sábado, 28 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25990: Os nossos seres, saberes e lazeres (647): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (172): Regresso aos Açores, às ilhas do grupo oriental (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Julho de 2024:

Queridos amigos,
A sorte não só favorece os audazes, há os simples acasos com consequências felizes. Não me saiu a sorte grande mas a dita pôs-me em regresso seja a uma ilha que amo profundamente e acabo por conhecer outra, a mais pequena do grupo oriental, que já me enche de saudades para lá voltar. Fora do prémio que me bafejou, quis pôr o pezinho na Ribeira Grande, por ali passei várias vezes de raspão e só conheço as Cavalhadas de S. Pedro por imagem. Os meus intentos foram conseguidos, nem tudo se viu, fica sempre como razão dada para voltar. Do conjunto de museus, vi dois patrimónios singularíssimos: o Museu da Imigração Açoriana e a Casa do Arcano, os outros ficarão para a próxima. Voltei ao Salão Nobre onde vivi uma bela peripécia em janeiro de 1968, José Medeiros Ferreira e Melo Bento, dois ativistas culturais, empurraram-me para uma conferência que decorreu ali, seria obrigatório voltar, já que aquele teto tanto me impressionara. E como ir à Ribeira Grande sei se banhar na Caldeira Velha é como ir a Roma e não ver o Papa, também fui premiado na itinerância. Mas sobre a Ribeira Grande ainda há muito que contar.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (172):
Regresso aos Açores, às ilhas do grupo oriental – 1


Mário Beja Santos

A vida tem destas coisas, vai um indivíduo visitar a Bolsa de Turismo de Lisboa, 3 de março, dia de encerramento, já se percorreram aqueles pavilhões com promessas de mundos e fundos, as excursões com descontos fabulosos, tão fabulosos que já estão esgotados desde a primeira hora do evento, entra-se no espaço português, assim que se vê o nome Açores a curiosidade é a mãe de todas as causas, bisbilhotam-se as imagens de alto a baixo, é nisto que uma senhora, solícita, pergunta se não quero uma senha de sorteio, uma viagem com dois destinos, faça favor de pôr aqui o seu primeiro e último nome e número de telemóvel, guarda-se na carteira, entra-se em casa ao fim da tarde, enquanto se prepara o jantar, toca o telemóvel, é o senhor que tem a senha 448? - que sim, então dou-lhe os parabéns, tem direito a três dias em Vila Franca do Campo e mais três em Sta. Maria, convém agora negociar as datas, comece por contactar Vila Franca do Campo. Ajustadas as datas, pede-se licença para dois dias suplementares à conta do turista, há uma forte lembrança da Ribeira Grande, no Salão Nobre da Câmara, num dia que não se pode precisar de janeiro de 1968, empurrado por Medeiros Ferreira e Melo Bento, aqui proferi conferência sabe Deus como me preparei, umas leituras lambuzadas sobre um conjunto de escritores ditos católicos, Claudel, Chesterton, Graham Greene, Sophia de Mello Breyner, o seu olhar sobre o mundo contemporâneo, parece que não correu mal, guardei na memória as belezas do teto, injustamente esqueci as belezas azulejares de Jorge Colaço, trabalho brilhante; e há também as caldeiras, sabe bem uma banhoca com água a mais de 30ºC. E há aquela envolvência de espinhaços altos, onde prepondera a Serra da Água de Pau, sabe bem voltar.

Aterra-se em Ponta Delgada, tenho à espera o meu amigo Mário Reis, salivo por uns filetes de abrótea na Lagoa, havia os filetes de peixe-porco, vi passar uma espetada de choco, a decisão estava tomada. Findo o repasto, em pouco tempo chega-se à Ribeira Grande, arrumam-se os trastes, tive a sorte de poder trazer uma daquelas malas até 23kg, deu para trazer uma fornada de livros para distribuir por bibliotecas, o primeiro lote já foi entregue em Ponta Delgada, o segundo será aqui, na Biblioteca Daniel de Sá.

Começa a exploração, a Ribeira Grande tem história, chegou aqui gente vinda da Povoação e Vila Franca do Campo no século XV, D. Manuel I elevou-a a vila em 1507, houve terríveis cataclismos, o maior ocorreu entre 1563 e 1564, e já houvera anteriormente a devastação pela peste. Há informação fundamentada sobre o povoamento da região, tudo graças a Gaspar Frutuoso (1522-1591), fica-se a saber que esta Ribeira Grande fora o celeiro da ilha graças ao caudal da Ribeira que fornecia energia aos inúmeros moinhos. Aqui houve tecelagem, atividades agroindustriais, caso da cultura do chá, do tabaco, do maracujá, da beterraba sacarina. E o património cultural e o edificado deixaram marcas de incontestável beleza.
A caminho de uma igreja com uma extraordinária fachada barroca, depara-se esta fonte que têm a marca de água das cores que distinguem a arquitetura açoriana, a alvura do branco com todos estes relevos do acinzentado das linhas, um contraste inigualável que desemboca na harmonia e nos faz sentir serenidade.
Chama-se Igreja da Misericórdia, mas leio também que é conhecida pela Igreja do Senhor dos Passos, trata-se de uma reconstrução que ocorreu no século XVIII com esta fachada tardo-barroca, é um exemplo raro de edifício religioso com frontaria simétrica, mas bipartida, à qual correspondem, no interior, duas naves desiguais. Cada vez que aqui venho, cresce o deslumbramento.
Em frente dos Paços do Concelho, num largo que tem nome de proeminente político do fim da Monarquia, Hintze Ribeiro, destacam-se esplendorosos metrosideros, dão um peculiar aconchego à praça, têm o condão de tornar todo este espaço íntimo, ali com a ribeira a correr tão perto, ornada de belos jardins, e o oceano lá ao fundo.
Poucos edifícios camarários me deslumbram mais do que este. Os Paços do Concelho datam dos séculos XVII e XVIII, há um edifício constituído por um corpo principal, arco e Torre do Relógio, fica-se de boca aberta com a resplandecente harmonia deste desequilíbrio de formas.
Há obras em curso no Salão Nobre, pede-se licença só para tirar umas fotografias, licença dada, percebe-se que já foi feita a intervenção no teto e está impecável o lambril de azulejos da autoria de Jorge Colaço, o mesmo artista que deixou o seu génio legado a diferentes estações da CP, edifícios como o mercado de Santarém, e tantíssimo mais. Os temas são vincadamente do local como estes moinhos de água que ainda hoje deixam lembrança, ver-se-á adiante que se constrói habitação por cima do caudal da ribeira. Momentos há em que não é displicente a analogia com Veneza. Atenda-se também aos azulejos que falam da cultura do chá e as multiseculares cavalhadas de S. Pedro, uma das mais singulares festas que se realizam em S. Miguel.
Sai-se dos Paços do Concelho e tem-se em frente, do outro lado da ribeira, o imponente edifício do Teatro Ribeiragrandense, abriu pela primeira vez ao público em 1922, foi reinaugurado em 2000. Ver-se-á adiante como esta monumentalidade se projeta no equilíbrio do seu interior, aqui se realizam congressos e conferências, espetáculos de música, tertúlias literárias e até formação profissional.
O dia encaminhava-se para o ocaso, era forte a tentação de captar as colorações com o mar ali tão perto escudado pela Serra da Água de Pau, e veio-se depois até ao centro da vila, dos tons prateados e dourados até ao lápis-lazúli ocorreu este embelezamento entre a terra e o céu.
Assim se compreende melhor o que Jorge Colaço fixou naqueles azulejos do Salão Nobre, a correnteza da ribeira em prédios de habitação.
Quando o novo dia nascer, irei até à Biblioteca Daniel de Sá fazer a entrega de alguns livros, pois ali à porta está uma viatura que me fez recordar as bibliotecas itinerantes da Gulbenkian que levavam a cultura aos lugares mais ínvios, é, pois, esta a missão da Biblioteca sobre Rodas, o concelho tem as suas dimensões, divide-se em 14 freguesias, sendo a freguesia mais populosa a de Rabo de Peixe. A biblioteca serve as freguesias urbanas, caso da Ribeira Seca, onde se situa a belíssima Lagoa do Fogo até às freguesias rurais, caso de Pico da Pedra, terrunho berço de Cristóvão de Aguiar, que escreveu sobre a guerra da Guiné, escrita de muito boa qualidade.

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de > Guiné 61/74 - P25963: Os nossos seres, saberes e lazeres (646): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (171): As mulheres carregam o mundo, exposição de Lekha Singh, Museu Nacional de Etnologia (Mário Beja Santos)

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