quarta-feira, 6 de junho de 2018

Guiné 61/74 - P18716: Historiografia da presença portuguesa em África (117): Uma reunião invulgar: a Conferência dos Administradores, Bissau, 1941 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Janeiro de 2018::

Queridos amigos,
Tenho razões fundadas para considerar esta obra como de grande relevo para a compreensão da mentalidade colonial do início da década de 1940.
Desconheço inteiramente qualquer tipo de iniciativa governamental como esta, uma conferência bem organizada, foram enviados despachos para os administradores e altos funcionários e corrigiram-se elementos relevantes nas memórias produzidas. Poderá questionar-se por que razão o Capitão Vaz Monteiro não abordou obras públicas e comunicações. A resposta parece ser simples, se pensarmos que estamos no auge da guerra, não há dinheiro, pode mesmo tomar-se esta iniciativa como o fazer das tripas coração e aproveitar a boleia da austeridade como um novo vetor de importantes mudanças, que o governador reconhecia como urgentíssimas, desde a economia agrícola, à dinâmica exportadora e ao uso da língua portuguesa.
Uma grande surpresa, esta conferência para administradores, em 1941.

Um abraço do
Mário


Uma reunião invulgar: a Conferência dos Administradores, Bissau, 1941 (2)

Beja Santos

Não posso deixar de confessar a grande surpresa que foi a leitura deste documento que, tanto quanto me parece, tem passado despercebido aos estudiosos da Guiné. O Capitão de Artilharia Ricardo Vaz Monteiro foi Governador da Guiné entre 1941 e 1945. Não conheço nenhuma iniciativa precedente deste jaez. No final de 1941, mais propriamente entre os dias 3 e 8, o Governador que enviara um conjunto de despachos aos administradores de circunscrição e responsáveis pelos serviços públicos da colónia, na presença do Ministro das Colónias, Francisco Vieira Machado, abriu uma conferência que, no seu dizer, tinha de ser franca, seria permitido a cada um dos participantes dar parecer sobre a matéria dos despachos. É uma edição bem estranha, não se sabe quem é o responsável pela edição, onde e como foi publicada, tem uma capa singela intitulada Conferência dos Administradores, Atas das Sessões Realizadas em 1941, sob a Presidência do Governador da Colónia, Capitão Ricardo Vaz Monteiro, seguidas de Despachos e Memórias.

Impressiona a preparação do governador, a exaustão dos temas e a competência que mostra no final de cada um dos debates, foi esta a matéria do texto anterior cuja leitura se recomenda para que a leitura deste ganhe mais transparência.

Em Novembro desse ano, o governador enviara a todos os participantes um rol de despachos, abarcando matérias tão diversas como: sementes e culturas; licenças para o exercício do comércio fora das povoações comerciais; utilização dos serviços dos ajudantes de pecuária, fiscais do Conselho Técnico de Agricultura e guardas florestais; melhoramento das condições de exploração agrícola indígena; cultura do milho; exportação do gado bovino; produção de couros; apicultura; concessões de terrenos; língua portuguesa e religião dos portugueses; pomares, palmares, hortas e viveiros; aumento das manadas e melhoramento das espécies; política indígena dos chefados e regulados; projetos dos orçamentos privativos dos concelhos e das circunscrições civis.

Cada um dos despachos inclui reflexões. Só alguns exemplos.
No despacho n.º 1, sugeria-se a escolha em cada região dos campos de mancarra com melhor aspeto. Depois de escolhida e convenientemente seca esta mancarra, ela devia ser conservada nos celeiros comunais. E o governador avançava com desafios: “Os administradores devem propor as medidas que julgarem convenientes para se aumentar a produção da mancarra, quer por compra de semente, quer por exigência indígena de maiores quantidades para os celeiros. Os administradores devem dar parecer sobre a conveniência de se manterem os atuais celeiros individuais, de povoação, dos postos e das sedes de circunscrição”.
No despacho n.º 2, entre outras reflexões, havia esta: “Não se tem cumprido a exigência do aproveitamento do terreno das concessões e das propriedades. Este facto muito tem contribuído para que o melhoramento das condições económicas da Colónia venha sendo prejudicado desde há longos anos”.
No despacho n.º 13, referente à política indígena, punham-se questões muito concretas: “Qual a maneira de evitar que o regime de chefados e dos regulados não provoque a agitação constante que se nota entre os pretendentes e os seus partidários?” e pediam-se comentários à seguinte consideração: “Tanto no caso de haver sucessão pacífica de conformidade com o direito consuetudinário como nos casos em que resulte interregno ou haja litígio, a experiência aconselha que a nomeação destas autoridades gentílicas seja feita pelos chefes dos postos, pelos administradores, pela Repartição Central dos Serviços da Administração Civil ou pelos governadores”.

Se há já surpresa na natureza desta iniciativa, ao que se crê sem precedentes, se se perceciona o alto calibre dos despachos, lê-se também com grande surpresa os elementos carregados pelas memórias trazidas pelos administradores e altos funcionários dos Serviços da Administração. Matéria de maior interesse, escolhemos hoje um conjunto de elementos fornecidos por alguns administradores, deixando os restantes para um terceiro e último texto.

O administrador do concelho de Bissau, a propósito do exercício do comércio fora das povoações comerciais apresentou a seguinte proposta: fiscalizar a ação dos senhores feudais, dizendo explicitamente que “na área de Bissau existe uma propriedade medindo cerca de 546 hectares onde a fiscalização das autoridades não pode ser exercida devido à oposição do proprietário. Neste vasto feudo, o seu detentor chega ao ponto de protestar pelos impostos que incidem sobre os seus (!) indígenas”. E foi opinativo sobre o crioulo: “O crioulo da Guiné, que difere do crioulo de Cabo Verde, é constituído por vocábulos diversos do português arcaico, inglês, francês, espanhol, línguas étnicas, dos povos que têm exercido influência na colonização da Guiné. Em nossa opinião, só uma ação persistente das autoridades e a criação de escolas móveis conduzirão o indígena, no fim de um certo número de anos, a familiarizar-se com a língua portuguesa”.

O administrador do concelho de Bafata observou que: “80% dos indígenas não sabem para que queremos nós a mancarra que lhe compramos e os restantes dirão que é para a comermos. Evidentemente que não se apercebe da conveniência em a apresentar livre de impurezas e com melhor aspeto. O que sabe é que isso representa para ele, um acréscimo de trabalho e uma diminuição de proventos. Se o comerciante lhe apresenta à venda em más condições, este habituar-se-ia a apresentá-los limpos, por fim convencido de que com má apresentação os não conseguimos vender em parte nenhuma, mas uma parte do comércio compra tudo: pedras, paus, terra e cascas”.

Veremos então no próximo texto outras observações e comentários de administradores de circunscrição, não se pode negar que se trata de um repositório invejável de notas que permitem, de algum modo, ajudar a qualificar a administração colonial na Guiné, no início dos anos 1940.




Nota:
Estas imagens foram retiradas da revista Defesa Nacional, um número de 1946 dedicado às comemorações do V Centenário da descoberta da Guiné, a primeira imagem é hoje um clássico, o soldado vigilante na fortaleza da Amura, a segunda mostra os bijagós à volta de um momento dedicado à pacificação e a terceira é para mim um achado, sempre ouvi falar nos cristãos de Geba e na importância da paróquia de Geba, nunca vira qualquer fotografia, a minha curiosidade está satisfeita.

(Continua)
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Notas do editor:

Poste anterior de 16 de maio de 2018 > Guiné 61/74 - P18641: Historiografia da presença portuguesa em África (114): Uma reunião invulgar: a Conferência dos Administradores, Bissau, 1941 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 17 de maio de 2018 > Guiné 61/74 - P18644: Historiografia da presença portuguesa em África (115): Otto Schacht, um comerciante alemão, que deu dores de cabeça às autoridades da colónia e à diplomacia portuguesa... e que terá sido avô de um outro Otto Schacht, futuro dirigente do PAIGC, assassinado em 14 de novembro de 1980, data do golpe de Estado de 'Nino' Vieira (Armando Tavares da Silva)

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