sexta-feira, 8 de junho de 2018

Guiné 61/74 - P18722: Notas de leitura (1073): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (38) (Mário Beja Santos)


Fachada do BNU iluminada


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Janeiro de 2018:

Queridos amigos,
Os primeiros relatórios da década de 1960 ainda estão redigidos com a satisfação de quem vê as exportações da mancarra e coconote de vento em pompa. Mas 1962 e 1963 já falam de importações maciças de arroz, as culturas do Sul definharam.
A administração do BNU faz perguntas sobre a Sociedade Comercial Ultramarina, o seu interesse por esta empresa irá dobrar e redobrar. Deverá ter mudado o gerente em Bissau, o seu relatório de 1964 é um documento espantoso, parece ter sido redigido por um visionário da economia agrícola disfarçado de homem de Estado a explicar para a sede do BNU que aquela agricultura precisa de mudar de rumo e explica tim-tim por tim-tim tudo quanto há para fazer, desde adubos e alfaias até ao corporativismo.
É um prosélito esquecido que a Guiné já está a ferro e fogo.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (38)

Beja Santos

Chegados à década de 1960, vamos notar que os relatórios provindos de Bissau continuam centrados sobre a economia agrícola, não deixando, em certos momentos, de trazer novidades, como a chegada, ainda a título experimental, do caju.

 Seria impossível iludir as consequências da luta armada e notar-se-á bastas referências à desarticulação do território, se bem que numa linguagem muito comedida. Falando de 1962 e 1963, adianta-se que a mancarra e o coconote são os produtos agrícolas da exportação que atingem expressão relevante. E fala-se assim do arroz: 
 
“O arroz, uma das culturas tradicionais, falhou. A cultura orizícola, outra próspera, que chegou a exprimir números apreciáveis e cujos excedentes exportáveis constituíram, noutros tempos, razoável arrecadação de divisas, sofreu forte redução em consequência da época anormal que a Província atravessa, a ponto de para abastecimento das populações ter de se recorrer aos mercados estrangeiros. Assim, por não ter sido possível, o Sul da Guiné, colher e transportar o apreciado cereal, alimentação base dos guineenses, importaram-se 3 mil toneladas de arroz de origem norte-americana”.

O relatório referente a 1963 fala numa nítida melhoria em relação ao ano anterior devido a uma excelente produção de mancarra e do coconote, dizendo que esta fora a maior de sempre. Refere-se assim ao arroz:  

“Por irregularidades de chuva, baixou a produção, provocando uma importação de 2 mil toneladas deste cereal, exagerada para as necessidades, pois se encontram ainda por vender cerca de metade do produto importado”.

A economia da Guiné, no primeiro ano da luta armada parecia sorrir. Curioso é verificar que no relatório subsequente se continua a referir a exportação da mancarra e do coconote, houve um ano agrícola de regular produção. Mas já não se iludem as dificuldades: o défice crónico da balança comercial foi agravado no ano de 1964 com mais um encargo da ordem dos 14 milhões de escudos destinados à importação de cerca de 4 mil toneladas de arroz originário da metrópole e dos EUA.

Ter-se-á mudado de gerente, tem-se agora um registo quase professoral no que toca à descrição da economia agrícola e que, como veremos adiante, será persistente no cariz pedagógico, tem-se por vezes a sensação que está ali um potencial homem de Estado a fazer recomendações a quem mais pode.

Vejamos o que ele escreve em 1964:  

“Praticamente inexistente, como já se tem afirmado, a indústria guineense é representada por escassas dezenas de unidades de quase nenhuma influência do conjunto económico da Província.

E porque assim é, só podemos contar, e por muito tempo, com uma estrutura económica de base agrária que, por esta razão, deve ser consolidada racionalmente e nos aspetos que mais possibilidades ofereçam de extração de riquezas e aumento da produção. Enquanto não for possível enquadrar outros produtos além do amendoim e do coconote, a economia será sempre vulnerável. A industrialização, embora dificultada pelas condições naturais do território que impossibilitam, praticamente, o aproveitamento de energia elétrica, deverá ser tentada com perseverança, pois daí advirá, sem dúvida, apreciável contributo para o fortalecimento económico da Guiné”.

Documento pertencente ao Arquivo Histórico do BNU

Em Maio de 1965, o administrador Castro Fernandes escreve para a gerência em Bissau, a propósito do relatório referente ao ano anterior:

“Recebemos a primeira parte do relatório que passamos a apreciar. Da sua leitura fica-nos a agradável impressão de existir por parte dessa gerência o firme desejo de aproveitar ao máximo as possibilidades da sua atuação numa praça que, felizmente parece ter registado maior desafogo em consequência de um regular ano agrícola e de um mais compensador comércio de importação e exportação. Como, porém, tais circunstâncias favoráveis não assentam em condições estáveis, dado que a produção agrícola está sujeita a fatores de diversa ordem e a permanência de elevados efetivos militares obedece a uma situação anormal, forçoso é reconhecer que são muito limitadas as perspetivas de resultados mais substanciais, sem abandonar a prudência de que desejamos ser sempre observada”.

E, mais adiante, a finalizar:  

“Cremos que para o surto de prosperidade económica e desafogo financeiro, além da circunstância apontada relativa à expansão demográfica, também não deve ser estranha uma melhor cotação dos produtos locais, pelo que nos ocorre perguntar se, na vossa opinião, existem melhores perspetivas futuras para a Sociedade Comercial Ultramarina que, ao contrário do que sucede com a maioria do restante comércio da praça não acusa melhoria na situação das suas contas no nosso banco”.

Na segunda parte do relatório escrito em Bissau voltava a referir-se a existências das três instituições (Caixa Económica Postal, Caixa de Previdência dos Funcionários Públicos da Guiné e Montepio das Alfândegas da Guiné) que faziam algumas operações com caraterísticas bancárias, tais como empréstimos garantidos por letras, declarações de dívida e hipotecas, destinados, em parte, à construção de habitações, tudo minuciosamente explicado.

E é aqui que começa um relambório totalmente inusitado, como houvesse necessidade de esclarecer a administração em Lisboa do bê-á-bá da agricultura guineense, até parece prosápia de quem se dirige a um auditório de ignorantes:

“A estrutura agrícola da Província assenta exclusivamente no rotineiro agricultor nativo, sem organização e sem meios capazes de por si só aumentar as suas produções.

 Ecologicamente a Província divide-se em duas grandes zonas: a Litoral, com excelentes condições para o desenvolvimento da orizicultura, nas terras baixas, os palmares naturais pouco explorados, e as zonas do centro e interior, onde a principal cultura é a da mancarra. A estas zonas correspondem, naturalmente, a distribuição de tribos que se adaptam a um género de exploração agrícola: arroz, coconote e mancarra.

Sendo a mancarra a base da economia da Guiné, e por alguns anos sê-lo-á ainda, até que se consiga a diversificação da produção agrícola, verifica-se que a cultura se processa por métodos anacrónicos que há a combater.

Todos os anos o nativo, perante a área esgotada, derruba a floresta ou a savana que submete à nova cultura e depois deixa de pousio ao fim de três ou quatro anos, ao sabor do capim e da queimada, ciclo vicioso que irá conduzir estas terras à laterização. Floresta ou savana: mancarra-capim – eis a trilogia das regiões do interior e parte litoral da Guiné a que poderá associar-se com uma relação causa-efeito: nativo-queimada – desertificação.
O fator condicionante da extensão agrícola é a água. Uma prolongada época seca, cerca de seis a oito meses, não permite nestas regiões culturas anuais de sequeiro; no entanto, analisados os problemas das diversas regiões da Província, verifica-se que poderia haver uma melhor ocupação da mão-de-obra humana. Assim, nas regiões de Bafatá-Gabu, a par do cultivo da mancarra na época pluviosa e das culturas alimentares, seria possível, à custa de regadios e portanto com pequenas barragens de terra, armazenar água para conseguir ocupar a mão-de-obra não utilizada. Região rica em gado, o cultivo de forragens para encilar seria certamente um dos caminhos a seguir. O fomento apícola naquelas regiões e nas extensas savanas e florestas abertas de Farim, ricas em espécies melíferas, poderia contribuir para uma substancial melhoria do nível de vida da população autóctone.
Em resumo, as áreas de Bafatá-Gabu e parte de Farim deveriam destinar-se a: mancarra-milho-culturas alimentares-exploração pecuária-mel.

O nativo tudo faz com o seu esforço próprio. Não alia á exploração agrícola, ou só raramente o faz, o auxílio valioso da tração animal. À custa do trabalho braçal, do arado Balanta ou da enxada Fula, tudo se consegue”.

Em nenhum outro relatório alguma vez se lera tal entusiasmo em descrever tal massa monumental de noções da economia agrícola para os administradores do Banco do Império. O gerente não se fica por aí, quer revolucionar o sistema, reclama formação, faz apelos ao corporativismo, ao recurso de adubos, como veremos em próximo texto. Lê-se este documento com um misto de perplexidade e admiração pela coragem deste neófito doutrinador, que talvez idealizasse que a partir do sistema bancário se iria inverter todo o processo agrícola naquele território cada vez mais marcado pela guerra subversiva.

 Equipa de basquetebol do BNU

(Continua)
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Notas do editor

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Último poste da série de 4 de junho de 2018 > Guiné 61/74 - P18707: Notas de leitura (1072): História das Missões Católicas na Guiné, por Henrique Pinto Rema; Editorial Franciscana, Braga, 1982 (3) (Mário Beja Santos)

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