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terça-feira, 9 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25729: Memórias de um artilheiro (José Álvaro Carvalho, ex-alf mil, Pel Art / BAC, 8.8 cm, Bissau, Olossato e Catió, 1963/65) - Parte I: De Bissau ao Olossato, comandando um pelotão de infantaria



Foto nº 3


Fot0 nº 4

Guiné > s/l > s/d (c. meados de 1963) > O alf mil art José Álvaro Carvalho (que ainda não conseguimso identificar nas duas fotos) com o seu pelotão de infantaria, de uma companhia de intervenção, sediada em Bissau,  para onde ele foi em rendição individual, e  que já tinha um ano de comissão (ou seja, era de 1962).... Na foto de cima, um exemplar do "famoso granadeiro"...

Fotos: © José Álvaro Carvalho (2024). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



José Álvaro Carvalho,
Angola,  ponte do rio Cuanza
(em contrução),
c. 1971
 

1. O alf mil José Álvaro Carvalho, embora sendo de artilharia, cumpriu os primeiros meses (basicamente o ano de 1963), comandando um pelotão de infantaria de uma campanhia de intervenção, de caçadores, sediada em Bissau. 

Recorde-se que ele entrou recentemente para a Tabanca Grande, sentando-se à sombra do nosso poilão no lugar nº 890 (*)

Ainda não descobrimos a companhia onde ele foi colocado, por volta do  1º trimestre de  1963, em rendição individual, nem ele se lembra apesar da sua notável memória aos 85 anos... 

No princípio de 1963, havia 9 Companhias de Caçadores no CTIG: CCaç 74, 84, 90, 91, 152, 153, 154, 273 e 274. Temos representantes, no nosso blogue,  das CCAÇ 84,  CCAÇ 153, CCAÇ 274... O que é pouco. 

A CCAÇ 273 (açoriana, tal como a CCAÇ 274, mobilizadas pelo  BII 17, Angra do Heroísmo,  e BII 18, Ponta Delgada, respetivamente) esteve  no CTIG desde janeiro de 1962 e acabou a comissão em janeiro de 1964. (Nessa altura, a comissão na Guiné era de 24 meses).  Sabe-se que teve um pelotão destacado no Olossato, por períodos variáveis, em 1963. Era comandada pelo cap inf Jerónimo Roseiro Botelho Gaspar.

Mas demos-lhe a palavra ao Zé Álvaro (*):

 "Meu pai sempre me chamou por C. Sendo esse o nome que dei ao livro. (...)

"Estava no 2º ano do serviço militar em África [ou seja, em 1964] . O primeiro não tinha sido passado como artilheiro, mas como alferes duma companhia de intervenção, para onde tinha vindo em rendição individual. 

"Na altura,  essa companhia já tinha um ano de serviço em África e quando após mais um ano acabou a comissão e se retirou para a metrópole (...),   [ o alferes Carvalho ou Carvalhinho, como ficará conhecido mais tarde no decurso da Op Tridente] ficou a aguardar funções no QG, oferecendo-se para o grupo de comandos, em formação nessa altura,  por já conhecer as condições duras e difíceis do mato e parecendo-lhe preferível entrar em operações arriscadas mas ter a sede na capital  e o consequente conforto".

(...) "Entretanto foi requisitado um alferes artilheiro para comando dum pelotão de soldados africanos com dois obuses de 88mm e,  quando menos esperava, foi parar ao Sul com ele, operando como independente, junto dum batalhão de cavalaria
 [BCAV 490] .

"Os soldados, indisciplinados, deram-lhe algumas dores de cabeça logo na 1ª operação e as coisas só começaram a funcionar normalmente com a ameaça de prisão ou mesmo fuzilamento dos mais rebeldes.

"Bebiam quase todos demais e na 1ª operação só levou cerca de metade porque os outros bêbados não se tinham de pé" (...)

Em maio de 1965, foi louvado e agraciado com a cruz de guerra de 3ª classe, pelo desempenho como oficial de artilharia, em campanha, em diversas operações, incluindo a Op Tridente (a mais longa operação realizada no CTIG, entre janeiro e março de 1974);

(...) "Louvo o Alferes Miliciano de Artilharia, José Álvaro Almeida de Carvalho, da BAC, porque, durante o período de catorze meses em que esteve destacado no Batalhão de Caçadores nº 619, foi sempre um Oficial zeloso, dedicado e muito competente, salientado-se a sua acção, principalmente, no campo operacional, em que foi utilíssimo o apoio, sempre eficaz, que soube dar com o seu pelotão em todas as operações em que interveio, nomeadamente, nas "Tridente", "Broca", "Macaco", "Tornado" e "Remate", contribuindo assim, dentro do seu âmbito, para o prestígio da Arma a que pertence. (...).

Mas antes de irmos com ele para a região de Tombali, vamos acompanhar as andanças do Zé Álvaro, como "infante", por Bissau, Mansoa e Olossato...  

No texto a que tivemos acesso ("Livro de C", versão manuscrita, revista, melhorada e aumentada) (*), o autor apenas refere os topónimos pelas iniciais: (C de rio Cacheu, B de Bigene,  O de Olossato, etc.). Não sabemos em data precisa em que esteve no Olossato, mas deve ter sido já em meados de 1963.

 
Memórias de um artilheiro (José Álvaro Carvalho, cmdt, Pel  Art / BAC, 8.8 cm, Bissau, Olossato e Catió, 1963/65) 

Parte I:  De Bissau ao Olossato


A pequena festa na Messe de Oficiais da Marinha decorria alegremente. Eram quatro e só ele do exército. Outras tantas raparigas tinham sido convidadas para jantar e dançar, e, coisa rara, tinham aceite, apesar da opinião das respetivas famílias, que por principio não confiavam em militares, o que é natural.

Os efetivos da marinha eram ainda muito poucos, pelo que o ambiente nesta Messe era simpático e agradável.

A certa altura alguém o informou de que o Oficial de Dia ao Quartel General o mandara procurar. Tinha havido nessa noite a primeira emboscada no Norte. Até esse dia a guerrilha só atuara no Sul.

Resolveu aguardar pelo final da festa para se apresentar. Pareceu-lhe desculpável não ter pressa de enfrentar uma realidade preocupante. Por outro lado, era miliciano, indisciplinado, e pouco vocacionado para militar.

Talvez o Oficial de Dia o viesse a contatar antes do fim da festa. Se assim fosse, paciência. Continuou a divertir-se mas agora sempre a pensar no que o esperava. Era o alferes mais novo da Companhia de Intervenção e o seu pelotão seria o primeiro a avançar em qualquer caso de emergência.

Penso que esta regra tinha como justificação enviar primeiro os menos aptos, os mais novos, os mais inexperientes, a carne para canhão e só depois os mais aptos, os mais sabedores,  caso os primeiros falhassem. Mas em situações de guerra como esta os mais aptos, os mais experientes e sabedores, deviam avançar primeiro, não os mais novos. Era uma guerra ainda mal conhecida que caminhava à margem dos conhecimentos militares tradicionais.

Havia uma semana que a guerrilha iniciara operações no Norte (**). No Sul já há muitos meses que se estabelecera, sendo para lá que todo o esforço militar se dirigira até essa altura.

Aí já se tinha algum conhecimento da sua forma de actuar.

No dia em que tinha ocorrido a primeira emboscada no Norte,  a cerca de 120 kms da capital (dia da festa na messe da marinha) tinha avançado para o local um outro pelotão da companhia, em lugar do seu,  e cujo comandante, por essa razão, durante algum tempo deixou de lhe falar.

Passada uma semana recebeu ordens, para preparar uma coluna a fim de avançar com o seu pelotão como primeiro elemento da transferência de toda a companhia para o Norte do território. Deveria em seguida apresentar-se na Repartição de Operações do Q.G. para receber mais ordens, o que aconteceu alguns dias depois.

Tendo-lhe sido entregue um envelope lacrado com a indicação "Confdencial" ( a abrir após o incio da marcha na direcção Norte que deverá ter inicio 24 horas após a entrega deste documento).

Iniciou a marcha a partir do QG, nessa direcção, às seis horas. Levava um jipe, um todo o terreno Unimog e 3 camiões GMC a abarrotarem de equipamento de primeira necessidade e armamento médio, munições, combustível e géneros. O pessoal tinha sido distribuído pelas viaturas e arrumado com dificuldade. 

Este pessoal que já tinha um ano de operações, era constituído por um pelotão desfalcado de quinze soldados,  reforçado por um cozinheiro e ajudante e pelos condutores do Unimog e dos três camiõesde guerra da marca americana GMC.

A primeira coisa que fez já em andamento, foi abrir o envelope lacrado da Repartição de Operações do QG conforme instruções que recebera. Confirmou assim o conhecimento que já tinha, baseado na troca de impressões que tivera com o comandante da companhia.

No dia anterior tinha jantado com um oficial da marinha seu amigo, que comandava a lancha patrulha do rio C[acheu], o mais importante do Norte, e tinha-lhe dito que em breve avançaria com o seu pelotão para essa zona, possivelmente para uma povoação de valor estratégico a defender nas margens desse rio.

- Amanhã também devo regressar à lancha (a lancha era um pequeno navio de guerra bem armado e preparado para patrulhar os rios, em todos os principais havia uma) e, se souber que estás em B
[igene, frente a Ganturé, na margem direita do Rio Cacheu], quando lá passar, convido-te para jantar. Tenho agora um cozinheiro de primeira.

Depois da partida, ainda na cidade, cruzou-se com o Wolkswagen negro que levava este seu amigo para o cais, e, mesmo com os carros em andamento, conseguiu confirmar-lhe a conversa que tinham tido.

Os camiões roncavam no único troço de estrada alcatroada da região (60 kms), no fim do qual se encontrava uma pequena cidade 
[Mansoa] , onde chegaram cerca das nove horas. Nesta cidade, junto ao aquartelamento da companhia aí estacionada, o capitão que a comandava esperava a coluna. Mandou-o parar e disse-lhe que a missão fora alterada e tinha de se dirigir para a povoação de O[lossato] .

O pelotão para aí destacado, não conseguia não só defender o povoado, como até impedir que o inimigo, encurralando-o de metralhadoras apontadas a cada porta do edifício do quartel, um antigo celeiro de amendoim rodeado de arame farpado a distância conveniente, se passeasse impunemente na aldeia, entrando nos dois estabelecimentos comerciais existentes, abastecendo-se do que bem entendia, em troca de requisições supostamente válidas, após ganha a guerra e exercendo junto da população civil branca ou africana as mais variadas formas de propaganda e intimidação.

Após confirmar por rádio para o QG as ordens que acabara de receber, desviou a marcha no sentido da povoação de
O[lossato] , entrando na região onde a guerrilha tinha começado a atuar recentemente (***) e era constituída por um polígono com cerca de 120 kms de comprimento na sua maior dimensão e oitenta na outra , cuja principal estrada, que o atravessava em diagonal, estava obstruída por árvores derrubadas assim como todos os pontões e pequenas pontes já destruídas que atravessavam as linhas de água, que eram muitas em todo o território por ser este a foz dum rio importante, que se dividia por grandes e pequenos canais que se ligavam e entrelaçavam entre si.

 O piso, na maré vazia era formado na sua maior parte principalmente por lama de alguma profundidade, coberta por uma mata cerrada própria que é costume chamar por mangal. Na maré cheia todo o território era inundado em cerca de 1/3 da sua dimensão.

Chegaram já de noite ao seu destino. O destacamento que ia substituir,  já tinha partido, deixando uma secção para reforçar o seu pelotão desfalcado pela doença e combates.

A companhia já andava naquele território havia mais dum ano. Por esta razão quando viera para África substituir um alferes, a companhia já tinha um ano de comissão.

(Continua)

(Seleção, revisão / fixação de texto, parênteses retos: LG)

_______________

Notas do editor

(*) Vd. poste de 26 de junho de  2024 > Guiné 61/74 - P25684: Tabanca Grande (890): José Álvaro Almeida de Carvalho, ex-alf mil art, Pel Art / BCAC, obus 8.8 m/943 (1963/65) , adido 14 meses ao BCAÇ 619 (Catió, 1964/66): senta-se no lugar nº 890, à sombra do nosso poilão

(**) Vd.  CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da actividade operacional: Tomo II - Guiné - Livro I (1.ª edição, Lisboa, 2014). pp.91/92

(...) "Também ao norte do rio Cacheu as NT actuaram contra elementos inimigos que, provindo do Senegal, realizavam incursões no território da Guiné. Em 25mar63, após um forte ataque inimigo ao aquartelamento de Susana, o destacamento local, acompanhado da população de raça Felupe, perseguiu o inimigo até à fronteira causando-lhe numerosas baixas. Devido aos frequentes ataques, a população da região a norte da estrada de S. Domingos-Sedengal foi evacuada, passando essa área a ser considerada "zona interdita", procedendo-se ali à colocação de numerosas armadilhas e à montagem de frequentes emboscadas nas principais linhas de infiltração, verificando-se uma redução da actividade inimiga na área e o regresso da população à vida normal, a partir de Julho." (...) (pág, 91)

Enquanto decorriam as operações no Sul, verificaram-se algumas acções ln no Sector Oeste, entre a fronteira e o rio Geba. Assim, em 21abr63, o ln atacou a povoação de Canjandi (S. Domingos) não causando baixas à população e sofreu I morto, em face da reacção da população; no dia 26 atacou Brengalon (Sedengal) tendo explodido uma armadilha colocada pelas NT.

Mais tarde, em 5mai63, o aquartelamento de Bigene foi atacado de noite, tendo o ln causado 4 feridos ligeiros às NT; no dia 13, o ln atacou e incendiou uma viatura de passageiros que seguia de S. Domingos para a fronteira e na noite de 17/18 queimou a tabanca de Panta (Sedengal).

Neste Sector a actividade inimiga decaiu no mês de junho; no dia 07, incendiou, na região de S. Domingos, um camião dum cabo-verdiano, que foi encontrado morto e no dia 30 danificou a jangada de Barro, dirigindose depois a uma tabanca, próxima da estrada para Bissorã, queimando a
morança do chefe. (...) (pág. 92)

(***) Vd.CECA (2104):

(...) Diretiva n° 5 do Comandante-Chefe, de 27 de Agosto de 1963:

"Foi elaborada para a Operação 'Dardo' (...)

"Inimigo

a. A região de Olossato-Bissorã-Talicó-Mansabá, desde princípio de julho, é objecto de uma intensa actividade terrorista que tem como núcleos principais as matas do Dando, Fajonquito, Cã Quebo, Cai, Morés, Talicó e pretende: 

- mediante ataques à população civil, coagi-las a tomar o seu partido ou pelo menos facultar apoio;

- posteriormente, conseguir o controlo da região e cortar as nossas comunicações para o norte e leste.

b. O ln dispõe de bom equipamento, no qualb. O ln dispõe de bom equipamento, no qual se incluem metralhadoras e é constituído por seis grupos com a seguinte localização:

- Fajonquito;
- Cã Quebo;
- Mansodé:
- Morés:
- Região de 2 pontes (Mamboncó);
- Dando." (...) (pág. 117) 
 

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4858: Notas de leitura (16): Memórias do inferno de Abel Rei (Parte III) (Luís Graça)


Guiné > Zona Leste > Enxalé > O famoso granadeiro, uma GMC transformada, que pertencia à CCAÇ 1439 (1965/67).

Foto: © Henrique Matos (2007). Direitos reservados


Guiné > Bissau > Fevereiro de 1968 o 1º Cabo Abel Rei, da CART 1661 (Fá, Enxalé, Porto Gole, 1967/68), de férias, na capital da província.


Foto: © Abel Rei (2002). Direitos reservados



Abel de Jesus Carreira Rei – Entre o Paraíso e o Inferno: De Fá a Bissá: Memórias da Guiné, 1967/1968. Prefácio do Ten Gen Júlio Faria de Oliveira.

Edição de autor. 2002. 171 pp. (Execução gráfica: Tipografia Lousanense, Lousã. 2002)

Notas de leitura > III Parte (*) > Uma dramática operação a Madina/Belel e... férias em Bissau

por Luís Graça


Uma dramática operação a Madina

Depois de 73 dias em Bissá, o nosso 1º Cabo Abel Rei regressa a Porto Gole, exausto e adoentado. Visto pelo médico, que lhe receitou “três injecções e comprimidos” (sic), voltou a estar apto, ele e os demais “companheiros de Bissá”, ao fim de três dias.

A 27 e 28 vemo-lo a participar na Op Foguetão, para um golpe de mão uma acampamento da guerrilha na região de Madina. Tratou-se da repetição da Op Frango, envolvendo forças da CCAÇ 1646 (Fá Mandinga) e da CCAÇ 1749 (Mansoa), além da CCART 1661 (Porto Gole).

A CCAÇ 1646 (que passou por Bissau, Fá Mandinga, Xitole, Fá Mandinga e Bissau, entre Janeiro de 1967 e Outubro de 1968) pertencia ao BART 1904 (Bambadinca), tendo por comandante o Cap MiL Art Manuel José Meirinhos.

A CCAÇ 1749, por sua vez, passou por Mansoa, Mansabá e Quinhamel, entre Julho de 1967 e Junho de 1969. Era comandada pelo Cap Mil Art Germano da Silva Domingos.

Na Op Frango, que se realizara a 16 de Novembro de 1967, as NT não atingiram o objectivo, por se terem perdido e por haver falha nas ligações com o PCV. Diz a história da CCAÇ 1661, citada pelo Abel Rei (p. 120), que “o único guia que nos foi possível arranjar, informou não saber atingir o objectivo pelo itinerário determinado superiormente”.

Eis, em resumo, o filme dos acontecimentos da Op Foguetão, de acordo com o diário do Abel Rei (29/11/1967, Enxalé, pp. 120-122), e que me faz trazer à memória peripécias e trapalhadas semelhantes, ocorridas numa outra operação, ao mesmo objectivo, dois anos e meio depois, em Março de 1970 (Op Tigre Vadio) (**): erros de planeamento, guias que se perdem, itinerários mal escolhidos, PCV que denunciam a presença das NT, falhas no abastecimento de água, progressão para o objectivo a horas proibidas, casos de exaustão e desidratação, indisciplina de fogo, relatórios fantasiosos, debandada geral, regresso dramático ao Enxalé…

(i) “Partimos à meia noite do dia 27, com um ração de combate para cada dois homens, e a caminho dum acampamento dos ‘turras’, situado em Madina, onde eles tinham bastante armas pesadas, entre elas um ou dois morteiros 82 e canhão sem recuo (?)" (…).

(ii) As NT chegam ao objectivo “volta das dez e meia da manhã”, altura em que começam a ser sobrevoadas uma avioneta com um ‘major de operações’ (sic), leia-se, PCV…

(iii) Sob um “sol escandante”, depois de mais de uma hora parados e, obviamente, já localizados pelo IN, “fomos obrigados a avançar para o objectivo. Nessa ocasião fazia-se a entrada numa bolanha cheia de água” … (Recorde-se que estamos no fim da época das chuvas)…

(iv) Há quatro baixas por exaustão e desidratação. Esses são helievacuados. Ficam 20 homens a fazer segurança ao helicóptero. Os restantes continuam a avançar para o objectivo.

(v) A progressão faz-se no meio do capim alto (com “mais de três metros de altura”). A zona em que o helicóptero, começa a ser batida por tiro de morteiro. Avança-se para o objectivo…

(vi) “O tiroteio sucedia-se cobrindo aqueles matos! (…) Os homens que ficaram atrás comigo, contaram que foram obrigados a retirar para fugir ao fogo dos ‘turras’ que batiam a zona. Perderam-se…”

(vii) Os “outros, são obrigados pelo capitão (de nome Figueiredo) [referência que me parece explícita, ao Cap Dias Sousa Figueiredo, da CART 1661], “a irmos contra as trincheiras do inimigo – apontando-lhes a sua arma, com ameaça de disparos, se não avançassem” (p. 122)…

(viii) As NT sofrem “dois mortos e três feridos”, não lhes sendo possível “trazer os mortos: um soldado nativo das milícias, e o próprio guia, pois o fogo era intenso”.

(ix) Concluindo, “chegaram já de noite, divididos em dois grupos, aqui ao quartel [do Enxalé], tendo andado perdidos uns dos outros. Vinham estafados”…

(x) A história da unidade diz, seca, cínica e sucintamente, que “o objectivo de Madina foi atingido e destruído, tendo sido mortos 9 elementos IN; as NT tiveram um milícia morto e três feridos” (p. 122)… Não há qualquer referência ao pobre diabo do guia cujo cadáver lá ficou, também, para os jagudis…

Só quinze dias depois é que o Abel volta escrever, para nos dar conta da existência da ‘arma secreta’ da CART 1661, o famoso ‘granadeiro’, uma “viatura pesada blindada com chapas metálicas e areia”, que é utilizada numa coluna auto, de reabastecimento a Bissá… “Pela estrada, em que fomos sempre pé, picando a área em todo o percurso, ao longo da nossa deslocação foram encontrados jornais de propaganda subversiva terrorista” (14/12/1967, Enxalé) (***)…


As festas de Natal e Ano Novo

No final do ano de 1967, o comando da CART 1661 muda-se para Porto Gole, passando o Enxalé a ser apenas um simples destacamento, depois na primeira daquelas localidades se terem construído as necessárias instalações para o pessoal, bem como o depósito de material. Foi também construído uma pista de aterragem para aeronaves tipo D0 27…

Aproximam-se as festas do Natal e o Ano Novo, e o Abel é encarregue de ir a Bafatá fazer as compras (“bebidas, doces e frutas”). Sobre esta localidade (a segunda maior da Guiné, a seguir a capital, mas que ainda não é cidade, nesta época), diz o Abel:

“(…) Foi a primeira vez que visitei uma cidade da Guiné ! (…) Não vou deixar aqui as minhas impressões sobre aquela cidade, pois que lá não achei nada de especial, somente pequenina! Uma cidade, onde a sua base é o comércio, desfrutando o progresso da guerra, e onde a mesma não faz sentir os seus efeitos destruidores”… (30/12/1967, Enxalé, pp. 14-125).

No Natal “houve uma ligeira ceia” e “até umas filhoses feitas por mim” (p. 125).

Três dias depois, a 28, houve visita dos ‘turras’ (sic), uma pequena flagelação, sem consequências… Mais grave seria o ataque de 4/1/1968, levado a cabo por um “Gr IN estimado em 150 elementos” (!)… Diz o autor que “os turras utilizaram o dobro das armas que nós temos”, mas mesmo assim retiraram com pesadas baixas (um morto confirmado e numerosos rastos de sangue) (p. 127)

O ano de 1968 é saudado como da “peluda” (p. 126). A partir de 11 de Janeiro, o Abel tem um novo comandante de pelotão. Antes tinha sido o capitão que tinha dado o “gosse”, bem como outro alferes (17/1/1968, Enxalé, p. 128).


Férias em Bissau, hospedado na Pensão Chantre

A partir de 2 de Fevereiro de 1968, o 1º Cabo Abel Rei está de férias em Bissau… “Vim juntamente com o ‘Conjunto João Paulo’, que fez nesse mesmo dia em actuação musical em Porto Gole, partindo de seguida numa lancha, pelo Rio Geba, para cá”… Ficou hospedado na Pensão Chantre (14/2/1968, Bissau, p. 130).

A cidade é descrita nestes termos: “É grande, não muito, já conta com algumas moradias modernas, e enormes bairros, embora para isso tivesse influência a visita do Presidente da República Portuguesa, feita no princípio deste mês (…) A minha opinião sobre Bissau é bastante boa, em que sobressai o comércio (…) ” (18/2/1968, Bissau, p. 132).

O Abel aproveita o tempo para passear e descansar. “Tenho percorrido praticamente toda a cidade incluindo o Pilão - onde abundam festas nocturnas com bailes, sobretudo nesta altura do Carnaval”… O Pilão é “a parte mais pobre da capital, composta por bairros de população nativa” (sic).

A Bissau chegam rapidamente as notícias da guerra: o ataque a Porto Gole (a 9), ao Enxalé (a 13), prenunciando um recrudescimento da pressão do PAIGC sobre o “chão balanta”… O Abel dá conta também de um ataque em Tite…

A própria cidade de Bissau sofre uma flagelação no mês de Fevereiro na sequência do ataque à BA 12, em Bissalanca: “parece ter havido três mortos e quinze feridos, todos nativos (?)” (3/3/1968, Bissau)… Foram dias “turbulentos” (sic), esses das férias do Abel, em Fevereiro.


Pressão sobre o chão balanta

A 9 de Março, está de regresso a Porto Gole, em LDM (Lancha de Desembarque Média), numa viagem de quatro horas. Três dias depois ainda permanece em Porto Gole, aguardando transporte para o Enxalé… (12/3/1968, Porto Gole, p. 135). Isto quer dizer também que a estrada de Bissau-Bafatá deixa de ser seguro, sobretudo no sector de Mansoa… (O Batalhão de Mansoa “não nos autoriza que façamos colunas em viaturas auto, devido ao número de mortos que temos nos percursos por estrada”… Para se ir do Enxalé para Bissau, vai-se por Bambadinca, via Xime, apanha-se a LDM e vai-se até Porto Gole e daí para Bissau…

“De Bambadinca até cá vim numa lancha de patrulhamento da nossa Marinha de Guerra. Com eles comi e dormi duas noites (e trabalhei, claro!) enquanto esperavam a saíde de um barco civil, com carregamento de produto produzidos no interior, para Bissau, e ao qual, duas vezes por semana, têm de manter segurança, via rio Geba” (27/1/1968, Porto Gole).

Na mesma lancha, veio uma companhia operacional “que tem andado a recolher todos os habitantes das tabancas existentes para além de Porto Gle, assim como todos os seus haveres, sendo depois deitadas abaixo todas as suas habitações” (p. 135). Essa LDM, ao regressar, de Enxalé, na madrugada de 12/3/1968, “sofreu um ataque em pleno Rio Geba”, tendo sido atingida por rockets (p. 135).

A 20 de Março, prosseguem as operações de evacuação e reagrupamento de populações até então sob duplo controlo, e destruídas as suas aldeias. “Foram queimadas e destruídas perto de uma dúzia de moranças. Entretanto trouxemos tudo aquilo que foi possível agarrar: porcos, galinhas e cabritos . (Eu trouxe três galináceos). Voltámos era quase meio-dia” (20/3/1968, Porto Gole, po. 137-138). Uma parte dessa população (balanta) é redistribuída por Enxalé, Porto Gole e Bissá (p. 139).

Entra-se no mês de Abril de 1968, “sem comida nem bebida”… Vinho, café, batatas e bacalhau são quatro dos itens referidos pel Abel, como faltando já há vários dias no aquartelamento de Porto Gole (3/4/1968, p. 140)…

As colunas de e para Bissá continuam a fazer baixas… Logo no dia 2 de Abril, mais dois mortos, da CART 1661… O ambiente é de consternação e apreensão, a escassos seis ou meses do fim da comissão. “Hoje ainda se encontram cá as duas urnas chumbadas com os meus colegas, e ontem foi a enterrar o Soldado ‘Samba’ do Pel Caç Nat 54. Os feridos mais graves foram evacuados para Bissau” (12/4/1968, Enxalé / Porto Gole, pp. 140-142).

(Continua)
___________

Notas de L.G.:

(*) Vd. postes anteriores:

12 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4815: Notas de leitura (14): As memórias do inferno de Abel Rei (Parte I) (Luís Graça)

14 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4820: Notas de leitura (15): As memórias do inferno de Abel Rei (Parte II) (Luís Graça)

(**) Vd. postes de:

10 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2831: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (31): Tigre Vadio: Um banho de sangue no corredor do Oio

27 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P918: Operação Tigre Vadio (Março de 1970): uma dramática incursão a Madina/Belel (CAÇ 12, Pel Caç Nat 52 e outras forças) (Luís Graça)

(***) Vd. poste de 2 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2148: Recordações do 1º Comandante do Pel Caç Nat 52 (3): O famigerado granadero do Enxalé, da CCAÇ 1439 (1965/67)

(...) Para a história do famigerado granadero que se vê no Post 2001. Aqui vão duas fotografias do mesmo que tirei no Enxalé. É uma GMC que foi transformada por pessoal da CCAÇ 1439, uma unidade de Madeirenses, que ali esteve até Abril de 1967 e foi substituida pela CART 1661 que passou a sede para Porto Gole em Dezembro de 1967, ficando o Enxalé apenas como destacamento.

A transformação constou do reforço dos taipais com chapas de bidon, separadas de ± 20 cm com areia no meio. Ficou à prova de bala de Mauser. Tinha também uma camada de areia no fundo da caixa e na frente também vários sacos de areia. Tinha instalada como se pode ver uma Breda. Não sei porque é que lhe chamavam granadero.Com ela fiz vários reabastecimentos a Missirá e Porto Gole .

Segundo a descrição do Abel Rei no seu depoimento Entre o Paraíso e o Inferno: de Fá a Bissá-Memórias da Guiné e que na altura estava em Bissá, no dia 5 de Outubro de 1967 esta viatura quando regressava a Porto Gole accionou uma mina incendiária a que se seguiu uma emboscada de que só se safaram com apoio aéreo. Fazia parte duma coluna que saiu de Porto Gole ao encontro doutra coluna saída de Bissá a pé para entregar uns militares destinados àquele destacamento.Desde a abertura de Bissá (que eu conheci bem e considero um erro catastrófico) em Abril de 1967 e até esta última data tiveram três viaturas inutilizadas, mais de vinte mortos e uns cinquenta feridos evacuados. Penso por isso que não andariam propriamente a jogar uns com os outros. (....)

sábado, 6 de outubro de 2007

Guiné 63/74 - P2158: Recordações do 1º Comandante do Pel Caç Nat 52 (3): O famigerado granadeiro do Enxalé, da CCAÇ 1439 (1965/67)




Guiné > Zona leste >Enxalé > O famoso granadero, uma GMC transformada, que pertencia à CCAÇ 1439... 

Segundo a Wikipedia espanhola, "un granadero es un soldado de elevada estatura perteneciente a una compañía que formaba a la cabeza del regimiento. El empleo de las granadas de mano hizo estimar necesaria la creación de los granaderos, cuyo objeto, según su nombre lo indica era arrojar y manejar esta clase de proyectiles"... Por analogia, alguém deve ter dado o mesmo nome a esta viatura, modificadas, que nas picadas da Guiné funcionava como rebenta-minas e testa das colunas logísticas... Não me recordo de, no meu tempo (CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71), ter ouvido falar em granaderos... Tínhamos também velhas GMC, do tempo da guerra da Coreia, que carregadas de sacos de areia funciona´vam como rebenta-minas. (LG).


Fotos: © Henrique Matos (2007). Direitos reservados.


1. Mensagem do Henrique Matos, que nos chegou a 30 de Julho de 2007 (1)


Caros tertulianos:

Para a história do famigerado granadero que se vê no Post 2001 (2). Aqui vão duas fotografias do mesmo que tirei no Enxalé. É uma GMC que foi transformada por pessoal da CCAÇ 1439, uma unidade de Madeirenses, que ali esteve até Abril de 1967 (3) e foi substituida pela CART 1661 que passou a sede para Porto Gole em Dezembro de 1967, ficando o Enxalé apenas como destacamento.

A transformação constou do reforço dos taipais com chapas de bidon, separadas de ± 20 cm com areia no meio. Ficou à prova de bala de Mauser. Tinha também uma camada de areia no fundo da caixa e na frente também vários sacos de areia. Tinha instalada como se pode ver uma Breda. Não sei porque é que lhe chamavam granadero.

Com ela fiz vários reabastecimentos a Missirá e Porto Gole (4). Segundo a descrição do Abel Rei no seu depoimento Entre o Paraíso e o Inferno: de Fá a Bissá-Memórias da Guiné e que na altura estava em Bissá, no dia 5 de Outubro de 1967 esta viatura quando regressava a Porto Gole accionou uma mina incendiária a que se seguiu uma emboscada de que só se safaram com apoio aéreo. Fazia parte duma coluna que saiu de Porto Gole ao encontro doutra coluna saída de Bissá a pé para entregar uns militares destinados àquele destacamento.

Desde a abertura de Bissá (que eu conheci bem e considero um erro catastrófico) em Abril de 1967 e até esta última data tiveram três viaturas inutilizadas, mais de vinte mortos e uns cinquenta feridos evacuados. Penso por isso que não andariam propriamente a jogar uns com os outros.

Um abraço para todos
Henrique Matos

____________

Notas de L.G.:


(1) Vd. post de 22 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1871: Tabanca Grande (15): Henrique Matos, ex-Comandante do Pel Caç Nat 52 (Enxalé, 1966/68)

(2) Vd. post de 26 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P2001: Todos ouviram falar do Morés, o mítico Morés, o Morés de todos nós (António Rodrigues / Luís Nabais/ Virgínio Briote)


(3) Sobre a CCAÇ 1439 (madeirense) - mas igualmente sobre e a CCAÇ 1550, ver o relato autobiográfico de Abel de Jesus Carreira Rei, nascido em 1945, filho de operário vidreiro, ex-combatente da Guiné (1967/68), natural da Maceira, Leiria, e actualmente residente em Embra, Marinha Grande:

post de 1 Maio de 2005 > Guiné 69/71 - X: Memórias de Fá, Xime, Enxalé, Porto Gole, Bissá, Mansoa (Abel Rei)

Trata-se de um diário, com passagens seleccionadas pelo editor do blogue. Não consegui descobrir a unidade a que pertenceu (só sei que é uma CART, com quatro grupos de combate., possivlemente a CART 1661, a que se refere o Henrique Matos, a que substituiu a CCAÇ 1439, e que mudou a sua sede do Enxalé para Porto Gole) .

Aqui vai o endereço da página: Entre o Paraíso e o Inferno: de Fá a Bissá. Memórias da Guiné - 1967/1968). Trata-se de um diário que vai do dia 1 de Fevereiro de 1967 a 19 de Novembro de 1968.

(4) Vd. posts de:

14 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2105: Recordações do 1º Comandante do Pel Caç Nat 52 (Henrique Matos) (1): Ataque a Missirá em 22 de Dezembro de 1966 (Parte I)

14 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2107: Recordações do 1º Comandante do Pel Caç Nat 52 (Henrique Matos) (2): Ataque a Missirá em 22 de Dezembro de 1966 (Parte II)