do PAIGC timnada a seguir à independência... Hoje os guuneenses exportam caju para importar arroz...

Acrescente-se, no entanto, que o Grupo Sovena reivindica, para si, valores como a multiculturalidade: 

(...) "Porque somos verdadeiramente uma empresa Glocal somos também multiculturais. De entre as mais de 1000 pessoas que trabalham no Grupo Sovena temos pessoas de quatro continentes e de mais de 15 países. Pessoas de diversas formações pedagógicas, de diversas profecias religiosas e de diversas etnias. Assim garantimos diversidade de abordagens, de conhecimento, de experiências de vida e, acima de tudo, de opiniões – o que nos permite sermos cada vez melhores." (...) (Fonte: Sovena Group > Missão,  Visão e Valores)

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A propósito do vocábulo "fula-preto" e da sua eventual conotação racista... Comentários de Luís Graça e Chernp Baldé (*):


(i) Luís Graça

Obrigado pelas tuas preciosas notas de leitura (*). Confesso que preciso de saber mais sobre a história dos teus antepassados e, em geral, do(s) povo(s) guineense(s)... Mas é um terreno armadilhado. Como eram povos sem escrita, foram em geral os europeus a escrever sobre os seus "usos e costumes" ou as suas andanças no espaço e no tempo...

Há alguns vocabulos e expressões que me causam algum desconforto, embora tenham entrado no nosso léxico do dia a dia... São manifestamente racistas, alguns, que eram utilizados no meu tempo, e são resquícios das sociedades escravocráticas: "trabalhar é bom para o preto", "trabalhar que nem um negro", "quem poupa seu mouro poupa seu ouro"... Outros são mais subtis, menos óbvios, mas não deixam de ser pejorativos: "ovelha negra da família", "mercado negro", "preto ou pretinho da Guiné", por exemplo... Ou "fula-preto" 'versus' "fula-forro"...

De quem será a autoria da expressão "fula-preto" ? Da etnografia colonial, imagino!?

A(s) nossa(s) língua(s) é(são) cruel (cruéis)...Basta dar uma vista de olhos aos provérbiods "populares", eivados de sexismo, machismo, misoginia, racismo... Sobre a mulher, por exemplo, há inúmeros provérbios, todos eles reveladores de uma mentalidade predadora e doentia, alimentada pelo mito judaico-cristão do pecado original, e que vê nela um ser desprezível mas diabólico:

"Da cintura para baixo não há mulher feia";
"De má mulher te guarda e da boa não fies nada";
"Debaixo da manta tanto faz a preta como a branca";
"Frade e mulher - duas garras do diabo";

Mas fiquemos, por agora, nos "fulas-pretos"... Quem chama "fula-preto" a quem ? E porquê "preto" ?


(ii) Cherno Baldé:

Caro amigo Luis,

Antes de falar sobre a estrutura social dos fulas, permitam-me corrigir um lapso no texto relativamente a data provável do nascimento de Mussa Molo (1845) e não 1945.

Quanto a categoria social (Fula-Preto), desconheço o autor, provavelmente Português, desta expressão que passou a designar uma categoria social dentro do grupo etno-linguistico da população dos Fulacundas (Fulas de Gabu) que habitavam no espaço do antigo império Mandinga, dentro do qual se integraram sem nunca deixarem de praticar a sua actividade economica fundamental de criação de gado e pastorícia ao mesmo tempo que, por força das circunstâncias, se interpenetravam entre si, social e culturalmente, tecendo fortes laços de complementaridade, de interdependencia e de mestiçagem.

Durante muitos seculos (e desde meados do sec.XIII), no espaço do Kaabunké, os fulas e outros povos sob dominio mandinga, trabalhavam, na agricultura e criação de animais, e as elites mandingas dominantes, seus clãs e suas numerosas linhagens de guerreiros, reinavam e viviam a custa de razias e do comercio, inclusive o comercio de escravos.

Para a realização destes trabalhos, sobretudo nos trabalhos agricolas para os quais os fulas não somente não tinham tempo suficiente, mas também não gostavam de fazer, era preciso arranjar mão de obra que se dedicasse exclusivamente a estes trabalhos menos nobres, do seu ponto de vista. E a solução era comprar "cativos" de diferentes origens tribais nas mãos dos mandingas que, desenraizados, educados e aculturados no meio fula, integravam as familias dos seus donos, formando uma categoria a parte ou a classe dos servos ou cativos.

Foram as pessoas oriundas dessa categoria de servos, trabalhadores essencialmente agricolas e doutras castas sociais tais como os Ferreiros, Tecelaos, artesãos de diferentes oficios é que receberam, durante a época colonial, a designação de Fulas-Pretos, para não ficarem com o nome altamente ultrajante de Cativos/Servos, isto é "Jiaabhé" na lingua dos fulas.

Claro que hoje este conceito está politica e socialmente morto
e enterrado, mesmo se subsistem alguns resquicios comportamentais e tentativas de segregação acompanhado de lutas e resistências subtis com base nesses conceitos que foram banidos juntamente com o dominio mandinga durante a guerra de libertação encabeçado por Moló Eguê, que mais tarde adquiriu o titulo de Alfa a semelhança das autoridades teocráticas do vizinho estado Futa-Fula que os inspirou e amparou.

Eu também não gosto da expressão, mas tratando-se de uma herança conceptual já não há nada a fazer a não ser contextualizar sempre que se usar a expressão para melhor cpmpreender as suas origens sociais.

Com um abraço amigo, Cherno Baldé


(iii) Luís Graça:

Peguei no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (Lisboa, 2003), no Tomo IV FRE-MER, e lá estão grafados os vocábulos "fula-forro" e "fula-preto" (p. 1815)... [Convirá referir que esta é uma obra de referência, o mais completo dicionário da língua portuguesa, elaborado pelo lexicógrafo brasileiro Antônio Houaiss (1915-1999); a primeira edição foi lançada em 2001, no Rio de Janeiro, pelo Instituto Antônio Houaiss.]

Fula-preto: o termo é recente, proveniente da etnografia da Guiné-Bissau... Significado: "fula da Guiné-Bissau cujo TOM DE PELE é mais carregado que a dos chamados fulas-forros"

Fula-forro: "fula da Guiné-Bissau cujo TOM DE PELE é menos carregado do que os chamados fulas-pretos"...

"Tom de pele" em maiúsculas ou caixa alta  é da minha responsabilidade... Em meu entender, é uma definição menos feliz, redutor, simplista, e até com conotação racista, ao sobrevalorizar uma caraterística fenotípica, o "tom de pele", para distinguir duas "subpopulações ou grupos" dentro do povo fula da Guiné-Bissau...(que não é uma "raça", mas tão apenas um grupo etnolinguístico... da subespécie humana "Homo Sapiens Sapiens").

A explicação do Cherno Baldé é muito mais satisfatória, para mim, que dou muito importância às questões sociolinguísticas... Obrigado, Cherno, isto merece um poste! (**)

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Notas do editor:

(*)  Bd. poste de 25 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19919: Historiografia da presença portuguesa em África (163): O reino de Fuladu, de Alfa Moló Baldé a Mussá Moló, da bacia do rio Gâmbia ao rio Corubal (1867 - 1936) (Cherno Baldé)


(**) Último poste da série > 7 de dezembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19263: Em bom português nos entendemos (20): "Partir mantenhas"... (Virgínio Briote)