Caros Luís, Carlos, Virgínio, Magalhães e restante Tabanca Grande.
As nossas mulheres acompanharam-nos durante aqueles anos e quando regressámos, de muitos aturaram e trataram as feridas da alma que carregámos.
O alcoolismo, os traumas de muitos, foram duras batalhas que para as quais só elas disseram presente.
Primeiro ficaram chocadas, incrédulas com a agressividade e maus tratos, vinda de quem o regresso tanto tinham desejado.
O seu sofrimento deu lugar à resignação ao abandono.
A História tinha-as usado e deitado fora.
Também elas estiveram na guerra e muitas nunca alcançaram a Paz.
É para elas esta estória, também a dedico à minha mulher que há trinta e um anos me atura e equilibra a minha vida.
Um abraço para todos
Juvenal Amado
Estórias do Juvenal Amado (31)
DESSE AMOR FICOU SÓ A NOSTALGIA DAQUELA IDADE
O Unimog da escolta aparece e desaparece entre as nuvens de pó que a coluna formada por Berliets, Chaimites e Whites levantam quando se dirige ao Saltinho. Serve a dita também para reabastecer Mansambo e Xitole dois destacamentos do Batalhão de Bambadinca.
No Saltinho e a pescaria
Mansambo, Xitole e Saltinho fazem segurança nas respectivas zonas de influência e o aspecto barbudo, os cabelos demasiado grandes bem com o fardamento descuidado dos homens, quase faz o nosso Comandante ter um ataque de «caspa».
O ar reprovador que nós bem lhe conhecemos, deve ter chegado aos ouvidos dos graduados e posteriormente ao próprio Comandante na sede do Batalhão, a que as duas Companhias pertencem.
Viaja normalmente entre os homens da escolta sem galões e de espingarda como qualquer soldado, não vá o diabo tecê-las e ele ser referenciado como alvo importante que é.
Não foi pois de admirar um alferes ou o furriel, ver-se interpelado por um militar cheio de pó, que salta de uma viatura da escolta e grita com ar bem azedo:
- Oh nosso alferes não há barbeiros nesta Companhia?
Escusado será dizer-se que o homem quando chegou ao Saltinho, bem tentou apanhar alguém com o cabelo ou a barba fora dos regulamentos, para descarregar assim a fúria contida.
Estavam os nossos camaradas do Saltinho bem avisados!
Os que não estariam nas melhores condições desviaram-se do seu caminho e evitaram assim algumas chatices.
Mas voltando ao caminho, o pó cobria-me todo. Valem-me os óculos e o lenço no nariz e na boca para me proteger.
Os meus pensamentos voavam para casa, porque a Maria vai chegar depois de sete anos de ausência e eu não a vou poder ver nem estar com ela.
Foi uma paixão tímida de adolescente, pois sendo ela amiga da minha irmã e eu querendo escapar à troça, desmentia a evidência da minha paixoneta que todos conheciam.
Ela era mais velha e eu pensava não estar ao meu alcance essa relação.
Tinha eu dezassete anos quando ela emigrou para outro continente. Passamos a escrevermo-nos, mas a distância e os anos, fizeram esfriar os sentimentos tão pouco amadurecidos.
O rosto dela, a sua recordação e dos bailaricos onde tudo fazia para poder dançar com ela, fizeram-me companhia muitas noites, quando aguardava a rendição no posto de sentinela.
Fazia planos e sonhava acordado.
Pensava no que lhe iria dizer finalmente quando a voltasse a ver.
O que é que haveria afinal entre nós?
Será que recuperaria os sete anos de afastamento onde outros relacionamentos tinham eclodido e esmorecido, como os dias naquelas paragens, onde o dia nasce e morre rapidamente?
Estamos a atravessar uma ponte. Temos de passar com as rodas em cima de travessas de madeira.
Só passa uma viatura de cada vez.
E se nos atacassem agora lá do fundo da bolanha quando eu vou a meio da ponte?
A viagem é lenta por razões de segurança, mas também por causa da picada. Quando chegar ao Saltinho, vou logo tomar um banho no rio. Não estou habituado a ter abundância de água como ali há.
As estações das chuvas estão à porta e eu só regressarei depois quando as picadas ficarem novamente transitáveis.
A vontade de rever a Maria tinha-me levado quase a pedir aos meus pais, que me arranjassem o dinheiro da passagem. Seria um pedido irracional sabendo eu, que eles não têm dinheiro para isso. Irão pedi-lo, se eu levar as minhas pretensões em frente.
Lá está o Saltinho com a sua ponte de arcos em cimento, que parece deslocada na paisagem.
Moderna de mais para as necessidades, parece um monumento ao absurdo, pois começava e acabava em trilhos de terra batida por onde pouco trânsito se faz.
Quando a mandaram construir viram com certeza outro futuro para ela.
No Saltinho a banhos
O rio Corubal corre abundante debaixo dela. A água tão racionada praticamente em toda a zona Leste é ali um bem à mão.
O meu reencontro com a Maria está definitivamente adiado, mas aquelas paragens, iram ajudar a suportar a impossibilidade de a abraçar e regressar ao passado, quando a sua presença me punha o coração aos saltos.
Talvez um dia quando regressar e a encontrar, lhe diga o que foi para mim a sua recordação, as suas cartas bem como as cassetes com a sua voz, nos anos em que estivemos separados, especialmente nos dias e noites do Leste da Guiné.
Voltei a vê-la 12 anos depois.
O passado não se repetiu quando a encontrei.
O meu coração tinha outra dona, que conheci depois de regressar e com quem dividi a vida e os anseios futuros.
Ficou assim por se cumprir uma vida, a certa altura sem queres ou por opção, ou porque fomos empurrados, tomamos caminhos diferentes, que não tiveram retorno.
Restou assim a nostalgia de um amor não concretizado e para sempre perdido na voragem dos dias e anos.
Juvenal Amado
Catroga e a Ponte do Saltinho
__________ Nota de CV:
Vd. último poste da série de 4 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6931: Estórias do Juvenal Amado (30): Quando o passado vem ao nosso encontro
5 comentários:
Viva JUVENAL Amado!
LI A sua estória e venho dizer-lhe que, conheço um caso parecido, que desse tempo sobreviveu, e se manifesta hoje, com uma intensidade mais forte, do que nesse tempo de inexperiências, um caso de amor forte e profundo, que sobreviveu ao tempo, numa hibernação de quarenta anos. Desencontros, outras vidas, que se cruzaram, que se viveram, mas o amor, mais que profundo, mais forte que o tempo e que qualquer pensamento, ressurgido, vai continuar a resistir ao tempo, às outras vidas, pois trás desse tempo de guerra, a força para vencer.
(É um amor jovem,de velhos)lindo, com toda a riqueza do conhecimento, do amadurecimento, da saudade e da ausência, que lhe confere a verdadeira avaliação.
Acredite Juvenal, este caso que cito, não será certamente o único, que acontece com a nossa gente, que viveu esse tempo e esse drama, mas, que por motivos vários se cruzaram com outras pessoas e se perderam do verdadeiro amor das suas vidas.
Contudo, o destino junta-as, ainda a tempo de viverem o amor verdadeiro, que foi interrompido, para cumprir outra missão que lhe havia sido destinada.
Por pseudónimo
Felicidade
Caro Camarada Juvenal
Aqui está uma faceta dos tempos da 'comissão de serviço por imposição' que não tem sido muito referida mas que afinal acabou por ser muito mais recorrente do que se pensa, pela ausência de referências.
Era inevitável que assim fosse. Afastamentos em idade tão crítica, só por grande determinação e compromisso poderiam ser mantidos.
Um abraço
Hélder S.
Boa noite Juvenal
Acabei de te ler e fiquei um bocado de tempo sem palavras. É preciso ter coragem para a "confissão de um amor de que só ficou a nostalgia"!?
É um assunto tão intimo que custará, com certeza, muito a partilhar.Tiveste a coragem de o fazer e felicito-te por isso.Como diz e bem o Helder Valério aqui está o exemplo de uma questão recorrente que teve consequências dramáticas para muitos.As tais dores de alma que consumiu vidas partilhadas durante os dois anos de comissão e se esfumaram...por a separação ter sido demasiado longa.
Quantos terão passado por isso?
A Felicidade fala em "hibernações" de 40 anos e de pessoas que perderam o verdadeiro amor das suas vidas.
Capítulos da vida.
Um abraço de Alcobaça,
JERO
Caro Juvenal
Primeiramente fizeste-me lembrar a cena muito bem contada dos cabelos dos camaradas de Mansambo e Xitole(especialmente estes, que pôs o nosso falecido comandante em estado de coma. Durante muitos dias ele falou nisso e da pouca disciplina que grassava naquelas companhias, onde, ainda por cima viviam algumas brancas (mulheres de oficiais e sargentos)o que ele não tolerava. Como te recordas nem as lavadeiras entravam no quartel de Galomaro. Mulheres no quartel não!
Os amores vividos à distância eram para alguns uma forma de arranjarem forças para "aturar" aquilo e um escape para esquecer as noites mal dormidas. Muitos de nós passaram por situações idênticas, por encontros e desencontros. Quantos de nós ainda temos na cabeça alguém que foi "importante", que alertou os nossos sentidos, que pôs em alvoroço o nosso coração e que por acasos de vida deixámos de ver e, se calhar, ainda hoje pensamos que se tivesse dado certo, se tivesse o cupido acertado ambas as setas, a nossa vida teria sido outra? A vida dá-nos oportunidades. Elas passam-nos na frente, mas muitas das vezes estamos distraídos, outras preguiçosos e noutras achamos que a pessoa nem nos ligaria nenhuma.....!
E depois sonhamos que talvez pudesse ter sido completamente diferente.
Um abraço do tamanho do Rio Corubalo
Luís Dias
Meu camarigo Juvenal
Que dizer-te, se não que as memórias de quando em vez se tornam "presentes passados"!
Gostei, gostei muito!
Seria eu um dos "indisciplinados"???
Cheira-me que já não nadava por paragens do Xitole!
Um abraço camarigo para ti e para todos
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