Mostrar mensagens com a etiqueta Pedro Marquês de Sousa. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Pedro Marquês de Sousa. Mostrar todas as mensagens

terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24065: A nossa guerra em números (22): De um total de 1570 minas e outros engenhos explosivos implantados pelo PAIGC (de 1972 a 20 de abril de 1974), mais de três quartos foram neutralizadas pelas NT, com destaque para as minas A/P

Fonte: Relatório da 2ª Repartição/CCFAG relativo ao período de 1Jan73 a 150ut74, citado por CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da actividade operacional: Tomo II - Guiné - Livro III (1.ª edição, Lisboa, 2015), pág. 497.


1.   A propósitos das minas e outros engenhos explosivos usados na guerra do ultramar / guerra colonial (*), escrevemos:

(...) "As minas (A/C e A/P) e armadilhas (fornilhos, etc.) foram um dos "ossos mais duros de roer" na guerra que tivemos de enfrentar no TO da Guiné... Não sabemos quantas foram montadas, identificadas e levantadas... De um lado e do outro... Impossível haver estatísticas. Mas foram dezenas e dezenas, senão centenas, de milhares, ao longo dos anos, as minas que montámos, de um lado e do outro, para provocar baixas no campo do inimigo e desmoralizá-lo... Uma "arma suja", nesta e noutras guerras...

Pior ainda, não sabemos quantas foram accionadas pelas nossas viaturas, ou pelos nossos pés... Nem o número de mortos, feridos e incapacitados, provocados por estes engenhos mortíferos... Falamos de minas terrestres, mas também as havia aquáticas" (...)

Pedro Marquês de Sousa (em comentário de ontem, no Facebook da Tabanca Grande Luís Graça), escreveu:

(...) Durante o ano de 1973 foram detectadas 750 minas implantadas pelo PAIGC. Em Moçambique esta ameaça (minas) era ainda maior do que na Guiné, pois no mesmo ano (1973) temos o registo de mais de 2000 colocadas pela FRELIMO das quais 665 foram detonadas pelas nossas tropas (uma média de 55 minas detonadas por mês)" (...). (Ver livro do autor, ten cor na reserva, "Os números da Guerra de África", Lisboa, Guerra & Paz Editores, 2021, pp.174 , 184 e 185.

2. Veja-se o nosso poste P23450 (**):

Pedro Marquês de Sousa, no seu livro "Os números da Guerra de África"(Lisboa, Guerra & Paz Editores, 2021, 381 pp.), dá-nos algumas "dicas" sobre o consumo de minas A/C e A/P por parte das NT em Moçambique:

(i) para o ano de 1972, aqui vai um resumo das quantidades das principais munições e granadas fornecidas, em milhares de unidades (por arredondamento por excesso ou defeito) (adaptado por nós, op cit, pág. 301):

Munições 7,62 mm > 2152,3
Granadas de mão defensivas > 4,2
Granadas de mão ofensivas > 41,8
Granadas de morteiro 60 mm > 6,3
Granada de morteiro 81 mm > 5,7
Minas A/P (antipessoais) > 43,2

(ii) estranhamente, os consumos de minas nos anos de 1970 e 1971, em milhares, são muito díspares:

Minas A/C: 0,5 (1970) | (-) (1971)
Minas A/P:1,3 (1970) | 50,7 (1971)


Obviamente, as NT usavam muito mais das minas A/P do que as minas A/C...

Quanto aos prémios, na década de 1970, os valores já eram outros. Diz o Luís Dias [ex-alf mil Inf, CCAÇ 3491/BCAÇ 3872 (Dulombi e Galomaro, 1971/74), o nosso especialista em armamento]:

(...) Segundo corria no meu tempo, o que rendia eram as minas A/P a 1000 pesos, a mina A/C a 3000 pesos e as rampas de foguetões ou os foguetões 120 mm a 5000 pesos.(...) (**).


3. Ainda relativamente ao TO da Guiné, temos alguns dados referentes aos últimos anos da guerra, e às minas implantadas (pelo IN) e neutralizadas (pela NT) (vd. quadro acima).

Nos anos de 1972, 1973 e 1974 (até 30 de abril), o PAIGC implantou  1570 minas e engenhos explosivos, com destaque para as minhas A/P (sete em cada dez):

  • minas A/P: 1132 (72,1% do total); neutralizadas: 80,2% (quatro em cada cinco);
  • minas A/C: 381 (24,3% do total); neutralizadas: 74,8 % (um em cada quatro);
  • outros engenhos explosivos: 57 (3,6% do total); neutralizadas: 35,1% (um em cada três).
Total (minas e outros engenhos explosivos )minas aquáticas, armadilhas e outros): 1570 (100,0%); neutralizados: 77,6% do total (quase quatro em cada cinco).

De um total de 1570 minas e outros engenhos explosivos foram neutralizadas, pelas NT, 1218  (77,6%), o que é um "score" notável.

Houve, por certo, muito mais minas e armadilhas que ficaram por detetar,  e que provavelmente fizeram ainda vítimas (nomeadamente entre civis e animais) muito depois da guerra ter acabado.  

De qualquer modo, estes números  (***)tem de ser lidos no contexto do agravamento da situação político-militar no CTIG. Segundo o relatório da 2ª Rep/CCFAG, acima citado:

(...)  "O ano de 1973, juntamente com os primeiros meses de 1974 até ao 25 de Abril, constituem um período de nítido agravamento da situação militar, económica e político-subversiva no território da Guiné.

Este estado de coisas reflectia a agudização do problema colonial português, especialmente no plano internacional. Os movimentos emancipalistas, em particular o PAIGC, recebiam apoios ou ajudas de toda a ordem, cada vez mais generalizados, com destaque para os que eram canalizados através da ONU e OUA.

(...) As forças do PAIGC não só revelaram uma notável capacidade de manobra e confirmaram o extraordinário potencial de combate que lhes era atribuído, como alteraram profundamente o seu conceito de manobra no TO, passando da actuação dispersa em superfície para a concentração maciça de meios sobre objectivos definidos, normalmente distantes uns dos outros, com o propósito de hipotecar as reservas das NT no local oposto onde pretendia exercer o esforço. (...) (Negritos nossos).
____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 13 de fevereiro de 2023 > Guiné 61/74 - P24063: Roncos que davam prémios (em dinheiro)... mas podiam custar a vida: a deteção e levantamento de minas...

(**) Vd. poste de 22 de julho de 2022 > Guiné 61/74 - P23450: A nossa guerra em números (18): o consumo de munições e granadas pelo exército

(***) Último poste da série > 8 de agosto de 2022 > Guiné 61/74 - P23505: A nossa guerra em números (21): o esforço financeiro global, de 23 mil e 900 milhões de euros (em valores de 2008), dividiu-se por Angola e Moçambique (25%) e pela Metrópole (75%)

sexta-feira, 22 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23450: A nossa guerra em números (18): o consumo de munições e granadas pelo exército

A granada defensiva M26A1
m/63 (
Luís Dias, 2010) (**)
 

1. Quantos milhares de toneladas de munições,  granadas, minas, bombas e outros engenhos mortíferos consumiu a guerra do ultramar / guerra de África / guerra colonial (1961/74) ? (*)

Ninguém saberá responder a essa pergunta, nem do nosso lado nem muito menos do lado do IN de outrora...  

Quando muito,  há dados  parciais das NT, para alguns anos e teatros de operações (nomeadamente, Moçambique, 1970, 1971 e 1972), no que respeita ao número e tipo de munições e granadas consumidas por (e/ou fornecidas a) o exército.

Lá teremos que recorrer, mais uma vez, a um estudioso como o ten cor na reserva, Pedro Marquês de Sousa, doutorado em história pela FCSH / Universidade NOVA de Lisboa (2014), autor do livro "Os números da Guerra de África"(Lisboa, Guerra & Paz Editores, 2021, 381 pp.).  Escreve o Pedro Marquês de Sousa (op. cit., pág. 300): 

" O fornecimento de munições às tropas era um dos grandes desafios para a logística militar, pelo elevado peso e volume deste tipo de cargas, cujo transporte exigia ainda medidas especiais de segurança." 

Sabe-se, por outro lado, que "os depósitos de armazenamento em cada uma das frentes tinham de manter os níveis adequados em face do consumo elevado (sic) pelas unidades de combate".  Só em Moçambique, por exemplo, existiam oito complexos logísticos (Lourenço Marques, Beira, Tete.Vila Cabral, Mocuba, Nampula, Porto Amélia e Mueda), cada um deles devendo ter um "stock" crítico de material de guerra (munições, granadas e minas) (Op cit., pág. 302).

Ignora-se, por exemplo, quantos complexos logísticos deste tipo (ou depósitos de munições) existiam no TO da Guiné e onde estavam localizados... Pelo menos, deveria haver um ou mais em Bissau...

2. Ficamos com uma ideia aproximada dos consumos médios de munições e granadas, também por via dos  fornecimentos. 

Veja-se, por exemplo, para o caso de Moçambique, e para o ano de 1972, um resumo das quantidades das principais munições e granadas fornecidas, em milhares de unidades (por arredondamento por excesso ou defeito) (Adaptado por nós, op cit, pág.301):
  • Munições 7,62 mm > 2152,3
  • Granadas de mão defensivas > 4,2 
  • Granadas de mão ofensivas > 41,8
  • Granadas de morteiro 60 mm > 6,3
  • Granada de morteiro 81 mm > 5,7
  • Minas A/P (antipessoais) > 43,2 
No entanto, o consumo em operações era muito superior a estas quantidades (Vd. Quadro 1)_




Com base nestes números (Moçambique, em 1970 e 1971), o autor faz (indevidamente, quanto a nós, já que a média estatística pode ser altamente enganadora) uma estimativa do consumo médio anual de munições e granadas de uma "companhia operacional do Exército" (tipo "companhia de caçadores") (Op cit., pág. 302):

  • Munições 7,62 mm > 34000
  • Granadas de mão > 260
  • Granadas de morteiro > 200
  • Granadas foguete bazuca 8,9 > 30
Embora o autor ressalve que estes "valores médios" (sic)  "variavam naturalmente conforme a zona e a (...)  condição"  da unidade ou subunidade operacional  (companhia de intervenção, companhia de quadrícula, etc.), achamos que são valores que tanto podem pecar  por excesso como por defeito...  Não nos parece, todavia,  que se possam extrapolar, facilmente  para um teatro de operações na Guiné, com as suas especificidades... 


3. O consumo de munições podia variar conforme o tipo de acção  do IN e a sua duração, o treino, a disciplina de fogo das NT,  o armamento, a missão, etc.

Por exemplo, numa emboscada de vinte minutos, no mato, numa picada ou numa estrada, uma companhia ou destacamento (em geral, três grupos de combate), 60/70 (e nunca 90) G3 podiam despejar no máximo 4 carregadores de 20 cartuchos cada uma, o que daria uma média de 4800/5600 cartuchos...  

Depois havia, por cada grupo de combate (estou a pensar numa companhia de intervenção como a minha, a "africana" CCAÇ 12),  mais as seguintes armas com os respetivos apontadores e municiadores (estes também equipados, em geral, com a G3, enquanto o apontador levava uma pistola Walther 9mm):

  • 3 apontadores de dilagrama (um por secção de 9 ou 10 elementos);
  • 1 apontador + 1 municiadores de metr lig HK 21 (de fita);
  • 1 apontador + 1  municiador de LGFog 8,9;
  • 1 apontador + 1 municiador de LGFog 3,7;
  • 1 apontador + 1 municiador de morteiro 60...

Em resumo, três Grupos de Combate (mesmo completos) nunca queriam dizer 80 ou 90 espingardas automáticas G3, uma arma poderosa e fiável, melhor que a AK47, na opinião do antigo sargento 'comando', com 4 comissões, na Guiné e em Angola, o nosso querido amigo e camarada, Mário Dias (***), e que tinha com uma cadência  (teórica) de 600/650 tiros por minuto (****).

Por sua vesz, e desde que não encravasse, a HK 21 (melhor só a MG42, mas muito mais pesada, c. 12 kg.) podia despejar  centenas de munições 7,62 mm na resposta a uma emboscada... Mas em geral a malta tinha que saber  gerir as munições, para poder chegar ao quartel com segurança...

Já na resposta aos ataques ao quartel, destacamento ou tabanca em autodefesa, de uma hora, cada G3 podia facilmente consumir 8 ou mais carregadores, de 20 munições cada... Milícias e civis em autodefesa tinham muito menos disciplina de fogo do que os miliatres... 

Por outro lado, nas flagelações à distância (com morteiro 82 e 120, canhão s/r,  foguetões 122 mm), era disparatado fazer tiro com a G3 (cujo alcance prático era de 300 metros)... Mas a verdade é que não havia cão nem gato (sem ofensa para nenhum camarada...)  que não aproveitasse para fazer o gosto ao dedo, entrincheirado nos abrigos ou valas...

No mato, nos golpes de mão ou ataques das NT a objetivos IN (acampamentos, bases, etc.), a história era outra, e a disciplina de fogo era fundamental.

E depois havia a instrução e o treino na carreira de tiro... Não me lembro de alguma vez ter sido feito tiro na carreira de tiro de Bambadinca, depois de nós termos vindo do Centro de Instrução Militar de Contuboel em 18 de julho de 1969... Nem me lembro, no meu tempo,  de haver restrições ao consumo de munições 7,62 mm... Tal como não me lembro quantas munições 7.62 mm levava (e quanto pesava) o respetivo cunhete de madeira... Pode ser que algum dos nossos quarteleiros se lembre... (e tenha fotos que nos possa facultar).

Pedro Marquês de Sousa cita, nas páginas 302/303 do seu livro, a Op Nó Górdio, que decorreu no Norte de Moçambique,  de 1 de julho e 6 de agosto de 1970, que terá envolvido mais de 8 mil militares, e uma complexa logística. Aponta para os seguintes consumos nessa operação:
  • Géneros alimentícios >  590 toneladas;
  • Rações de combate > 260 toneladas / 130 mil rações;
  • Gasolina > 340 mil litros;
  • Gasóleo > 460 mil litros;
  • Munições > 158 toneladas.

4. Sabe-se que uma companhia (160 homens, em média) precisava de cerca de 880 toneladas de abastecimentos ao fim de uma comissão de 22 meses (40 em média por mês), incluindo 15,4 toneladas de munições (0,7 t por mês), o que em termos relativos representava apenas 1,75% do total (*****).


 Enfim, ainda falando de consumos de munições, granadas, minas, etc., não temos números relativamente à artilharia no CTIG (no final da guerra, havia mais de uma centena de obuses 10,5e 14  e peças de artilharia 11,4, espelhados pelo território), nem relativamente à FAP e à Marinha...  

Pode ser que alguma camarada destas armas satisfaça a nossa curiosidade (que é meramente intelectual, ao fim destes anos todos)...

Falaremos, entretanto,  de alguns consumos parcelares  da FAP (bombas, cartuchos, foguetes, napalm...) num próximo poste desta série.

__________



(...) É muito vulgar e frequente tecerem-se comentários depreciativos à espingarda G3, quando comparada à AK47. Em minha opinião, nada mais errado. Analisemos, à luz das características de cada uma e da sua utilização prática, os prós e contras verificados durante a guerra em que estivemos empenhados em África:

Comprimento: G3 - 1020mm |  AK47 - 870mm;

Peso com o carregador municiado: G3 - 5,010Kg |  AK 47 – 4,8Kg;

Capacidade dos carregadores: G3 – 20 cartuchos | AK47 – 30 cartuchos;

Alcance máximo: G3 – 4.000m |  AK47 – 1.000m;

Alcance eficaz (distância em que pode pôr um homem fora de combate se for atingido):
G3 – 1.700m |  AK47 – 600m;

Alcance prático: G3 – 400m |  AK 47 – 400m

(...) Se, por um lado, temos mais tiros para dar sem mudar o carregador, por outro lado esse mesmo facto leva-nos facilmente, por uma questão psicológica, a desperdiçar munições. E todos sabemos como o desperdício de munições era vulgar da nossa parte apesar de os carregadores da G3 serem de 20 cartuchos.

O usual era, infelizmente, “despejar à balda” sem saber para onde nem contra que alvo. Sem pretender criticar a maneira de actuar de cada um perante situações concretas, eu, durante todas as acções de combate em que participei ao longo de 4 comissões, o máximo que gastei foi um carregador e meio (cerca de 30 cartuchos). Por tal facto, em minha opinião, a dotação e capacidade dos carregadores da G3 é mais que suficiente, além de que os próprios carregadores são mais maneirinhos e fáceis de transportar que os compridos e curvos carregadores da AK47. (...)

(****) Vd. poste de 23 de janeiro de 2010 > Guiné 63/74 – P5690: Armamento (2): Pistolas, Pistolas-Metralhadoras, Espingardas, Espingardas Automáticas e Metralhadoras Ligeiras (Luís Dias)

(*****) Vd. poste de 11 de novembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22707: A nossa guerra em números (4): Cada militar necessitava em média, por mês, de 240 kg de abastecimentos (no essencial, víveres e artigos de cantina, mais de 70%)... O consumo "per capita" mensal de outros artigos era o seguinte: 50 kg de combustíveis; 4,4 kg de munições; 3,1 kg de medicamentos; 1,6 kg de correio... E, miséria das misérias, tínhamos direito a... 520 gramas de víveres frescos por dia!

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P23022: A nossa guerra em números (14): Até 1966, as despesas com o transporte, até Lisboa, de uma urna de chumbo com os restos mortais de um militar, a suportar pela família, variavam entre 10 e 15 contos, conforme a província (Angola, Guiné ou Moçambique)





Telegrama, assinado pelo Comandante do DGA (Depósito Geral de Adidos, quartel da Ajuda, Lisboa), com data de 27 de novembro de 1962:

"6797 - E informo foi recebida comunicação Angola informando ser possível  traslação Metrópole restos mortais seu esposo 2.º sargento Justino Teixeira Mota. Caso deseje informar urgentemente este Depósito e depositar dez contos ou indicar  fiador idóneo. Comandante DGA.".

O 2.º Sargento de Transmissões  Justino Teixeira da Mota tinha embarcado no navio Vera Cruz, com destino a Angola, em 12 de Agosto de 1961, integrado na CCAÇ Esp. 266. Era casado, pai de um menino com dois meses de vida (o António) e de uma menina um pouco mais velha. A família vivia em Avintes, V. N. Gaia. Quis o destino que, num acidente de viação, em 18 de Outubro de 1962, perto de Maquela do Zombo, perdesse a vida. Em resposta ao telegrama do DGA, a família pediu, em 28/12/1962, que não se efectuasse a transladação dos restos mortais, certamente pro carência económica. Em 1962, 10 contos equivaleria, a preços de hoje, a 4.318,49 € (conversor da Pordata).

Fonte: Poste P2651 (*)


1. Um dos capítulos mais pungentes da guerra de África ou guerra colonial, para além das baixas por morte (em combate, acidente ou doença), era a transladação (ou trasladação), o transporte dos restos mortais dos militares, sepultados em África para os cemitérios das suas terras natais.

Só com a utlização de urnas de chumbo, começou a ser possível a transladação para a Metrópole, embora a expensas da família. 

Até 1966, as despesas com o transporte, até Lisboa, de um urna de chumbo com os restos mortais de um militar, a suportar pela família, variavam entre 10 e 15 contos, conforme a província (Angola, Guiné ou Moçambique). A preços atuais, seria qualquer coisa como 3.687,81 € e 5.531,72 €, respeticamente (de acordo com o conversor da Pordata).  Estas quantias eram incomportáveis para a generalidade das famílias portuguesas de então.

Com o Regulamento de Transladações, publicado em 2 de março de 1967, o transporte dos corpos dos militares falecidos em África passou a ser assegurado pelo Estado, utilizando-se então o sistema de transportes militares. 

Como este era moroso, havia famílias que preferiam optar pelas carreiras áereas regulares, neste caso a TAP: em 1967, os encargos para as famílias era de 5.250$00, 10.580$00 e 2.180$00, a partir de Angola, Moçambioque e Guiné, respetivamente. (**) 

A preços de hoje, esses valores supra corresponderiam a 1.852,73 €, 3.733,69 € e 769,32 €, respetivamente. 

Não temos dados sobre o número de transladações efetuadas antes e depois de 1967.

Fonte: Adapt. de Pedro Marquês de Sousa - "Os números da Guerra de África". Lisboa, Guerra & Paz Editores, 2021, pág. 320

terça-feira, 18 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22917: A nossa guerra em números (12): baixas militares e civis, de um lado e do outro... Por cada militar português morto, terá havido 2,7 guerrilheiros mortos... Na Guiné, o PAIGC terá tido 9 mil baixas, entre mortos (78%) e feridos (22%), entre guerrilheiros e população sob o seu controlo. Mas o nº de feridos pode estar subestimado e o de mortos sobreestimado.

Quadro 1 - Guerra colonial / Guerra de África (1961/74): baixas civis, vítimas da acção da guerrilha. Estimativa com base nos relatórios militares portugueses. Fonte: Adapt. de Pedro Marquês de Sousa - "Os números da Guerra de África". Lisboa, Guerra & Paz Editores, 2021, pág. 154.

 

1. Quantos civis (crianças, mulheres, homens, idosos) terão morrido na guerra da Guiné, a exemplo da "Mariema" do pungente poema do Alberto Bastos (*) ? E dum lado e do outro... 

Nunca saberemos ao certo... A única fonte disponível são os relatórios militares portugueses que poderão pecar nuns casos por excesso (nº estimado de guerrilheiros mortos) ou por defeito (elementos civis, nomeadamente entre a população apoiante da guerrilha ou sob o seu controlo).

Pedro Marquês de Sousa, o autor de "Os números da Guerra de África" (Lisboa, Guerra & Paz Editores, 2021) (tenente-coronel na reforma, mestre e doutor em História e ex.professor na Academia Militar e no Instituto Universitário Militar) que temos vimdo aqui a citar, dedica apenas três páginas às "baixas civis", do lado português, nos três teatros de operações (pp. 154/156). (**)

A estimativa do autor aponta para 6200 mortos e 12200 feridos, em Angola, Guiné e Moçambique, num total de 18400 baixas civis,  em resultado da acção da guerrilha,  diretamente (ataques e bombardeamentos a aldeias) e indiretamente (minas e armadilhas) (pág. 154). 

Segundo o Quadro 1, acima publicado, Angola teve mais mortos em números absolutos e relativos. E a Guiné terá tido mais feridos...

Citando o autor:

"As baixas civis foram mais expressivas em Angola, sobretudo no início da luta armada (1961), quando foram atacadas as fazendas dos colonos brancos, mas também noutros períodos em que as vítimas eram quase todas africanas, como ocorreu em 1968-1970, numa fase em que a guerra decorria nas duas frentes (Norte e Leste), realidade que também resultou da rivalidade entre os movimentos de libertação" (pág. 154).

No que diz respeito a Moçambique, é a frente que apresenta menos baixas civis, "embora a quantidade de mortos e feridos tenha aumentado bastante nos últimos anos da guerra" (pág.155).

"Na Guiné, a quantidade de baixas civis também foi aumentando, à medida que a situação militar evoluía megativamente para os portugueses" (pág. 156).

2. Veremos, num próximo poste, com mais detalhe,  as nossas baixas militares e as baixas entre os guerrilheiros (, incluindo prisioneiros, para além dos mortos e feridos).

O autor estima que por cada combatente morto (por todas as causas), do lado português, terá havido 2,7 guerrilheiros mortos: em termos absolutos, 10409 mortos entre as NT, e 28266 do lado dos movimentos nacionalistas (pág. 164) (Quadro 2).

Nas baixas da guerrilha, deverão estar  naturalmente também civis, elementos da população que apoiavam a guerrilha ou estavam sob o seu controlo. Impossível, muitas vezes,  num guerra deste tipo ("subversiva", para as autoridadades portuguesas de então; de "libertação", para os movimentos nacionalistas),  conseguir-se separar os "civis" dos "combatentes". 

Na Guiné, o PAIGC terá tido 9 mil baixas, entre mortos (78%) e feridos (22%) (Quadro 2).

Parece-nos que o nº de feridos está  francamente subestimado (e o de mortos pode estar sobreestimados): vimos, no poste anterior (**) que o autor, Pedro Marquês de Sousa,  encontrou, para o caso das NT. um rácio de 10 feridos (hospitalizados) por cada morto. O nº de mortos estimados para a Guiné corresponderá grosso modo ao nº máximo de  combatentes do PAIGC  ao longo da guerra: 6000 guerrilheiros e 2000 milícias, segundo o autor que temos vindo a citar (pág. 331).

Aliás, basta comparar os dois quadros, 1 e 2: nas baixas civis, do lado português, a proporção dos feridos é sempre superior à dos mortos: 55% para Angola, 78% para a Guiné e 71% para Moçambique.  O Quadro 2 deve ser analisado com cautela uma vez que nas baixas dos movimentos nacionalistas é impossível separar os combatentes e os civis. 

Estes dados têm que ser vistos com reservas, já que são provenientes de uma única fonte (os relórios militares portugueses). Mas provavelmente também não há outros, válidos e fiáveis.


Quadro 2 - Guerra colonial / Guerra de África (1961/74):  baixas dos movimentos nacionalistas: guerrilheiros e população apoiante.  Estimativa com base nos relatórios militares portugueses. Fonte: Adapt. de Pedro Marquês de Sousa - "Os números da Guerra de África". Lisboa, Guerra & Paz Editores, 2021, pág. 164.
__________

terça-feira, 28 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22851: A nossa guerra em números (11): Pedro Marquês de Sousa estima um rácio de 10 feridos por cada morto... A Guiné teve, em números absolutos e relativos, mais feridos graves em combate e Angola por acidente


Guiné > Região de Bafatá  > Sector L1 > Bambadinca > CCAÇ 12 (1969/71) > A solidariedade dos combatentes... Dois soldados, guineenses, do 3º Grupo de Combate, do Alf Mil At Inf Abel Rodrigues, amparam o 1º Cabo Carlos Alberto Alves Galvão, metropolitano (vive hoje na Covilhã, estando reformado da Direcção Geral das Contribuições e Impostos), comandante da 1ª secção, o homem que cometeu a proeza de ter sido ferido duas vezes no decurso da mesma operação (Op Boga Destemida, 9 de Fevereiro de 1970).

"Slide" do Fur Mil At Inf Arlindo T. Roda, comandante da 2ª secção, que nesses dias (8 e 9 de Fevereiro de 1970) levou para o mato  a sua máquina fotográfica... (Não era vulgar levar-se uma máquina de fotografia, para o mato, em operações, numa região como esta em que a probabilidade de contacto com o IN era muito alta. Estou muito grato ao Roda, que já não vejo desde 1994, e que vive em Setúbal, por generosamente nos disponibilizar a sua fabulosa colecção de "slides", convertidos para o digital...)

Foto: © Arlindo T. Roda (2010). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Escrevemos em poste anterior (P22847) (*):

Segundo Pedro Marquês de Sousa ("Os números da Guerra de África". Lisboa, Guerra & Paz Editores, 2021, pág. 144), dos cerca de 28 mil feridos graves evacuados durante a guerra (nos 3 teatros de operações), "resultaram cerca de 14 mil deficientes", dos quais "5120 com grau de deficiência superior a 60%"...

Além disso, desses 14324 feridos graves e deficientes, 1852 estão classificdos na categoria de "amputados" (12,9%), dos quais 480 em Angola, 540 na Guiné, 697 em Moçambique e 135 na instrução e serviço militar. 

Algumas centenas destes amputados deverão ter sido tratados e recuperados no Hospital Militar de Hamburgo, acrescentámos nós, ao longo da guerra.

Já agora vale a pena deixar aqui mais informação estatística sobre feridos e deficientes, militares, da guerra colonial / guerra do ultramar / guerra de África (1961/74) (**). Citando o Pedro Marquês de Sousa (que por sua vez se baseia nos historiógrafos Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes,  e estes em dados  da ADFA - Associação dos Deficientes das Forças Armadas), temos o seguinte quadro, adaptado por nós,  que dá muito para reflectir:

O número de feridos graves e deficientes distribuem-se assim pelas quatro situações (os três teatros de operações e a Instrução / Serviço Militar): 

  • Angola (31%)
  • Mocambique (23%)
  • Guiné (25%)
  • Instrução / Serviço Militar (21%)

Tendo em conta que a Guiné era um território muito mais pequeno (equivalene
te ao Alentejo), mobilizou menos efetivos que Angola e Moçambique,  e em que a guerra começou mais tarde (em relação a Angola), há indícios de que naquele teatro de operações terá havido, proporcionamente, mais amputados (29% do total), mais cegos e amblíopes (31%), mais casos de surdez (total, parcial e outras deficiências auditivas) (33%)... Estes dados terão que ser analisados com cuidado, precisávamos de saber a origem dos ferimentos graves e deficiências (em combate ou acidente).

Em 1973, por exemplo, o número de militares presentes nas 3 frentes era de cerca de 163 mil (mais exatamente, 162 996) (pág. 95), assim distribuidos pelos 3 teatros de operações 

  • Angola: 43,3 %
  • Guiné; 21,8 %
  • Moçambique: 34,9 %

2. O total de mortos, entre os combatentes portugueses,  é agora calculado em 10425 (pág. 97). 

Segundo a fonte que estamos a usar (Sousa, 2021), o total de feridos (dos três ramos das Forças Armadas) ascenderia a 117 mil, na sua grande maioria (96%) pertencentes ao Exército, e distribuindo-se do seguinte modo pelos 3 teatros de operações (pág. 142):

  • 41% em Angola
  • 29% na Guiné
  • 30% em Moçambique 

Um dado relevante apurado por Pedro Marquês de Sousa é o rácio de 10 feridos (hospitalizados)  por cada morto. Grosso modo, tivemos mais de 100 mil feridos (hospitalizados), nos 3 ramos das Forças Armadas (pág. 142). (Por "hospitalizados" entende-se entradas de feridos nos hospitais e enfermarias dos setores.)

Num outro quadro publicado na pág 143, e adaptado por nós, mostra-se a distribuição em números absolutos e relativos dos feridos graves em combate e feridos graves por acidente nos 3 teatros de operações.


Num total de 31,3 mil feridos graves, mais de metade foi em combate (N=16200), dos quais 44,5 % ocorridos no TO da Guiné. Angola teve mais feridos por acidente (43,7% mum total de 15100).

Para uma análise mais detalhada destes  (e doutros dados) recomendamos o livro do tenente-coronel, doutorado em História, Pedro Marquês de Sousa.

________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 26 de dezembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22847: Memória dos lugares (434): Hospital Militar de Hamburgo, onde estiveram internados, para tratamento e reabilitação, camaradas nossos deficientes como o Quebá Soncó (CCAÇ 1439) e o António Dias das Neves (CCAV 2486): não se sabe quantos, mas devem ter sido algumas centenas de um total de mais de 1800 "amputados", entre 1964 e 1974

(**) Último poste da série > 12 de dezembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22803: A nossa guerra em números (10): o Movimento Nacional Feminino tinha um orçamento ordinário de 10 mil contos (cerca de 2 milhões de euros, a preços de hoje) e uma gestão pouco profissionalizada, retirando-lhe credibilidade e apoios da sociedade civil

quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22772: A nossa guerra em números (9): dizia-se que a velha GMC, do tempo da guerra da Coreia, gastava no CTIG "cem aos cem"... E as nossas aeronaves, o AL III, o DO-27, o C-47, o T-6 e o Fiat G-91, quanto é que "mamavam" por hora ?...


Guiné > Região de Bafatá > Bafatá > O célebre e velhinho caça-bombardeiro T6 G, tanbém conhecido por "ronco", na pista de aviação de Bafatá, Em primeiro plano, o fur mil at nf da CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71) Arlindo T.Roda (, o grande fotógrafo da CCAÇ 12, juntamente com o Humberto Reis).   Os T 6G vão desempemhar um importante papel no final da guerra.... Mas eram "poupadinhos" em combustível (menos de 200 litros por hora em média), quando comparados com os "glutões" dos Fiat G-91 (c. 1800 litros em média, por hora).

Foto: © Arlindo T. Roda (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].



1. Foi,  ao ler o livro, hoje de consulta obrigatória para os estudiosos da história, economia, demografia e socioantropologia da guerra colonial (1961/74), "Os números da Guerra de África", de Pedro Marquês de Sousa (Lisboa, Guerra & Paz Editores, 2021, 379 pp.), que eu me apercebi melhor da  altamente complexa  e dispendiosa logística, mantida em África ao longo de mais de década e meia, pelas nossas Forças Armadas (Exército, Marinha e Força Aérea) (*)...

Nenhum de nós, que esteve no TO da Guiné, alguma vez procurou saber, por exemplo, quanto custava:

(i)  uma viagem de DO-27, que nos vinha trazer o correio, de Bissau aos quartéis do mato e, às vezes, transporatndo  à boleia algum de nós, no regresso da licença para gozo de férias, e levando no regresso uma mulher em hora de parto ou a precisar de urgentes cuidados hospitalares;

(ii) a proteção do helicanhão (o "lobo mau"), no regresso de uma operação com contacto com o IN, e com mortos e/ou feridos das NT;

(iii) uma helievacução, com a enfermeira paraquedista a bordo (a Arminda, a Rosa Serra, a Giselda..:);

(iii) um bombardeamento a uma base do PAIGC, pelo Fiat G-91, no interior do território ou nas regiões fronteiriças (que era o limite da sua autonomia: ia a Buruntuma mas não podia parar para "partir mantenhas" com o pessoal");

(iv) a escolta do T-6 que, por vezes, acompanhava, a "ronvar",  a viagem de uma LGD carregada de "periguitos", pelo rio Geba acima (Bissau-Xime);

(v) a descolagem e a aterragem de um avião de transporte como o Dakota, C-47...

Não,  a malta não sabia, pelo menos a rapaziada que não foi à Guiné só para "ver navios"... Também havia, no céu, aeronaves de vários tipos e feitios... E que nos davam muita confiança... quando, cá em baixo, nos começava a dar a "caguça", nomeadamente o T-6, o helicanhão e o Fiat G-91 R-4... (Já do DO-27 não gostávamos tanto, sobretudo quando se "armava em PCV")...

Mas o ten cor Pedro Marquês de Sousa, doutorado em história militar, verdadeiro "rato de biblioteca", descobriu para nós, no Arquivo Histórico da Força Aérea, dados preciosos sobre o consumo de combustível de várias aeronavas da BA 12, Bissalanca, Guiné... 

2. A partir do consumo em litros, no mês de dezembro de 1968, e do nº de horas de voo, calculámos, por nossa conta e risco, o consumo médio por hora para cada tipo de aeronave... E os resultados são surpreendentes para um leigo, como nós:

a) o helicóptero Alouette III (ou Al III) gastava menos de l litro por minuto: grosso modo, 50 litros por hora, em média;

b) o DO-27 já gastava um pouco mais: 55 litros em média, por hora;

c) o velho  Dakota, C-47, triplicava o consumo: mais de 150 litros em média, por hora;

d) a velha máquina de guerra,  o T-6,  chegava quase aos 200 litros;

e) e o "Gina", o Fiat G-91 R-4,  batia o recorde, chegava quase aos 1800 litros.

Procurei confirmar, junto dos nossos camaradas Miguel Pessoa e António Martins de Matos, antigos pilotos de Fiat G-91 R-4 (B 12, Bissalanca, 1972/74), essa informação sobre o consumo de combustível do nosso "Gina"...

E na 1ª edição do livro do António Martins de Matos (hoje ten gen PilaAv ref), "Voando sobre um ninho de ' strelas' " (Lsboa, BooksFactory, 2018), pág. 67), lá vai a especificação técnica que eu procurava:

"O avião  era abastecido com 3.600 libras (1.800 litros) de combustível. Como regra geral os pilotos contabilizavam à volta de 1.000 libras para o pôr em marcha, rolar, descolar e subir, 600 libras até ao local, outras 1.000 libras para o regresso, o que sobrava era o tempo (combustível) que se podia utilizar na zona de operação" (pág. 67). 

E acrescenta: 

"No ponto mais afastado da Base (região de Buruntuma) e sem depósitos exteriores, o tempo que se podia estar sobre o objetivo era...zero".

O peso vazio do "Gina" era de 2 mil kg e o máximo à descolagam eram 4,7 mil kg (pág. 59). As missões  desta aeronave eram "quase sempre missões de combate": preparadas (ATIP), em reconhecimento (ATIR) ou em alerta (ATAP). A autonomia variava emtre os 55 minutos (sem "droptanks", os tanques exteriores de combustível) e a hora e meia (com "droptanks"). (pág. 65).

Podemos ainda concluir que, com 31 areonaves no ar, a BA 12, Bissalanca, gastou, em dezembro de 1968, cerca de 344 mil litros de combustível (Vd. quadro acima).

À face destes números, quem diria que o AL III era "uma arma cara" ("15 contos por hora") ?... A frase consta do relatório do comandante da Op Lança Afiada (,Sector L1, Bambadinca, março de 1969), o então cor inf Hélio Felgas (**).

Infelizmente, não temos dados globais sobre o consumo de combustível pela FAP nos três teatros de operações. Mas temos para Angola, por exemplo: diz o Pedro Marquês de Sousa, que "para as operações aéreas em Angola, a Força Aérea gastava todos os meses quase 1 milhão  e 200 litros de combustível"... 

Por outro lado,  e devido ao seu uso frequente, em Angola, o  helicóptero tinha um custo de 12 contos por hora, de acordo com dados do planeamento da Força Aérea (pág.313). 

Aqui a FAP gastava, em média, 7 mil contos só com combustível, no início da década de 1970 (, 2 milhões de euros a preços de hoje)... Sem contar com o custo das munições (balas, foguetes, bombas) que, "no caso das missões de ataque ao solo", representavam "70% a 80%  do custo total da operação" (pág. 313).

Como seria de esperar, o consumo de combustível para as aeronaves da FAP (e dos TAM)  foi aumentando com o decurso da guerra, com os inerentes custos... E com a crise petrolífera de 1973 devem-se ter agravado, nomeadamente os custos...
______________

Notas do editor:

(**) Vd. poste de 3 de dezembro de  2008 > Guiné 63/74 - P3557: Controvérsias (16): Eu, Jorge Félix, ex-Pilav de helis, a Op Lança Afiada e a honra da nossa Força Aérea

quinta-feira, 11 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22707: A nossa guerra em números (4): Cada militar necessitava em média, por mês, de 240 kg de abastecimentos (no essencial, víveres e artigos de cantina, mais de 70%)... O consumo "per capita" mensal de outros artigos era o seguinte: 50 kg de combustíveis; 4,4 kg de munições; 3,1 kg de medicamentos; 1,6 kg de correio... E, miséria das misérias, tínhamos direito a... 520 gramas de víveres frescos por dia!


Guiné >  Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca) > CCAÇ 12 (1969/71) > Estrada Bambadinca - Mansambo - Xitole > Coluna logística: uma viatura civil, transportando cunhetes de granadas e, em cima, pessoal civil. Dizia-se que as nossas GMC, "do tempo da guerra da Coreia", gastavam "100 aos 100"... Não admira, por isso, que o consumo "per capita" mensal, de combustível, fosse de 50 kg numa companhia normal de 160 homens... Em contrapartida, o consumo diário de frescos não ia além dos 500 gramas (15 kg por mês e por homem)...

Foto (e legenda): © Humbero Reis (2006).  Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 

 1. Muitos de nós gastámos  uma boa parte da nossa energia juvenil a abastecer-nos uns aos outros... Ainda periquito, participei (eu e os meus camaradas da CCAÇ 2590 / CCAÇ 12), no 2º semestre de 1969, em diversas colunas logísticas, fornecendo-lhes a segurança, de Bambadinca até ao Saltinho (via Mansambo e Xitole, mas também via Galomaro), e fazendo chegar às companhias em quadrícula do Sector L1 os "comes & bebes", mas também os artigos de cantinha, os combustíveis, os lubrificantes, as munições, o fradamento e calçado, os medicamentos, o correio, etc., indispensável à organização, funcionamento e manutenção da máquina de guerra... Chegou-se a ter que fazer em dois dias um percurso de 60 km, com vituras civis e militares que, no tempo das chuvas, ficavam facilmente "atascadas"...

Sabe-se que uma companhia (160 homens, em média) precisava de cerca de 40 toneladas de abastecimentos por mês (880 tonelados ao fim de uma comissão de 22 meses)...  

Discriminam-se a seguir, por tipologia de abastecimento, os respetivos valores por mês (em percentagem do total e em quilogramas) (*)

(i) 38,7 %; víveres (alimentação): 14,5 mil  kg, sendo 12 mil kg de víveres secos, e 2,5 mil kg de víveres frescos:

(ii) 34,7%: artigos de cantina (cerveja, tabaco, higiene, papelaria, etc.): 13 mil kg:

(iii) 21,4%: combustíveis (gasóleo, gasolina, petróleo): 8 mil kg;

(iv) 1,6%: munições:  700 kg;

(v) 1,3%: medicamentos; 500 kg:

(vi) 1,1%:  lubrificantes (óleo para viaturas e armamento, etc.): 500 kg;

(vii) 0,7%: fardamento e calçado: 300 kg;

(viii) 0,5%: correio: 250 kg.

Total= 100% | 37750 kg (a dividir por 160 homens=235,9 kg).

O pormenor do correio é relevante: cada um de nós "consumia" em média, por mês,  c. 1,6 kg de cartas, aerogramas, vales postais, telegramas e encomendas... É (era) obra!... É(era) muito papel. 

Mas também cada homem gastava 3,125 kg de medicamentos... (que na altura, ou pelo menos entre 1962 e 1969, eram de fabrico nacional). Sem esquecer, os 1,9 kg de fardamento e calçado.

Já o consumo "per capital" mensal de munições ia para os 4,375 kg. E o de combustível subia, naturalmente, para os  50 kg, abaixo dos 81,250 kg dos artigos de cantina... e dos 90,6 kg de víveres (3 quilos por dia/homem).

Last but not the least, só tínhamos direito a pouco mais de 500 gramas de víveres frescos por dia (2500 kg mês /160 homens= 15,625 kg / 30 dias= 520 gr por dia / homem). 

Parte destes víveres chegavam por via aérea (o DO-27 que trazia o correio, também largava, com sorte, umas caixas de ovos e pouco mais, não sabendo nós o que a Intendência entendia por "víveres frescos": talvez algumas batatas, cebolas e cenouras, que  o frango e o peixe, esses,  eram congelados, ou em conservas (o peixe), o leite era condensado, os legumes (feijão, grão...) eram secos, o bacalhau liofilizado, o tomate em calda, a fruta enlatada... e a carne de vaca só em dia de anos do capitão ou da companhia... 

PS - Não vejo onde estejam, nestas contas, os materiais de construção (cimento, areia, ferro, chapa, madeira, pregos, etc.). Provavelmente os custos eram imputados ao Batalhão de Engenharia (BENG 447, no caso da Guiné). E, por outro, as necessidades eram variáveis, de companhia para companhia.

(*) Fonte:  adapt. de  Pedro Marquês de Sousa, "Os números da Guerra de África". Lisboa, Guerra & Paz Editores, 2021, pp. 281 e 284. Com a devida vénia...
_________

Nota do editor:

Último poste da série > 9 de novembro de  2021 > Guiné 61/74 - P22702: A nossa guerra em números  (3): mal comidos, mal pagos, mal vestidos...

terça-feira, 9 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22702: A nossa guerra em números (3): mal comidos, mal pagos, mal vestidos...












Havia quem não gastasse dinheiro à tropa em fardamento (e calçado)... Ou poupasse o camuflado quando ia, em trabalho,  num barco turra até Bissau... Ou, mal chegava do mato e tomava um banho de água ferrosa, vestia as jeans e a camisinha Lacoste de contrafacção para fingir que estava a milhares de quilómetros dali... Mas muitos de nós já nem sequer são do tempo da farda amarela... O verde veio em 1964... Mas com o uso e as lavagens as peças da farda camuflada iam mudando de cor...(Não identifico os camaradas, que por certo não me levarão a mal a brincadeira...). 


Fotos de arquivo © Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné


1. Houve guerras, no passado,  que se perderam porque os combatentes iam mal alimentados, outras por certo não se ganharam porque os homens foram para a frente de batalha mal recrutados, mal pagos, mal agasalhados, em mau estado de saúde, mal medicados, mal municiados, mal preparados, mal aconselhados, mal endoutrinados, mal equipados, mal enquadrados, mal comandados, etc. Ou então levavam guitarras em vez de espingardas, como em Alcácer Quibir...

Há leitores que se interessam por números... E a "nossa guerra" (, qualquer que seja o significado do adjetivo  possessivo "nossa") também tem alguns números que devem merecer a nossa atenção (*).

O facto de se ter desenrolado a milhares quilómetros de casa, no continente africano, nas nossas antigas colónias (ou "províncias ultramarinas") de Angola, Guiné e Moçambique, sendo os transportes de pessoal e os reabastecimentos feitos por via marítima, obrigava as Forças Armadas (e em especial o Exército) a criar reservas logísticas estratégicas, como se pode ler no livro, didático, do ten cor Pedro Marquês de Sousa, "Os números da Guerra de África" (Lisboa, Guerra & Paz Editores, 2021, 379 pp.).

Por exemplo, ao nível do "fardamento e calçado" (, espantoso, não tínhamos até agora este descritor!) era exigida uma certa quantidade de artigos, em "reserva permanente", nos vários  teatros de operações. No caso da Guiné, que é o que nos interessa aqui, eram os seguintes os valores (pág. 293):

  • Botas de lona (pares) > 13000
  • Botas pretas (pares) > 1900
  • Dólman (camuflado) > 2500
  • Calças > 10000
  • Barretes > 5200.

O que é intrigante é que em todos os itens de fardamento e calçado os valores da Guiné  eram muito superiores aos de Angola e Moçambique. Não se percebe a razão da diferença. Talvez o pessoal gastasse mais solas e tecido... Talvez as lavadeiras de Angola e Moçambique fossem mais delicadas a lavar e a passar a ferro a roupa da tropa... Veja-se, por exemplo, o "stock" de botas de lona de Angola (n=3712) e de Moçambique (n=4500), teatros de operações que, de resto, tinham mais militares mobilizados do que na Guiné...

Fiquei a saber (, embora isso não conte em nada para a salvação da minha alma...) que os artigos de fardamento, que nos eram distribuídos,  "desde a recruta até ao fim da comissão em África", representavam um encargo de cerca de 5300$00 / homem (dois mil euros, em valores de hoje). 

Desagregando este valor, 1300 escudos eram imputados à instrução militar (recruta e especialidade) e os restantes 4 mil à comissão em África, mesmo que lá a malta andasse, muitas vezes, de tanga, em tronco nu, de chanatas (ou até descalça), gastando por isso muito mais pele que tecido... (Os soldados da CCAÇ 12, se a gente os deixasse, iam para o mato descalços...).

Já agora, amigos e camaradas, ficam a saber quanto é que ficaram a dever ao "erário público", só pelos artigos de fardamento que receberam na recruta, a valores de 1964 (pág. 294):

  • Uma boina > 23$70;
  • Duas camisas de uniforme nº 2 > 120$60;
  • Duas calças de uniforme nº 2> 172$20;
  • Um blusão > 282$50;
  • Uma calça poliéster > 202$00;
  • Uma gravata verde > 15$00;
  • Um cinto de lona > 23$50;
  • Uma camisola de ginástica >  8$70;
  • Um calção de ginástica > 18$00;
  • Um par de sapatos (desportivos) > 28$40;
  • Um par de botas > 297$00;
  • Uniforme de instrução / farda detrabalho (nº 3): c. 200$00.
Total = 1391$60 (c. 573 euros, a valores de hoje)

Acho baratos demais os sapatos (desportivos) (28$40) por comparação com as botas (297$00): dez vezes menos|... Mas, claro, não eram em pele, deviam ser "sapatilhas", sapatos de ginástica, estou agora a lembrar-me...

Curioso é que a tropa não te pagava a roupa interior: cuecas, camisolas, peúgas, lenços de assoar, lenços de pescoço... E quanto ao blusão, não era de pele, claro, era de flanela... O blusão de couro, esse, custava uma pequena fortuna, no Casão Militar, e era apenas reservado a oficiais e sargentos, tanto quanto me recordo. Estúpido, comprei um que nunca devo ter usado na Guiné, com aqueles maldito calor e humidade, era uma autêntica estufa quente!...

O fardamento (tirando talvez as botas de lona e o camuflado) era completamente inadequado para aquele meio ambiente físico... Por exemplo, não eram distribuídas máscaras para a mosquitagem, à noite,  nem para o pó vermelho que apanhávamos nas colunas auto... (Era um espectácul0, ver a a velhada, de lenços garridos ao pescoço, nas colunas logísticas, ou até mesmo nas operações de segurança às colunas, visíveis a 100 metros, na orla do capim...). 

Cada um  usava a roupa imterior que trazia de casa, dos mais diferentes materiais, formas e feitios, completamente inadequada para aquele clima tropical... Houve até quem trouxesse ceroulas, por causa da... bicharada das bolanhas e do friods noites de dezembro... A boina e o quico eram outro problema... Mas já não falo do tempo da farda amarela... 

sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22690: A nossa guerra em números (2): Alimentação, ração de combate, "comes & bebes"... "Diziam as mulheres na minha aldeia que os homens se conquistavam pela boca. Digo eu: As guerras também" (Joaquim Costa, minhoto, dixit)

1. Em bora hora, o Joaquim Costa trouxe à baila o tema da "ração de combate" e os seus deliciosos segredos... 

Diz ele que no seu tempo apareceram umas rações com "umas  latas de chispe e feijoada/tripas que era como fazer uma refeição num restaurante com estrela Michelin" (*). 

E depois acrescenta este apontamento que vale um poema: 

"Depois de 'deitar abaixo' a respetiva ração, chegava o momento mais esperado e importante do dia, o momento do cimbalino (não confundir com o momento coca-cola!)."...

Cimbalino ?!.. Isso mesmo:

"Fechava os olhos e transportava-me para uma esplanada de praia do picadeiro da Póvoa de Varzim, a contemplar o mar... e saboreava, com estilo, o melhor da ração – o comprimido de café."

Confesso que foram momentos que eu perdi no meu tempo (1969/71)... É que sempre detestei a ração de combate nº 20 (só conheci esta)... Mas o português sabe dar a volta ao texto e, fazer entrada para o inferno, uma caminho de volta ao paraíso. Arremata o nosso "Tigre do Cumbijã":

 "Depois, era o clímax com as fumaças do cigarro oferecido por (quase roubado a) o Machado ou o Gouveia. Se fosse numa emboscada noturna, o ritual das fumaças contemplava o retirar do tapa-chamas da G3 com a introdução do cigarro no cano para um gajo não se tornar um alvo fácil de 'tiro ao boneco', por parte do IN."

Ficou tão "viciado" na cafeina, ou no seu substituto (, o tal "comprimidinho"), que hoje ainda confessa: 

"Luís, sem café fico insuportável. Sou capaz de fazer quilómetros para ir aonde servem bom café e fico possesso quando vou a um restaurante caro e me servem uma zurrapa de café." (*).

O poste já deu origem a mais de duas dezenas de comentários. E, se calhar, ainda ficou muito coisa por dizer ou confessar. Vamos recuperar comentários relativos à nossa querida "ração de combate", complementados por   alguns números para a nossa nova série "A nossa guerra em números" (**)... e para a nossa "incultura geral". 

(Mas, afinal, para que é que serve esta m... de informação ?", perguntarão alguns doutores. Utilizo o termo m..., com a sua licença, que é o que alguns dos meus mais próximos, a começar pela mimha cara-metade,  usam quando dizem: "Lá estás tu a chafurdar na m...")


2. Na realidade, houve malta que gramou mais as rações de combate do que outros: um exemplo é a CCAV 8351, Os Tigres do Cumbijã, que andaram muito tempo "abivacados" como os ciganos (please, sem conotação racista)... 

Diz o Joaquim Costa:

"A nossa relação com as rações de combate era muito forte. Não só levávamos com elas nas saídas para o mato, bem como no próprio destacamento que construímos do zero. Pois só tivemos direito a frigorífico a petróleo e a cozinha,  passados uns meses depois de aí [, no Cumbijã, ]nos instalarmos. 

Quem não gostou desta mudança foi o vagomestre Ferreira que abalou do hotel de 5 estrelas de Aldeia Formosa para o parque de campismo selvagem do Cumbijã juntamente com a cozinha."...

Houve, pois,  desgraçados que não souberam, durante alguns períodos da comissão, o que era uma "refeição quente", mesmo que fosse só o caldo com pouca batata e algumas verduras, liofilizadas.., para além do indispensável casqueiro. (E quando não havia farinha, recorria-se á ração de bolacha!...).

3. O Valdemar Queiroz c0nta-nos, com o seu  habitual sentido de humor, como eram as andanças de uma companhia africana (a CART 11), em que as praças, por serem muçulmanas e por lhes fazer mais jeito o patacão, eram "desarranchadas:

(...) As nossas rações de combate de 1969/70 tinha uma lata de leite com chocolate que era uma delicia. Como os nossos soldados fulas eram muçulmanos, e os senhores do 'grande rancho geral' queriam lá saber disso, mal abríamos as caixas havia trocas das latas de carne e a bisnaga de queijo (?), que diziam ser de leite de porca, connosco três furriéis, três cabos e de início o alferes, mais o homem das transmissões, pelas latas de sardinhas.

Normalmente era uma ração de combate de uma refeição, para uma operação de intervenção / segurança com regresso para jantar ou saída após almoço para segurança / emboscada noturna e regresso de manhã para o pequeno almoço. 

Quando era mais de um dia havia rações duplas, mas o normal era levar duas e dois cantis de água, que estupidamente nas primeiras saídas o cabo Rochinha levou um cantil com vinho e ia morrendo de sede. 

Nunca fizemos fogueira para aquecer a lata de carne, que ficaria mais apetitosa e inclusive evitávamos fumar para não sermos detetados à distância. Tínhamos toda a atenção para nunca deixar latas vazias no local da refeição.

Por acaso o nosso vagomestre também se chamava Ferreira e era um tripeiro chapado, que cumpria menos mal as suas funções. Com alguns problemas por, normalmente, só haver um pelotão, os homens especialistas e o capitão no quartel que lhe dava para se "prendar" e ficava descalço com as contas. O 1º. sargento que andava sempre à guerra com ele sabe-se lá porquê, dizia-lhe 'com estas contas qualquer dia o melhor é atirar-se ao Geba'.

Mas como era rancho geral para todos, desde o capitão ao soldado básico, os soldados fulas eram desarranchados, as contas sempre se normalizavam e havia comidinha variada e bem confecionada.

Também havia problemas quando saímos para emboscada noturna com regresso a meio da tarde, como tal levávamos uma ração dupla, chegávamos em cima da hora do almoço e não havia nem rancho nem a ração que já tinha marchado. Em Nova Lamego resolvíamos esse problema com uma saída de visita ao restaurante local. (...)

4. No supracitado livro do ten cor Pedro Marquês de Sousa, "Os números da Guerra de África" (Lisboa, Guerra & Paz Editores, 2021, 379 pp.), há informação interessante sobre a  alimentação, os produtos alimantares, e o seu custo, incluindo as rações de combate (RC 20) e as rações de substituição (RS 30) (vd. pp.286 e ss.).

A ração de combate propriamente dita (RC nº 20) era a que se usava em operações, fora do aquartelamento. A ração de substituição (RS nº 30) tinha mais produtos e podia ser consumida no aquartelamento, "quando não era confeccionada refeição quente" (pág. 290).

Havia havia ainda a Ração de Bolacha (140 gramas, por dia e por homem): substituia o pão quando este não era distribuido com a RC nº 20 ou a RS nº 30.

Cada ração estava pensada, para um homem, para as 24h / três refeições. 

Mas o António. J. Pereira da Costa ainda é do tempo da "ração coletiva" (!)...

(...) Recordo-me das rações colectivas para 5 homens que eram extremamente incómodas porque obrigavam a que todos comessem ao mesmo tempo e as embalagens era maiores do que as 'individuais'. Estas mais flexíveis tinham o inconveniente de serem monótonas. Assim, quem tivesse de fazer uma operação de vários dias comia o mesmo (ou quase) durante esse tempo. 

Os comprimidos de café destinavam-se a criar um sabor idêntico ao que deixava o café (de saco). Os soldados muçulmanos não comiam tudo o fosse e pudesse ser de porco (especialmente chouriço). Creio que o pessoal da Manutenção Militar e os "planeadores" e financeiros nunca se preocuparam com a monotonia da alimentação durante as operações e daí vem o nosso ódio às rações. Se alguma vez as tivessem experimentado duranma te dois ou três dias, podia ser que  as tornassem mais atraentes e variadas. Falta referir que as rações traziam uma folhinha de algo parecido com papel higiénico e que também podia ser usado como guardanapo" (...) (*)

5. Com a crise petrolífera do final do ano de 1973 / início de 1974 (, que nos lixou a todos!), os géneros alimentares escassearam no mercado e/ou subiram de preço. 

Isso teve naturalmente reflexos nos custos do Exército, que além disso viu os custos de transporte acrescidos. E teve implicações no moral da tropa... Houve produtos cujos preços dispararam brutalmente, de 1973 para 1974. Veja-se alguns exemplos de preços de produtos de venda ao público em Lisboa:

Produto / Preço de 1973  (kg, litro ou embalagem) / Subida em 1974 (%)

Arroz / 8$90 / 20%
Azeite / 35$00 / 50%
Batatas / 2$50 / 80%
Bacalhau / 44$00 / 113%
Chouriço / 45$00 / 66%
Frango / 26$00 / 46%

No quadro da pág.290, o autor, Pedro Marquês de Sousa,  certamente, por lapso, não indicou a unidade de medida dos produtos a seguir ao arroz. Para o azeite, por exemplo, deve ser o litro. Quanto ao bacalhau, sabemos que era "liofilizado",  deveria vir em caixas, tal como chouriço... O que importa a destacar é o valor (preço) considerado, pelo exército, nas contas da guerra do ultramar em 1974 (, de acordo com a célebre lista publicada no nosso blogue) (***).

Por exemplo:

Arroz:7$00;
Azeite: 48$00;
Batata: 8$20;
Bacalhau; 167$20;
Chouriço: 64$80;
Frango; 41$80...

Não admira que a malta para o fim da guerra tivesse que se agarrar à RC nº 20 ou RS nº 30 ou à Ração de Bolacha...

De qualquer modo, com a crise petrolífera e a crise económica de finais de 1973/ princípios de 1974, os preços dispararam, tornando-se cada vez complicado alimentar  "o ventre da guerra". Por outro lado, o sabemos o preço por unidade das rações em 18/7/74, em Nova Lamego (CCS/ BART 6523, 1973/74):

Ração de combate nº 20: 43$00 por unidade; havia 680 em stock;
Ração de substituição nº 30: 14$54 por unidade; havia em stock: 250 em stock.

Não há referência à Ração de bolachas... Mas ainda havia farinha (mais de um tonelada) e fermento...

Por norma e por razões de segurança, na Guiné tinha de haver uma reserva de 72 mil Rações de Bolacha, 50 mil da RC nº 20 e 20 mil da RS nº 30... (Cito o Pedro Marquês de Sousa, "Os números da guerra de África", pág.292).

6. No fim é  caso para perguntar: "Ó Joaquim, como é que uma tropa, como a nossa, que passava a vida a queixar-se do tacho e do vagomestre e das rações de combate, podia ganhar a guerra ?! Não podia, está visto"...

Ao que o Joaquim, minhoto (e maroto), respondeu, muito sabiamente:

"Diziam as mulheres na minha aldeia que os homens se conquistavam pela boca. Digo eu: As guerras também!!!" (*)


(***) Vd. poste de  6 de fevereiro de  2020 > Guiné 61/74 - P20626: (Ex)citações (362): O ventre e o patacão da guerra, segundo duas preciosas listas de junho de 1974, guardadas pelo Zé Saúde... Cada um de nós tinha direito a um "per diem" de 24$50 para comer, o equivalente na época a um dúzia de ovos da Intendência (, a preços de hoje, 4,10 euros)