1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Julho de 2024:
Queridos amigos,
A sorte não só favorece os audazes, há os simples acasos com consequências felizes. Não me saiu a sorte grande mas a dita pôs-me em regresso seja a uma ilha que amo profundamente e acabo por conhecer outra, a mais pequena do grupo oriental, que já me enche de saudades para lá voltar. Fora do prémio que me bafejou, quis pôr o pezinho na Ribeira Grande, por ali passei várias vezes de raspão e só conheço as Cavalhadas de S. Pedro por imagem. Os meus intentos foram conseguidos, nem tudo se viu, fica sempre como razão dada para voltar. Do conjunto de museus, vi dois patrimónios singularíssimos: o Museu da Imigração Açoriana e a Casa do Arcano, os outros ficarão para a próxima. Voltei ao Salão Nobre onde vivi uma bela peripécia em janeiro de 1968, José Medeiros Ferreira e Melo Bento, dois ativistas culturais, empurraram-me para uma conferência que decorreu ali, seria obrigatório voltar, já que aquele teto tanto me impressionara. E como ir à Ribeira Grande sei se banhar na Caldeira Velha é como ir a Roma e não ver o Papa, também fui premiado na itinerância. Mas sobre a Ribeira Grande ainda há muito que contar.
Um abraço do
Mário
Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (172):
Regresso aos Açores, às ilhas do grupo oriental – 1
Mário Beja Santos
A vida tem destas coisas, vai um indivíduo visitar a Bolsa de Turismo de Lisboa, 3 de março, dia de encerramento, já se percorreram aqueles pavilhões com promessas de mundos e fundos, as excursões com descontos fabulosos, tão fabulosos que já estão esgotados desde a primeira hora do evento, entra-se no espaço português, assim que se vê o nome Açores a curiosidade é a mãe de todas as causas, bisbilhotam-se as imagens de alto a baixo, é nisto que uma senhora, solícita, pergunta se não quero uma senha de sorteio, uma viagem com dois destinos, faça favor de pôr aqui o seu primeiro e último nome e número de telemóvel, guarda-se na carteira, entra-se em casa ao fim da tarde, enquanto se prepara o jantar, toca o telemóvel, é o senhor que tem a senha 448? - que sim, então dou-lhe os parabéns, tem direito a três dias em Vila Franca do Campo e mais três em Sta. Maria, convém agora negociar as datas, comece por contactar Vila Franca do Campo. Ajustadas as datas, pede-se licença para dois dias suplementares à conta do turista, há uma forte lembrança da Ribeira Grande, no Salão Nobre da Câmara, num dia que não se pode precisar de janeiro de 1968, empurrado por Medeiros Ferreira e Melo Bento, aqui proferi conferência sabe Deus como me preparei, umas leituras lambuzadas sobre um conjunto de escritores ditos católicos, Claudel, Chesterton, Graham Greene, Sophia de Mello Breyner, o seu olhar sobre o mundo contemporâneo, parece que não correu mal, guardei na memória as belezas do teto, injustamente esqueci as belezas azulejares de Jorge Colaço, trabalho brilhante; e há também as caldeiras, sabe bem uma banhoca com água a mais de 30ºC. E há aquela envolvência de espinhaços altos, onde prepondera a Serra da Água de Pau, sabe bem voltar.
Aterra-se em Ponta Delgada, tenho à espera o meu amigo Mário Reis, salivo por uns filetes de abrótea na Lagoa, havia os filetes de peixe-porco, vi passar uma espetada de choco, a decisão estava tomada. Findo o repasto, em pouco tempo chega-se à Ribeira Grande, arrumam-se os trastes, tive a sorte de poder trazer uma daquelas malas até 23kg, deu para trazer uma fornada de livros para distribuir por bibliotecas, o primeiro lote já foi entregue em Ponta Delgada, o segundo será aqui, na Biblioteca Daniel de Sá.
Começa a exploração, a Ribeira Grande tem história, chegou aqui gente vinda da Povoação e Vila Franca do Campo no século XV, D. Manuel I elevou-a a vila em 1507, houve terríveis cataclismos, o maior ocorreu entre 1563 e 1564, e já houvera anteriormente a devastação pela peste. Há informação fundamentada sobre o povoamento da região, tudo graças a Gaspar Frutuoso (1522-1591), fica-se a saber que esta Ribeira Grande fora o celeiro da ilha graças ao caudal da Ribeira que fornecia energia aos inúmeros moinhos. Aqui houve tecelagem, atividades agroindustriais, caso da cultura do chá, do tabaco, do maracujá, da beterraba sacarina. E o património cultural e o edificado deixaram marcas de incontestável beleza.
A caminho de uma igreja com uma extraordinária fachada barroca, depara-se esta fonte que têm a marca de água das cores que distinguem a arquitetura açoriana, a alvura do branco com todos estes relevos do acinzentado das linhas, um contraste inigualável que desemboca na harmonia e nos faz sentir serenidade.
Chama-se Igreja da Misericórdia, mas leio também que é conhecida pela Igreja do Senhor dos Passos, trata-se de uma reconstrução que ocorreu no século XVIII com esta fachada tardo-barroca, é um exemplo raro de edifício religioso com frontaria simétrica, mas bipartida, à qual correspondem, no interior, duas naves desiguais. Cada vez que aqui venho, cresce o deslumbramento.
Em frente dos Paços do Concelho, num largo que tem nome de proeminente político do fim da Monarquia, Hintze Ribeiro, destacam-se esplendorosos metrosideros, dão um peculiar aconchego à praça, têm o condão de tornar todo este espaço íntimo, ali com a ribeira a correr tão perto, ornada de belos jardins, e o oceano lá ao fundo.
Poucos edifícios camarários me deslumbram mais do que este. Os Paços do Concelho datam dos séculos XVII e XVIII, há um edifício constituído por um corpo principal, arco e Torre do Relógio, fica-se de boca aberta com a resplandecente harmonia deste desequilíbrio de formas.
Há obras em curso no Salão Nobre, pede-se licença só para tirar umas fotografias, licença dada, percebe-se que já foi feita a intervenção no teto e está impecável o lambril de azulejos da autoria de Jorge Colaço, o mesmo artista que deixou o seu génio legado a diferentes estações da CP, edifícios como o mercado de Santarém, e tantíssimo mais. Os temas são vincadamente do local como estes moinhos de água que ainda hoje deixam lembrança, ver-se-á adiante que se constrói habitação por cima do caudal da ribeira. Momentos há em que não é displicente a analogia com Veneza. Atenda-se também aos azulejos que falam da cultura do chá e as multiseculares cavalhadas de S. Pedro, uma das mais singulares festas que se realizam em S. Miguel.
Sai-se dos Paços do Concelho e tem-se em frente, do outro lado da ribeira, o imponente edifício do Teatro Ribeiragrandense, abriu pela primeira vez ao público em 1922, foi reinaugurado em 2000. Ver-se-á adiante como esta monumentalidade se projeta no equilíbrio do seu interior, aqui se realizam congressos e conferências, espetáculos de música, tertúlias literárias e até formação profissional.
O dia encaminhava-se para o ocaso, era forte a tentação de captar as colorações com o mar ali tão perto escudado pela Serra da Água de Pau, e veio-se depois até ao centro da vila, dos tons prateados e dourados até ao lápis-lazúli ocorreu este embelezamento entre a terra e o céu.
Assim se compreende melhor o que Jorge Colaço fixou naqueles azulejos do Salão Nobre, a correnteza da ribeira em prédios de habitação.
Quando o novo dia nascer, irei até à Biblioteca Daniel de Sá fazer a entrega de alguns livros, pois ali à porta está uma viatura que me fez recordar as bibliotecas itinerantes da Gulbenkian que levavam a cultura aos lugares mais ínvios, é, pois, esta a missão da Biblioteca sobre Rodas, o concelho tem as suas dimensões, divide-se em 14 freguesias, sendo a freguesia mais populosa a de Rabo de Peixe. A biblioteca serve as freguesias urbanas, caso da Ribeira Seca, onde se situa a belíssima Lagoa do Fogo até às freguesias rurais, caso de Pico da Pedra, terrunho berço de Cristóvão de Aguiar, que escreveu sobre a guerra da Guiné, escrita de muito boa qualidade.
(continua)
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Nota do editor
Último post da série de > Guiné 61/74 - P25963: Os nossos seres, saberes e lazeres (646): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (171): As mulheres carregam o mundo, exposição de Lekha Singh, Museu Nacional de Etnologia (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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sábado, 28 de setembro de 2024
quarta-feira, 27 de outubro de 2021
Guiné 61/74 - P22663: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - XI (e última) Parte: Leiria, 27/1/1970: "Faz hoje exactamente três anos que cheguei da guerra e o relógio psíquico interior acusou a efeméride e quis condignamente celebrá-la".
LIsboa > Benfica > Biblioteca-Museu República e Resistência – Espaço Grandella > 27 de novembro de 2008 > O Cristóvão de Aguiar, à esquerda, na na apresentação da nova edição do seu livro Braço Tatuado (2008). Foto: cortesia de Alberto Branquinho (2008)
Capa do romance "Braço Tatuado - Retalhos da Guerra Colonial, 2ª ed Editora: Dom Quixote, Lisboa Colecção: Autores de Língua Portuguesa Ano de edição: 2008- Preço com IVA: 12,00 €
1. Continuação da (re)publicação do "Diário de Guerra", do nosso camarada açoriano e escritor Cristóvão de Aguiar (1940-2021), que faleceu na passada dia 5, aos 81 anos (*).
Organização: José Martins; revisão e fixação de texto (para efeitos de publicação no nosso blogue): Virgínio Briote (,a partir da parte VI, Carlos Vinhal).
Estes excertos, que o autor selecionou e cedeu amavalmente ao José Martins, para divulgação no blogue, fazem parte do seu livro "Relação de Bordo (1964-1988)" (Porto, Campo das Letras, 1999, 425 pp). (**). São onze ao todo os postes publicados no blogue, este será o último.
Cristóvão de Aguiar.
Foto: Wook (com a devida vénia...)
Diário de Guerra
por Cristóvão de Aguiar
Coimbra, 18 de Maio de 1968
Não merecia tanto. Há mais de um ano que regressei da guerra e não há maneira de me sentir inteiro. Ando por aí, caindo aos bocados, vomitando pelas ruas, agarrado às grades de ferro de certos muros, cheio de pânico no futuro, que o presente, estou-o desperdiçando, por isso me agarro doentiamente ao passado, que bem sei que nunca foi um paraíso e a prova visível sou eu próprio.
Não merecia tanto. Há mais de um ano que regressei da guerra e não há maneira de me sentir inteiro. Ando por aí, caindo aos bocados, vomitando pelas ruas, agarrado às grades de ferro de certos muros, cheio de pânico no futuro, que o presente, estou-o desperdiçando, por isso me agarro doentiamente ao passado, que bem sei que nunca foi um paraíso e a prova visível sou eu próprio.
As dores de cabeça são por vezes terríveis e prolongam-se por mais de um dia. Dizem-me os médicos que tenho de ajudar-me, caso contrário a vida deixa de me ter sentido. Já deixou. Pelo menos em certas ocasiões, que se estão multiplicando e tornando cada vez mais frequentes.
Tenho feito exames e passado com classificações muito razoáveis, até fiz mais do que eu próprio esperava, talvez por pressentir que ninguém acreditava nas minhas possibilidades. Faltam-me apenas quatro cadeiras, três das quais de envergadura, para concluir o plano de estudos do meu curso. Por este andar ainda me formo em menos de um ano. Bem entendido que pago alto preço por cada disciplina que arrecado. Sempre que faço um exame, fico uns dias acrescentados de cama, desfalecido, pele e osso, o cérebro vazio, tentando reconstruir-me para enfrentar outro [...].
Tomar, 17 de Dezembro de 1968
Vim esperar meu irmão Artur. Chegou hoje de Moçambique. Quando me abraçou, disse-me à queima-roupa que eu parecia um esqueleto ambulante. Respondi-lhe que era do estudo intenso a que me tinha submetido, já que me estava preparando para concluir o curso dentro de pouco tempo. Menti-lhe. Nunca o meu estudo teve uma intensidade por aí além. E nunca a teve, não porque não desejasse, mas porque nunca tive tempo. O que me sobra, depois das preocupações que tenho comigo, pouco ou nada representa.
Tomar, 17 de Dezembro de 1968
Vim esperar meu irmão Artur. Chegou hoje de Moçambique. Quando me abraçou, disse-me à queima-roupa que eu parecia um esqueleto ambulante. Respondi-lhe que era do estudo intenso a que me tinha submetido, já que me estava preparando para concluir o curso dentro de pouco tempo. Menti-lhe. Nunca o meu estudo teve uma intensidade por aí além. E nunca a teve, não porque não desejasse, mas porque nunca tive tempo. O que me sobra, depois das preocupações que tenho comigo, pouco ou nada representa.
De oficial de dia ao Regimento de Infantaria 15 estava o capitão da minha Companhia da Guiné, o que não veio connosco por ainda lhe faltar algum tempo para terminar a comissão de serviço. Enquanto meu irmão foi tratar da sua desmobilização, fui para o gabinete do oficial de dia, onde também eu já estivera algumas vezes de serviço, conversar um pouco com o velho capitão. Parecia que estávamos os dois na tropa. Quando o cabo de transmissões lhe veio trazer uma mensagem confidencial vinda do QG, leu e depois passou-ma, para que a lesse também. Tal qual como na Guiné.
Valeu meu irmão, já desmobilizado, ter vindo buscar-me, caso contrário ainda me metia de novo na pele de alferes. Magreza quase igual à que trazia quando desembarquei, tenho-a também agora. De forma que só me faltava a farda. Meu irmão vem tão ansioso por embarcar para a América que me disse que vai já começar quanto antes a tratar dos papéis.
Gerês, 21 de Julho de 1969
Vim para as termas em cata de alívio. Perguntei ao Louzã Henriques se fazia bem em vir. Disse-me que sim, que mal não me faria. Vai sempre ao meu jeito e não sei se isso me faz bem. Estou aqui há mais de uma semana. Saiu o Doutor Quintela e vim eu para o seu lugar. Ficou combinado em Coimbra. Ele costuma dizer que vem limpar a isca. Não me queixo do fígado, mas a função que exerce está alterada. Deve ser dos nervos.
Gerês, 21 de Julho de 1969
Vim para as termas em cata de alívio. Perguntei ao Louzã Henriques se fazia bem em vir. Disse-me que sim, que mal não me faria. Vai sempre ao meu jeito e não sei se isso me faz bem. Estou aqui há mais de uma semana. Saiu o Doutor Quintela e vim eu para o seu lugar. Ficou combinado em Coimbra. Ele costuma dizer que vem limpar a isca. Não me queixo do fígado, mas a função que exerce está alterada. Deve ser dos nervos.
Estou todo alterado. Enquanto aqui esteve o Doutor Paulo Quintela, enviei-lhe todos os comunicados da crise académica produzidos durante a sua ausência. Sem remetente, que nunca se sabe. Rebentou em 17 de Abril, dia em que se inaugurou o edifício das Matemáticas. Houve greve geral aos exames, que foi um êxito, o que abalou o regime primaveril de Marcelo.
Cumpro à risca a dieta prescrita. Bebo as águas com fé, como a comida sem sal, tomo banho de agulheta. Ao princípio tomava apenas um. Dois dias mais tarde, queixei-me ao médico de que não dormia. Receitou-me mais um banho de agulheta, à tarde. Um de manhã e outro ao fim da tarde. De tal maneira me desceu a tensão arterial, que ando aos tombos e nem sequer consigo ler.
O resto do tempo, que é quase todo, ouço as asneiras dos africanistas em férias. Vieram tratar da figadeira e encontram-se aqui na Pensão da Ponte. E entro em ebulição, porque não posso ficar calado. Suspiram por Salazar e ainda têm esperança num milagre que o reponha no poder. Quem há meses lhe sucedeu na Presidência do Conselho é ainda demasiado liberal para tal gente habituada a lidar com pretos, como se fossem animais de estimação. Bem lhes conheço a crónica.
Mas hoje houve tréguas. O homem poisou na Lua. Vi tudo pela televisão com o coração nas mãos. E à noite fui passear para a ver com outros olhos boiando no mar do céu .
Leiria, 27 de Janeiro de 1970
Fui hoje a mais um consultório médico. Já tenho percorrido vários. O costume. Sou um doente crónico. Tenho bem a quem sair, isto é, a mim mesmo ou ao outro que coabita em mim. Mas, hoje, sentia-me terrivelmente angustiado. Tinha comprado ontem um livro intitulado Viva sem Medo. Li-o de uma assentada, mas fiquei na mesma ou com mais medo ainda.
Leiria, 27 de Janeiro de 1970
Fui hoje a mais um consultório médico. Já tenho percorrido vários. O costume. Sou um doente crónico. Tenho bem a quem sair, isto é, a mim mesmo ou ao outro que coabita em mim. Mas, hoje, sentia-me terrivelmente angustiado. Tinha comprado ontem um livro intitulado Viva sem Medo. Li-o de uma assentada, mas fiquei na mesma ou com mais medo ainda.
E há pouco resolvi ir a um médico para ver como se comportava comigo. Escolhi-o pela tabuleta. E gostei. Fez-me perguntas e mais perguntas sobre o meu passado. Até que eu próprio cheguei à raiz e à razão da minha redobrada angústia neste dia sentida - faz hoje exactamente três anos que cheguei da guerra e o relógio psíquico interior acusou a efeméride e quis condignamente celebrá-la.
[ Revisão / fixação de textos / imagem e legenda / links / notas entre parêntesis rectos / subtítulo, paar efeitos de publicação deste poste: LG ]
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Nota do editor:
Último poste da série > 24 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22655: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte X: "apanhado do clima", o fim da comissão e o difícil regresso à vida civil, em Coimbra (Jan - jun 1967)
Último poste da série > 24 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22655: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte X: "apanhado do clima", o fim da comissão e o difícil regresso à vida civil, em Coimbra (Jan - jun 1967)
Postes anteriores:
20 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22646: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte VIII: Contuboel , Fajonquito e Sonaco. Gravidez da Otília (Jan - ago 1966)
16 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22634: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte VII: Contuboel e Dunane (entre Piche e Canquelifá) (Out - dez 1965)
10 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22617: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte IV: Mafra e Tomar (Julho 1964/Abril 1965)
9 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22612: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte III: Mafra, maio-junho de 1964
8 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22611: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte II: Mafra, fevereiro-março de 1964
8 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22609: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte I: Mafra, janeiro de 1964
domingo, 24 de outubro de 2021
Guiné 61/74 - P22655: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte X: "apanhado do clima", o fim da comissão e o difícil regresso à vida civil, em Coimbra (Jan - jun 1967)
Guiné > Região do Óio > Porto Gole > Fevereiro de 1967 > A melhor foto de que dispomos, no blogue, sobre o gen Arnaldo Schulz, governador e comandante.chefe (1964/68): aqui sentado, ao lado do piloto do helicópetrio; pronto a partir depois de visita a Porto Gole; no banco de trás, duas caixas de cerveja, Sagres e Cristal; à direita, o fur mil José António Viegas, do Pel Caç Nat 54, com camuflado paraquedista trocado com um camarada numa operação no Morés em outubro de 1966.
Foto (e legenda) : © José António Viegas (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Foto (e legenda) : © José António Viegas (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. Continuação da (re)publicação do "Diário de Guerra", do nosso camarada açoriano e escritor Cristóvão de Aguiar (1940-2021), que faleceu na passada dia 5, aos 81 anos (*).
Organização: José Martins; revisão e fixação de texto (para efeitos de publicação no nosso blogue): Virgínio Briote (,a partir da parte VI, Carlos Vinhal).
Estes excertos, que o autor cedeu amavalmente ao José Martins, para divulgação no blogue, fazem parte do seu livro "Relação de Bordo (1964-1988)" (Porto, Campo das Letras, 1999, 425 pp). (**). São onze ao todo os postes publicados no blogue, este será o penúltimo
Cristóvão de Aguiar.
Foto: Wook (com a devida vénia...)
Diário de Guerra
por Cristóvão de Aguiar
Contuboel, 11 de Janeiro de 1967
Chegou alguma da tropa que nos vem render [, CCÇ 1500 / BCAÇ 1877, Fufar, Bolama, Cacheu, Teixeira Pinto Contuboel, 1966/67 ], . O Capitão Miranda, oriundo da Mealhada, também veio. Tenho dó deles. O restante pessoal só virá no dia em que nós daqui sairmos - de hoje a uma semana, que não há instalações para toda a gente.
Neste momento procede-se à passagem de testemunho e das armas. Quando entreguei a minha, fiquei mais leve e mais livre. Mas sempre pensei que este dia há tanto esperado ficasse percorrido de uma alegria bem mais funda. Tanto a sonhei ao longo destes infindáveis meses, que ela quase toda se gastou e agora encolheu-se e ficou tristinha. Ando magro que nem cação. Estou convencido de que tenho uma ténia agarrada à parede dos intestinos. Quarenta e nove quilos é pouco! Já pedi um medicamento para o efeito no posto médico e vou tomá-lo.
Contuboel, 13 de Janeiro de 1967
Um dia inteiro em jejum, só a água, para que o medicamento produzisse efeito. Nada. Nem ténia nem outros bicharocos. Fiquei ainda mais fraco com a abstinência.
Bambadinca, 18 de Janeiro de 1967
Aqui, à beira do rio Geba, para embarcarmos logo à noite em batelões para Bissau. Amanhã tomamos o Uíge para Lisboa. Assim sem espingardas nem pistolas, parece que ficámos subitamente indefesos e nus. E temos medo. Sobretudo que nos ataquem das margens durante esta noite de viagem por aí abaixo, até Pijiguiti. Não seria a primeira vez. A escolta que vai connosco não daria para as encomendas. Nunca mais acaba o pesadelo, sofremos até à última gota.
Bissau, a bordo do Uíge, 19 de Janeiro de 1967
Veio o Governador [, e Comandante-Chefe, gen Arnaldo Schulz], a bordo despedir-se das tropas e agradecer-nos, em nome da Pátria, o nosso esforço, sacrifício e abnegação. Seja tudo por alma da Pátria!, disse-me nos meus fundos. Garantiu-nos no final da derradeira golada de uísque que, em matéria de guerra, deixávamos este rincão pátrio melhor do que o havíamos encontrado à chegada.
Contuboel, 13 de Janeiro de 1967
Um dia inteiro em jejum, só a água, para que o medicamento produzisse efeito. Nada. Nem ténia nem outros bicharocos. Fiquei ainda mais fraco com a abstinência.
Bambadinca, 18 de Janeiro de 1967
Aqui, à beira do rio Geba, para embarcarmos logo à noite em batelões para Bissau. Amanhã tomamos o Uíge para Lisboa. Assim sem espingardas nem pistolas, parece que ficámos subitamente indefesos e nus. E temos medo. Sobretudo que nos ataquem das margens durante esta noite de viagem por aí abaixo, até Pijiguiti. Não seria a primeira vez. A escolta que vai connosco não daria para as encomendas. Nunca mais acaba o pesadelo, sofremos até à última gota.
Bissau, a bordo do Uíge, 19 de Janeiro de 1967
Veio o Governador [, e Comandante-Chefe, gen Arnaldo Schulz], a bordo despedir-se das tropas e agradecer-nos, em nome da Pátria, o nosso esforço, sacrifício e abnegação. Seja tudo por alma da Pátria!, disse-me nos meus fundos. Garantiu-nos no final da derradeira golada de uísque que, em matéria de guerra, deixávamos este rincão pátrio melhor do que o havíamos encontrado à chegada.
Mentiu com todos os dentes! A guerrilha alastra-se cada vez mais. O Capitão da minha Companhia ficou em terra [, Cap Mil Cav António Tavares Martins, substituiu o primeiro comandante da CCAÇ 800, Cap Inf Carlos Alberto Gonçalves da Costa].
Ainda não completou o tempo de comissão e vai compensá-lo numa repartição qualquer. Nem fiquei triste nem contente, que, com esta magreza, se me esvaíram quase todos os sentimentos. Trouxe comigo o perdigueiro. Não houve qualquer problema na sua admissão a bordo. O Vila Velha, o meu guarda-costas, prontificou-se a tratar dele durante a viagem.
Lisboa, 27 de Janeiro de 1967
Não dormi isto sequer, com a ansiedade da chegada. Navega agora o navio Tejo adentro. Ainda é noite. Está frio lá fora e outro ainda mais gelado cá dentro em mim. Encontro-me no deck, enrolado num cobertor, à laia de capa de estudante de Coimbra que ainda sou. Vejo a ponte nova, Salazar chamada, e ao longe as luzes da cidade. Não me encantam nem me chamam. Ando de um lado para o outro e penso na vida e no futuro. E olho indiferente as luzes que se espelham, tremeluzindo, nas águas do rio. Serei capaz de vencer e de me vencer?
Lisboa, 27 de Janeiro de 1967
Não dormi isto sequer, com a ansiedade da chegada. Navega agora o navio Tejo adentro. Ainda é noite. Está frio lá fora e outro ainda mais gelado cá dentro em mim. Encontro-me no deck, enrolado num cobertor, à laia de capa de estudante de Coimbra que ainda sou. Vejo a ponte nova, Salazar chamada, e ao longe as luzes da cidade. Não me encantam nem me chamam. Ando de um lado para o outro e penso na vida e no futuro. E olho indiferente as luzes que se espelham, tremeluzindo, nas águas do rio. Serei capaz de vencer e de me vencer?
Vou ter o meu filho no cais à minha espera. Com dois meses apenas. E talvez seja bom assim. Se tivesse entendimento, veria o pai já cansado e envelhecido e dardejando chispas de medo dos olhos fundos. Na flor da idade. Não minto. Vi-me no espelho quando me escanhoava pela última vez. Última, sim. É que daqui em diante vou deixar crescer a barba. Não foi promessa. Foi uma jura. E cada um tem direito à sua pancada. Mas sei as razões desta minha atitude, que, como todo o neurasténico que se preza, tenho explicação para tudo quanto me aconteceu ou porventura venha a acontecer-me. Um dia hei-de contar!
Tomar, 28 de Janeiro de 1967
Agora somos três e ficámos numa residencial junto ao rio Nabão. Logo de manhã cedo, tomei o pequeno-almoço e fui para o quartel novo, agora mais completo do que quando para aqui vim há dois anos. Ultimadas as formalidades de desmobilização, muito mais rapidamente do que pensava, principiei a sentir-me angustiado. Fiquei sem me perceber. Na hora há tanto ansiada em que me desligava do pesadelo, sentia-me em tremuras tais, que tive uma vontade urgente de pedir que me socorressem. Não foi preciso, que logo entrei em pânico. Levaram-me para a enfermaria e aí deram-me um calmante dos fortes. Ao fim de um quarto de hora, já estava mais calmo.
Tomar, 28 de Janeiro de 1967
Agora somos três e ficámos numa residencial junto ao rio Nabão. Logo de manhã cedo, tomei o pequeno-almoço e fui para o quartel novo, agora mais completo do que quando para aqui vim há dois anos. Ultimadas as formalidades de desmobilização, muito mais rapidamente do que pensava, principiei a sentir-me angustiado. Fiquei sem me perceber. Na hora há tanto ansiada em que me desligava do pesadelo, sentia-me em tremuras tais, que tive uma vontade urgente de pedir que me socorressem. Não foi preciso, que logo entrei em pânico. Levaram-me para a enfermaria e aí deram-me um calmante dos fortes. Ao fim de um quarto de hora, já estava mais calmo.
Regressei à residencial, meio triste, cogitando na vida que tenho agora pela frente. E só então é que me lembrei que, antes de sair, havia tomado duas chávenas almoçadeiras cheias de café. Fui perguntar. Sim, era café puro e forte! Nem sequer posso tomar um dedal de café legítimo, que me dá tremedeira, quanto mais. E já não fiquei perturbado com a minha reacção pânica.
Estação de Fátima, 28 de Janeiro de 1967
Espero o comboio que me há-de levar para Coimbra, onde vou principiar uma nova fase da vida. Está um tempo esclarecido e a temperatura é amena. A alcofa com o meu filho está poisada no chão meio saibroso, meio areento da plataforma, ao ar livre. Dorme serenamente.
Estação de Fátima, 28 de Janeiro de 1967
Espero o comboio que me há-de levar para Coimbra, onde vou principiar uma nova fase da vida. Está um tempo esclarecido e a temperatura é amena. A alcofa com o meu filho está poisada no chão meio saibroso, meio areento da plataforma, ao ar livre. Dorme serenamente.
Como não posso estar quieto, passeio com a Otília para trás e para a frente e vou-lhe traduzindo em palavras os meus receios no futuro. Estou deserto por me pôr à prova no campo académico. A minha obsessão é concluir o meu curso de letras. Sei que muitos que voltaram da guerra não o conseguiram. E eu? Chega o combóio. Pego da alcofa e subo para a carruagem. Fecha-se-me um pano de boca de cena atrás das costas.
Coimbra, 1 de Fevereiro de 1967
Entrei na Faculdade de Letras como um condenado. Encontrei no sexto piso o meu velho professor de Língua Alemã, o Doutor Helling, uma santa criatura, que, ao ver-me, se assustou. Não o soube disfarçar, que bem lhe vi o rosto perturbado. Ao fim do baque perguntou-me:
Coimbra, 1 de Fevereiro de 1967
Entrei na Faculdade de Letras como um condenado. Encontrei no sexto piso o meu velho professor de Língua Alemã, o Doutor Helling, uma santa criatura, que, ao ver-me, se assustou. Não o soube disfarçar, que bem lhe vi o rosto perturbado. Ao fim do baque perguntou-me:
- O minino sente-se mal, está doente?
Respondi-lhe que acabara de chegar da guerra colonial. E pelo que me disse a seguir, verifiquei que podia contar com ele. Sim, iria rever o meu alemão esquecido e, depois de me sentir bem preparado, apresentar-me-ia a exame. Com as regalias militares, posso fazer exame quando quiser. Miminhos da Pátria agradecida.
Coimbra, 14 de Junho de 1967
Os efeitos da guerra continuam e de que maneira. Tenho corrido um ror de médicos no intuito de obter algum alívio. Um professor da Faculdade de Medicina, a pedido do meu conterrâneo, Prof. Linhares Furtado, a quem consultei, descobriu que eu tinha, nos intestinos, um anchylostoma raríssimo. Bicharia da Guiné.
Coimbra, 14 de Junho de 1967
Os efeitos da guerra continuam e de que maneira. Tenho corrido um ror de médicos no intuito de obter algum alívio. Um professor da Faculdade de Medicina, a pedido do meu conterrâneo, Prof. Linhares Furtado, a quem consultei, descobriu que eu tinha, nos intestinos, um anchylostoma raríssimo. Bicharia da Guiné.
Ficou contente pela descoberta e não me levou um tostão. Receitou-me um medicamento chamado Mintzol. É um líquido branco, espesso, que tomei por duas vezes, no mesmo dia. Ia morrendo da cura. Estive oito dias de cama, quase sem forças para articular uma palavra e em soltura constante.
Coimbra, 28 de Junho de 1967
Estava há dias estudando num cubículo que tenho no terraço de casa e me serve de escritório, quando a Otília lá entrou a perguntar-me o que queria que ela fizesse da minha farda camuflada, que trazia na mão para me mostrar. Andava em arrumações. Eram dez horas da noite. Havia fogueiras de São João no Largo de São Salvador, na Alta, nas traseiras da minha República. Passou-me um clarão pela cabeça e disse-lhe:
Coimbra, 28 de Junho de 1967
Estava há dias estudando num cubículo que tenho no terraço de casa e me serve de escritório, quando a Otília lá entrou a perguntar-me o que queria que ela fizesse da minha farda camuflada, que trazia na mão para me mostrar. Andava em arrumações. Eram dez horas da noite. Havia fogueiras de São João no Largo de São Salvador, na Alta, nas traseiras da minha República. Passou-me um clarão pela cabeça e disse-lhe:
- Deixa cá ver a farda.
Sem uma palavra, passou-ma para as mãos. Fardei-me e saí de casa, sem ouvir sequer um resmungo. Ao chegar ao Largo de São Salvador, o bailarico estava animado e meti-me na roda mascarado de guerreiro. O meu amigo Germano Rego Sousa, da República dos Corsários e aprendiz de psiquiatra [, também ele açoriano de São Miguel, acabou por especiliar-se em patologia clínica, depois de fazer uma comissão como médico militar em Angola, 1969/71... ], também lá estava.
Num fim-de-semana que vim passar a Coimbra, quando andava por Mafra, ofereceu-me um poema que começava assim:
Gosto de ti, poeta triste
Que cantas a saudade de mares não percorridos
E trazes o cheiro de estranhas terras
Que não descobriste [...].
Gosto de ti, poeta,
Que chegas com a mala abarrotando
De uma camisa e de um livro de poesia
E que esqueces às vezes a camisa,
Que essa, pode-se esquecer,
Mas nunca a poesia [...].
Quando me viu naquele preparo, fardado de guerreiro da guerra colonial, deve ter torcido o nariz e desconfiado da minha sanidade mental. Aproximou-se de mim. E, muito delicadamente, pediu-me que o seguisse até à República, que queria falar comigo. Falou, interrogou, como se me estivesse praticando psicanálise. Por fim pediu-me que no dia seguinte fosse à clínica onde trabalha com o Louzã Henriques [ 1933- 2019, psiquiatra , etnógrafo, escritor. opositor ao regime de Salazar ], a de Santa Teresa, que me queria fazer testes. Fui. Vim de lá com um arsenal de amostras de medicamentos para tomar. Ando a cair de sono pelos cantos da casa e de mim.
(Continua)
[ Revisão / fixação de textos / imagem e legenda / links / notas entre parêntesis rectos / subtítulo, paar efeitos de publicação deste poste: LG ]
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Notas do editor:
(*) Vd. poste de 6 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22606: In Memoriam (410): Luís Cristóvão Dias de Aguiar (1940-2021), ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 800 (Contuboel e Dunane, 1965/67), falecido no dia 5 de Outubro de 2021
(**) Último poste da série > 22 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22651: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte IX: Bissau e Contuboel. Consulta de psiquiatria. Poema "O Menino de Sua Mãe". Nascimento do primeiro filho. Exame em Bafatá de militares sem a instrução primária. Sedução da senhora professora, cabo-verdiana... (Set - dez 1966)
Notas do editor:
(*) Vd. poste de 6 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22606: In Memoriam (410): Luís Cristóvão Dias de Aguiar (1940-2021), ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 800 (Contuboel e Dunane, 1965/67), falecido no dia 5 de Outubro de 2021
(**) Último poste da série > 22 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22651: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte IX: Bissau e Contuboel. Consulta de psiquiatria. Poema "O Menino de Sua Mãe". Nascimento do primeiro filho. Exame em Bafatá de militares sem a instrução primária. Sedução da senhora professora, cabo-verdiana... (Set - dez 1966)
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sexta-feira, 22 de outubro de 2021
Guiné 61/74 - P22651: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte IX: Bissau e Contuboel. Consulta de psiquiatria. Poema "O Menino de Sua Mãe". Nascimento do primeiro filho. Exame em Bafatá de militares sem a instrução primária. Sedução da senhora professora, cabo-verdiana... (Set - dez 1966)
O Braima Sissé foi apresentado ao João Graça como sendo um estudioso corânico, filho de uma importante personalidade da região, amigo dos portugueses na época colonial [, presume-se que fosse o próprio Fodé Irama Sissé].
Foto: © João Graça (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. Continuação da (re)publicação do "Diário de Guerra", do nosso camarada açoriano e escritor Cristóvão de Aguiar (1940-2021), que faleceu na passada dia 5, aos 81 anos (*).
Organização: José Martins; revisão e fixação de texto (para efeitos de publicação no nosso blogue): Virgínio Briote (,a partir da parte VI, Carlos Vinhal).
Estes excertos, que o autor cedeu amavalmente ao José Martins, para divulgação no blogue, fazem parte do seu livro "Relação de Bordo (1964-1988)" (Porto, Campo das Letras, 1999, 425 pp). (**)
Cristóvão de Aguiar.
Foto: Wook (com a devida vénia...)
Diário de Guerra
por Cristóvão de Aguiar
(Continuação)
A Otília embarcou hoje para Lisboa. Viemos de cima, do mato, há três dias. Seguiu há pouco num avião militar, com uma barriga enorme de quase sete meses. Deve nascer o pimpolho em fins de Novembro, princípios de Dezembro. Vou ficar em Bissau durante mais uns tempos para me tratar, que não consegui aguentar-ne nas canetas psicológicas.
Bissau, 26 de Setembro de 1966
Poema para minha Mãe, que faz hoje quarenta e sete anos de vida:
“O MENINO DE SUA MÃE”
- Mãe, que é do teu menino,
Tão breve,
Brincando no caminho,
Em corridas de pé leve,
Guindando as poças da chuva,
Que caía em desatino
E logo estiava num instantinho?
- Que será feito do arco e do pião
E da fieira que se apertava no bojo como uma luva
Que o teu menino, à mão, zunindo, o lançava,
E da Lua clara que nem lampião,
Que, vagarosa, no céu viajava?
- Onde o marulho do mar
Que aquietava o teu menino,
E dos barcos de papel
Nas valetas rasas de água a cirandar?
Que lhe destinaram do destino
De flores e mel
Que lhe afiançaste outrora?
E da Paz das noites benditas,
Do Deus em que ainda acreditas
E que o teu menino foi esquecendo,
Não O compreendendo
Por desdita agora?
- Onde o berço
Em que o embalavas,
E das preces da hora do deitar
- Nunca o terço! -
(Com Deus me deito, com Deus me levanto...)
E dos casos que lhe contavas,
E das cantigas soando a mar
(Assim era o teu canto!)
Que devagarinho entoavas
Para teu menino nanar?
- Dize-me, Mãe, onde morreste
O teu menino?, em que desvão o escondeste
Para o ir procurar?
- Sabes, Mãe, o teu menino está tão diferente:
Velho e absorto
E sobretudo tão ausente
(Dir-se-ia quase morto)...
O teu menino
Já não salta ao eixo
Rebaldeixo
No adro paroquial,
Nem no cimento da Avenida...
Nem tão-pouco joga (o que é o destino),
O seu pião de fieira colorida,
Que há tanto tempo se rachou...
E o arco de ferro forjado,
Com a sapata feita do mesmo metal,
Foram-se enferrujando num recanto
Da encantada casa-de-trás...
Depressa - o tempo foge -,
Bissau, 26 de Setembro de 1966
Poema para minha Mãe, que faz hoje quarenta e sete anos de vida:
“O MENINO DE SUA MÃE”
- Mãe, que é do teu menino,
Tão breve,
Brincando no caminho,
Em corridas de pé leve,
Guindando as poças da chuva,
Que caía em desatino
E logo estiava num instantinho?
- Que será feito do arco e do pião
E da fieira que se apertava no bojo como uma luva
Que o teu menino, à mão, zunindo, o lançava,
E da Lua clara que nem lampião,
Que, vagarosa, no céu viajava?
- Onde o marulho do mar
Que aquietava o teu menino,
E dos barcos de papel
Nas valetas rasas de água a cirandar?
Que lhe destinaram do destino
De flores e mel
Que lhe afiançaste outrora?
E da Paz das noites benditas,
Do Deus em que ainda acreditas
E que o teu menino foi esquecendo,
Não O compreendendo
Por desdita agora?
- Onde o berço
Em que o embalavas,
E das preces da hora do deitar
- Nunca o terço! -
(Com Deus me deito, com Deus me levanto...)
E dos casos que lhe contavas,
E das cantigas soando a mar
(Assim era o teu canto!)
Que devagarinho entoavas
Para teu menino nanar?
- Dize-me, Mãe, onde morreste
O teu menino?, em que desvão o escondeste
Para o ir procurar?
- Sabes, Mãe, o teu menino está tão diferente:
Velho e absorto
E sobretudo tão ausente
(Dir-se-ia quase morto)...
O teu menino
Já não salta ao eixo
Rebaldeixo
No adro paroquial,
Nem no cimento da Avenida...
Nem tão-pouco joga (o que é o destino),
O seu pião de fieira colorida,
Que há tanto tempo se rachou...
E o arco de ferro forjado,
Com a sapata feita do mesmo metal,
Foram-se enferrujando num recanto
Da encantada casa-de-trás...
Depressa - o tempo foge -,
O teu menino tornou-se rapaz
E dá a viva ideia de que é hoje
Uma visão alucinada de soldado...
Onde já lá vão as guerreias
Travadas na Canada da Sabina
Em que havia muita pedrada,
Baba e ranho, alarido e arengada,
Chegando o sangue a esguichar das veias?...
Ficava a Canada quase em frente
Da casa de madrinha Rufina,
Que um dia se despediu da gente
E se foi para a América no voo da carreira...
Tudo então se passava entre o rapazio:
Os de Cima e os de Baixo, que, cheios de brio,
Defendiam à tapona e à porrada
A rigorosa fronteira
Que separava os de cada lado da Canada...
Entretanto toda a vida se enrodilhou,
E ela tem agora um travo a puro fel...
Só da noite mais noite é tecido o teu menino,
Vive ainda em maior escuridão que o destino,
Que se não cumpriu e ficou em ruínas
- São as nossas sinas -
Mas nunca se há-de ele esquecer
Que um dia que já não existe
De teres prometido ao teu menino
(Ele não se lembra agora se já então era triste),
Embarcado em seu batel de ilusão
E de papel,
O tal destino
Que, como vara de condão,
O haveria de transmudar em flores e mel...
Todavia, cá dentro, ele permaneceu e continua refém...
Há-de ser resgatado, quem sabe, na Banda do Além...
- A tua bênção me cubra, minha Mãe!
Bissau, 27 de Setembro de 1966
Aqui estou há mais de uma semana em tratamento psiquiátrico. Vejo tudo envolto numa película de sono saboroso! Comecei por matar vacas e carneiros a tiro de Walter e de G3. Faziam barulho, mééé, e eu não suportava o mínimo ruído, sobretudo de noite. Havia, porém, quem matasse carreiros de formigas com a G3. Mas eu pagava o prejuízo aos seus donos. Se era alta noite, gritava pelo cozinheiro e seus ajudantes e mandava que esquartejassem os animais, para que depois a carne servisse para o nosso sustento. Chamava depois os indígenas, seus donos, logo de manhã ao quartel, perguntava-lhes o preço dos animais e pagava o que me pediam. Matava gatos também, mas esses tinham sete fôlegos e levavam muito tempo a morrer: esperneavam e miavam de tal maneira, que quase me endoideciam. O pior foi o ensaio de pancadaria com cavalo marinho que dei num furriel. Mandei a Otília para casa de um comerciante cuja mulher convivia por vezes com a minha, pretextando-lhe que queria ter uma conversa em particular com um militar.
E dá a viva ideia de que é hoje
Uma visão alucinada de soldado...
Onde já lá vão as guerreias
Travadas na Canada da Sabina
Em que havia muita pedrada,
Baba e ranho, alarido e arengada,
Chegando o sangue a esguichar das veias?...
Ficava a Canada quase em frente
Da casa de madrinha Rufina,
Que um dia se despediu da gente
E se foi para a América no voo da carreira...
Tudo então se passava entre o rapazio:
Os de Cima e os de Baixo, que, cheios de brio,
Defendiam à tapona e à porrada
A rigorosa fronteira
Que separava os de cada lado da Canada...
Entretanto toda a vida se enrodilhou,
E ela tem agora um travo a puro fel...
Só da noite mais noite é tecido o teu menino,
Vive ainda em maior escuridão que o destino,
Que se não cumpriu e ficou em ruínas
- São as nossas sinas -
Mas nunca se há-de ele esquecer
Que um dia que já não existe
De teres prometido ao teu menino
(Ele não se lembra agora se já então era triste),
Embarcado em seu batel de ilusão
E de papel,
O tal destino
Que, como vara de condão,
O haveria de transmudar em flores e mel...
Todavia, cá dentro, ele permaneceu e continua refém...
Há-de ser resgatado, quem sabe, na Banda do Além...
- A tua bênção me cubra, minha Mãe!
Bissau, 27 de Setembro de 1966
Aqui estou há mais de uma semana em tratamento psiquiátrico. Vejo tudo envolto numa película de sono saboroso! Comecei por matar vacas e carneiros a tiro de Walter e de G3. Faziam barulho, mééé, e eu não suportava o mínimo ruído, sobretudo de noite. Havia, porém, quem matasse carreiros de formigas com a G3. Mas eu pagava o prejuízo aos seus donos. Se era alta noite, gritava pelo cozinheiro e seus ajudantes e mandava que esquartejassem os animais, para que depois a carne servisse para o nosso sustento. Chamava depois os indígenas, seus donos, logo de manhã ao quartel, perguntava-lhes o preço dos animais e pagava o que me pediam. Matava gatos também, mas esses tinham sete fôlegos e levavam muito tempo a morrer: esperneavam e miavam de tal maneira, que quase me endoideciam. O pior foi o ensaio de pancadaria com cavalo marinho que dei num furriel. Mandei a Otília para casa de um comerciante cuja mulher convivia por vezes com a minha, pretextando-lhe que queria ter uma conversa em particular com um militar.
Foi a gota de água que fez com que o médico da companhia me viesse a sugerir, com muito bons modos, que, quando fosse a Bissau levar a Otília, ficasse por lá, a fim de descansar. Estava com o meu grupo de combate em Sonaco há mais de um mês. Ali era o repouso do guerreiro. Tinha um cachorro lindo, arraçado de setter. Andava um dia a passear, ao lusco-fusco, na rua comprida de Sonaco, quando ouço atrás de mim o jipe da patrulha. Não deram por mim, que andava na berma. Só enxergaram o cachorro, que vinha no meio do caminho. E ouço então o furriel a dizer para o condutor: "Mata o cão do nosso alferes. " Não foi preciso mais nada. Denunciei a minha presença e ordenei-lhe que se apresentasse no quartel imediatamente. Obedeceu. Depois levei-o até à minha palhota. E foi então que lhe toquei a pavana com o cavalo marinho. Mas, não há dúvida, os medicamentos que estou tomando estão produzindo bom efeito. Já vou exercendo autocrítica sobre os meus actos passados.
Bissau, 5 de Outubro de 1966
ALMA DOLENTE
A tristeza das coisas ao sol poente,
Falando, muda, numa voz precisa,
Escuta-a quem tem a alma dolente
E a dor de uma ânsia que se eterniza.
O Universo absoluto é uma ferida,
Lateja, arde, geme, sem compasso...
Dói tudo no silêncio, e a própria vida
Escorre vagarosa em gotas de cansaço...
Oh negrume tropical, noite africana,
Oh escuridão do medo em cada esquina
Com a vida enforcada em pó e lama,
Arranca do ventre tuas vinganças
E este ódio que as almas assassina
E deixa o Sol brincar com as crianças...
Contuboel, 7 de Outubro de 1966
O Dakota militar, vindo de Bissau, fez-se à pista térrea de Bafatá. Mas, quando tocou no solo, foi-se desviando para o mato, meio desasado. Parou a tempo de não haver desgraça. Tinha rebentado um pneu de uma das rodas do trem de aterragem.
Bissau, 5 de Outubro de 1966
ALMA DOLENTE
A tristeza das coisas ao sol poente,
Falando, muda, numa voz precisa,
Escuta-a quem tem a alma dolente
E a dor de uma ânsia que se eterniza.
O Universo absoluto é uma ferida,
Lateja, arde, geme, sem compasso...
Dói tudo no silêncio, e a própria vida
Escorre vagarosa em gotas de cansaço...
Oh negrume tropical, noite africana,
Oh escuridão do medo em cada esquina
Com a vida enforcada em pó e lama,
Arranca do ventre tuas vinganças
E este ódio que as almas assassina
E deixa o Sol brincar com as crianças...
Contuboel, 7 de Outubro de 1966
O Dakota militar, vindo de Bissau, fez-se à pista térrea de Bafatá. Mas, quando tocou no solo, foi-se desviando para o mato, meio desasado. Parou a tempo de não haver desgraça. Tinha rebentado um pneu de uma das rodas do trem de aterragem.
Como era dia de santo correio, estavam um jipe e um Unimog da minha companhia no aeródromo e assim aproveitei a boleia e vim logo para casa, que já tinha saudades dos meus cães e dos serões ouvindo a Voz da Liberdade e das tertúlias poéticas, em que lia, em voz alta, para um grupinho muito restrito, os versos da Praça da Canção, de Manuel Alegre, e também da Antologia da Poesia Erótica e Satírica, organizada por Natália Correia, que, por tal facto, teve de responder em tribunal, tendo a obra sido apreendida. Mandou-ma um elemento do Movimento Nacional Feminino, quando aqui esteve uma delegação de três meninas universitárias. Pedi-a no gozo. Nunca julgava que, ao fim de um mês, tivesse nas mãos uma obra proibida pela PIDE, enviada por quem foi.
[Imagem à esquerda: Capa da 1ª edição da "Poesia Portuguesa Erótica e Satírica", Lisboa, Afrodite, organizada em 1965 por Natália Correia (1923-1993), com ilustrações de Cruzeiro Seixas (1920-2020). O atrevimento da açoriana, também de São Miguel, valeu-lhe, em 1970, a condenação a 90 de prisão correccional, no Tribunal da Boa Hira, com pena suspensa por 3 anos, por ofensa aos bons costumes. Editor e autores também foram condenados. Lembro-me. nos meus 18 anos, da corrida à 1ª edição, de 1965, que rapidamente se esgotou antes de ser apreendida pela PIDE. Cortesia de Livraria Trindade].
Contuboel, 10 de Outubro de 1966
Chegou há semanas, estava ainda em tratamento em Bissau, uma ordem do comando-chefe, via batalhão de Bafatá, destinada a todas as unidades do mato, sobretudo àquelas prestes a partir, avisando que os soldados que não sabem ler nem escrever terão de embarcar da Guiné pelo menos com o exame do primeiro grau, ou seja, a terceira classe da instrução primária; caso contrário, quando chegarem à Metrópole, não poderão ser desmobilizados e ficarão nas respectivas unidades até concluírem aquele exame. O mesmo acontecerá àqueles que, tendo embora o exame do primeiro grau, saírem daqui sem o diploma do exame da quarta classe.
Contuboel, 10 de Outubro de 1966
Chegou há semanas, estava ainda em tratamento em Bissau, uma ordem do comando-chefe, via batalhão de Bafatá, destinada a todas as unidades do mato, sobretudo àquelas prestes a partir, avisando que os soldados que não sabem ler nem escrever terão de embarcar da Guiné pelo menos com o exame do primeiro grau, ou seja, a terceira classe da instrução primária; caso contrário, quando chegarem à Metrópole, não poderão ser desmobilizados e ficarão nas respectivas unidades até concluírem aquele exame. O mesmo acontecerá àqueles que, tendo embora o exame do primeiro grau, saírem daqui sem o diploma do exame da quarta classe.
É uma ordem injusta, não por ela em si nem pelo seu alcance, mas pelo facto de estarmos a pouco mais de três meses do regresso e não haver tempo suficiente nem condições psicológicas para uma intensiva preparação escolar dos soldados em tamanho estado de indigência cultural.
Por outro lado, também não se percebe muito bem o súbito interesse das hierarquias militares pelos seus homens analfabetos e pelos outros que só têm a terceira classe. Deve ser para dar alimento às estatísticas. O capitão pôs logo mãos à obra, isto é, nomeou alguns voluntários e já se começou há tempos a dar escola. Dois furriéis milicianos e um alferes (eu próprio, que me juntei há pouco), iniciaram então a tarefa de mestre-escola.
Garanto que toda a gente irá embarcar com o seu diploma na mão, custe o que custar. Por desmobilizar é que não ficam, não senhor. Era o que faltava, depois de uma comissão desta natureza, permanecerem os pobres coitados retidos no Regimento de Infantaria 15, em Tomar, até completarem os estudos. Os alunos são em número de dez: seis que não enxergam uma letra e os outros quatro pouco mais sabem, pois têm um primeiro grau muito atrasado e esquecido.
Contuboel, 23 de Novembro de 1966
Estava sentado no estabelecimento do comerciante português, lendo O Arauto, o pasquim da província, e fumando intensivamente cigarro atrás de cigarro, quando chega o nosso capitão com um papel numa das mãos. Era um telegrama que tinha vindo via rádio, anunciando-me que era pai. Fiquei néscio e sucinto. Pai! E escrevi, num aerograma amarelo, um poema ao meu filho José Manuel, a primeira missiva que recebe na vida, que ainda agora principiou...
Bafatá, 12 de Dezembro de 1966
Exame dos alunos da Companhia de Caçadores 800. Cometi um acto sacrílego, mas não havia outra escapatória. Sacrilégio maior seria deixar que estes homens ficassem na tropa mais alguns meses, ou um ano, sei lá bem, depois de terem sofrido o que sofreram nesta guerrilha diabólica de nervos e do resto, que foi ainda pior.
Falei com a senhora professora, uma cabo-verdiana lindíssima, de fazer refrear a respiração. Disse-lhe da minha justiça e das minhas intenções. Ela, com o seu brio profissional à flor da pele sedosa:
- Não, senhor alferes, não posso consentir numa palhaçada dessa natureza, pelo amor de Deus.
- Não, senhor alferes, não posso consentir numa palhaçada dessa natureza, pelo amor de Deus.
Principiei a seduzi-la e ela foi caindo de tal modo na esparrela, que, quando a convidei a sair da sala de exame, obedeceu, sem pestanejar. Depois. Olha, depois! Depois, encarreguei-me eu próprio de fazer o exame escrito, com caligrafia de principiante, a condizer, dos seis semi-analfabetos, que o tempo de aprendizagem e a disposição de ensinar foram mesmo muito escassos, enquanto os meus camaradas se incumbiram dos restantes.
No fim, ficaram todos aprovados e a professora, ao entrar na sala após ter sido avisada de que terminara a prova para lhe entregarmos as respostas, lançou-me uns olhos tão doces, que me deu vontade de lhe tomar lições de qualquer disciplina.
Contuboel, 25 de Dezembro de 1966
Uma noite de Natal já com um grão de esperança no seu ventre e outro bem pesado na asa. Daqui a menos de um mês, vamos de abalada. Até parece mentira. As cruzinhas estão chegando ao fim. (**)
(Continua)
Contuboel, 25 de Dezembro de 1966
Uma noite de Natal já com um grão de esperança no seu ventre e outro bem pesado na asa. Daqui a menos de um mês, vamos de abalada. Até parece mentira. As cruzinhas estão chegando ao fim. (**)
[Revisão / fixação de texto / imagens e legendas /subtítulo, para efeitos de edição deste poste: LG]
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Notas do editor:
(*) Vd. poste de 6 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22606: In Memoriam (410): Luís Cristóvão Dias de Aguiar (1940-2021), ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 800 (Contuboel e Dunane, 1965/67), falecido no dia 5 de Outubro de 2021
(**) Ultimo poste da série > 20 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22646: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte VIII: Contuboel , Fajonquito e Sonaco. Gravidez da Otília (Jan - ago 1966)
Notas do editor:
(*) Vd. poste de 6 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22606: In Memoriam (410): Luís Cristóvão Dias de Aguiar (1940-2021), ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 800 (Contuboel e Dunane, 1965/67), falecido no dia 5 de Outubro de 2021
quarta-feira, 20 de outubro de 2021
Guiné 61/74 - P22646: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte VIII: Contuboel , Fajonquito e Sonaco. Gravidez da Otília (Jan - ago 1966)
Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Contuboel > Rio Geba > 1969 > Uma belíssima foto de uma lavadeira, em contraluz. O Valdemar Queroz atribuiu os créditos fotográficos ao seu "irmão siamês" Cândido Cunha.
Foto (e legenda): © Cândido Cunha / Valdemar Queiroz (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar. Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. Continuação da (re)publicação do "Diário de Guerra", do nosso camarada açoriano e escritor Cristóvão de Aguiar (1940-2021), que faleceu na passada dia 5, aos 81 anos (*).
Organização: José Martins; revisão e fixação de texto (para efeitos de publicação no nosso blogue): Virgínio Briote (,a partir da parte VI, Carlos Vinhal).
Estes excertos, que o autor cedeu amavalmente ao José Martins, para divulgação no blogue, fazem parte do seu livro "Relação de Bordo (1964-1988)" (Porto, Campo das Letras, 1999, 425 pp). (**)
Cristóvão de Aguiar.
Foto: Wook (com a devida vénia...)
Diário de Guerra
por Cristóvão de Aguiar
(Continuação)
Contuboel, 12 de Janeiro de 1966
Ontem o nosso batalhão, Sete de Espadas [,BCAV 757, Bafatá, 1965/67] , sofreu dez mortos numa emboscada [, em Sare Dicó, na estrada Fajinquito-Canjambari] Tinha ficado com o meu pelotão na base, para montar a segurança e dar apoio logístico, quando, pouco depois de terem partido para uma operação no mato do Caresse, terra-de-ninguém e de muita pancada, se ouviram grandes rebentamentos na direcção que tinham tomado.
Uma hora e pouco mais tarde, chegou uma viatura com os mortos a trouxe-mouxe sobre o estrado da carroçaria. Tinham morrido ali como tordos, depois de os guerrilheiros terem lançado algumas granadas defensivas para o interior da GMC.
Fiquei encarregado de transportar aquela carne humana para Fajonquito, sede de uma companhia também pertencente ao nosso batalhão.
Fajonquito, 13 de Janeiro de 1966
Enquanto o capelão procedia às exéquias fúnebres e rezava missa campal por alma dos dez mortos irreconhecíveis, safei-me, revoltado, para um canto solitário, longe de toda aquela cruel comédia desumana. E peguei da esferográfica e do meu caderninho e fui escrevinhando:
O VISIONÁRIO
Rasguem-se as cortinas do sacrário,
Onde ficou Jesus aprisionado
Tal como há dois mil anos no Calvário
Pregado num madeiro, ensanguentado...
Era Sua Palavra pão sagrado
E o gentio que escutava o Visionário
De tal arte ficou maravilhado
Que O elegeu seu revolucionário...
Depois, o tirano, opressor do povo,
Julgando apagar esse Sol novo
Mandou matar o vate desordeiro...
Crucificaram-no então no Calvário:
- Está agora a ferros num sacrário,
Não vá Ele tornar-se guerrilheiro...
Bissau, 17 de Janeiro de 1966
Vim ao aeroporto de Bissalanca esperar a Otília, que vem passar uns meses comigo nesta guerra. Se calhar, foi uma loucura da minha parte. Sem dúvida que foi. E egoísmo. Chame-se-lhe o que se quiser, mas, antes de morrer, gostava de deixar descendência. Ficámos instalados no Grande Hotel de Bissau, que só tem grandeza no nome.
Contuboel, 19 de Janeiro de 1966
Acabámos de chegar de Bissau, eu e minha Mulher. A nossa casa é um espaço vago, quarto e corredor, que me cedeu o Chefe de Posto e que fica contíguo ao edifício. Não há água nem electricidade. Alumiamo-nos a petromax. A água virá todos os dias do quartel, que fica a meia dúzia de passos, para um barril que coloquei na extremidade do corredor oposta à porta de entrada, onde, com um reposteiro, fiz um pequeno compartimento que vai servir de cozinha.
Antes de minha Mulher chegar, arranjei o nosso quarto o melhor que pude: consegui uma cama de casal, pus cortinas nas janelas, cujo pano comprei no comércio do libanês e que um alfaiate indígena depois talhou, acertou e coseu, mandei fazer uma mesa de boa madeira africana.
Este é que é verdadeiramente o chamado amor e uma cabana.
Contuboel, 14 de Fevereiro de 1966
Contuboel, 14 de Fevereiro de 1966
A Otília está grávida, pelo menos tem todos os sintomas de uma mulher nesse estado: enjoos, vómitos. Se for mesmo verdade, isto significa que, se me for desta para melhor com um qualquer tiro desgovernado, já deixo rastro atrás de mim. Um filho engendrado na guerra!
Contuboel, 16 de Março de 1966
Fomos hoje a Fajonquito, povoação a mais de vinte quilómetros de distância, onde também se encontra uma Companhia de Caçadores. A Otília foi comigo, a fim de consultar o médico, meu companheiro da República Corsários das Ilhas, em Coimbra, e muito nosso amigo.
A Otília queixa-se das pernas, parecem picadas de mosquitos, mas não são. O Ormonde de Aguiar, assim se chama o meu velho companheiro de Coimbra, disse que se tratava de uma qualquer doença de pele e deu-lhe uns medicamentos para o efeito.
Contuboel, 7 de Abril de 1966
Quando vou para o mato por dois ou três dias, a Otília não tem medo de ficar sozinha em casa. É mesmo uma mulher de armas! Fica bem guardada pelas sentinelas que os cipaios fazem dia e noite ao Posto Administrativo, além de ter o quartel à mão de semear. O medicamento que o Ormonde lhe receitou fez muito bom efeito: já não tem nada nas pernas.
Contuboel, 23 de Abril de 1966
Faz hoje um ano que desembarcámos em Bissau. Não me esqueci de descarregar a cruz na casa do calendário. Esta é já a tricentésima, sexagésima sexta, se me não engano. Estamos já a dobrar o cabo tormentório. A partir de agora, começa o tempo a descer. É a altura de se principiar a ter muito cuidado com a vida, que a morte gosta de pregar partidas nestas ocasiões lembradas.
Sonaco, 30 de Julho de 1966
O meu pelotão foi finalmente destacado para aqui, que, no meio deste inferno, é um lugar sofrível. A Otília prefere aqui estar. Temos uma espécie de casa de paredes de adobes e coberta de colmo, mesmo ao lado do quartel, mais fresca do que a de Contuboel. Da porta de trás da casa, dou as minhas ordens ao pessoal da cozinha sobre a ementa do dia. Temos aqui uma pista térrea onde poisa uma Dornier com facilidade. É lá que treino a minha condução no jipe que pertence ao destacamento.
Sonaco, 9 de Agosto de 1966
A Otília fez hoje anos e por isso houve rancho melhorado. Dormimos com as janelas das traseiras abertas por via do calor e do peso da humidade. Para evitar que os mosquitos e outra bicheza, aqui aos milhares, mordam a gente, mantemos aceso um repelente do qual se evola uns fuminhos cujo odor intenso os afugenta.
Contuboel, 7 de Abril de 1966
Quando vou para o mato por dois ou três dias, a Otília não tem medo de ficar sozinha em casa. É mesmo uma mulher de armas! Fica bem guardada pelas sentinelas que os cipaios fazem dia e noite ao Posto Administrativo, além de ter o quartel à mão de semear. O medicamento que o Ormonde lhe receitou fez muito bom efeito: já não tem nada nas pernas.
Contuboel, 23 de Abril de 1966
Faz hoje um ano que desembarcámos em Bissau. Não me esqueci de descarregar a cruz na casa do calendário. Esta é já a tricentésima, sexagésima sexta, se me não engano. Estamos já a dobrar o cabo tormentório. A partir de agora, começa o tempo a descer. É a altura de se principiar a ter muito cuidado com a vida, que a morte gosta de pregar partidas nestas ocasiões lembradas.
Sonaco, 30 de Julho de 1966
O meu pelotão foi finalmente destacado para aqui, que, no meio deste inferno, é um lugar sofrível. A Otília prefere aqui estar. Temos uma espécie de casa de paredes de adobes e coberta de colmo, mesmo ao lado do quartel, mais fresca do que a de Contuboel. Da porta de trás da casa, dou as minhas ordens ao pessoal da cozinha sobre a ementa do dia. Temos aqui uma pista térrea onde poisa uma Dornier com facilidade. É lá que treino a minha condução no jipe que pertence ao destacamento.
Sonaco, 9 de Agosto de 1966
A Otília fez hoje anos e por isso houve rancho melhorado. Dormimos com as janelas das traseiras abertas por via do calor e do peso da humidade. Para evitar que os mosquitos e outra bicheza, aqui aos milhares, mordam a gente, mantemos aceso um repelente do qual se evola uns fuminhos cujo odor intenso os afugenta.
O pior são os gatos que vêm ao cheiro da comida e fazem, por vezes, uma estreloiçada de me pôr maluco. Ando com os nervos em franja, por isso qualquer barulho, por mais pequeno que seja, põe-me transtornado. Uma noite destas fui acordado e apanhei tal susto que peguei logo da espingarda, encostada à parede, à ilharga da cama do meu lado, acordei a Otília, disse-lhe que ia disparar, que se não assustasse, poisei o cotovelo esquerdo na sua já proeminente barriga, apoiei o cano da arma na mão canhota meio em concha, encostei a coronha ao ombro direito, fiz pontaria e disparei, uma, duas vezes.
Matei um gato e os outros desapegaram-se. A Otília não me disse sequer uma palavra mais azeda e tinha toda a razão para o fazer. Virou-se para o outro lado e principiou logo a dormir.
(Continua)
____________
Notas do editor:
(*) Vd. poste de 6 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22606: In Memoriam (410): Luís Cristóvão Dias de Aguiar (1940-2021), ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 800 (Contuboel e Dunane, 1965/67), falecido no dia 5 de Outubro de 2021(**) Último poste da série > 16 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22634: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte VII: Contuboel e Dunane (entre Piche e Canquelifá) (Out - dez 1965)
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terça-feira, 19 de outubro de 2021
Guiné 61/74 - P22642: Memória dos lugares (428): Dunane, destacamento de Canquelifá, região de Gabu
Foto nº 1
Foto nº 2
Guiné > Região de Gabu >Canquelifá > Dunane > CART 1689 (1967/69) > 1968 > "Hotel Dunane" (Foto nº 1) e "Aeroporto Internaci0nal de Canquelifá" (Foto nº 2)... Ou o humor de caserna no seu melhor...
"Dunane era um destacamento sob a responsabilidade da Companhia instalada em Canquelifá. Estávamos em 1968. A CART 1689/BART 1913 (Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69) em final de comissão, foi transferida para Canquelifá, deixando um pelotão aquartelado em Dunane. Em poucos dias deu para entender que estavam a gozar o merecido descanso do guerreiro. Não havia suspeita de guerra, os serviços eram poucos e o tempo ia-se gastando da melhor forma."
Fotos (e legenda): © José Ferreira da Silva (2012). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. Muita malta terá passado por Dunane (e alguns terão lá estado "destacados" ou "desterrados"), mas poucoos, ao que parece, trouxeram fotos do lugarejo, agora "ressuscitado" com a republicação da série "Diário de Guerra" do açoriano Cristóvão de Aguiar (1940-2021), que foi alf mil da CCAÇ 800 (Contuboel e Dunane, 1965/67).
Dos que mais se "divertiram" com a sua estadia em Canquelifá e Dunane, foi o nosso Zé Ferreira, grande mestre do humor de caserna. As três histórias que ele nos conta desse tempo e lugar são uma "delícia"... E ele garante-nos que são mesmo verdadeiras... Não precisava de o dizer: de facto, todas as histórias de guerra são verdadeiras, mesmo com o traço grosso da caricatura ou o ácido corrosivo do humor negro. Por isso até soldados básicos "badalhocos", havia alferes "malucos" e generais "de luneta e opereta", na nossa "Guinesinha" (como lhe chamava, com ternura patriótica, a nossa inefável Cilinha)...
Temos, em todo o caso, uma escassa dúzia de referências a Dunane, destacamento de Canquelifá, a meio caminho entre Piche e Canquelifá.
Daí acharmos útil recuperar os comentários ao poste P22634 (**)
(i) Manuel Luís Lomba:
Amílcar Cabral decidira-se pelo terrorismo no Leste, o resultado foi o seu contrário, serviu para fortalecer a oposição dos Fulas, os recrutados desertaram todos, substituiu-o pelo comandante Domingos Ramos, nosso ex-camarada, colocou-o em Quinara, no sul, morrerá no assalto à tabanca de S. João, em combate com a CCaç 153, deplorável foi o acto de passear o seu cadáver pelas tabancas de Quinara.
(ii) Valdemar Queiroz:
Como estive por aquelas paragens, estou sempre à espera de ler neste, quase tele, "Diário de Guerra", de Cristóvão de Aguiar, pormenores / descrições mais concretas sobre as localidades / tabancas Contuboel, Nova Lamego, Piche mas não aparecem, como de Dunane, essas descrições.
Passei por várias vezes por Dunane nos finais de 1969 e era exatamente assim como nos descreve Cristóvão de Aguiar. A tabanca / quartel ficava colada à berma da estrada (a meio caminho, entre Piche-e Canquelifá), com um cavalo-de-frisa de porta d'armas a abrigos à prova de bombardeamento.
Contavam-nos que se defendiam como nos filmes de western contra os índios. Recordo-me de uma das vezes ter sido o meu Pelotão ir de Canquelifá ao Xime (!!!) fazer a segurança a uma coluna de reabastecimento para Piche, Dunane e Canquelifá, e no regresso ao passarmos por Dunane: eles protestarem com a chegada dos "frescos" por 15 dias antes (Natal) terem sofrido de grandes caganeiras devido ao camarão fresco do reabastecimento.
Também foi perto de Dunane que a minha CART 11 teve a primeira baixa, o sold. Santoné Colubali, e ferimento grave do 1º.cabo trmas Custódio Marques, devido a minas na estrada para Canquelifá.
Sabia que Dunane não tinha população civil, mas não sabia ter sido uma tabanca de balantas (?) no leste, em terra de fulas e pajadincas, e que tinham sido expulsos pela tropa, mas o nosso Luís Lomba, qual Larousse nestas coisas, diz terem sido escolhidos em Pequim para serem reeducados, provavelmente comiam com as mãos, e servirem de educadinhos no sul.
(iii) Tabanca Grande Luís Graça:
Da "má fama" o então capitão de infantaria José Curto, o carrasco de Vitorino Costa, não se livrou. Provavelmente ainda hoje, na região de Quínara,o seu nome (pelo terror que inspirava) é recordado pelos mais velhos. Pelo menos, era assim em 2008...quando eu lá estive, na Guiné-Bissau, e visitei a região de Tombali. Deve ser caso único, de entre os "tugas", tirando o nome de Spínola e poucos mais...
Continuamos a saber pouco de Dunane, se era originalmente uma tabanca fula, mandinga, pajadinca ou até balanta. Talvez o Cherno Baldé nos possa elucidar. De qualquer modo, estou grato pelos contributos do Valdemar de Queiroz (que conheceu a região) e do Manuel Luís Lomba, a par do Cristóvão de Aguiar e do Zé Ferreira...
No subsector, o L1 (Bambadinca), que me calhou em sorte, havia, isso, sim, tabancas balantas, junto ao rio Geba e ao Corubal, que forma riscadas do mapa... Infelizmente, a sua história é aqui pouco falada, tirando talvez o caso de Samba Silate.
Continuamos a saber pouco de Dunane, se era originalmente uma tabanca fula, mandinga, pajadinca ou até balanta. Talvez o Cherno Baldé nos possa elucidar. De qualquer modo, estou grato pelos contributos do Valdemar de Queiroz (que conheceu a região) e do Manuel Luís Lomba, a par do Cristóvão de Aguiar e do Zé Ferreira...
No subsector, o L1 (Bambadinca), que me calhou em sorte, havia, isso, sim, tabancas balantas, junto ao rio Geba e ao Corubal, que forma riscadas do mapa... Infelizmente, a sua história é aqui pouco falada, tirando talvez o caso de Samba Silate.
(iv) José Ferreira da Silva:
Para melhor caracterizar a minha estadia no chamado "Hotel Dunane", naqueles tempos difíceis, lembro os meus textos da série Memórias Nos d Minha Guerra:
"O Alferes Maluco".
As histórias são verdadeiras.
As histórias são verdadeiras.
(...) Canquelifá: Poucas terras fazem jus ao seu nome como esta terra guineense situada no seu extremo nordeste.
Em língua mandinga “Canquelefá” significa campo de batalha e de morte:
Can = campo/acampamento;
quele = batalha/guerra;
fá = morte/matança.
Não sei de quem era o acampamento, quem matou e/ou quem morreu, poderia até ser uma simples bravata dos Soninques animistas para assustar os invasores fulas ou os vizinhos Padjadincas do Bajar, ou outro grupo qualquer que se aproximava dos seus domínios, também eles conquistados em épocas passadas.
Território de transição histórica entre o norte da região sudanesa do Sahel [, Sara,] e a zona da floresta húmida confinada à costa do Atlântico, esta região de Pachisse, Pakessi ou Paquisse com capital em Canquelifá foi, durante muito tempo e em diferentes épocas campo de batalha dos exércitos que invadiram o território da actual Guiné-Bissau e ponto de passagem entre o Senegal e o reino de Futa-Djalon.
Não admira por isso a (des)unidade étnica que se verifica na população local, dividida entre os temerários Camará, os argutos Djaló e os pacientes Sané, resultado da mais diversa mistura e uma autêntica babel linguística a começar pelos antiquíssimos Banhuns, Pajadinca, Cocoli até aos Fulas nas suas diferentes declinações, passando pela bonita, eloquente e musical língua Mandinga ou mandinkan.
Ao contrário de Ziguinchor, típica terra luso-tropical com cordão umbilical fortemente ligado à cultura e a tradição das praças guineenses, Canquelifá poderia passar para qualquer dos territórios vizinhos e não se notaria nenhuma diferença.
Após as constantes disputas entre os reinos vizinhos (Futa-Djalon com Alfa Iaia Jaló, Mussa Molo o rei de Firdu) e a cobiça das potências europeias presentes na zona, a delimitação franco-portuguesa de 1903 acabaria por incorporar o Pachisse na Guiné portuguesa, com a eliminação dos incómodos concorrentes locais que eram Mussa Molo e Alfa Iaia.(...) (****)
____________
Notas de LG:
(*) Vd. poste de 8 de janeiro 2012 > Guiné 63/74 - P9331: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (28): A guerra em Dunane
(**) Vd. poste de 16 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22634: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte VII: Contuboel e Dunane (entre Piche e Canquelifá) (Out - dez 1965)
(***) Vd. poste de 31 de outubro de 2016 > Guiné 63/74 - P16661: Memória dos lugares (350): Poucas terras fazem jus ao seu nome como Canquelifá, localidade guineense situada no seu extremo nordeste, e que em língua mandinga quer dizer "campo de batalha e de morte" (Cherno Baldé, Bissau)
(****) Último poste da série > 17 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22638: Memória dos lugares (427): Coimbra, cemitério da Conchada, onde repousam os restos mortais do alf mil António Maldonado, morto em combate em Porto Gole, em 4/3/1966 (João Crisóstomo)
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