sábado, 18 de setembro de 2010

Guiné 63/74 - P7005: Estórias do Juvenal Amado (31): Desse amor ficou só a nostalgia daquela idade

1. Mensagem de Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1972/74), com data de 17 de Setembro de 2010:

Caros Luís, Carlos, Virgínio, Magalhães e restante Tabanca Grande.
As nossas mulheres acompanharam-nos durante aqueles anos e quando regressámos, de muitos aturaram e trataram as feridas da alma que carregámos.
O alcoolismo, os traumas de muitos, foram duras batalhas que para as quais só elas disseram presente.
Primeiro ficaram chocadas, incrédulas com a agressividade e maus tratos, vinda de quem o regresso tanto tinham desejado.
O seu sofrimento deu lugar à resignação ao abandono.
A História tinha-as usado e deitado fora.
Também elas estiveram na guerra e muitas nunca alcançaram a Paz.
É para elas esta estória, também a dedico à minha mulher que há trinta e um anos me atura e equilibra a minha vida.

Um abraço para todos
Juvenal Amado


Estórias do Juvenal Amado (31)

DESSE AMOR FICOU SÓ A NOSTALGIA DAQUELA IDADE

O Unimog da escolta aparece e desaparece entre as nuvens de pó que a coluna formada por Berliets, Chaimites e Whites levantam quando se dirige ao Saltinho. Serve a dita também para reabastecer Mansambo e Xitole dois destacamentos do Batalhão de Bambadinca.

No Saltinho e a pescaria

Mansambo, Xitole e Saltinho fazem segurança nas respectivas zonas de influência e o aspecto barbudo, os cabelos demasiado grandes bem com o fardamento descuidado dos homens, quase faz o nosso Comandante ter um ataque de «caspa».
O ar reprovador que nós bem lhe conhecemos, deve ter chegado aos ouvidos dos graduados e posteriormente ao próprio Comandante na sede do Batalhão, a que as duas Companhias pertencem.

Viaja normalmente entre os homens da escolta sem galões e de espingarda como qualquer soldado, não vá o diabo tecê-las e ele ser referenciado como alvo importante que é.

Não foi pois de admirar um alferes ou o furriel, ver-se interpelado por um militar cheio de pó, que salta de uma viatura da escolta e grita com ar bem azedo:

- Oh nosso alferes não há barbeiros nesta Companhia?

Escusado será dizer-se que o homem quando chegou ao Saltinho, bem tentou apanhar alguém com o cabelo ou a barba fora dos regulamentos, para descarregar assim a fúria contida.

Estavam os nossos camaradas do Saltinho bem avisados!
Os que não estariam nas melhores condições desviaram-se do seu caminho e evitaram assim algumas chatices.

Mas voltando ao caminho, o pó cobria-me todo. Valem-me os óculos e o lenço no nariz e na boca para me proteger.

Os meus pensamentos voavam para casa, porque a Maria vai chegar depois de sete anos de ausência e eu não a vou poder ver nem estar com ela.
Foi uma paixão tímida de adolescente, pois sendo ela amiga da minha irmã e eu querendo escapar à troça, desmentia a evidência da minha paixoneta que todos conheciam.

Ela era mais velha e eu pensava não estar ao meu alcance essa relação.
Tinha eu dezassete anos quando ela emigrou para outro continente. Passamos a escrevermo-nos, mas a distância e os anos, fizeram esfriar os sentimentos tão pouco amadurecidos.

O rosto dela, a sua recordação e dos bailaricos onde tudo fazia para poder dançar com ela, fizeram-me companhia muitas noites, quando aguardava a rendição no posto de sentinela.
Fazia planos e sonhava acordado.
Pensava no que lhe iria dizer finalmente quando a voltasse a ver.
O que é que haveria afinal entre nós?
Será que recuperaria os sete anos de afastamento onde outros relacionamentos tinham eclodido e esmorecido, como os dias naquelas paragens, onde o dia nasce e morre rapidamente?

Estamos a atravessar uma ponte. Temos de passar com as rodas em cima de travessas de madeira.
Só passa uma viatura de cada vez.

E se nos atacassem agora lá do fundo da bolanha quando eu vou a meio da ponte?

A viagem é lenta por razões de segurança, mas também por causa da picada. Quando chegar ao Saltinho, vou logo tomar um banho no rio. Não estou habituado a ter abundância de água como ali há.

As estações das chuvas estão à porta e eu só regressarei depois quando as picadas ficarem novamente transitáveis.

A vontade de rever a Maria tinha-me levado quase a pedir aos meus pais, que me arranjassem o dinheiro da passagem. Seria um pedido irracional sabendo eu, que eles não têm dinheiro para isso. Irão pedi-lo, se eu levar as minhas pretensões em frente.

Lá está o Saltinho com a sua ponte de arcos em cimento, que parece deslocada na paisagem.
Moderna de mais para as necessidades, parece um monumento ao absurdo, pois começava e acabava em trilhos de terra batida por onde pouco trânsito se faz.
Quando a mandaram construir viram com certeza outro futuro para ela.

No Saltinho a banhos

O rio Corubal corre abundante debaixo dela. A água tão racionada praticamente em toda a zona Leste é ali um bem à mão.

O meu reencontro com a Maria está definitivamente adiado, mas aquelas paragens, iram ajudar a suportar a impossibilidade de a abraçar e regressar ao passado, quando a sua presença me punha o coração aos saltos.
Talvez um dia quando regressar e a encontrar, lhe diga o que foi para mim a sua recordação, as suas cartas bem como as cassetes com a sua voz, nos anos em que estivemos separados, especialmente nos dias e noites do Leste da Guiné.

Voltei a vê-la 12 anos depois.
O passado não se repetiu quando a encontrei.
O meu coração tinha outra dona, que conheci depois de regressar e com quem dividi a vida e os anseios futuros.

Ficou assim por se cumprir uma vida, a certa altura sem queres ou por opção, ou porque fomos empurrados, tomamos caminhos diferentes, que não tiveram retorno.
Restou assim a nostalgia de um amor não concretizado e para sempre perdido na voragem dos dias e anos.

Juvenal Amado

Catroga e a Ponte do Saltinho
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 4 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6931: Estórias do Juvenal Amado (30): Quando o passado vem ao nosso encontro

Guiné 63/74 - P7004: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (3): A grande lição do baptismo de fogo

1. Mensagem José Ferreira da Silva* (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com data de 16 de Setembro de 2010:

Caros Camaradas
Junto nova história (Baptismo de fogo), vivida no Oio, para ser registada na série "Outras memórias da minha guerra".

Segue, também em anexo, uma das fotos tiradas, à civil, em Fá Mandinga, no primeiro Domingo de Guiné que, apesar do espanto (e contestação) do Capitão, serviram para acalmar as nossas famílias, com a aparente boa disposição de um grupo de militares amigos em "gozo de férias" na Guiné.
Publiquem se julgarem oportuna.

Um abraço e Parabéns pelos DOIS MILHÕES.
do Silva


Outras memórias da minha guerra (3)

Baptismo de fogo – A grande lição

Fá Mandinga, primeiro domingo na Guiné

A nossa Companhia (Cart 1689) havia chegado a Fá Mandinga nos primeiros dias de Maio de 67. Fizemos treino de adaptação na zona do Xime, em Ponte Varela e no Enxalé. Andámos por lá relativamente à vontade e chegámos a não alvejar o IN, apanhado desprevenido em deslocação, o que serviu de chacota na sede de Bambadinca, ao qual a nossa Cart 1689 estava adstrita (que não era o nosso BART 1913, que fora colocado em Catió).

O certo é que, de repente, apesar da inexperiência de combate, fomos mandados para o OIO (zona de Samba Culo), que era uma das zonas mais perigosas da Guiné, sendo a progressão apeada feita a partir do destacamento de Banjara.

Transportados em viaturas desde Bafatá, chegámos a Banjara, onde fizemos um grande jogo de futebol, no Estádio do Capim, que, apesar de muito aquém das medidas regulamentares, não impediu a nossa vitória expressiva de 7 a 2 contra os desgraçados residentes, que viviam ali mais limitados que o melro enjaulado do meu vizinho. Digamos que com 5 semanas de Guiné, ainda tínhamos bastantes reservas energéticas acumuladas na santa terrinha da Metrópole.

Já passava da meia-noite quando saímos virados a norte. Fomos logo aconselhados a poupar a água, visto que só teríamos hipóteses de reabastecimento, lá para o meio-dia, quando se atingisse um rio.

Ninguém estava habituado a tanto calor, especialmente no interior da mata, onde, de noite, o oxigénio rareava. Daí que a água transportada nos cantis e pelos carregadores que nos acompanhavam, foi desaparecendo com o amanhecer.

Outras 2 ou 3 Companhias também andavam lá pela mesma zona, integradas na mesma operação (Op Inquietar), dando-nos uma confiança ilimitada nos êxitos iminentes. E como durante a instrução na Metrópole, se incutia que o que era difícil era apanhar os “turras” porque, “cobardemente”, fugiam, nós já tínhamos alguns valentões capazes de correr atrás deles, logo que os ataques começassem. Quem os ouvia, incluindo alguns graduados, ficava com a ideia de que a guerra não passava de uma caça ao homem, apanhá-los à mão (descalços, desnutridos, mal treinados e desmilitarizados).

Samba Culo, localizada a sul do Rio Canjambari

Recordo aqui que no RASP (V.N.Gaia), unidade onde foi formado o nosso BART 1913, como despedida, foi efectuado um ataque demonstração, em que eu fui designado para comandar o grupo de assalto. Eu, que sempre trazia bala real na câmara desde os “Rangers” de Lamego (onde as “desviei”), fui advertido e instruído pelo Comandante de Batalhão para que se tirasse o “pau-bala” das cápsulas e fosse substituído por algodão. Mais – foram dadas instruções para agir, segundo a guerra clássica, de capacetes, com os postos marcados e os braços estendidos, a indicar a “metralhadora à esquerda” ou “à direita”, sempre a correr para envolver e aniquilar o IN.

Todos os militares eram dignos discípulos de Marte e tinham também aprendido, mais ou menos, a teoria da cautela e caldos de galinha, que lhes tinham ensinado, mas, com tanta gente e tanta confiança, pensava-se: coitados dos “turras”, se a gente os descobre…

Todavia, também havia alguém que passava o tempo a advertir os soldados dos perigos que poderiam surgir e, também, sobre a falta de água, conforme se veio a verificar com alguns militares, ainda nas primeiras horas da madrugada. Tudo parecia estar a ser descuidado. Era o barulho, as conversas, os espaços demasiado curtos entre os homens, a desatenção, etc. Como reacção às minhas manifestas preocupações, era normal os visados encherem o peito e, até, gozarem:

- Calma, ó meu Furriel. Parece que está com medo.

Cruzámos com malta de outra(s) Companhia(s) e, então, a algazarra parecia a do reencontro dos ciganos na Feira de Espinho, às Segundas de manhã. A dada altura até se perguntava em voz alta:

- Onde está o Alferes tal? Está aqui fulano do Curso de Vendas Novas?

Mais uma horita de progressão e muitas reclamações, eis que se parou, para descanso. Uns instalaram-se logo nesse local e outros foram-se deslocando, à procura de uma sombra das poucas árvores e muitos arbustos. E como se amontoavam, procurei afastar um pouco o nosso Pelotão para a direita e mais para norte. Assistiu-se então ao barulho típico de um pic-nic. Só faltou ouvir-se perguntar pelo presunto e pelo garrafão do “binho berde”. Todos, ou quase todos, estavam de tronco nu, sendo de salientar um alferes que até as calças tirou. As armas encostadas (quase) à balda e as roupas, a enxugar do suor, penduradas nos arbustos, ao sol, transmitiam uma imagem de verdadeira paz e alegria que nem na "Aldeia da Roupa Branca". Digamos até, que com um Cimbalino e um cheirinho a pingar, ficaríamos por ali umas horitas em alegre convívio.

Tudo bem… seria uma maravilha se a guerra fosse assim. Mas (lá vem sempre o filho da puta do “mas”), quando menos se esperava, inicia-se um tiroteio tão perto de nós e a envolver-nos, que parecia que nos estavam já a apanhar à mão, ao mesmo tempo que se ouviam alguns gritos de Colonialistas, Filhos da puta, Salazaristas, fora daqui, ide para Lisboa.

Estávamos todos desprevenidos (alguns dormiam a sesta). Recordo que foram relativamente poucos os que responderam de imediato ao fogo, mas estou seguro que foram esses que, sem pararem, utilizando as armas e munições que apanhavam, evitaram o assalto. A confusão era geral, os gritos permanentes; uns de joelhos pediam a Deus, à querida Mãezinha e ao Senhor Santo Cristo, para lhes valer e outros à Senhora da Saúde e à Nossa Senhora de Fátima. Muitos, desorientados, nem sabiam onde tinham a arma, outros não eram capazes de a apontar e, ainda outros, descarregavam os cartuchos com a arma virada para o céu. E os que estavam perto de uma árvore maior, furavam por baixo dos colegas, amontoados, para ficarem por debaixo, provocando a subida dos outros que, ao verem-se, de novo, por cima, repetiam a operação. Enquanto isso, o “valentão da Lixa”, agarrado ao tubo do morteiro 60, desesperado, sem prato, sem granadas e sem saber o que fazer, gritava:

- Ai querida mãezinha que vamos morrer aqui todos - e pedia, também em voz alta, o apoio da Nossa Senhora de Fátima, com quem, seguramente, havia firmado o contrato do feliz regresso…

Claro que pouco a pouco, todos foram reagindo e assumindo o controlo da situação. Não morreu ninguém, nem sequer houve feridos nesse embate (aparte algumas pequenas escoriações e queimadelas com as armas mais utilizadas). Alguém estava a apontar, por engano, para os nossos camuflados pendurados nos arbustos, porque o dólmen do furriel Cepa tinha 11 (onze!) buracos.

Na mesma operação houve outros embates mas, aí já não eram os mesmos periquitos a reagir. Antes pelo contrário, graças à aflição do Baptismo de Fogo, iniciou-se ali um comportamento responsável e eficaz, que nos acompanhou por toda a comissão de serviço, tendo a Cart 1689 alcançado a Flâmula de Honra em Ouro do CTIG e um prestígio que nos acompanhou até ao fim da comissão.

Silva da Cart 1689
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 8 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6951: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (7): O Miranda e a sua adoração pelo Fê Cê Pê

Vd. último poste da série de 3 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6926: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (2): Alferes do QP Henrique Ferreira de Almeida da CART 1689 / BART 1913

Guiné 63/74 - P7003: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (20 ): Fugindo da guerra civil, de Bissau a Fajonquito, Junho de 1998 (II Parte)


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bafatá > 15 de Dezembro de 2009 > Rua principal, com o Rio Geba ao fundo... Do lado direito, a casa das libanesas... A família ainda lá está 40 anos depois... Por aqui, por Bafatá viveu o Cherno Baldé, como estudante, após a independência; e por aqui, a caminho de Fajonquito, fugindo do conflito político-militar que deu origem à guerra civil de 1998/99. Foto do médico e músico João Graça.




Guiné Bissau > Região de Bolama / Bijagós > Ilha de Bubaque > 12 de Dezembro de 2009 > Um bom conselho ou um bom voto ? "Deus dê à Guiné-Bissau uma boa governação"...


Fotos: © João Graça (2009) / Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados


Bissau > Safim > 1973 > Cruzamento: Bula e João Landim, à esquerda; Ensalme, a 5 km, à direita... Foto de um militar português, António Rogério Rodrigues Moura, que lá estava aquartelado em 1973...

Cortesia do portal Prof2000 > Aveiro e Cultura Safim




Guiné-Bissau > Bissau > c. 2010 > Cherno Baldé e família (o filho mais velho, à esquerda), no Tabaski ou festa do carneiro. 


Foto: ©  Cherno Baldé (2010) / Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.


1. Publicação da 2ª e última parte du texto do Cherno Baldé (*)


A CAMINHO DO REFÚGIO

Safim, Dia 11 de Junho, (Quinta-Feira). (*)


Na manhã do quinto dia (11 de Junho), decidi que desta vez se a Djenaba não quisesse sair, então eu sairia com a minha família, mulher e filho. No entanto, quando lá cheguei, já estavam prontos, na verdade todos os vizinhos já se tinham ido embora. Pegámos nas coisas, metemos algumas provisões num carrinho de mão e rapidamente, atravessámos a bolanha de Bairro Militar. Ainda o fluxo da população era enorme. Seguimos ao longo da estrada que leva a estrada da volta Bissau. A nossa caravana estava constituída de 10 pessoas: Eu, a minha esposa, o filho de três anos de idade[, ,Abduramane Santos Baldé], a minha sobrinha de cinco anos, por um lado, e por outro Djenaba, seus quatro filhos e uma sobrinha, com 13 anos. Portanto, três adultos e sete crianças dos 3 aos 13 anos.

No caminho, pelas informações que circulavam, soubemos que em Safim a multidão era tanta que já era muito difícil encontrar água. Munido desta informação, decidi seguir a via alternativa. Consultámo-nos rapidamente e decidimos tentar chegar até Nhacra. O percurso seria difícil mas aumentava nossas hipóteses de sobrevivência se conseguíssemos lá chegar. Caminhámos para o cemitério de Antula. A minha intenção era atravessar a bolanha, passar para os lados de Cumeré e seguir até Nhacra a uma distância de, talvez, 20 Km.

Era puro palpite, nunca tinha feito esse percurso antes. O raciocínio parecia correcto mas, todavia, ao chegarmos às portas do cemitério,  cruzámo-nos com uma multidão de pessoas que estavam cobertas de lodo dos pés a cabeça, irreconhecíveis, pareciam Nhayés Balantas, informaram-nos que era impossível passar por ali pois o curso d´água estava muito baixo, só pessoas jovens e fortes podiam fazer a travessia, e isto quando havia canoa.

Ao ver o estado deplorável dos nossos interlocutores, não tive qualquer dúvida e tivemos que voltar atrás a fim de procurar o caminho de Safim. Já tínhamos perdido três horas de tempo e as crianças já davam sinais de fadiga. A quantidade de água era insuficiente pelo que comecei a racionar o seu consumo. A alegria das crianças abrandou, no caminho, juntámo-nos à multidão que de todos os lados afluía, seguindo depois pela bolanha que separa o Bairro de Afiá ao Aeroporto de Bissalanca, para tentar chegar a estrada que leva a Safim, para os lados de Djáhal.

Ninguém soube porque tinham fechado as vias de saída para fora, por onde todos podiam sair, transportados em veículos, sem grandes dificuldades. Mas eu sei e a resposta, na minha opinião, é muito simples: Ódios e medos que ganharam as hostes dos militares e antigos combatentes desde 1980. Ódios, medos e velhos demónios trazidos das matas de Oio, Cubucaré e Quitáfine que ainda não tinham sido exorcizados de todo.  

Durante o trajecto ouvíamos o som das explosões das BM [, órgãos de Estaline,] e uma vez pareceu-nos que éramos nós os visados ao ouvirmos o assobio seguido do impacto de uma bomba à nossa frente e nessa altura tivemos que nos deitar ao chão. Foi durante este exercício que o meu filho que viajava em cima dos meus ombros,  caiu estatelando-se no chão. Para além dos bombardeamentos contínuos que pareciam nos perseguir, foi, talvez, o único momento em que ele sentiu, de facto, o perigo em que nos encontrávamos e já não lhe parecia tão divertido andar viajando nos ombros do papai.

Chegámos à vila de Safim quando o sol já começava a descair para oeste pintando o horizonte de vermelho. O maior problema que tivemos foram os bombardeamentos que nos acompanharam ao longo do trajecto, de resto, chegámos em bom estado e, no fundo,  a travessia acabou sendo divertida com as crianças a correr de um lado para o outro numa planície largamente aberta e pitoresca. As paisagens da nossa terra são lindas. Era uma maravilhosa descoberta para eles, crianças de uma cidade caótica, fechadas entre muros e estradas estreitas. Sentia-se o cheiro acre da terra esbranquiçada da bolanha que os pés libertavam na caminhada qual manada de búfalos em corrida tresloucada.

A confusão em Safim, afinal, não era assim tão grande como se dizia, e não tivemos problemas de maior para nos instalarmos. Era preciso preparar rapidamente qualquer coisa para comer e preparar-se para o que desse e viesse. Graças à ajuda de um colega, consegui uma cama para três pessoas. O espectáculo na estrada era impressionante, uma corrente humana afluía de Bissau para o interior, cada um carregando o que podia, acompanhado de suas crianças e até de alguns animais. Esta caminhada era sobretudo difícil, ver impossível para os idosos. Alguns caiam no caminho completamente esgotados, e muitos acabaram por morrer.

Passámos dois dias em Safim, na vã esperança de que tudo ficava resolvido e que tão cedo como isso voltávamos para casa. Tudo se assemelhava a um pesadelo, que insistia teimosamente em transformar-se na mais dura das realidades, daquelas que não queremos reconhecer como tal mas que parecem gozar com a nossa capacidade de entendimento. Todos os dias víamos pessoas a correr para embarcar em camiões que as levavam para longe dali.

Como da primeira vez, a minha decisão de partir chegou tardiamente, pois a Djenaba estava à espera que o seu marido viesse à sua procura. Também eu desejava que assim acontecesse pois senão teríamos grandes problemas com ela e seus filhos pois o seu destino era para o sul e nós devíamos seguir para leste. Todavia, o marido não aparecia. No dia seguinte, decidimos avançar para o centro da vila na esperança de conseguir transporte.     




Guiné > Mansoa > 1968 > CCAÇ 2405 (1968/70) > O Alf Mil Inf Paulo Raposo, membro da nossa Tabanca Grande, junto à placa toponímica que indivaca as localidades mais próximas: para oeste, Nhacra (a 28 km), Bissau (a 49 km)...; para leste, Enxalé (a 50 km), Bambadinca (a 65 km), Bafatá (a 93 km)...

Foto: Paulo Raposo (2006)
                
MANSOA, 13 de Junho (Sábado) - O perigo ainda a espreita



No centro da vila de Safim, apesar do trabalho contínuo dos camiões que transportavam as pessoas para o norte leste e sul, ainda a multidão apinhada junto a estrada era enorme e para conseguir um lugar num desses camiões era uma autêntica guerra e para quem tinha crianças e cargas ainda pior. Como a desgraça nunca vem só, o transporte não era gratuito aliás, os preços tinham subido cinco vezes mais. Fomos parar junto a uma escola, onde pernoitámos. A maioria estendeu-se assim directamente no chão. Consegui arranjar um lugar sentado numa carteira da escola local, apinhada de gente, onde passei a noite com o meu filho ao colo. Na manhã do dia seguinte esperava-nos uma boa surpresa.

O meu colega tinha conseguido, para nós, uma boleia até à cidade de Mansoa. Bem, não era exactamente o que precisávamos mas, nessa altura, com os ruídos e sinais da guerra cada vez mais perto, o que importava era afastar-se o mais longe possível. Quando me informaram, nem sequer nos preocupámos com o pequeno-almoço. Preparámos rapidamente e fomos pegar o camião.

Depois de muitos anos trabalhando como quadro superior da administração com carro de função e regalias, a sensação que senti,  ao embarcar nas traseiras de um camião, foi indescritível. Mais uma vez, isto não era o mais importante, aliás, sem o saber, tínhamos entrado no labirinto onde, cada vez, as coisas tomavam um carácter estranhamente diferente, onde tudo perdia o seu verdadeiro sentido e valor. Ali, pela primeira vez, percebi que o mal era irreversível e com ele a desgraça humana que o acompanha sempre que a ordem é abalada. A pensar que, no meu íntimo, tinha desejado esta sublevação armada, logo a desordem. Não, de facto, não era a desordem que desejara mas sim uma mudança. Mas, é possível fazer a mudança sem criar desordem? Era possível criar, algo de novo, sem destruir? Eis uma questão melindrosa para a qual não tinha resposta.

No geral não nos surpreendeu muito esta inversão de situação, e como eu, as pessoas viviam esta situação de forma absolutamente normal, afinal tinham também vivido a independência, acontecimento que tinha virado o país de pernas ao ar há cerca de 24 anos atrás. O desespero é apanágio das pessoas de pouca fé. Isto não durará para sempre, dizia-me a mim mesmo para me confortar. Na verdade, o medo do desconhecido roía o meu coração de chefe de família e,  chegado a este ponto, lembrei-me do meu pai e da sua coragem nas situações mais difíceis por que tínhamos passado, na infância. Tinha conseguido, finalmente, encontrar a âncora que me faltava neste mar de angústias, o exemplo e a bravura do meu pai.

O camião rolava velozmente para fora de Safim, finalmente tínhamos conseguido sair do inferno situado nos arredores de Bissau. Tentando verificar se estávamos ao completo, acabei reparando em Djenaba, acocorada não muito longe, à minha esquerda. O seu rosto estava banhado em lágrimas. Porque chorava ela? É possível compreender as mulheres? Virou-se para o outro lado como quem queria admirar o andamento das árvores, na verdade, não queria enfrentar o meu olhar recriminatório. Ah, Chita, a nossa cadela, deixámo-la ficar em casa. Era tarde demais.

A nossa partida para Mansoa tinha sido fruto de um puro azar, o que não era de admirar naquelas circunstâncias e, por isso mesmo, não tínhamos ninguém à nossa espera. Descemos do camião e acomodámo-nos na sombra de uma mangueira perto da missão católica enquanto ia pensando sobre a decisão a tomar de seguida. Sabia do enorme esforço que a igreja estava a fazer para ajudar as multidões abandonadas a si, particularmente naquela cidade. Mas, na verdade, imaginando o trabalho que já teriam tido com toda aquela gente, eu não tinha qualquer intenção de sobrecarregá-la com mais pessoas, por enquanto. Fomos,  sim, lá dentro reabastecermo-nos de água.

Mais uma vez, foi um colega que nos encontrou ali casualmente e que nos socorreu, levando-nos para a sua casa. No dia seguinte já estávamos bastante melhor. Estávamos longe do teatro da guerra, tínhamos tomado banho e recuperado um pouco do nosso juízo e amor-próprio.

Todavia, sabia que ainda estávamos numa área potencialmente perigosa, pois a cidade de Mansoa, situada na confluência das principais vias que atravessam o pais, é um corredor natural de acesso às três zonas em que este se divide, Bissau/Centro, Leste/Sul e Norte/Oeste e funcionou sempre como um ponto estrategicamente importante em termos militares e por enquanto estava sob o controlo da Junta Militar [ , de Ansumane Mané,] aliás toda a zona norte estava nas mãos desta, enquanto a zona leste e parte do sul se mantinham fiéis ao governo. Para qualquer das duas partes, pensei, o controlo de Mansoa será indispensável para a conquista do resto do país. Por isso convinha sair dali sem perda de tempo. 

A casa do meu colega estava situado na estrada que liga Mansoa à Mansabá e não muito distante do centro da cidade, por isso, deixámo-nos ficar ali à espera mesmo depois de ter despedido dos nossos benfeitores. Comecei então, a fazer vaivém entre a casa e o centro da cidade à procura de uma solução. Foi com grande alívio  que vi aparecer um camião que já conhecia, e o motorista, um jovem da minha aldeia, quando me viu parou para os habituais cumprimentos. Não foi preciso dizer nada pois era evidente que estava ali à espera de poder viajar até Bafatá a partir donde poderia seguir para a aldeia natal. Explicou-me que tinha que ir até Farim mas que, de seguida, voltaria no mesmo dia à Bafatá.

Ficámos à espera, já, mais confiantes e descontraídos. Consegui finalmente comer alguma coisa para enganar a fome pois a preocupação e a responsabilidade que pesavam sobre mim não me tinham permitido fazê-lo havia muito tempo. A espera não foi demorada. Pode ser que tenha sido, mas não deu para perceber, estava contente de mais pela dádiva que Deus nos concedera.


BAFATÁ, 14 de Junho - Recordações dos tempos de estudante


Na tarde do dia 14 de Junho, uma semana depois do inicio da guerra, chegámos à cidade de Bafatá. E durante a viagem, para já, o único acontecimento de relevo tinha sido o facto do jovem condutor decidir voltar, ainda, até Nhacra antes de virar o rosto do camião para leste. Tive medo sim, por algum momento, por causa dos imprevistos e imponderáveis a que estava sujeito qualquer veículo equipado de motor e assente sobre um monte de ferralha e rodas de borracha. Se acontecesse alguma avaria ao camião seria uma grande desgraça para nós que voltávamos para trás depois de termos alcançado lugares seguros. Era uma aventura perigosa. Para me acalmar, dizia a mim mesmo que não havia razão para entrar em pânico e repetia isso várias vezes à minha consciência, mas sempre que olhava para as crianças o medo voltava a me invadir de novo.

Ao atravessarmos a ponte de Finete, perto de Bambadinca, entrámos na zona controlada pelos governamentais que, a acreditar naquilo que tínhamos visto no caminho, oferecia maior segurança as populações civis. Junto à ponte estava um destacamento de tropas da Guiné-Conacri e alguns tanques de guerra dissimulados no meio do arvoredo. Tudo novinho em folha. Depois de Bantandjan, finalmente, chegámos à cidade de Bafatá.

Mas antes, o camião atravessou a ponte sobre um braço do rio Geba, por onde corria a água turva carregada de material orgânico com que fertiliza as bolanhas nas suas margens, passou pela antiga fábrica de cerâmica, atravessou a rua Porto, passando pelo Liceu, o nosso velho Liceu onde está situado o memorial de Amílcar Cabral e foi parar no Bairro de Sintchã Bonódji,  na saída para Gabú.

Sem contar com o número de pessoas que tinha afluído a esta cidade leste do país, fugindo da guerra de Bissau, não se notava qualquer diferença. Sim, Bafatá era ainda a mesma cidade de sempre, preguiçosamente estendida no dorso de um planalto meio adormecido que tínhamos deixado 27 anos atrás, quando partimos para continuar os estudos em Bissau.

Esta cidade não será, certamente, a pior localidade da Guiné, mas para mim foi um inferno durante uns longos anos dos quais conservo uma péssima recordação dos tempos de estudante. Aqui, de rafeiro saído de um antigo quartel de brancos e filho querido de um lojeiro de uma pacata aldeia que, no fulgor da sua inocência, pontapeava o prato de farinha de milho que a avó lhe trazia a noite, tinha-se transformado num verdadeiro cão vadio. Nunca e em lugar algum tinha merecido tanto este animalesco cognome.

Lembrei-me de Boma (situada à frente do quartel), suas árvores frondosas e a água fresca das suas nascentes onde íamos esconder-se das brasas do calor que arrasavam os Bairros situados na parte mais elevada do planalto e a Ponte Nova e onde, também, íamos enganar a fúria das nossas fomes insaciáveis de estudantes sem tecto, fingindo estudar. O guarda da plantação de mangueiras e cajueiros nas profundezas de Boma cujo nome era Sekuel (1), nos conhecia de cor e deixava-nos assaltar a sua horta, na certeza de que não adiantava muito tentar impedir-nos. Era uma pessoa dotada de grande humanismo e de bom senso, vacilando entre as suas obrigações de guarda e os sentimentos de piedade para com crianças deserdadas. No princípio ainda tentou, mas rapidamente teria notado que, empurrados pela fome, a nossa insistência e capacidade de resistência eram fora do comum. Não tínhamos alternativa. Acabou por nos aceitar como se aceita a presença de animais roedores dentro da própria casa. De facto, durante mais de cinco  anos, conseguimos sobreviver graças a nossa perícia em roubar e mendigar peixe e frutas, ora nos mercados ora nas hortas a volta da Cidade.

Ali estava Bafatá com os seus habitantes avaros e a sua juventude implacável que aceitava mal a invasão da mocidade mal fardada vinda das tabancas ao seu redor a quem apelidavam de mocidade treco (2). O certo é que, por qualquer razão, as nossas fardas destoavam sempre dos da cidade. Foi assim no tempo da mocidade portuguesa e foi assim com os pioneiros Abel Djassi. A farda era a mesma, mas a tonalidade das cores era sempre diferente. As meias, calções e sapatilhas não eram tão castanhos como se devia, a camisa era verde ou azul mas não tão verde ou azul como se devia e isto era motivo de chacota e de corre-corre entre os jovens incautos que tinham aceitado a aventura das paradas e acampamentos na cidade. Faziam-no de propósito, para se divertir.

 Vindos de Contuboel, Gabú, Sonaco, Cossé, Pirada, Bajocunda, Paunca, Pitche, Bambadinca, Quebo, entre outras localidades, e abandonados numa cidade inospitaleira, o nosso bando era formado por jovens de todas as regiões, de todas as cores, com uma particularidade bem marcante. Todos tinham nascido e crescido com a guerra colonial e todos eram originários de antigos centros de aquartelamento de tropas portuguesas e muitos tinham aprendido as primeiras letras com soldados e oficiais portugueses.

Esta era, para todos os efeitos, a primeira geração formada nas escolas portuguesas dentro da comunidade Fula e talvez de todos os grupos étnicos (chamados gentílicos) na zona leste da Guiné-Bissau. A administração portuguesa só tardiamente (com o General Spínola), se tinha resolvido a seguir os conselhos de Teixeira Pinto, ainda no princípio do século XX, de criar escolas para os nativos em todos os postos militares, convencido que, a coragem e irredutibilidade do Guinéu estaria ao mesmo nível do seu obscurantismo (R. Pélissiér – História da Guiné).Mas, no fim, foram o PAIGC e a independência que colheram os louros da formação de quadros iniciada na década de 60 e acelerada a partir de 70.

Quando apanhavam um dos nossos durante os saques, os outros vinham em grupo ajudar o companheiro infeliz. Tínhamos regras a que éramos muito fieis, ajudar um ao outro e nunca faltar às aulas, com ou sem fome. Era a mesma lógica no enfrentar das situações de perigo e de necessidade. Roubar ou morrer de fome.

A nossa estadia em Bafatá, não demorou muito, estávamos apressados. Dormimos uma noite e na manhã seguinte partimos para Fajonquito. Antes de partir, acompanhámos a Djenaba e as suas crianças a fim de apanharem o transporte que os conduziria até Bambadinca donde partiriam para a aldeia dos pais em Cacine, no sul do país. Despendi parte do meu dinheiro para os ajudar a alimentar-se durante o trajecto que seria, longo e, certamente, difícil nessa altura.

Podia estar orgulhoso do meu trabalho, pois apesar das dificuldades, tinha conseguido tirar de Bissau duas famílias,  ou seja 10 pessoas. Também, já não restavam dúvidas que esta guerra iria durar. Foi com este pensamento que me despedi deles e da cidade de Bafatá,  rumo à minha terra natal.

Engraçado, agora que estava a alguns quilómetros da minha tabanca, lembrei-me que o meu filho, nascido e criado na cidade, não sabia falar a nossa língua, como dizem os Fulas, era macaco que não sabia trepar. Também eu, alguns anos antes, não sendo filho de gente da cidade, quando me mudei para Bafatá, ainda não falava o crioulo. O meu filho fazia o percurso inverso num contexto e condições diferentes, porém, havia uma constante, era o mesmo país de sempre, a Guiné-Bissau como a Guiné de Cabo-Verde, no desequilíbrio da balança, oscilando entre a guerra e a paz.

                                                                   
Bissau, de Junho a Dezembro de 2000
                                                                          
Cherno Abdulai Baldé
                                                                                                                                                                                (...) 
 Notas do autor:

1- O sufixo el colocado no fim dos substantivos, na língua fula (Sekuel, Gadamael, Contuboel), empresta-lhes o significado de pequenino(a) e, logo, lindo(a). A beleza, entre os fulas, é algo intimamente associado aquilo que é pequeno, que não é grande.

2- Treco: Personagem caricatural da banda desenhada.

_______________

Nota de L.G.:

(*) Vd. postes anteriores desta série:

 17 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7002: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (19): Fugindo da guerra civil, de Bissau a Fajonquito, Junho de 1998 (I Parte)

(...) Na madrugada do dia 7 de Junho de 1998, ainda na cama ouvimos, de longe, tiros de armas de guerra. Na manhã do mesmo dia, ouviram-se tiros de armas pesadas acompanhadas de rajadas de metralhadoras. Em casa, apercebemo-nos que se passava coisa séria para justificar tamanho tiroteio. Sentámo-nos a mesa para o pequeno-almoço. Aqueles tiros não nos incomodaram em nada, afinal já tínhamos vivido outros golpes, coisa banal, seriam escaramuças localizadas e algumas mortes mas depois tudo voltava a normalidade. (...).

17 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6864: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (18): A (mu)dança das bandeiras em Fajonquito, em 1974
 (...) Em Fajonquito, o período entre o mês de Junho a Agosto de 1974, tinha sido marcado pela chegada de uma nova companhia (BCaç 4514/72), conhecida entre nós como a companhia de Gadamael; a visita dos primeiros elementos da guerrilha e a saída definitiva das tropas portuguesas de Fajonquito. Período rico em acontecimentos, manifestações de apoio e festas, que algumas vezes assumiam formas dramáticas e outras simplesmente cómicas, mas foi sobretudo um período de indefinição, de ansiedades e de questões sem resposta, relativamente ao futuro. (...)

14 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6735: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (17): A desertificação da nossa terra: até os macacos pára-quedistas nos estão a deixar
(...) O nosso amigo José [Cortes] demorou a reagir mas gostei das imagens da nossa Fajonquito (**). É mais que óbvio que conheci e convivi com ele no quartel e ainda mais sendo responsável do parque automóvel, a minha zona predilecta de actuação. O José, certamente, se lembrara do Sérgio, o responsavel pelo abastecimento do combustível, de resto, como ele diz, faziam parte da mesma companhia, para além dos meus controversos patrões, o Dias e o Magalhães, também me lembro do Mandinga. Gente porreira. (...)

12 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4816: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (12): E se o Algássimo tivesse razão ?

(...) Quando finalmente saía do quartel, a noite, encontrava o Algássimo Djaló à minha espera, ele gostava da sopa (entenda-se comida do quartel) que trazia metida em latas de conservas de tomate. Não podia entrar dentro do quartel, por ordens do seu pai, de princípios rígidos e ortodoxos como todos os seus conterraneos de Futa-Djalon que em tudo se comportavam como perpétuos emigrantes e nunca se integravam nas comunidades locais consideradas de nível inferior, religiosamente falando. (...).

 10 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4806: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (11): Filho da p... de barrote queimado...... Ou as sobras do rancho

(...) Após a última partida [de futebol] da tarde e depois do toque da corneta das 19H30, voltava para o meu cantinho no quartel[,em Fajonquito,] a fim de recolher as sobras do jantar. O meu barulhento patrão, o Dias, raramente trazia alguma coisa do refeitório, ele comia tudo e nem sequer se lembrava de pedir uma segunda dose, ocupado em pôr pitadas nos mexericos e conversas alheias, brigando as vezes quando tomava alguns copos de tinto a mais. Mas, mesmo assim, era ele que ordenava aos outros para me trazerem a comida, assegurava-me prontamente, atirando o seu prato no chão ainda por lavar. (...)

8 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4802: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (10): Futebol: ser do Benfica ou do Sporting, eis a questão

(...) No início eu não sabia que partido tomar entre as duas claques predominantes, Sporting ou Benfica?... Foi o Dias que decidiu. Um dia entrou na conversa dos putos e disse prontamente:
- O Chico é do Sporting, pronto, nós em casa somos todos do Sporting, eu, minha mãe...

O Dias metia a mãe em todas as suas conversas e quando isso acontecia instintivamente eu sentia vergonha, ficava vermelho em seu lugar, entre nós a evocaçao da mãe, logo do sexo feminino, por um homem era sinal de fraqueza e não era bem acolhido entre adultos, iniciados. (...).


5 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4782: Memórias do Chico,menino e moço (Cherno Baldé) (9): Futebol, rivalidades, bajudas... e nacionalismos(s)

(...) O Júllio era um garoto muito estimado entre os colegas do grupo de Sambaro Djau, bem constituído, duro que nem um pau esculpido e ágil como um animal selvagem. No futebol de salão era o mestre no drible de frente a frente. O seu nome verdadeiro era Abibo. Ficámos amigos logo a seguir ao nosso primeiro duelo. Os bons adversários respeitam-se mutuamente, não é?... (...).

27 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4746: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (8): Misérias e grandezas de Fajonquito, 1970/75

(...) No início dos anos 70, Fajonquito é quase um burgo com muitos milhares de almas. Aqui estavam misturadas várias comunidades. Diferentes subgrupos da comunidade fula (Fulas-pretos, Fulas-forros, Futa-fulas), Mandingas (ou do que restava desta comunidade em consequência da guerra), algumas famílias Balantas, Saracolés, Manjacas e mesmo Bijagós que o comércio do amendoím e a guerra tinham trazido consigo. (...).

21 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4714: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (7): As profecias do velho Marabu de Sumbundo

(...) No período decorrido entre os anos de 1972/75, vivendo em Fajonquito para onde mudámos no ano de 1968 na sequência da transferência do meu pai, acompanhava este com frequência, em deslocações às aldeias vizinhas, durante os fins-de-semana. Nessa altura, o meu pai tinha sempre consigo uma bicicleta como meio de transporte para esses casos. Eram, na maioria dos casos, bicicletas usadas que ele raramente montava, não só pela idade que não permitia muito esforço físico, mas também a necessidade ou a obrigatoriedade de falar e cumprimentar cada pessoa com que nos cruzávamos. Eram mantenhas prolongadas que nunca mais acabavam, durante as quais cada um tentava sondar o outro sobre assuntos dos mais variados de seu interesse, coisas de adultos no mundo rural de Fuladu de então. Eu, ao lado, ouvia e ouvia, era quase sempre o mesmo discurso que, na minha opinião de criança apressada, não servia para nada. (...)

13 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4679: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (6): Uma gesta familiar, de Canhámina a Sinchã Samagaia, aliás, Luanda


(...) A minha família, descendente de Fulas originários de Macina, no espaço territorial do antigo Sudão Ocidental (actual Mali), e que se consideram a si mesmos de Fulbhê Arábbhê, cujo significado se deve ter perdido na noite dos tempos e que, no entanto, tem uma similitude muito próxima da palavra Árabe, vivia em Kerewane (uma deformação de Kairuan?), localidade situada entre Kumakara (Senegal) e Saré Bacar (Guiné-Bissau), mesmo na linha da fronteira entre os dois países. (...)

6 de Julho de 2009 >Guiné 63/74 - P4646: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (5): A família extensa, reunida em Fajonquito, em 1968

(...) Em 1968, , o meu pai foi transferido para Fajonquito e com ele toda a nossa família. Todavia, o meu pai não estava satisfeito com a transferência porque ela tinha provocado a separação com o seu irmão Dembaro, cuja família não podia sair de lá naquela época de rigoroso controlo do movimento de pessoas, por parte das autoridades tradicionais fortemente empenhadas na guerra, sem um pretexto muito forte. (...).

30 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4611: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (4): O ataque dos meus primos a Cambajú e o meu pai que foi um herói

(...) Ainda hoje, a nossa mãe está convencida que este ataque foi obra dos primos do meu pai que viviam do outro lado da fronteira, não muito longe de Cambajú. Aconteceu que, no dia anterior ao ataque, o meu pai tinha recebido uma grande quantidade de mercadorias e, por coincidência, no mesmo dia tinha-se despedido uma pessoa que estava hospedada em casa para tratamento e que voltara junto dos tais primos da outra banda. Assim, nesse dia do ano de 1966, na calada da noite, pouco depois das quatro horas de madrugada, ouvimos tiros. Primeiro os disparos se fizeram ouvir a oeste para os lados do quartel, fazendo pensar que o objectivo era militar, depois se espalharam rapidamente contornando a aldeia.(...).


25 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4580: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (3): A chegada dos primeiros homens brancos a Cambajú em 1965: terror e fascínio

(...) No ano de 1965, altura em que a guerra para a independência se alastrava rapidamente e aterroriza as aldeias daquela área e obrigava a uma concentração maior da população em certos locais com algumas garantias de defesa e protecção militar, Contuboel, Saré-Bacar, Cambajú e Fajonquito constituíam as praças-fortes da área. Em Cambajú foi estacionado um destacamento de milícias que assegurava a defesa da localidade e que mais tarde foi reforçado com um destacamento de tropas portuguesas. Pela primeira vez na minha vida ainda jovem, via pessoas de uma raça diferente. Foi um choque tremendo. (...)

24 de Junho de 2009 > Guine 63/74 - P4567: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (2): Cambajú, uma janela para o mundo

(...) Em Cambajú, pequeno centro comercial, começou o despertar da minha infância, altura em que, saído da pequeníssima aldeia de Sintchã Samagaya, fundada por meus pais, aterrei-me numa aldeia de muito maior concentração de moranças e de gente. Cambaju estava situada mesmo na linha da fronteira com o Senegal, o que lhe emprestava um certo ar cosmopolita onde se cruzavam pessoas de várias origens e destinos e um certo movimento de vaivém de pessoas e mercadorias com as suas três ou quatro casas comerciais, algumas pequenas boutiques e o contrabando pra cá e pra lá das duas fronteiras. (...)


19 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4553: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (1): A primeira visão, aterradora, de um helicanhão

(...) Foi naquela época que, na idade de 4 ou 5 anos, aconteceu a minha primeira visão de uma máquina voadora, que terá sido, provavelmente em meados de 1964, precisamente na altura em que estávamos em Samagaia, pouco tempo antes do ataque à zona que nos obrigaria a deixar a aldeia para nos refugiarmos em Cambajú, onde o meu pai já se encontrava a trabalhar alguns anos antes. (...).


(...) Estimados amigos e irmãos da Tabanca Grande, não tenho palavras para exprimir a minha gratidão para todos os que lêem os meus escritos e me encorajam. Lamento imensamente não ter o tempo necessário para me dirigir, pessoalmente, a todos e, também, discutir sobre diversos aspectos do que se escreve ou escreveu. A todos as minhas sinceras desculpas. (...)

30 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6661: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (16): Canhámina, 1974: o fim do triângulo da vida e do poder do regulado de Sancorlã


(...) Estamos no ano de 1975, alguns meses após a independência. Só agora começamos a compreender todo o tamanho do trama em que estamos metidos. Pessoalmente, estou na fase da readaptação de uma nova vida. Não é fácil para mim, sobretudo, ter de voltar à comida de farinha de milho preto. De manhã vou à escola e à tarde cuido do nosso gado na companhia de outros miúdos. As dificuldades são de vária ordem mas, na memória da criança não há lugar para a saudade. (...).


18 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6417: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (15): Obrigado, Mortágua, salvaste-me a vida!


(...) Para todos aqueles que conhecem minimamente terras Lusas, Mortágua deve significar uma aldeia, vila, freguesia ou cidade, situadas algures no centro norte de Portugal. Para as crianças "rafeiras" do quartel de Fajonquito por volta de 1970/72, Mortágua era o nome dado a um dos soldados cozinheiros da messe dos oficiais, situada nas traseiras da casa comercial Ultramarina, onde trabalhava o meu pai. (...) O nosso amigo José [Cortes] demorou a reagir mas gostei das imagens da nossa Fajonquito (**). É mais que óbvio que conheci e convivi com ele no quartel e ainda mais sendo responsável do parque automóvel, a minha zona predilecta de actuação. O José, certamente, se lembrara do Sérgio, o responsavel pelo abastecimento do combustível, de resto, como ele diz, faziam parte da mesma companhia, para além dos meus controversos patrões, o Dias e o Magalhães, também me lembro do Mandinga. Gente porreira. (...)

24 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6244: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (14): Cap Figueiredo: Capiton Lelö dahdè ou capitão cabeça inclinada

(...) O que vou dizer pode parecer paradoxal se não incongruente. O Sr. Carlos Borges de Figueiredo, ao contrário de muitos outros, foi um Capitão pacifista pois ele tinha-se distinguido, sobretudo, pela promoção da educação entre as criancas nativas (o número de alunos na escola local tinha aumentado significativamente facto que poderia estar ligado ao ambiente de paz criado e uma grande sensibilidade pelos problemas sociais da população) e organização de eventos sócio-culturais que, não só afastavam, por algumas horas, o espectro da guerra e da morte entre a tropa mas eram também muito úteis e importantes na construção de relações de aproximação e de confiança com a populaçã local, tão prezada por General Spínola. (...). 

12 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6146: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (13): Fajonquito, o blogue, o meu silêncio... e as fotos do José Cortes

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Guiné 63/74 - P7002: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (19): Fugindo da guerra civil, de Bissau a Fajonquito, Junho de 1998 (I Parte)


O filho mais velho do Cherno Baldé,  de seu nome Abduramane Santos Baldé,  "junto ao rio Geba na baixa de Bafatá, em viagem para Fajonquito, em Setembro de 2000. Teria eu, mais ou menos, a mesma idade quando fugimos de Samba-Gaya em 1964"


Foto (e legenda):  © Cherno Baldé (2010). Todos os os direitos reservados.



1. Texto, que vamos dividir em duas partes, da autoria do nosso querido amigo  Cherno Baldé (*), e que veio acompanhado da seguinte mensagem, com data de ontem:


Estimado amigo e irmão Luis Graça,



Juntamente envio mais um texto fazendo parte das minhas habituais crónicas ou memórias do passado. Mudando um pouco de cenário, desta vez, os acontecimentos retratados são mais recentes e centrados sobre as tribulações de uma pequena familia, melhor, do seu desajeitadio chefe, no inicio da guerra de Bissau em 1998. Propositadamente, passei por cima do periodo que vai dos tempos de estudante em Bafatá, depois Bissau e da passagem pela antiga URSS. Voltarei, mais tarde, a este periodo se houver interesse.

O presente texto foi por mim escrito em 2000, alguns meses antes de emigrar para Portugal onde participei na construção do novo Estádio de Alvalade Sec. XXI (2001/02), como servente de qualquer coisa, na verdade não tinha as qualidades requeridas mas contava com a (cunha) ajuda de uma familia Portuguesa com a qual mantiamos excelentes relações de amizade e estima. Os encarregados topavam logo com o meu ar intelectual e a falta de jeito. Mandaram-me embora por duas vezes e reentrei outras tantas. Ai reencontrei os meus primos Ucranianos, enfim, foi muito interessante e enriquecedor.


Apreciem o texto e vejam se tem interesse para divulgação.


Peço desculpa se alguma vez disse o que não devia nos meus comentários e diga ao meu amigo Torcato para guardar a sua G3 porque eu sou, simplesmente, um pequeno rafeiro amigo da malta do quartel.


Com os melhores cumprimentos,

Cherno Baldé (Chico de Fajonquito)

PS: A foto  [, acima,] mostra o meu filho junto ao rio Geba na baixa de Bafatá, em viagem para Fajonquito. Teria eu, mais ou menos, a mesma idade quando fugimos de Samba-Gaya em 1964.



RECORDAÇÕES DA GUERRA DE BISSAU/
(CONFLITO POLITICO MILITAR DE JUNHO DE 1998)

(Domingo) - Dia 7 de Junho de 1998– o rebentar do conflito


Na madrugada do dia 7 de Junho de 1998 (**), ainda na cama ouvimos, de longe, tiros de armas de guerra. Na manhã do mesmo dia, ouviram-se tiros de armas pesadas acompanhadas de rajadas de metralhadoras. Em casa, apercebemo-nos que se passava coisa séria para justificar tamanho tiroteio. Sentámo-nos a mesa para o pequeno-almoço. Aqueles tiros não nos incomodaram em nada, afinal já tínhamos vivido outros golpes, coisa banal, seriam escaramuças localizadas e algumas mortes mas depois tudo voltava a normalidade.

Pessoalmente, e sem estar informado de nada, já estava do lado dos revoltosos. Podia ser da idade ou simplesmente pela mania das revoluções. Fosse quem fosse, na minha opinião, achava que já era tempo de varrer o regime vigente para instaurar uma nova ordem, inverter a marcha que estava a afundar o país e aprofundar o fosso da desigualdade económica e social entre uma elite parasitária vivendo à custa do Estado e a maioria da população, cada vez mais paupérrima e despojada de recursos e de oportunidades.

Por volta das 8h00, o governo, através do seu ministro da defesa nacional, comunicou pela rádio que um grupo não identificado tinha assaltado o quartel-general (QG) mas que tinha sido rechaçado e que todos ficassem em casa até ordens ao contrário.
- É um golpe de estado, de certeza! - disse para a minha mulher, quase com satisfação.

Entretanto, pediam calma a população enquanto nos quartéis havia uma grande agitação. Todas as estradas de acesso ao centro da cidade estavam bloqueadas, havia confrontos em S. Luzia (QG), muita agitação nos aquartelamentos de Brá e na Base Aérea, onde tropas do governo tentavam desalojar os revoltosos ou vice-versa.

Seguiu-se uma acalmia de algumas horas e no início da tarde houve um ataque ao quartel de Brá com armas ligeiras, sem qualquer efeito especial, pois a situação mantinha-se na mesma, ou seja, de vez em quando ouviam-se tiros de armamento pesado seguido de um compasso de espera. As horas que se seguiram foram de uma grande curiosidade, toda a gente sabia tratar-se de um levantamento militar mas ninguém sabia nada sobre os cabecilhas da revolta.

2º dia > Segunda feira, dia 8 de Junho

A partir do segundo dia (8 de Junho) começaram a circular algumas informações sobre o levantamento. Agrupados a volta do antigo CEMGFA, Brigadeiro Brick-Brack, (por sinal, mais um voluntário, chefe de guerra, originário dos países vizinhos, na senda de Abdul Indjai e Ca), uma parte das tropas e antigos combatentes tinham.-se amotinado contra o regime. As autoridades continuavam a pedir calma e assegurar que tudo era uma questão de tempo até controlarem a situação. Houve várias tentativas de tomada de assalto ao aquartelamento de Brá mas a situação continuava tensa e incerta.

Com a intensificação dos confrontos fomos avisados pela parte governamental de que devíamos evacuar a zona onde habitávamos, temporariamente, senão arriscávamo-nos a ficar entre dois fogos e sermos alvo de bombardeamentos. Oh,  pá! Não, já não estava assim tão satisfeito com esta decisão que nos afastava das nossas casas. Era, de facto, o início do nosso calvário que só terminaria com o fim da guerra, um ano depois.

O meu irmão mais velho, convocou uma reunião de emergência para nos informar que os membros da nossa família, enquadrados por ele, deviam afastar-se um pouco, mais a leste nos confins do Bairro militar, eu deveria ficar para cuidar da casa. Não houve contestação e assim, sem preparação adequada, as mulheres pegando naquilo que podiam mais as crianças, rapidamente, seguiram para cima, a leste do Bairro, onde ficariam ao abrigo da artilharia que estava a visar a nossa zona.

Esta forma simplista e confiante de pensar que tudo se resolveria rapidamente revelou-se depois muito prejudicial, pois, o que se previa ser para algumas horas viria a durar mais de um ano, e passo a passo seriamos obrigados a seguir para mais longe, longe e longe, e finalmente seria o refúgio.

3º dia > Terça-feira, 9 de Junho
  
No terceiro dia (9 de Junho), o meu irmão comunicou-me a sua decisão de sair de Bissau e partir para Fajonquito, nossa aldeia natal, onde iria esperar pelo desfecho da guerra em que se tinha transformado o levantamento de alguns dissidentes do regime. Sem saber que decisão tomar, acompanhei o meu irmão e um grupo de pessoas que tinham decidido sair de Bissau. Mandei a minha esposa e filho juntar-se à sua irmã mais velha, Djenaba,  no Bairro de Ajuda, na esperança de que talvez aquilo terminava em breve. Eu fiquei em Brá, na nossa casa. Entretanto, comecei a pôr em marcha um dos princípios de Amílcar Cabral ou seja, esperar o melhor, preparar-se para o pior.

Com o dinheiro que tinha,,  fui comprar alguns mantimentos pois calculava que dentro em breve podia não haver nada para vender ou comprar. No mercado alguns cacifos estavam abertos, as pessoas estavam agrupadas à volta de aparelhos de rádio ouvindo as poucas informações que a RTP fornecia e comentavam os últimos acontecimentos que circulavam de boca em boca. Foi ai que ouvi alguém dizer que os amotinados estavam a receber reforços de outros aquartelamentos do interior e que muitos jovens estavam a aderir às fileiras dos revoltosos. A proporção que o problema estava a ganhar e a perspectiva de que o conflito poderia arrastar-se por muito tempo,  desanimou-me muito.

Voltei para casa, abri o rádio para acompanhar a RTP, única rádio em funcionamento, que tentava conseguir informações sobre as razões do motim e os nomes dos cabecilhas. Tornou-se evidente que a situação no terreno não era tão favorável aos governamentais como faziam crer pela rádio nacional. Passei a noite em claro pois, os tiros eram esporádicos mas repetitivos.

4º dia > Quarta-feira, 10 de Junho

Na manhã do quarto dia de conflito (10 de Junho), sai de casa, atravessei a estrada principal do Bairro militar, tendo reparado que a estrada estava bloqueada e vigiada por tropas governamentais e que não havia circulação de viaturas. Para chegar ao Bairro de Ajuda, onde se encontravam minha esposa e filho, a única maneira era atravessar a bolanha a pé, lá para os lados de “manel iagu”. Foi para onde segui. Estava absorto nos pensamentos que se afluíam a minha mente de forma desordenada.

Lembrei-me dos tempos de estudante em Kiev e, da tensão permanente em que vivíamos, atravessando as ruas, com medo da agressão dos jovens locais que não perdiam uma única oportunidade para nos maltratar física e verbalmente. Por várias vezes, tinha sido alvo de agressões violentas, não propriamente por racismo, penso eu, mas porque estavam naquela idade quando se sente a necessidade de assumir riscos e desafiar o status-quo. Pese embora a nossa precária situação, não dávamos o braço a torcer. Uma vez, traído pelo embaciamento dos meus óculos devido ao frio, tinha entrado, sem dar conta, no meio de um bando de jovens, alguns dos quais tinham o dobro do meu peso e mediam perto de dois metros de altura numa zona considerada perigosa para os estrangeiros.

De repente senti que alguém me segurava por trás, impedindo-me de avançar. Estava com medo, mas nem por isso vacilei, virei-me para enfrentar quem quer que fosse. Os homens presentes diziam: Matem o macaco preto!. As mulheres, sempre mais humanas, gritaram-me para que fugisse. Eram muitos, aguentei por algum tempo mas depois tive mesmo que fugir debaixo das pedradas e insultos daqueles jovens ainda na idade da inocência, desprovidos de sentimentos de piedade e de amor ao próximo. Na briga, tinha perdido os óculos, as compras e parte das minhas vestes. As costelas,  doridas, deixavam entrar o frio por todos os lados em pleno inverno russo. Consegui arrastar-me andrajoso, sob o olhar curioso dos transeuntes, até a residência dos estudantes. Não queria que os colegas soubessem, mas os sinais no corpo eram por demais evidentes, tinha levado uma sova a valer. Estávamos em 1990 e a União Soviética tinha entrado na sua fase irreversível de perestroika e nunca voltaria a ser a mesma dantes. O perigo espreitava de todos os cantos.

“Minha Rosa - Diminga” ou a luz brilhante de um horizonte inacessível.

No momento, também, estava com medo. Um medo indefinível e amplo que acariciava todo o meu corpo e apresentava-se no horizonte da minha vida que ainda agora começava a florir. A minha situação profissional e familiar era estável, podia-se mesmo dizer boa, em comparação com a grande maioria, tinha a família que ambicionava e era director numa instituição pública ligada à manutenção das rodovias, ganhando relativamente bem.

No caminho, ainda se ouvia o ribombar dos obuses a partir da base aérea. O ruído atravessava toda a cidade para se perder nas águas do rio Geba. E cada vez que isso acontecia, instintivamente, curvava-me todo para a frente como se quisesse evitar que algo invisível me cortasse ao meio. à minha frente seguia o vulto de uma mulher que, também, fazia a mesma ginástica rítmica. Durante a marcha, caíamos e levantávamo-nos juntos sem parar, ao ritmo dos disparos, ela a frente e eu atrás.

Apesar do medo e da urgência do momento, acabei por fixar o meu olhar nela de forma insistente. Havia qualquer coisa de invulgar na sua forma de andar. Sobretudo, tinha reparado no movimento ondulatório das suas ancas. Porque é que insistentemente o meu olhar vai para as nádegas das mulheres? Não sei, ninguém me ensinou, deve ser hereditário. Fixei o meu olhar nas nádegas. Havia uma harmonia incrível de movimentos que me embalava e me cativava, que iniciava nos seus pés bem firmes no chão e subia, subia até as tranças dos cabelos levemente amarrados por detrás da cabeça felina. Ela possuía um corpo bem consistente, cheio e flexível que combinava com a dança frenética de subidas e descidas ondulatórias das nádegas –“unata defata ko iarta beréberé!”1.

Era estranho, os habitantes de Bissau viviam sob o choque de uma brutal guerra de quartéis, por enquanto, e eu devia pensar em coisas sérias, ia encontrar-me com a minha família e devia pensar numa forma de os tirar de lá. O meu irmão já tinha saído e toda a cidade estava em fuga. Eu não, estava ali colado atrás de umas nádegas que não conhecia de lado algum mas que me atraíam como as flores atraem as abelhas.

Impávido e feliz por aquele momento divino de contemplação, já não andava, corria, corria atrás daquela figura que parecia uma luz brilhante no horizonte inacessível da minha vida povoada de cenários de guerras. Sim, uma luz como a lua cheia numa noite escura que brilha mas não ofusca a vista, visão celestial. Corria como um sonâmbulo com as mãos em concha estendidas para a frente, num gesto ridículo e egoísta de não deixar cair nenhuma gota daquele mel doce da minha alucinação.

 Julgo que caminhámos três km, ou foram sete? Não sei dizer. Aquele cenário não me era estranho de todo. Onde o teria visto ou vivido? Ah! Sim, foi no caminho de fuga entre Berécolon e a fronteira do Senegal, ainda criança na inesquecível noite do ataque dos eternos terroristas da nossa terra em 1964. Não, é o filme de Flora Gomes, Mortu Nega.. Estamos a caminhar com o grupo de guerrilheiros que vai reforçar a frente destroçada pelos bombardeamentos da aviação inimiga. Atravessamos a lala a correr, curvados para a frente e agora embrenhamo-nos na floresta. “Cuidado com as minas!”, é o Capitão Mamadú que, à frente da coluna, de silhueta imponente, nos ordena: “Coloquem os pés em cima das minhas pegadas, e deitem-se no chão ao menor ruído!”. Parece imune ao perigo que nos espreita do ar e da terra, este rapaz valente. Ainda nos avisa: “Vamos acelerar o passo e se ouvirem o roncar de um helicóptero, dispersem-se e coloquem-se debaixo do primeiro arbusto, se não houver arbustos, então transformem-se em baga-bagas dobrando o corpo em dois!”.
- Hé, badjuda, kuma ki´u nomi? – pergunta a mulher grande à miúda a minha frente.
- Amí tchoma Diminga, Diminga de Bithame. 

A velha, sorrindo insiste:
N´hundê ku-na bai ? 
N´na bai djubi nh´ome k´stá na frénti – responde esta.
                                          
É isso, é a Diminga que está a minha frente. Chegamos à travessia d´água. A menina pára e vira-se para mim olhando, pela primeira vez, e cruza-se com o vazio dos meus olhos de sonâmbulo, fixos nas suas ancas largas e apercebe-se, num relance, da enormidade do desejo que me aflige. Ou não se apercebe? Pega na minha mão para ajudar-me a atravessar a água lamacenta. Sem perder tempo, aproveito o momento e a mão estendida para abraçar o seu corpo inteiramente e adormecer feito criança.
- Já cheguei! - diz ela.

Não compreendo. Como pode ela chegar se eu ainda nem comecei a andar embalado no seu peito macio - pensei comigo.
- Já cheguei a minha casa, agora podes continuar o teu caminho! - repetiu ela.
 Aproveitando a abertura do seu sorriso, balbuciante, perguntei:
 - Kuma kí´ú nomi ?
- Nha nomi´i Rosa – respondeu, baixando o seu rosto para fugir do meu olhar prenhe de angústias. Sem delongas, virou-se e seguiu seu caminho bambaleando levemente aquelas nádegas da minha perdição. “Rosa, chamam-te Rosa minha preta formosa, e na tua negrura, teus dentes se mostram sorrindo, teu corpo baloiça, caminhas dançando, lasciva e ridente, vais cheia de vida, vais cheia de esperança, em teu corpo correndo a seiva da vida, tuas carnes gritando e teus lábios sorrindo” (2).

Esquecido do mundo e da guerra, fiquei especado no chão a olhar infinitamente como se aquela imagem que se perdia lá longe levava também consigo o fim da minha atribulada existência de combatente do nada num mundo em constante mutação e de fugas para a frente. Lutas de libertação e/ou de apropriação, as aldeias queimadas e os campos abandonados, o fardo das regras e religiões que chegaram com o mundo novo, tudo, temperado no inevitável processo de esvaziamento da alma, a globalização, o gesto ridículo do mimetismo cultural, golpes e contra golpes, programas de ajustamento, crises financeiras…

 Ela não disse se era de Bitháme. Será que isso interessa? Também não tinha perguntado. Cheguei ao Bairro d´Ajuda sem saber se tinha caminhado ou voado com as asas que a visão daquela Rosa-Diminga me tinha incorporado. Em casa da Djenaba, reinava uma calma aparente pois,  estando o marido fora,  ela sozinha estava desorientada. Fazia e desfazia bagagens sem saber o que levar e o que deixar. Disse-lhes que devíamos fazer o que toda a gente estava a fazer, ou seja, sair para fora da cidade. Pegar o mínimo essencial, isto é, uma garrafa de água em cada mão.
- Não! - disse-me prontamente . Vamos esperar até amanhã.

Mais tarde soube que afinal ela não se tinha decidido a sair porque os seus vizinhos ainda não o tinham feito. Voltei para casa. Os tiros tinham cessado. Àquela hora da noite, já não havia nenhum movimento nas ruas do Bairro militar e certamente as casas também encontravam-se vazias. A noite foi silenciosa, longa e tensa. Eu, a tentar dormir, os ratos a explorar regiões antes proibidas na casa deserta, lá fora as BM (“baevie machine” - que literalmente significa máquinas de guerra em russo) a cuspir fogo de Estaline.

5º dia > Quinta-feira, 11 de Junho

Na manhã do dia seguinte ainda continuaram os tiros dos obuses. Dirigi-me ao mercado. Ainda havia gente aglomerada em alguns pontos tentando encontrar alguma coisa para provisão da casa ou do caminho. Todavia, o cenário de vaivém tinha dado lugar a uma única e longa fila de saída para fora da cidade. Depois do falhanço, um dia antes, da tentativa encetada por uma comissão Ad-Hoc de algumas pessoas de boa vontade de fazer sentar as duas partes na mesa de negociações, ficou claro para toda a gente que o conflito iria durar, transformando-se em guerra civil. O Comandante em Chefe não admitia negociar com um grupo de bandidos. Os primeiros contingentes de tropas dos aliados do norte e do sul já estavam a desembarcar no porto. Era uma situação insustentável. O fluxo das pessoas a caminho do refúgio era cada vez maior.   

  (Continua)

Notas do autor:

(1) “Não pila, não cozinha mas come do melhor “– Uma elegia masculina dedicada ao balanco ondulatório das nádegas da mulher africana, na lingua Fula.

(2) Amilcar Cabral (1924-1973), antologia poética.

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Notas de L. G. :


(**) Trata-se de 7 de Junho de 1998 e não 1997, como por lapso escreveu o autor. Foi o início da longa e sangrenta guerra civil na Guiné-Bissau. Nesse dia de domingo, 7 de Junho de 1998, um grupo de militares, liderado formado pelo brigadeiro Ansumane Mané (antigo chefe do Estado-Maior) fez um golpe de Estado com vista à queda do presidente Nino Vieira. As tropas militares rebeldes entraram em confronto com as
forças presidenciais, que serão ajudadas pelo Senegal e pela Guiné-Conacri.

Este conflito provocar centenas de mortos e milhares de refugiados guineenses, não só em Bissau como noutras localidades, que se espalharam pelo interior e por diversos países (incluindo Portugal).

Haverá uma primeira tentativa de acordo nos dias 25 e 26 de Julho, altura em foi celebrado o "Memorando de Entendimento", um documento que, em 25 de Agosto, viria a dar lugar ao cessar-fogo. As delegações do Governo da Guiné-Bissau e a Junta Militar, de Ansumane Mané, concordam em fazer um trégua.  No entanto, as coisas iriam complicar-se... A guerra civil prolongar-se-ia por mais quase um ano, com lutas pela conquista do território e expulsão das tropas estrangeiras, aliadas de 'Nino' Vieira. A maior parte da Guiné-Bissau acaba por ficar sob o domínio das forças revoltosas. 'Nino' Vieira acaba por aceitar um cessar-fogo em 7 de Maio de 1999. um novo cessar-fogo em 7 de maio de 1999, Refugia.se na embaixada portuguesa durante um mês, seguindo depois para um exílio de seis anos de exílio em Portugal (na sua residência em Gaia, arredores do Porto).

Fonte: Adaptado de Nino Vieira. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2010. [Consult. 2010-09-17].Disponível em http://www.infopedia.pt/$nino-vieira.