1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Agosto de 2010:
Queridos amigos,
Foi exactamente assim que aconteceu.
A fotografia saltou de um livro, dias depois chegou o Abudu Soncó e deu-me a triste notícia. O terrível de tudo é olharmos para uma fotografia onde somos o sobrevivente e termos saudades daquelas pessoas que confiavam incondicionalmente em nós.
Uma saudade irremediável, a mais pungente de todas.
Um abraço do
Mário
De braço dado com a minha amiga Djassió Soncó
Beja Santos
Está rotundamente enganado todo aquele que pensa que tem os papéis em dia, dossiês organizados para a posteridade, recordações arquivadas porque elucidadas. Vem tudo isto a propósito de duas ferroadas do destino: uma fotografia totalmente esquecida e tão importante para os meus afectos, concomitante com uma notícia desabrida, com mais uma perda.
Naqueles anos em que simulei que a guerra andava num limbo, qualquer resquício da sua presença era metido numa profundeza, o futuro que o desencantasse. Como aconteceu com esta imagem. Saltou desabridamente de um livro, a surpresa deixou-me apatetado, a cismar. Não fosse o leitor levado a supor que disponho de uma memória de elefante, eu diria naturalmente: parece que foi ontem que tirei esta fotografia. Mas não foi, tudo se passou em fins de Maio de 1969, estamos em plena época heróica da reconstrução de Missirá. A máquina fotográfica não é minha é do Pires, ele virá depois a férias, mandou revelar na Fotopax, de Beja, no mês seguinte. A minha máquina fotográfica ardera em Março, nesta altura não tinha dinheiro nem para mandar cantar um cego. Estou de braço dado com Djassió Soncó, mulher de Quebá Soncó, irmão do régulo e nosso guia. No fundo, a morança do régulo Manlã, com um colmo lindíssimo. Ao lado de Quebá, pequenino e gingão, Trilene (soldado milícia que adorava camisas de terylene) fuma e olha, magano, para a câmara. Amanheceu, todos acreditam que vamos directamente para Bambadinca. É mentira, vamos a Mato de Cão, cerca das onze horas irão passar dois batelões e, inopinadamente, partiremos para o Enxalé, em duas viaturas. Djassió ia em pânico, toda a gente temia aquela viagem na estrada abandonada entre Mato de Cão e Enxalé.
Na fotografia estamos de braço dado, Djassió Soncó é uma estimável amiga, feições de grande beleza, um porte quase imperial. É mãe daquele Mamadu Soncó que vai viver para Bambadinca nos últimos tempos da minha comissão, lá para Julho de 1970. Estava convencido que eu o traria para Portugal, sempre me chamou Paizinho. E um Paizinho faz tudo pelos filhos.
Lembro-me de tudo ou de quase tudo. A boa disposição que eu tinha nesse dia, com Missirá a reconstruir-se. Ali está a base onde assenta o pau de bandeia com o distintivo do Pel Caç Nat 52. Vêem-se as trouxas habituais numa viagem, quer à ida quer no regresso.
Depois veio o desacerto do destino. Djassió irá ficar brutalmente sinistrada numa flagelação em Julho. Perderá um braço, uma roquetada trespassou o telhado, a viga mestra cedeu, derrubou-a, decepou-a. Estou a ver, na noite alta, Quebá Soncó a levar esse braço decepado para o enterrar. Parece que Quebá Soncó terá sofrido inúmeros vexames na prisão, em Bafatá, onde morreu, a seguir à independência.
Trilene foi fuzilado por engano, disseram-me que gritava em frente ao pelotão de fuzilamento, desorbitado: “O que é que eu fiz? Por quem me tomam?”.
O pior de tudo estava para vir. Visitei Djassió algumas vezes no bairro Benfica, em 1991, quando trabalhei como cooperante, em Bissau. É exactamente quando Abudu Soncó chega a minha casa (tinha eu descoberto a fotografia há escassos dias), para conferir a lista das visitas que pretendo fazer quando voltar à Guiné e lhe mostro a fotografia da Djassió, sua tia, que fico a saber que ela morreu há pouco tempo.
Não sei se isto é pura casualidade, se eu estou a fantasiar que podia ter sido ontem que eu tirei esta fotografia, que estou feliz de braço dado com esta amiga, tão castigada pela vida. Na fotografia estou feliz segurando o guarda-mão em baquelite da G3. Aquele mundo é meu, pertence-me integralmente, ali respondo pela guerra e pela paz.
Já morreram todos, os que estão a meu lado. São cerca de sete horas da manhã, vejo a sombra de alguém em cima do Unimog 404 que vai seguir ajoujado até ao Enxalé e, no regresso, deixaremos muita gente em Finete.
Olho sem melancolia este tempo tão intensamente vivido, cercado de vítimas da guerra. Sem melancolia mas cheio de saudade, à portuguesa. Por isso me estou a preparar para percorrer por todo o Cuor, em jeito de despedida. Todos os actores da fotografia, afinal, vão partir.
__________
(*) Vd. poste de 10 de Setembro de 2010 Guiné 63/74 - P6966: Notas de leitura (148): Transição Democrática na Guiné-Bissau, por Johannes Augel e Carlos Cardoso (Mário Beja Santos)
Vd. último poste da série 10 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6965: In Memoriam (50): João Baptista (1938-2010), um camarada, um amigo, um irmão (Octávio do Couto Sousa)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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7 comentários:
Olá Mário
Só para te mandar um abraço.
Aqueles tempos deixaram marca, forte e a perdurar tempos fora. Aquelas gentes, a maioria eram nossos amigos e, mesmo hoje, tantos anos depois sentimos saudades de tantos deles. Uns marcaram-nos mais do que outros. Eu recordo, sinto vontade de abraçar tantos e sei ser impossível. Mesmo que até lá, até àquelas terras voltasse muitos desapareceram. Muitos viram o pelotão de fuzilamento á frente ou, pior ainda, outra forma de morrer mais cobarde. Isso não esqueço, isso não perdoo. Caminhamos juntos, antes de ti com o Saiegh, contigo e com outros.
Há uma dívida para com eles,vivos ou mortos. Sinto isso e não quero recordar.Turva-me o raciocínio. Deixo de ser quem hoje sou e volto. Regrido no tempo e nada, mesmo nada do que aconteceu me atormenta. Combatemos com honra. Combatemos em guerra injusta, em luta que não acreditava. Mas o respeito para comigo, para com os Homens que comigo andavam, pela busca de um futuro melhor para aquelas gentes a isso me (ou nos?)obrigava.
Era só um abraço.
Vai no fim. Abraço fraterno para ti, para todos os que connosco combateram.Eles vivem sempre connosco.
Torcato
Caro Torcato
Concordo plenamente contigo no teu comentário.
Sinto-me honrado por ter comandado soldados fulas em situações difíceis, e em combate, têr acompanhado e confraternizado com eles nos seus "Roncos", ter partilhado mantenhas. Por isso tal como tu não perdoo nem esqueço as atrocidades que eles foram alvo nas mãos do PAIGC.
HONRA E GLÓRIA para eles.
Alfa Bravo
Luís Borrega
Caro Mário
É de facto inquietante quando se olha à volta e se sabe que todos os outros já partiram...
Também não deixa de ser natural que, por essa ou outra ordem qualquer, alguém seja o último. No entanto o conhecimento das circunstâncias totalmente recrimináveis que afectaram alguns deixa aquele sabor de raiva pela impotência em 'apagar' essas incorrecções.
Este teu texto é um belo momento de introspecção.
Um abraço
Hélder S.
Djassió Soncó,Queba Soncó,existiram?
Missirá,Finete,Mato Cão,eram reais?
Beja Santos inventou?Eu inventei?
Ou misteriosamente sonhámos ambos o
mesmo Sonho?
Abraço.
Jorge Cabral
Mário, dentro das tuas habituais NOTAS DE LEITURA, vê se arranjas um espaço para o jornalista Caboverdeano,JOSÉ VICENTE LOPES, sobre a reabertura do Tarrafal pelo governo português/PAIGC, para arrecadar uns mesitos uns tantos caboverdeanos.
Pelos vistos estes caboverdeanos tiveram mais sorte que os comandos africanos, foi o Tarrafal que os salvou.
Os meus cumprimentos
BOA!
Só tu meu caro Jorge Cabral.
Mas eu passei por lá...o Mato Cão ...a rir não dá...Ab do Torcato
E aproveito a embalagem
Antº Rosinha
Porque não falar em tantos Tarrafal antes, durante e DEPOIS da INDEPENDÊNCIA.
Abraços
do TM
Olha Torcato,ao Mato Cão devo ter
ido mais de cem vezes...Algumas,
Bambadinca enganava-se e não
passava barco nenhum...o que me
valeu mais um auto,quando enviei
a seguinte mensagem--Mato Cão,
tráfego intenso de submarinos..
Abraço
Jorge Cabral
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