I N M E M O R I A M
José Henrique Álamo Oliveira
Raminho, 2 de maio de 1945 - Angra do Heroísmo, 5 de julho de 2025
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Lembrar um originalíssimo autor da literatura da Guerra Colonial da Guiné
Mário Beja Santos
Em 2009, uma hecatombe devastou-me a vida, perdi uma filha com 32 anos. Agarrei-me à escrita com unhas e dentes, procurei pôr em prática um projeto altamente trabalhoso, durante praticamente dois anos procurei identificar o que se tinha escrito sobre a guerra na Guiné, repertoriei largas dezenas de autores, o mais difícil eram as edições de autor que escapavam às bibliotecas e livrarias.
O projeto foi dado como concluído no fim do outono de 2011, o meu livro "Adeus, até ao meu regresso" (a literatura dos e sobre os combatentes da guerra da Guiné) foi dada a estampa no início de 2012 pela Âncora Editora. Encontrei três autores açorianos de grande valor: José Martins Garcia, Cristóvão de Aguiar e Álamo Oliveira.
Chocado com a morte deste último, um artista polivalente (romancista, poeta, dramaturgo, ensaísta, diretor teatral, pintor), curvo-me aqui respeitosamente em sua memória e lembro o seu romance "Até Hoje (Memória de Cão)" publicado pela Ulmeiro em 1986, porventura a sua única incursão novelística pela Guiné.
Livro de uma enorme coragem, capaz de se despir no seu íntimo, um texto de um sofrimento incontido, mas entrosado no lirismo, do princípio ao fim. Talvez autobiográfico, estamos no cais da Rocha do Conde de Óbidos, e aquele João açoriano só pensa nas suas origens e suas gentes:
“Vinha do lado Norte mais alto e ventoso, os campos rasos e verdes, casas a brilhar de cal, pequenas, baixas, conchas perdidas na ilha perdida. Passar a infância embrulhado no cheiro saboroso que o suor empresta às pessoas ao tempo, às coisas. Eram perfumes silvestres – muita bonina, conteiras, saias do norte, quase bedum de esperma, queijo.”
Nos fundos do porão do Uíge escreve os seus primeiros aerogramas, João vem em rendição individual, um dia é enviado para Binta, é nomeado padeiro. Que o leitor se aperceba que a coragem do autor é escrever algo que parecia impensável, um romance de guerra nimbado pelo amor homossexual. Primeiro, o encontro com alguém que se tornará inesquecível luminescência pela vida fora:
Chocado com a morte deste último, um artista polivalente (romancista, poeta, dramaturgo, ensaísta, diretor teatral, pintor), curvo-me aqui respeitosamente em sua memória e lembro o seu romance "Até Hoje (Memória de Cão)" publicado pela Ulmeiro em 1986, porventura a sua única incursão novelística pela Guiné.
Livro de uma enorme coragem, capaz de se despir no seu íntimo, um texto de um sofrimento incontido, mas entrosado no lirismo, do princípio ao fim. Talvez autobiográfico, estamos no cais da Rocha do Conde de Óbidos, e aquele João açoriano só pensa nas suas origens e suas gentes:
“Vinha do lado Norte mais alto e ventoso, os campos rasos e verdes, casas a brilhar de cal, pequenas, baixas, conchas perdidas na ilha perdida. Passar a infância embrulhado no cheiro saboroso que o suor empresta às pessoas ao tempo, às coisas. Eram perfumes silvestres – muita bonina, conteiras, saias do norte, quase bedum de esperma, queijo.”
Nos fundos do porão do Uíge escreve os seus primeiros aerogramas, João vem em rendição individual, um dia é enviado para Binta, é nomeado padeiro. Que o leitor se aperceba que a coragem do autor é escrever algo que parecia impensável, um romance de guerra nimbado pelo amor homossexual. Primeiro, o encontro com alguém que se tornará inesquecível luminescência pela vida fora:
“O rapaz está agora à sua frente, grande como ele, tronco a brilhar de óleo suado, a pele lisa como cetim, os calções curtíssimos a realçar o corpo rijo. Tem o rosto oval, assim como, modigliano, boca desenhada a rigor, lábios fortes e molhados, caídos à vontade. São os olhos castanhos que se fixam em João, protegidos por duas grandes pestanas. Chamo-me Fernando.”
É assim que nasce uma cumplicidade que irá desembocar num desencontro trágico. Álamo Oliveira não esquecerá a guerra e as circunstâncias do quotidiano da mesma, com minas e emboscadas, álcool e solidão, e nunca li uma chegada do correio como a que ele escreveu:
“Estão como cabras espantadas, prisioneiros ridículos, inocentes, amantes de cordel, aos saltos, gritinhos tarzânicos. Doentes de alegria explosiva, rapazes com o coração a viajar para o princípio do ser, primitivos os sentidos expostos. Fixam-se no meio da parada, a mão à testa para tapar o sol, a avioneta de voo raso, dois sacos de correio que se despenham e se amparam nos mil dedos que os agarram… As notícias vinham ali ensacadas, cadeadas, atrasadas quase quatro semanas. Vinham alegrias do tempo contado, saudades moídas pela azenha da distância, tristezas em rebanho… Os olhos estão fixos nas mãos do cabo-escriturário que agora é todo o quartel de Binta e só aquele tamanho, a mão emocionada metendo a chave no cadeado do saco com a mesma untuosa memória da desfloração.”
E chegará o dia em que uma lancha de desembarque médio irá buscar toda a tropa a Binta, o regresso é no mesmo Uige. João e Fernando vão ver Música no Coração no Tivoli e depois vão dormir numa pensão no Rossio:
“No quarto número treze o amor ficara do tamanho da cidade e coubera inteiro numa pequena cama de ferro, pintada de esmalte branco. Não há sinais de proibição, códigos de viagem, espartilhos no coração. Os seus olhos brilham e dormem.”
João vai regressar à ilha, Fernando promete escrever, só que as suas cartas nunca obterão resposta. Tudo está diferente quando chega ao seu destino, porque ele é quem está diferente. “Poucos meses depois, sem grandes pré-avisos, João despediu-se da família e… emigrou. Até hoje.”
Romance de um invulgar diapasão lírico, com todo o desassombro em que a homossexualidade é narrada desafetadamente, mas com afeto faiscante. Álamo Oliveira recebeu com este romance um dos prémios da sua carreira. Foi também poeta. Dois anos antes de "Até Hoje (Memória de Cão)", ele publicara uma compilação de vários livros de poesia com o título "Triste Vida Leva a Garça".
Recordo do seu primeiro livro intitulado "Áfrika-mim e Outras Raízes" versejará:
“Dos companheiros de armas, / Guardo o rosto e afeição. / Soldados com espingardas / Murchas e presas à mão / Para puxar o gatilho / No momento de matar. / Antes, sachavam o milho, / Agora, são de odiar.”
E mais adiante:
“Mãe-negra-África-mim, / Meu postal desilustrado, / Tempo de angústias e capim / Ao meu ombro pendurado. / Quem bem faço por esquecer / Armas, mosquitos, viagem. / África ferrou-me o ser, / Trouxe-a feita tatuagem. / Se da guerra me livrei, / Do seu povo é que não / Ritos de fanado e morte, / Rios mansos que o sol coa, / Luar branco, trovão-corte, / Negro vogando em canoa. / E ainda, em saco da tropa, / Carregado em bandoleira, / Trouxe do feitiço a copa, / Da beleza da palmeira. / Guiné! Guiné! Voz de gente / Doce do coco e baunilha! / Bem te sinto, no meu ventre, / A pulsar no som da ilha.”
Uma toada poética como espinha de saudade, uma irmã-escrava lá nas terras do poeta feitas de enxofre e lava, conteiras e o mar à volta.
Perdemos José Martins Garcia, Cristóvão de Aguiar e agora Álamo Oliveira, os três legaram-nos literatura fulgente sobre a Guiné. Muitíssimo obrigado aos três, pelo que fizeram neste legado de literatura luso-guineense.
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Nota do editor
Último post da série de 6 de julho de 2025 > Guiné 61/74 - P26990: In memoriam (554): Apolinário Pereira Teixeira (1950-2025): natural de Fermentões, Guimarães, antigo autarca, ex-fur mil, 2ª CART / BART 6520, "Os Mais de Nova Sintar" (1972/74) (Carlos Barros)