1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Janeiro de 2018::
Queridos amigos,
Nunca me fora dado ler um relato de uma reunião com tanto
detalhe, debates abertos entre o governador, altamente documento, e os
administradores de circunscrição, presentes na conferência chefes de
serviço. Passou-se a pente fino um conjunto de dossiês, com relevância para
a economia agrícola, mais que compreensível, estávamos a chegar ao auge da
guerra, exigia-se que a colónia produzisse num máximo de autossuficiência
que adquirisse um outro elã exportador. Nessa economia agrícola, falou-se de
tudo, da seleção de sementes, da apicultura, dos preços do arroz, das
charruas, das queimadas e da reflorestação, das hortas e pomares. Mas também
da língua portuguesa, da ereção de mais igrejas e da política indígena
relacionada com a escolha dos régulos.
Ricardo Vaz Monteiro sai muto bem
neste retrato: competente, senhor do seu papel de governador, eivado de
nacionalismo. É bem provável que tenha sido ele a impulsionar este livrinho,
sem data, sem editor, bem discreto, mas que revela que há mais de três
lustros a Guiné já não tinha governadores de farsa, militares que estava ali
de passagem, o seu mandato foi de 1941 a 1945, segue-se o ilustríssimo
comandante Sarmento Rodrigues.
Um abraço do
Mário
Uma reunião invulgar: a Conferência dos Administradores, Bissau, 1941 (1)
Beja Santos
Estamos no início de Dezembro de 1941, o enorme conflito bélico que avassala a Europa e os territórios da União Soviética dá uma nova guinada, ao tempo ainda não se sabe que é determinante: os japoneses atacam a marinha norte-americana em Pearl Harbor e Hitler declara guerra aos Estados Unidos. A vida da colónia na Guiné tem restrições severas, a França capitular e o Reino Unido resistia às investidas alemãs, as exportações, o comércio em geral, viviam mais do contrabando e as receitas do Estado minguavam.
É governador da colónia o
capitão Ricardo Vaz Monteiro, dá-se a singularidade de estar entalado entre duas figuras que ganharam projeção, antes, Carvalho Viegas, que se lançou afanosamente nas obras públicas, e Sarmento Rodrigues, que traz uma estratégia distinta para a colónia: desenvolvimento, saúde, mais administração, um projeto para a educação e cultura.
A bibliografia sobre Ricardo Vaz Monteiro é escassa, e daí a imensa curiosidade em ler uma obra de apresentação quase anódina intitulada:
Império Colonial Português, Colónia da Guiné, Conferência dos Administradores, 1941, evento que se iniciou em 3 de Dezembro e encerrou no dia 9, eles não sabiam que dois dias antes a Força Aérea Japonesa se lançara com grande ferocidade sobre as embarcações de guerra norte-americanas no Havai.
Estão presentes na cerimónia de abertura o Ministro das Colónias, Francisco José Vieira Machado, a autoridade religiosa, os administradores de circunscrição e o alto funcionalismo guineense. Pretendia o Governador que os participantes expusessem livremente as suas opiniões, de acordo com um guião temático previamente distribuído.
Feitas as saudações iniciais, arrancam as interpelações com a questão das sementes, como aumentar a produção, que celeiros existem, a mancarra é tema central. Pronunciam-se os administradores de Bafatá, Bissau, Cacheu, Farim, Bijagós e Buba. Fica-se a saber que havia experiências com adubos, tinham sido distribuídos pela firma António da Silva Gouveia, experiências improfícuas, os indígenas olharam-nos com relutância.
O Governador diz ser indispensável organizar estatísticas, os elementos existentes não eram fiáveis. Segundo ele, deviam estabelecer-se celeiros para a escolha e guarda de sementes selecionadas, ficando as autoridades com a obrigatoriedade de incutir nos indígenas o espírito de previdência. E sentenciou que quando a quantidade de sementes se revelar insuficiente deverá recorrer-se a compras feitas pela Estado.
Segundo o secretário que fez a ata,
“Sua Excelência faz várias considerações acerca do tratamento a dar aos indígenas, os quais devem ser tratados com toda a humanidade, mantendo-se, em todas as circunstâncias, o prestígio das autoridades, com justiça e isenção de proceder, tanto quanto possível, pela bondade, mas sem recuar diante do emprego de medidas enérgicas de excepção, paternalmente aplicadas, quando necessário”.
Na manhã de 4 de Dezembro retomam-se os temas agrícolas, há novo debate sobre a seleção de sementes. Refere-se que a mancarra da Guiné é de muito boa qualidade, e nalguns anos a mancarra não tem tal nível não se deve atribuir a má qualidade da semente, deve ter-se em conta as condições climatéricas e da maior ou menor abundância das chuvas. Fica claro que a boa seleção das sementes abarca a vagem, a planta e o grão. Segue-se um debate sobre o preço do arroz, são por vezes enormes as distâncias para o distribuir, os revendedores tinham de suportar despesas com a camionagem. O governador apela ao diálogo com os comerciantes, o preço do arroz não podia estar sujeito a especulações, era o bem de consumo essencial por excelência.
Depois o Governador consulta dos administradores, pretendia saber como estavam a ser evitadas as camadas e conservadas as matas, deixou o seguinte comentário:
“Convirá que tudo se faça para plantar muitas árvores, porque do maior ao menor desenvolvimento florestal, tudo depende da maior ou menor abundâncias de chuvas”. E mostrou-se firme na crítica quanto à devastação das florestas feitas ao abrigo de licenças para corte de madeira, tanto de bissilão e alfarroba de lala para exportação como de outra árvores destinadas a madeira e lenha.
As interpelações mudaram de rumo, para o desenvolvimento agrícola. Fica-se a saber que havia na altura 150 charruas no Gabu que não eram utilizadas porque não havia gado nem pessoal adestrados para o seu uso. Vários participantes lembraram as dificuldades que existiam na lavoura mecânica a tração animal.
Na manhã de 5 de Dezembro, a conversa entrou diretamente na cultura do milho, debate com muitos pormenores, havia uma perceção geral de que o milho era muito importante mas só para o autoabastecimento. Na manhã seguinte, se dúvidas houvessem de que o governador estava muitíssimo bem informado, elas dissiparam-se. Falou com largueza de conhecimentos da exportação dos couros e do gado bovino, passou para a apicultura, e interpelou qual das duas produções seria mais vantajosa para a economia da colónia, o mel ou a cera. É útil transcrever o que o secretário registou na ata:
“O Governador questionou o Administrador de Bissau se o indígena apresentava a cera preparada em pães ou gamelas ou se é o comércio quem prepara a cera. O administrador informou que o indígena apresenta a cera já moldada em pães e com algum preparo. O governador desejou saber se a cresta é feita antes ou depois da enxameação, o administrador respondeu que é antes da enxameação e que o processo usado é pernicioso porque destrói os enxames visto que os indígenas praticarem a extracção do mel e da cera servindo-se do fogo, matando, assim a maior parte das abelhas”.
Isto foi o que se passou de manhã, à tarde a conversa mudou de rumo, orientou-se para a língua portuguesa e para a religião dos portugueses. Tudo começou com uma vasta apreciação de projetos para as igrejas nos locais mais significativos da colónia. O administrador de Cacheu disse que os professores falavam português e pediu ao Governador que fosse instituída uma missão católica portuguesa junto dos Felupes, a raça mais atrasada da sua circunscrição, para contrabalançar a ação missionária francesa da zona fronteiriça. Ficou-se a saber que ao nível da tropa eram os cabos que falavam em português e ensinavam a língua aos recrutas.
O Capitão dos Portos sugeriu que fossem proibidos no comércio os termos “pesos” e “patacões” como moedas e “jardas” como medida métrica.
O Governador considerou, após ouvir todas as apreciações e comentários que se podia assentar num programa para o próximo ano com o fim nacionalista de difundir pela colónia a língua e região de Portugal, deviam ser criados postos de instrução destinados a ensinar o indígena a falar português e a rezar como os portugueses.
No penúltimo dia da conferência, falou-se de hortas e pomares, viveiros e coleiras. O Administrador de Bafatá referiu que todas as tentativas para introduzir a cultura da coleira, mesmo entre as populações que fazem grande consumo da cola, têm sido infrutíferas. Das hortas e pomares passou-se para o gado cavalar e asinino, disseram-se coisas preocupantes. Por exemplo os indígenas do Gabu não compravam éguas para reprodução gostavam de adquirir os cavalos quase sempre no território francês, por luxo e para mostrar grandeza. O gado tendia a diminuir e houve mesmo quem predicasse as consequências do seu desaparecimento. Em termos de sugestões, o governador pediu que se incutisse lentamente no espírito dos indígenas a ideia de indústria pecuária, orientar a indústria para o bovino, e que se pensasse na distribuição do leite nas regiões próximas dos lugares mais importantes.
A conferência encerra com temas de política colonial, a pensar nos regulados. O Governador procurou deixar claro que a Reforma Administrativa Ultramarina dava competência aos administradores para investir chefes gentílicos na sua autoridade mas não lhes dava competência para escolher ou nomear os régulos, que são de sucessão hereditária, direta ou colateral, segundo os costumes locais, o governador tem o direito de escolher entre os parentes mais próximos quando o herdeiro não convenha à administração. E sublinhou que os administradores não podiam escolher ou nomear régulos, eram competência exclusiva do governador. O administrador de Bafatá falou da escolha do régulo de Badora, era um alferes de segunda linha com relevantes serviços prestados ao governo nas campanhas em que tomara parte, o que não acontecia com os filhos e sobrinhos do régulo.
E o último ponto da agenda derivou para as receitas e impostos da colónia. O que se passou nesta conferência de Dezembro de 1941 não se confina à síntese que aqui se fez das atas, vai-se seguir documentação como os despachos que encerram matéria do maior interesse.
Imagens retiradas do livro Guiné Portuguesa, II Volume, por Luís Carvalho Viegas, 1936
(Continua)
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Nota do editor
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